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Lixo, conduta humana e a gestão dos insuportáveis

Basura, conducta humana y la gestión de los insoportables

Garbage, human conduct and management of the unbearable

Resumos

O lixo, como experiência insuportável da vida urbana, aglutinadora de matérias pútridas, inúteis e de refugos da sociedade, traduz-se, a partir do método genealógico pautado nos estudos de Michel Foucault, na análise das formas de problematização sobre as condições de existência do sujeito moderno. Duas formas principais de aglutinação de discursos e práticas apresentam-se aliados aos modos de governo das condutas. Na primeira delas, a forma lixo compõe-se de restos, matérias pútridas e inúteis, cujas práticas, outrora dispersas no campo do real, são organizadas conforme a racionalidade da medicina-social. Em segundo, a forma resíduo, por sua vez registra um novo campo de visibilidades sobre os restos, apoiado pelo conjunto de práticas sociais e discursos ecológicos que o circunscrevem como objeto de políticas públicas e, portanto, de governamentalidade, tais como, os conceitos de reciclagem, inclusão social e preservação dos recursos naturais.

lixo; resíduo; práticas sociais; conduta humana; governamentalidade


La basura, como experiencia insoportable de la vida urbana, aglutinadora de materias podridos, inútiles y de residuos de la sociedad, fue traducido, a partir del método genealógico guiado por los estudios de Michel Foucault, y sus formas de problematización sobre las condiciones de existencia del sujeto moderno. Dos formas principales de conjunto de discursos y prácticas se presentan aliados a los modos de gobierno de las conductas. En la primera, la forma basura se compone de restos, materias podridas y inútiles, cuyas prácticas, anteriormente dispersas en el campo del real, son organizadas conforme la racionalidad de la medicina-social. En segundo, la forma residuo, registra un nuevo campo de visibilidades sobre los restos, apoyado por el conjunto de prácticas sociales y discursos ecológicos que circunscríbelo como objeto de políticas públicas y, por lo tanto, de guvernamentalidad, tales como los conceptos de reciclaje, inclusión social y preservación de los recursos naturales.

basura; residuos; prácticas sociales; conducta humana; guvernamentalidad


Garbage, as unbearable experience of urban life that agglutinate putrid, worthless and of society waste materials, is reflected,from the genealogical method based on studies of Michel Foucault, in the analysis of the forms of problematization about the conditions of existence of the modern subject. Two major forms of assemblage of discourses and practices are presented allies the modes of governance of conduct. In the first, the waste form is composed of debris, rotting and useless materials, whose practices, formerly scattered in the field of real, are organized according to the medical-social rationality. Second, the residue form in turn registers a new field of visibility on the remains, supported by the set of ecological social practices and discourses that circumscribe as an object of public policy and therefore governmentality such as, the concepts of recycling, social inclusion and preservation of natural resources.

garbage; residue; social practices; human conduct; governmentality


PRÊMIO ABRAPSO

Garbage, human conduct and management of the unbearable

Ricardo Abussafy de Souza; Sonia Aparecida Moreira França

Universidade Estadual Paulista, Assis/SP, Brasil

RESUMO

O lixo, como experiência insuportável da vida urbana, aglutinadora de matérias pútridas, inúteis e de refugos da sociedade, traduz-se, a partir do método genealógico pautado nos estudos de Michel Foucault, na análise das formas de problematização sobre as condições de existência do sujeito moderno. Duas formas principais de aglutinação de discursos e práticas apresentam-se aliados aos modos de governo das condutas. Na primeira delas, a forma lixo compõe-se de restos, matérias pútridas e inúteis, cujas práticas, outrora dispersas no campo do real, são organizadas conforme a racionalidade da medicina-social. Em segundo, a forma resíduo, por sua vez registra um novo campo de visibilidades sobre os restos, apoiado pelo conjunto de práticas sociais e discursos ecológicos que o circunscrevem como objeto de políticas públicas e, portanto, de governamentalidade, tais como, os conceitos de reciclagem, inclusão social e preservação dos recursos naturais.

Palavras-chave: lixo; resíduo; práticas sociais; conduta humana; governamentalidade.

RESUMEN

La basura, como experiencia insoportable de la vida urbana, aglutinadora de materias podridos, inútiles y de residuos de la sociedad, fue traducido, a partir del método genealógico guiado por los estudios de Michel Foucault, y sus formas de problematización sobre las condiciones de existencia del sujeto moderno. Dos formas principales de conjunto de discursos y prácticas se presentan aliados a los modos de gobierno de las conductas. En la primera, la forma basura se compone de restos, materias podridas y inútiles, cuyas prácticas, anteriormente dispersas en el campo del real, son organizadas conforme la racionalidad de la medicina-social. En segundo, la forma residuo, registra un nuevo campo de visibilidades sobre los restos, apoyado por el conjunto de prácticas sociales y discursos ecológicos que circunscríbelo como objeto de políticas públicas y, por lo tanto, de guvernamentalidad, tales como los conceptos de reciclaje, inclusión social y preservación de los recursos naturales.

Palabras clave: basura; residuos; prácticas sociales; conducta humana; guvernamentalidad.

ABSTRACT

Garbage, as unbearable experience of urban life that agglutinate putrid, worthless and of society waste materials, is reflected,from the genealogical method based on studies of Michel Foucault, in the analysis of the forms of problematization about the conditions of existence of the modern subject. Two major forms of assemblage of discourses and practices are presented allies the modes of governance of conduct. In the first, the waste form is composed of debris, rotting and useless materials, whose practices, formerly scattered in the field of real, are organized according to the medical-social rationality. Second, the residue form in turn registers a new field of visibility on the remains, supported by the set of ecological social practices and discourses that circumscribe as an object of public policy and therefore governmentality such as, the concepts of recycling, social inclusion and preservation of natural resources.

Keywords: garbage; residue; social practices; human conduct; governmentality.

Introdução

Este estudo é desdobramento da tese de doutorado intitulada O lixo e a conduta humana: gestão dos insuportáveis na vida urbana (2013), que teve como objetivo fundamental tomar o lixo como analisador das condutas humanas. Esta proposta de investigação traça uma genealogia sobre diferentes proveniências que resultam na aliança entre os modos de gestão dos restos e a produção de condutas na sociedade moderna.

A hipótese é de que os modos de gestão do lixo, desde o simples e cotidiano ato de jogar o lixo no lixo, até chegar aos novos conceitos de resíduos recicláveis e reutilizáveis, no momento em que é marcado como algo insuportável ao modelo da cidade moderna, são capazes de produzir uma série de efeitos de verdade que forjam alguns aspectos da conduta humana como conhecemos na contemporaneidade.

Ao insuportável na gestão das cidades é conferido tudo aquilo que não compõe as estratégias de governo das populações. Os cheiros putrescentes, os acúmulos dos restos que impedem os fluxos de ar, de água, de coisas e pessoas, as velharias que confrontam com as novidades da cidade, assim como as substâncias que compõem o lixo se metamorfoseiam conforme seus diferentes contextos, levando a concepção do insuportável a revestir tais transformações. Tais processos serão descritos na concomitância das análises sobre os modos de gestão do lixo e de seus efeitos de produção de conduta.

Esta pesquisa apresenta ainda como estratégia de análise a escolha de uma matéria inerte, o lixo, como análise da condição do sujeito na modernidade, bem como as práticas sociais que o circunscrevem, em contraste aos estudos tradicionais no campo da psicologia que apresentam como objeto de pesquisa algum traço característico do ser humano, como, por exemplo, suas percepções, suas emoções, sua razão, dentre outros. Trata-se de considerar as práticas sociais não apenas produtoras de saberes e de sujeitos, como também produtoras de objetos, neste caso, o lixo e as relações que estabelecemos com essas formas supostamente inanimadas. Trata-se de um domínio das práticas que encontra na ideia de produção de objetos um quantum, certa ordem de saber e certa ordem de poder que produz sua visibilidade e efeitos de verdade nas relações humanas.

Em consonância com esse pensamento coloca-se a "vida urbana" como umas das vertentes de análise sobre o lixo. Tal expressão desdobra-se da compreensão etimológica de dois conceitos primordiais: civitas e urbs. A urbs caracteriza-se como a materialidade da cidade, o projeto urbano construído com pedras e concreto, vidro e aço. Seria a parte sedentária do urbano, sua moldura, seu aspecto material traçado e demarcado pelas ruas, casas, praças, prédios, pontes, estações de ônibus e trens, escolas, dentre outras edificações, espacialidades e vias. De outra parte, civitas representa a vida da cidade, sua vontade ou sua alma, com seus aspectos sociais, culturais e políticos, suas emoções, rituais e concepções que fazem da cidade a forma de uma comunidade (Sennett, 1990).

No entanto, ao contrário de colocar estes dois conceitos em oposição, cunhar a expressão "vida urbana" coloca seu potencial paradoxal em pauta na tentativa de evidenciar como característica da modernidade a condição de reanimação do inerte, como coloca Castro, a partir dos escritos de Michel Foucault: "O pensamento moderno ... é, em si mesmo, uma ética, um modo de ação: reflexão, tomada de consciência, elucidação do silencioso, palavra restituída ao que é mudo, reanimação do inerte" (Castro, 2009, p. 157).

Escopo de análise para o mapeamento dessa vida urbana, o conceito de governamentalidade apresentado por Michel Foucault oferece a base conceitual para descrição dos procedimentos de organização das condutas. Em seu curso Segurança, Território, População, ministrado no Collège de France entre os anos de 1977 e 1978 (2008a), Michel Foucault apresenta como técnica de governo procedimentos administrativos criados na emergência dos aglomerados populacionais. Trata-se da configuração de um mecanismo de governo que não mais se estabelece pelo controle do território, muito menos pelo controle direto de condutas, mas que se efetiva justamente em seu entorno. Uma espécie de controle que não se concretiza, obrigatoriamente, no governo dos homens, mas no homem em relação com as coisas; "logo governar é governar coisas" (Foucault, 2008a, p. 130).

Metodologia: a genealogia como estratégica da crítica

A escolha do método genealógico, a partir de estudos realizados por Michel Foucault, justifica-se pela estratégia de uma análise das proveniências dos discursos produzidos pelos modos de gestão do lixo e de seus efeitos sobre o governo das populações. Trata-se de um método como estratégia de pesquisa que se coloca, primeiramente, como objeto de análise crítica, de modo a evidenciar os efeitos de verdade a partir da produção de campos de visibilidade e legitimidade do discurso e sua efetivação em uma ordem determinada de práticas.

No caso específico deste estudo, este método visa mapear em que momento alguns discursos, aparentemente dispersos e desconectados acerca das formas de leitura da produção de lixo na modernidade, passam por um processo de reagrupamento em regimes de verdade que acabam por se desdobrar em uma inteligibilidade específica sobre os critérios de gestão do lixo como um dos insuportáveis inerentes à vida urbana. Assim sendo, uma genealogia que "estuda sua formação ao mesmo tempo dispersa, descontínua e regular" (Foucault, 2005, pp. 65-66).

A partir de tais critérios, a investigação das referências bibliográficas e das fontes de pesquisa buscou compilar um conjunto de informações sobre práticas e discursos médico-sociais e ambientais aglutinados para legitimar duas formas, ao mesmo tempo díspares e complementares, de gestão de resíduos que impliquem a formação de hábitos e costumes dos citadinos.

No rastro dos discursos e práticas produzidos pela medicina social, circunscritos pelos mecanismos de gestão do lixo, o presente estudo lançou-se à investigação de práticas características do instante de desenvolvimento das cidades modernas, especificamente no contexto das cidades brasileiras. Para tanto, efetivou-se uma pesquisa criteriosa de documentos históricos, levantados, principalmente, em arquivos históricos municipais das duas maiores cidades brasileiras: São Paulo e Rio de Janeiro. Esse repertório de documentos apresenta uma série de registros sobre congressos brasileiros de higiene, cujos conteúdos dissertavam sobre a necessidade da mudança de hábitos dos citadinos pela educação sanitária aliada ao risco de epidemias. Também foram encontrados procedimentos legais responsáveis pelas primeiras disposições sobre códigos de posturas a serem adotadas pelos munícipes, taxas de cobrança sobre os serviços de gestão de resíduos, obrigações legais de estabelecimentos e edificações, que, em seu conjunto, discorrem sobre a necessidade de acondicionamento, esterilização e produção de uma invisibilidade dos restos que não agradavam os projetos urbanos deste admirável mundo novo.

O outro conjunto de análise, sobre a forma ambiental de gestão dos restos, configura-se não mais na sua invisibilidade, mas na produção de uma visibilidade a partir dos recursos ecológicos, o que implica sua positivação e, até mesmo, sua inscrição no funcionamento social. Verifica-se a articulação de novos conceitos, de modo a produzir uma rarefação do discurso sobre doença, podridão e miséria, e substituí-los pelos discursos da recuperação, reutilização e reciclagem dos restos, apresentando-os como uma nova riqueza ambiental.

Este contexto mais contemporâneo possibilitou levantar uma variedade de reportagens jornalísticas, produções científicas, legislações específicas e estratégias de mercado, além do repertório referente aos procedimentos das campanhas e propagandas de educação ambiental. Salienta-se, ainda, como principal disparador deste conjunto de documentos, o material produzido por acordos ambientais intergovernamentais em escala planetária, fruto, principalmente, das declarações e agendas ambientais assinadas pelos países integrantes da Organização das Nações Unidas (ONU), em eventos como a Primeira Conferência Mundial sobre o Homem e o Meio Ambiente (Estocolmo, 1972), a Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente e o Desenvolvimento (CNUMAD), conhecida também como ECO-92, Rio-92 e Cúpula da Terra (Rio de Janeiro, 1992), e a Cúpula Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável ou Rio +10 (Johanesburgo, 2002).

Digamos, de maneira geral, que este trabalho pretende descrever a formação heterogênea sobre a gênese dos hábitos e modos de vida relacionados aos restos da vida urbana, de maneira a evidenciar sua formação contínua e descendência múltipla (Foucault, 1990, p. 245). Nesse sentido, procura-se restituir suas condições de aparição a partir de múltiplos elementos determinantes, os quais se apresentam não como produto, mas como efeito. Em síntese, a análise dos efeitos de saber e de poder torna-se a base desta estratégia metodológica.

Dispositivo médico-social: a putrefação urbana como objeto de governo

Costumeiramente uma das críticas mais comuns que se pode fazer sobre uma cidade é sobre seu estado de imundície ou asseio. Um estrangeiro, por exemplo, ao chegar em uma nova cidade apreende sobre sua sujidade ou asseio já nos primeiros quilômetros percorridos, correndo o risco de produzir juízos de valor a partir destas primeiras percepções.

Como testemunho sobre esse modo de percepção e produção de juízo de valor sobre o estado de desenvolvimento de uma cidade, traz-se para este conjunto descritivo de análise uma carta endereçada ao Prefeito do Rio de Janeiro, datada do primeiro ano do século XX. Essa carta introduzira o Projeto de remoção do lixo, de autoria de Antônio José Pinto (1901), em que alerta o "Senhor Prefeito" sobre a necessidade de se considerar a gestão do lixo urbano como questão urgente nos assuntos administrativos municipais. Suas preocupações em atrair investimentos e imigrantes estrangeiros motivam-no a apresentar ao poder municipal o tal projeto:

Na Europa, Brasil é o Rio de Janeiro. ... Vossa Excelência sabe da péssima impressão que em todos causa a falta de asseio desta importante capital e sobretudo da impressão que em todos os países estrangeiros tem produzido a triste reputação de insalubridade que adquiriu o Rio de Janeiro. (Pinto, 1901, s.p.)

Dentre os problemas mais agudos estão alguns vícios de moradores que deixam de entregar o lixo, "no interesse inconfessável de aproveitá-lo como estrume de jardins ou hortas", ou que, por "negligência acumulam o lixo sem conhecerem ou sem se importarem com o mau que possa resultar" (Pinto, 1901, s.p.).

Para além das imundícies delatadas pela visão e pelo olfato, o saber científico alerta para um perigo invisível aos olhos dos citadinos, porém ainda mais danoso para a saúde do que a fedentina denunciada. Nas primeiras décadas do Brasil República, os saberes produzidos sustentavam sua cientificidade na reprodução de conhecimentos importados da Europa. O ar e a água ganham visibilidades epidemiológicas a partir dos estudos de especialistas em higiene e saúde pública. O tenente Coronel Dr. Alarico Damazio, Assistente do Chefe do Corpo de Saúde do Exército Brasileiro em 1929, publica seu estudo sobre a "repartição dos germes na athmosphera e na água" (Damazio, 1929, p. 498).

Para tal produção de formas de enunciação científica, não se economizam exemplos sobre estudos realizados no velho mundo a fim de dimensionar os custos da vida urbana no que se refere à saúde individual, pois "quanto mais gente mais micróbios" (Damazio, 1929, p. 498). O médico do exército ganha força em suas evidências ao citar um cientista francês que contabiliza o número de bactérias que existem nos ares franceses: "Miquel, cujos estudos sobrelevam a todos, encontrou duzentas partículas solidas por c.c. no cume das montanhas, e em Londres e Paris elle encontrou de 150 a 200 mil. Há um paralelismo absoluto entre as poeiras e os micróbios" (Damazio, 1929, p. 499). O ar perde sua propriedade etérea e, na formação deste novo cenário nosológico, as matérias mefíticas adquirem outros graus de insuportabilidade, que não apenas as provenientes do odor e da estética imunda que impregnam as cidades: "as emanações pútridas da athmosphera, favorecem a conservação dos micróbios ... [e] podem, em determinadas circumstancias, revigorar a actividade dos germens contidos na athmosphera" (Damazio, 1929, pp. 498-499).

Com tais diagnósticos sobre o risco das sujidades e putrefações no meio urbano, prepara-se o território para a produção e saberes médico-sociais que objetivem intervir naquela situação para melhoria da vida na cidade. Em nome de tal bandeira, o bem-estar social e a salvação de uma alma da cidade, foi organizado o "Primeiro Congresso Brasileiro de Hygiene" (1923), em que um dos temas centrais trataria justamente sobre a remodelação das cidades a partir de critérios higienistas. Nos Anais do evento, encontrados nos arquivos da Biblioteca da Casa de Oswaldo Cruz (Fundação Oswaldo Cruz - Fiocruz), constam cinco registros de palestras que apresentam análises e propostas de intervenção para melhor salubridade do meio urbano, apoiados em três principais campos de intervenção: o ar, a água e as ruas.

A ventilação se torna um problema para a remodelação das cidades, a partir do momento em que esta nova forma de visível - os micróbios - toma a ordem do dia. Sob tal problemática, dois artigos se destacam. Em um deles, o Dr. J. P. Fontanelle se dedica a alertar sobre os malefícios do ar confinado e a necessidade de assegurar ao ar um elevado poder refrigerante. Para tanto, faz-se necessário repensar a cidade em suas características estruturais, de modo a realizar outro manejo de certos circuitos urbanos, tanto das ruas, como também dos interiores das casas dos citadinos e, ainda, dos batimentos caracterizados pela aglomeração de pessoas como fábricas e escolas:

Devem ser projetadas ruas canalizadoras de ar, orientadas no sentido dos ventos dominantes, deixando-se desimpedida, o mais que for possível, a entrada dessas vias. ... Para assegurar a facilidade de circulação horizontal de ar, indispensável á refrigeração corporal, devem ser exigidas, tanto quanto possível, janellas ou outras aberturas em paredes oppostas do mesmo compartimento. (Congresso Brasileiro de Hygiene, 1923, p. 48)

Estes médicos revelam-se como os novos artífices da cidade, ou arquitetos da saúde, pois conhecem as leis que regem a natureza e produzem técnicas artificiais para dar forma à grande obra da civilização moderna: a vida urbana. Como afirma o Dr. Armando Godoy, esse fato faculta aos higienistas "substituir as leis reaes por outras artificiaes" (Congresso Brasileiro de Hygiene, 1923, p. 39). A esse fenômeno das cidades, soma-se, como efeito desses aglomerados urbanos, a produção de artifícios de existência para as coisas e os homens.

A partir dessa problemática sobre a necessidade de salubridade pelo risco epidêmico das putrefações urbanas, o saber médico toma para si o poder de moldar não apenas a estrutura arquitetônica, como também os modos de vida na experiência urbana do período moderno. Deste modo, "esquadrinhar, dividir, isolar implica, por outro lado, em estabelecer relações entre elementos e objetos aparentemente dispersos e desvinculados, mas que se agenciam, na medida em que qualquer desordem singular pode acarretar o mau funcionamento do todo" (R. Machado et al., 1978, p. 146).

A problematização higienista, sobre os arranjos necessários para a promoção de uma saúde para além do indivíduo, alcança o espaço da cidade e transpõe os limites do corpo. Como visto, o médico higienista pensa a reorganização das cidades de modo a promover ideais tendo como referência o modelo moderno de promoção de um corpo saudável. Chega-se então a uma característica fundamental da medicina social, que organiza a urbs em perspectiva organicista e retorna ao indivíduo, não apenas para circunscrever seu corpo com a produção destes saberes, como também para inscrever a higiene e a assepsia em seus hábitos e modos de vida.

Sobre tais práticas, Richard Sennett descreve "uma história da cidade contada através da experiência corporal do povo" (1997, p. 15). Em Carne e pedra: o corpo e a cidade na civilização ocidental, o autor dedica um momento para narrar as descobertas de William Harvey sobre o sistema respiratório e de circulação sanguínea, e sua influência nas concepções modernas de saúde pública:

Construtores e reformadores passaram a dar maior ênfase a tudo que facilitasse a liberdade do trânsito das pessoas e seu consumo de oxigênio, imaginando uma cidade de artérias e veias contínuas, através das quais os habitantes pudessem se transportar tais quais hemácias e leucócitos no plasma saudável. A revolução médica parecia ter operado a troca de moralidade por saúde - e os engenheiros sociais estabelecido a identidade entre saúde e locomoção/circulação. Estava criado um novo arquétipo da felicidade humana. (Sennett, 1997, p. 214)

A saúde de um corpo, como um fenômeno biológico, ou melhor, biopolítico, oferece novos códigos para gestão deste outro corpo político, a cidade, de modo a inscrever um novo caminho para a felicidade humana. Às vistas de uma ciência moderna funcional e utilitária, o corpo adquire novas texturas e consistências. Esta ciência, que se apoia no lastro do saber médico-social, acaba por "guiar nosso olhar para um mundo de constante visibilidade" (Foucault, 2008b, p. VIII).

Ao fazer uma leitura dos Anais da Câmara Municipal de São Paulo, relativos aos anos de 1906 e 1912, encontram-se alguns relatos que tratam da limpeza da cidade. Uma das pautas mais polêmicas versava sobre a implantação de um novo imposto sobre o lixo. Esses debates frequentes enumeravam as vantagens e desvantagens deste imposto sanitário, bem como colocavam em dúvida a legitimidade da Câmara Municipal em legislar sobre a criação desse novo tributo municipal.

O então vereador Alcântara Machado apresenta um projeto de lei que dispõe sobre a criação de uma taxa que versaria sobre a produção de lixo domiciliar no município. Tal proposição disserta sobre os Problemas Municipaes (1918) sofridos pela capital paulistana em meio a sua ebulição cosmopolita:

A rua é a unidade hygienica da cidade. A urbs vale como salubridade, o que valem as ruas que a constituem. Ora, como o asseio do corpo é o alicerce de toda a hygiene individual, assim também a limpeza da via publica é o pivot de toda a hygiene urbana. (A. Machado, 1918, p. 59)

Nesta correlação de duas unidades físicas, o corpo e a rua aparecem como o elo de efetivação das práticas sociais de higiene, seja individual ou social. Esse axioma da limpeza pública aparece como território de análise para a descrição de alguns processos pelos quais corpo e rua tornam-se produtos das práticas de higiene, no instante mesmo do desenvolvimento das cidades modernas.

Impregnados de tamanha solidez e objetividade, esta política dos corpos evidencia um percurso que elege a medicina coletiva como um dos pilares de ordenação da racionalidade moderna e seus aglomerados urbanos. A partir das descrições de Michel Foucault (2004, pp. 79-99) sobre O nascimento da medicina social, em fins do século XVIII e início do século XIX, algumas práticas apresentam a higiene social como dispositivo que opera certo poder sobre o corpo: "O controle da sociedade sobre os indivíduos ... começa no corpo, com o corpo. Foi no biológico, no somático, no corporal que antes de tudo investiu a sociedade capitalista. O corpo é uma realidade biopolítica. A medicina é uma estratégia biopolítica" (Foucault, 2004, p. 80). A medicina social seria então a "inventora" da questão urbana como objeto de governo.

A medicina social seria responsável pela formatação da utopia da higiene social para fazer viver a população e a vida urbana. Será vista como dispositivo de produção de corpos utópicos. Como atesta Foucault, "corps sans corps, un corps que sera beau, limpide, transparent, lumineux, véloce, colossal dans sa puissance, infini dans sa durée, délié, invisible, protégé, toujours transfiguré ... l'utopie d'un corps incorporel" (Foucault, 2009, p. 10).

A produção de um hábito: jogar o lixo no lixo

Nestes moldes, cria-se a necessidade de construção de um aparelho que permita a produção de uma invisibilidade do lixo. Os restos tornam-se insuportáveis, pois a eles são atrelados a percepção de um prenúncio de doença, impureza, morte e de outras percepções ainda menos aparentes como a desorganização, o desleixo e até a incompetência.

Um conjunto de novas condutas seria então aplicado nas casas em busca de condições mais saudáveis para a vida coletiva. Projetos urbanos que dissertam sobre as melhores formas de aprisionar e evacuar o lixo fazem da individualização e privatização dos dejetos o novo objeto de conhecimento e intervenção social. Algumas práticas versam sobre a instalação de caixas nos andares das casas, a instalação de recipientes de ferro para o depósito dos lixos e a edificação de guaritas na frente das casas para o acondicionamento dos sacos de lixo que ficarão à espera da coleta municipal (Corbin, 1987, p. 123).

No âmbito das minuciosas práticas cotidianas e sob a égide de aparentes apelos populares, vê-se consagrar a necessidade de o Rio de Janeiro protagonizar uma "evolução" urbana em que se expurgariam os antigos hábitos insalubres do Brasil Imperial. No ano seguinte à proclamação da República, a lixeira se torna um prenúncio do progresso que está para acontecer. Mais que um emblema, ela é a prática silenciosa de uma ação de Estado que adentra os domicílios. O discurso higienista é objetivado neste compartimento destinado às matérias fétidas, e seu poder de efetivação se apresenta nas deliberações do Poder Legislativo Municipal. Os mecanismos de regulação serão as multas a quem ousar não aderir a esta nova tecnologia de gestão do lixo urbano. Assim consta no "Projeto de postura sobre os resíduos ou lixo das cozinhas, das habitações e estabelecimentos públicos ou particulares":

Art. 1º - Os receptáculos (caixas, caixões ou baldes) em que nas casas de habitações ou estabelecimentos públicos ou particulares se depositarem os resíduos e lixos das cosinhas devem ter adaptado a respectiva tampa e qualquer apparelho automático que sirva para desinfectar os mesmos resíduos de lixo e que tenha sido aprovado pela Inspetoria Geral de Hygiene. Art. 2º - A falta do dito aparelho nas casas de habitações e estabelecimentos públicos e particulares importará na multa de 5$000 e no dobro na reincidência. (Inspetoria Geral de Hygiene, 1892, s. p.)

Este "Projeto de postura" marca um dos primeiros esboços para a indexação da conduta do sujeito perante a produção de seus restos. A ideia de que cada um deverá cumprir com seu dever torna-se possível, não primeiramente por um apelo popular, mas por um princípio de Estado que prioriza o desenvolvimento urbano e, a partir de tal prerrogativa, considera a conduta humana como instrumento para atingir suas metas de progresso. Conforme essas diretrizes, em que cada cidadão compõe o coletivo urbano, fazer a sua parte torna-se essencial para a consolidação de um projeto de cidade determinado por parâmetros artificiais e demarcado pelos saberes e demandas da medicina social. O que se coloca como projeto exterior aos hábitos do indivíduo agora se transmuta em conduta intrínseca à salubridade de seu corpo.

Prova disto está na advertência de Alcantara Machado sobre o perigo de certos hábitos individuais que depõem contra a "nossa" educação higiênica (1917/1918, p. 64). Ao indivíduo resta então exercitar tais prescrições até chamar esta "nossa" educação de "minha", concretizando essa conduta moral em uma prática de si, ou seja, uma "constituição de si enquanto 'sujeito moral', na qual o indivíduo circunscreve a parte dele mesmo que constitui o objeto dessa prática moral, define sua posição em relação ao preceito que respeita, estabelece para si um certo modo de ser que valerá como realização moral dele mesmo" (Foucault, 1984, p. 28).

Aquele que não jogar o lixo no lixo será então condenado não apenas pelos preceitos da medicina social, não apenas pelo Estado Nacional e suas expectativas de desenvolvimento social, não apenas pelos seus vizinhos amigos e familiares, mas será, além de todos estes, condenado pela própria consciência. Sendo a lixeira este disparador de novas condutas e, ainda, um ponto de intersecção entre a higiene do indivíduo e a higiene social, um novo corolário de práticas seria produzido para efetivação das práticas assépticas que poderiam se desdobrar a partir da ideia de gestão das impurezas.

Nos Anais do "VII Congresso Brasileiro de Higiene", datado de 1949, os artigos científicos apresentam-se como produto de conhecimento das experiências de higienização urbana realizadas no Brasil desde a virada do século XX. Nestes registros, levanta-se a necessidade de se fazer com que a população, em geral, seja educada para a produção de um sujeito e de uma sociedade assépticos. O tema deste evento seria então a Educação Sanitária.

No referido congresso, o Dr. Joaquim Novaes Bannitz (Diretor da Secção de Propaganda e Educação Sanitária do Departamento de Saúde do Estado de São Paulo), em sua palestra intitulada Propaganda e Educação Sanitária, irá chamar a atenção sobre a importância de se recorrer a outros processos que não apenas os dispositivos impositivos do aparato jurídico: "A educação é melhor que a legislação. Se é mais lenta, é, porém, mais segura" (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, p. 32).

Em outro texto presente nos anais do referido congresso, "Educação Sanitária", de Maria Junqueira (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949), dá-se voz ao discurso da psicologia educacional, ao se citar Noemy Silveira Rudolfer, uma das autoridades da área no período: "Educação é aquêle processo pelo qual seres mais experimentados buscam orientar a conduta de seres imaturos, ou menos experimentados, a fim de que objetivos desejáveis se tornem normas habituais de conduta" (p. 117). O desejo, não exclusivamente este individual e pessoal, mas um desejo também pertencente a uma racionalidade de Estado inscrito na conduta, aparece como objeto de interesse entre o indivíduo e a população.

Esta pedagogia popular da Educação Sanitária emerge então como um campo de consenso em vários artigos apresentados por cientistas que palestraram no VII Congresso Brasileiro de Higiene. O Assistente da Faculdade de Higiene e Saúde Pública, Costa Sobrinho, afirma que o educador teria a responsabilidade de entrar em contato com o interesse do educando e, ainda, objetivar a inclusão das "populações marginais" nesse processo (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, p. 95). Jandyr Maya Faillace (Docente de Higiene e Diretor Geral do Departamento Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul) e Pedro de Medeiros Mitchell (Sanitarista diplomado pelo Curso de Saúde Pública e Médico Inspetor do D. E. S. do Rio Grande do Sul, em palestra conjunta, apontam para a necessidade da utilização de meios alternativos como o cinema, jornais, propagandas e outros "complementos nacionais" para a reprodução de cenas que envolvam o tema de "educação sanitária popular" e a criação de normas de educação sanitária de natureza popular (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, p.45). Waldomiro de Oliveira (Diretor da Secretaria de Higiene do Trabalho), em sua palestra "Educação Sanitária na cooperação Médico-Social", alerta para o fato de que a educação sanitária só ganharia resultados mais efetivos se pautada na experiência com pequenos grupos e ganharia "a amplitude necessária nas classes populares" para alcançar uma "educação sanitária das massas" (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, pp. 60, 63). Pois, como complementa a mesma ideia o sanitarista Dr. José Guarany de Souza em sua palestra "A importância da educação sanitária em saúde pública", a "educação do povo nos princípios de uma vida sadia e na prevenção de doenças é a mais importante função dos Departamentos de Saúde" (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, p. 113).

Desse modo, esboça-se uma "pedagogia popular da higiene pessoal" (Corbin, 1987, p. 98), em que a produção de uma consciência sanitária se desenvolve não mais pela obediência às normas, mas por uma interiorização dos conteúdos constitutivos do campo normativo que instituiriam um desejo de assepsia. Somente desse modo o cidadão se mobilizaria para mudar seus hábitos conforme os preceitos da higiene em aderência a uma proposta de saúde pública.

Gestão ambientalmente adequada dos insuportáveis

Na grade de análise a ser apresentada em subsequência, o meio ambiente se define como outro dispositivo biopolítico. Trata-se de um novo princípio agregador de sentidos, valores e práticas que reposiciona o lixo nas relações, não mais apenas com a cidade, mas com a biosfera. Nesse novo plano de ação, a natureza deixa de ser algo dado, assimilado e transformado pelas ciências, para se tornar o próprio campo de intervenção e, portanto, de produção de artificialidades.

Trata-se de um processo de aprimoramento da gestão dos restos expelidos pelas relações humanas, que entrelaça as fronteiras do corpo e dos espaços urbanos, com uma dimensão de dominação não apenas territorial e populacional, mas com todo um modo de relação mais amplo, um poder que se exerce nas relações em escala planetária, ou seja, que se exerce no meio ambiente: "meio e população se imbricam de uma outra maneira, em que a passividade inicial da população frente a um meio ativo e determinante cede a um maior ativismo e participação das pessoas na relação com seu meio" (Carneiro, 2012, p. 7).

Neste novo registro para a condução das relações populacionais intergovernamentais, produzem-se saberes, normas, tecnologias, mecanismos e sistemas de reconfiguração das prioridades de Estado. Por tal motivo, em 1972, 113 países participaram da Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente Humano, em que foi criado o Programa das Nações Unidas para o Meio Ambiente (PNUMA). O resultado dessa conferência foi a construção de parâmetros planetários para o desenvolvimento sustentável de países desenvolvidos e países em desenvolvimento. Nesse encontro, elabora-se a Declaração sobre o Ambiente Humano que iria fundamentar essa inscrição das relações humanas e suas problematizações em termos globais.

Na emergência deste novo recorte sobre as relações humanas, forja-se um homem e seu entorno, resultados da produção de um desejo não apenas por sua saúde e vida longa, mas também de um desejo - de ser "um artífice do meio que o circunda" - que o conecta com a biosfera, com a espécie humana, com a população global, em seu "meio natural ou artificial": "A proteção e melhoria do meio humano é uma questão fundamental que afeta o bem-estar dos povos e o desenvolvimento econômico do mundo inteiro; é um desejo urgente dos povos e de todo o mundo e um dever de todos os governos" (Conferência das Nações Unidas sobre o Meio Ambiente Humano - CNUMAH, 1972, Proclama 2).

Surge então a demanda por estes modos de governo internacionais que se caracterizariam pela cooperação, ao mesmo tempo globais e regionais, bilaterais e multilaterais. Todos esses termos dizem respeito a uma nova forma de governar o progresso mundial, preenchendo os indicativos estabelecidos na Agenda 21, o instrumento de planejamento para efetivação das resoluções da Conferência do Rio, em 1992 (ECO - 92).

É justamente neste documento que a gestão do lixo encontra sua nova forma de expressão nas relações humanas intergovernamentais. Se, no primeiro documento dessa agenda ambiental mundial, a Declaração de Estocolmo (1972), o tema dos resíduos é pouco abordado, durante a ECO - 92, tal tema ocupa posição de destaque.

Justamente o capítulo 21 da Agenda 21 irá tratar do "Manejo ambientalmente saudável dos resíduos sólidos e questões relacionadas com os esgotos". Nessa proposta o manejo de resíduos seria então considerado "dentre as questões mais importantes para a manutenção da qualidade do meio ambiente da Terra e, principalmente, para alcançar um desenvolvimento sustentável e ambientalmente saudável em todos os países" (Conferência das Nações Unidas Sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento - CNUMAD, 1992, item 21.1). Assim como as legislações municipais e estaduais conferidas ao longo deste estudo, este documento de planejamento mundial iria cunhar sua compreensão sobre o que seria então o outrora lixo, ou, como estabelecido agora, os resíduos sólidos: "compreendem todos os restos domésticos e resíduos não perigosos, tais como os resíduos comerciais e institucionais, o lixo da rua e os entulhos de construção" (CNUMAD, 1992, item 21.3).

Ao se incorporarem os discursos e práticas das áreas da saúde, dos destinos da cidade e agora da qualidade ambiental propícia à vida nas práticas de gestão dos dejetos humanos, o conjunto de coisas que até então conhecíamos como lixo acaba por desaparecer, ou melhor, se transmuta em objetos úteis ao bem-estar dos povos. O conjunto de enunciados que o permeia não remete mais às suas putrefações deletérias, às emanações mefíticas ou dejetos nauseabundos. Conceitos das áreas jurídica, administrativa e industrial ativam uma nova forma de aparecimento dos restos da cidade. Logística reversa, gestão integrada de resíduos sólidos urbanos, materiais reutilizáveis e recicláveis seriam algumas destas novas plataformas de intervenção e suporte das práticas discursivas das artes de governar contemporâneas.

Outra forma de modulação ainda se faz presente, por ser tão importante e capaz de congregar todos esses modos de inscrição do lixo/dejetos na sociedade. Seu modo de veiculação será não mais pela Educação Sanitária, mas pela Educação Ambiental, tendo como objeto de intervenção a conduta humana. O Decreto n. 7404, de 23 de dezembro de 2010, responsável por regulamentar a Política Nacional de Resíduos Sólidos (Lei n. 12.305, 2010), apenas quatro meses após sua homologação, institui os procedimentos específicos às estratégias de "Educação Ambiental na Gestão de Resíduos Sólidos" (Decreto n. 7404, 2010, Título IX), além de instituir outras providências. Nesta seção do documento, seu único artigo apresenta o objetivo dessa plataforma educacional:

Art. 77. A educação ambiental na gestão dos resíduos sólidos é parte integrante da Política Nacional de Resíduos Sólidos e tem como objetivo o aprimoramento do conhecimento, dos valores, dos comportamentos e do estilo de vida relacionados com a gestão e o gerenciamento ambientalmente adequado dos resíduos sólidos. (Decreto n. 7404, 2010)

Esse aprimoramento ambientalmente adequado do ser humano, que congrega conhecimentos, valores, comportamentos e estilos de vida, materializa-se em uma série de manuais, catálogos, folhetins e campanhas ambientais para produção deste novo campo moral das relações na cidade. Um conjunto de informações específicas para tais instrumentos é gerado, e, dentre essas informações, um dos itens mais presentes é o tempo de decomposição de cada produto pertencente ao volume de lixo urbano.

O lixo carrega, como modo de problematização do dispositivo ambiental, essa carga negativa que promete o fim do mundo causado pela irresponsabilidade individual dos citadinos e pelo fato dos resíduos serem cada vez menos orgânicos e mais sintéticos. São resquícios da sociedade industrial inservíveis para os hábitos humanos e indigestos para o ecossistema em prazo confortável para estes mesmos hábitos: "Uma coisa parecida com angústia de fim do mundo começa a penetrar em boa parte dos discursos dos ecologistas: a angústia de morte é um componente fundamental da nova sensibilidade ecológica" (Rodrigues, 1995, p.13). A ameaça de morte implica mudança nos modos de vida e, com tal atribuição negativa, que remete à extração de recursos naturais e sua transformação em produtos de difícil degradação, as indústrias de embalagens iniciam uma articulação para ressignificar seus produtos perante seus consumidores.

Outras campanhas, em âmbito nacional, regional ou municipal, adotam a mesma estratégia de divulgação e orientação de condutas ambientalmente corretas sobre a gestão de resíduos e, em sua maioria, destacam em suas estratégias de marketing os benefícios sociais, econômicos e ambientais. Esses materiais se assemelham pela divulgação de novos valores "ambientalmente adequados", mas pouco informam a população sobre os interesses que movimentam a indústria da reciclagem, em grande expansão no Brasil. Presencia-se a produção de um modo de (a)parecer ecológico que produz visibilidades de conduta, nos moldes do que foi apresentado como estratégias de Educação Sanitária, na metade do século XX, quando um dos palestrantes do Congresso Brasileiro de Higiene avalia os benefícios de investir em campanhas publicitárias "que pela variedade e abundância das pessoas catequizadas resulta efetivamente barato" (Congresso Brasileiro de Higiene, 1949, p. 32). As inúmeras cartilhas oferecem a lista de novos hábitos a serem praticados, considerando as emergentes dificuldades ambientais.

Observa-se, portanto, a produção destes códigos morais por órgãos governamentais, indústrias, entidades intergovernamentais, movimentos sociais e da sociedade civil organizada, que tenham como objetivo produzir um regime de verdade nos hábitos da população em escala planetária (conforme a ilustração do quadro acima, em que o símbolo de reciclagem envolve todo o planeta: destinar seus resíduos de modo adequado constitui um ato político, ou politicamente correto, para salvar o planeta). Com as propagandas sobre os benefícios de embalagens como o plástico e o vidro, afirma-se que o problema não está no sistema de produção e consumo promovido pelo capital, mas nas (i)responsabilidades individuais. Nesta direção de sentido, cada sujeito sente-se responsável pela salvação ou destruição do planeta em seus aspectos econômicos, sociais e ambientais.

Jogar o lixo no lixo, e mais, separar o lixo em várias lixeiras a fim de revalorizá-lo, revela-se como um ato moral de respeito e cuidado com a cidade, em que seus transgressores, além de punidos pelos departamentos de controle público, terão sua ação condenada pelos "cidadãos de bem". Mas este campo moral não se inscreve apenas nos sujeitos que o respeitam e nele acreditam, senão também em seus próprios transgressores, que terão ainda que prestar contas à própria consciência. O estudo da moral, como expõe Michel Foucault, "deve determinar de que maneira, e com que margens de variação ou de transgressão, os indivíduos ou os grupos se conduzem em referência a um sistema prescritivo que é explícita ou implicitamente dado em sua cultura, e do qual eles têm uma consciência mais ou menos clara" (1984, p. 26).

Verifica-se a constituição deste outro dispositivo biopolítico de governo das condutas tanto das coisas como dos homens, que opera sobre os modos de vida no contexto dos aglomerados populacionais. Nas escolas, as crianças participam de aulas de educação ambiental e aprendem a vigiar e cobrar os próprios pais sobre os antigos hábitos de jogar o lixo misturado nas lixeiras. Cada cidadão deve policiar não apenas a si mesmo como também os outros sobre suas responsabilidades ambientalmente adequadas, pois o que está em jogo não é somente a vida humana, mas a vida da Biosfera.

Agradecimento

Pelo apoio e financiamento, à CAPES/CNPq. Bolsa CAPES - Programa de Demanda Social (DS) nº 1031519.

Fontes

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Decreto n. 7.404, de 23 de dezembro. (2010). Regulamenta a Lei no 12.305, de 2 de agosto de 2010, que institui a Política Nacional de Resíduos Sólidos, cria o Comitê Interministerial da Política Nacional de Resíduos Sólidos e o Comitê Orientador para a Implantação dos Sistemas de Logística Reversa, e dá outras providências. Diário Oficial da União (Edição Extra), p. 1.

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Submissão em: 18/11/2013

Revisão em: 30/03/2014

Aceite em: 20/04/2014

Ricardo Abussafy de Souza é Graduado em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (UNESP, Assis/SP). Mestre em Psicologia Social pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Doutor em Psicologia pela UNESP, Assis/SP, na Área de Concentração Psicologia e Sociedade. Pós-doutorando no Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP (PEPG-CSO/PUC-SP) e integrante do Projeto Temático Ecopolítica FAPESP, intitulado "Ecopolítica: governamentalidade planetária, novas institucionalizações e resistências na sociedade de controle" (PUC-SP). Endereço: Rua Heitor Penteado, 1707. Apt. 72. Bairro Sumarezinho. São Paulo/SP, Brasil. CEP 05437-001 E-mail: abussafy@gmail.com

Sonia Aparecida Moreira França é Graduada em Psicologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (1974), especialização em Terapia Psicomotora pelo Instituto Sedes Sapientiae de São Paulo (1975), mestrado em Psicologia Social (1983) e doutorado em Psicologia Clínica pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (1994). Atualmente é Professora Colaboradora da Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho e Membro de corpo editorial da Revista de Psicologia da UNESP, Assis/SP. E-mail: soniamfranca@uol.com.br

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    Basura, conducta humana y la gestión de los insoportables
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      08 Ago 2014
    • Data do Fascículo
      2014

    Histórico

    • Recebido
      18 Nov 2013
    • Aceito
      20 Abr 2014
    • Revisado
      30 Mar 2014
    Associação Brasileira de Psicologia Social Programa de Pós-graduação em Psicologia, Universidade Federal de Pernambuco, Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH), Av. da Arquitetura S/N - 7º Andar - Cidade Universitária, Recife - PE - CEP: 50740-550 - Belo Horizonte - MG - Brazil
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