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CORPOS EM ENCONTRO E EFEITOS INCORPORAIS: ARTICULAÇÃO LINGUAGEM/EXTRALINGUÍSTICO

LA REUNIÓN DE LOS CUERPOS Y EFECTOS INTANGIBLES : RELACIÓN ENTRE EL LENGUAJE / EXTRALINGUISTICO

BODIES MEETING BODIES AND INCORPOREAL EFFECTS: ARTICULATIONS BETWEEN LANGUAGE AND EXTRALINGUISTIC CONTEXT

Resumo

Este artigo tematiza textos produzidos por ocasião da inauguração de um Restaurante Universitário (bandejão?) em instituição pública do Rio de Janeiro, situação geradora de um embate entre administração central da Universidade e estudantes. Para tal fim, problematiza diferentes modos de conceber a interface dos planos linguístico e extralinguístico, rejeitando qualquer anterioridade deste sobre aquele. Como referencial teórico, toma-se por base a posição assumida por Deleuze acerca da articulação entre corpos e efeitos incorporais, temática que põe em cena uma reflexão sobre o tempo e a dinâmica de coengendramentos entre linguagem e mundo.

Palavras-chave:
produção de real; sentido; acontecimento; bandejão universitário

Resumen

En este artículo se tematizan textos producidos en ocasión de la inauguración de un restaurante universitario (casino universitário?) en una institución pública en Río de Janeiro, generando una situación de choque entre la administración central de la Universidad y los estudiantes. Con este fin, se analizan diferentes formas de concebir los vínculos entre lo lingüístico y el extralingüístico, rechazando cualquier forma de anterioridad de uno sobre otro. El enfoque teórico se toma en base a la posición adoptada por Deleuze sobre la relación entre los cuerpos y los efectos incorporales , un tema que pone en juego una reflexión sobre el tiempo y la dinámica de coengendramientos entre el lenguaje y el mundo.

Palabras-clave:
producción de real; sentido; evento; casino universitário

Abstract

In this paper we approach texts produced as an effect of the inauguration of a University Restaurant (a canteen?) in a public university of Rio de Janeiro, when there was a clash between central administration and students. To achieve our purpose, we discuss different ways of conceiving the articulation between linguistic and non-linguistic domains, refusing the point of view that presupposes the anteriority of the latter over the former. Our theoretical framework draws from Deleuze's position on the relationship between corporeal and incorporeal events, an issue that highlights a reflection on time and on the dynamic coengenderings between language and world.

Keywords:
production of reality; sense; event; University Canteen

Considerações iniciais

O tema das interdições é matéria sobre a qual nos debruçamos neste artigo com o compromisso de problematizar a produção de uma certa qualidade de real, nos planos macro e micropolíticos. Nossa motivação centra-se em um evento da atualidade que consideramos, no mínimo, inusitado: a inauguração - ou, como se passou a alegar, o mero "teste para o funcionamento" - do Restaurante Universitário (bandejão?) de uma universidade pública do Rio de Janeiro, convidada por correio eletrônico institucional apenas parte da comunidade acadêmica, tendo sido excluída uma parcela imprescindível - os estudantes. O convite, distribuído por e-mail a alguns integrantes da comunidade universitária, era encabeçado pelo governador do Estado, fator que gerou apreensão na comunidade acadêmica, dando margem à convocação de manifestação pública pelo movimento estudantil. Esse teria sido, aliás, o motivo pelo qual os estudantes foram impedidos de se aproximar do restaurante por cordões de isolamento e um quantitativo considerável de funcionários da segurança da Universidade.

Os conflitos resultantes de tal tensionamento foram prontamente noticiados nos portais eletrônicos dos grandes jornais e programas de rádio. No dia seguinte, nota emitida pela reitoria da Universidade se referia ao evento como simples "teste para o funcionamento do Restaurante Universitário". Acrescente-se a frustração em relação à presença do anfitrião, o governador do Estado, que não compareceu ao evento.

O tema da interdição será igualmente ocasião para pensarmos nossa divergência em relação à tradição de estudos que sustenta a cisão entre a dimensão verbal e seu "exterior" - o extralinguístico. Eis os questionamentos que inspiram essa discussão: (a) que polêmicas habitam a tensão entre o evento "inauguração", anunciado no convite, e o evento "teste para funcionamento" ou "inauguração simbólica", conforme passou a declarar a nota divulgada no dia seguinte ao ocorrido?; (b) pretendendo argumentar favoravelmente à impossibilidade de descolar, por um lado, a divulgação de um convite, a produção de nota oficial, textos jornalísticos, emissões radiofônicas e, por outro, a situação empírica que os referidos textos antecipam e relatam, que conceituação é preciso propor a respeito do verbal e do social? (c) de que referenciais dispomos para sustentar que a produção de sentido não reside exclusivamente nas situações empíricas, nem apenas nos textos que favorecem seus arranjos, mas em um encontro assimétrico e simultâneo entre essas duas dimensões?

Apenas aparentemente a linguagem faria referência a eventos que lhe seriam exteriores. Seu poder de representação, tomado largamente como principal propriedade sua, se ativa, produzindo um duplo apagamento: (a) um esquecimento de que os contornos assumidos por aquilo que se "transmite" nos textos não passa de estabilizações sempre provisórias; (b) um esquecimento de que a própria situação de interação verbal investe na produção do ato que a institui e se legitima no curso mesmo de sua enunciação.

O sentido como paradoxo: assimetria e simultaneidade entre linguagem e mundo

Uma ocasião,

meu pai pintou a casa toda

de alaranjado brilhante.

Por muito tempo moramos numa casa,

como ele mesmo dizia,

constantemente amanhecendo.

(Adélia Prado, Impressionismo)

Dizer de uma casa que ela é alaranjada significa tão somente atribuir-lhe uma propriedade (acidental) que consiste na designação da cor escolhida para a pintura de suas paredes, o que é bem diferente de dizer que se mora em uma casa amanhecendo, efeito incorporal resultante da mistura de corpos: nós e a casa, meu pai e o restante do corpo-família, a manhã e a cor laranja, etc. Pelo viés da poesia de Adélia Prado, iniciamos o debate relativo ao encontro linguagem/mundo, retomando a distância que Deleuze (2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva.) reconhece entre as dimensões clássicas da proposição e do sentido. O projeto é retraçar o caminho que vai de uma lógica da representação, cuja base é o ser, a uma lógica do acontecimento, na qual o devir se impõe como instância constitutiva.

A produção de textos e a configuração de uma comunidade discursiva atualizam um movimento que não se pode circunscrever apenas no plano empírico, nem somente no plano linguístico, mas que reside, antes, no entrelaçamento (acronológico) de ambos. Tal posição parece bastante afeita à imanentização do real: "O plano de imanência compreende simultaneamente o virtual e a sua atualização, sem que possa haver um limite assinalável entre os dois" (Deleuze, 2004Deleuze, G. & Parnet, C. (2004). Diálogos (J. G. Cunha, Trad.). Lisboa: Relógio D'água., p. 181). O real se torna complemento da atualização, cujo sujeito é o virtual.

Para Deleuze, não é possível situar o sentido no nível do dito: "Nunca digo o sentido daquilo que digo. Mas, em compensação, posso sempre tomar o sentido do que digo como objeto de uma outra proposição, da qual, por sua vez, não digo o sentido" (Deleuze, 2007, p. 31). Em Lógica do sentido, a menção aos estoicos faz emergir uma quarta dimensão - a do sentido/acontecimento -, ao lado das três dimensões clássicas: designação, manifestação e significação. Segundo Deleuze, cabe à linguagem não só fixar "os limites (e. g., o momento em que começa o demasiado), mas é ela também que ultrapassa os limites e os restitui à equivalência infinita de um devir ilimitado" (Deleuze, 2007, p. 2).

Essa dicotomia linguístico/extralinguístico é eliminada pela distinção estoica entre duas espécies de coisas: de um lado, os corpos, "com suas tensões, suas qualidades físicas, suas relações, suas ações e paixões e os 'estados de coisas' correspondentes" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 5) e, de outro, os incorporais, como atributos lógicos, ou ainda, "acontecimento". Nesses termos, o sentido se estabelece como quarta dimensão, irredutível a misturas de corpos e conceitos: "O sentido, o expresso da proposição, seria, pois, irredutível seja aos estados de coisas individuais e aos conceitos universais e gerais" (Deleuze, 2007, p. 20).

Buscaremos explicitar inicialmente as relações estabelecidas entre as dimensões clássicas da proposição - designação, manifestação e significação - para, em seguida, retornar ao sentido como quarta dimensão, indicando, então, de que modo tal abordagem investe no problema do tempo.

Na designação, ou ainda indicação, denominação, tão cara à lógica formal, tem-se "a relação da proposição a um estado de coisas exteriores (datum)" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 13). O estado de coisas é sempre único, compõe-se dos corpos, das relações entre eles - as misturas de corpos. Na designação, opera-se por correspondência entre proposição e mistura de corpos, que se pretende correlata. Essa operação pressupõe a referência ao mundo, sobre o qual se permite falar. Com expressões linguísticas, aponta-se um objeto do mundo, cuja existência prévia é condição para que se formulem juízos de valor. Com efeito, "entre todas aquelas [imagens] que são associadas à palavra, tal ou tal palavra à proposição, é preciso escolher, selecionar as que correspondem ao complexo dado" (Deleuze, 2007, p. 13).

A designação concerne ao verdadeiro e ao falso: verdadeiras seriam as proposições preenchidas por um estado de coisas; falsas, aquelas nas quais tal correspondência não se verifica. A ênfase sobre a designação sustenta uma visão instrumental da linguagem, em que a precedência do mundo é condição para a verdade e a leitura cronológica do tempo é a única a ser considerada.

Já na manifestação sobressaltam os elementos que correspondem ao sujeito que fala. "A manifestação se apresenta, pois, como o enunciado dos desejos e das crenças que correspondem à proposição" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 14). O desejo corresponderia a uma causalidade interna de uma imagem no que se refere à existência do objeto ou do estado de coisas correspondente; quanto à crença, trata-se de espera deste objeto ou estado de coisas, a partir de uma causalidade externa. Desejos e crenças não são associações, mas inferências causais de um sujeito.

A dimensão da significação ou demonstração trata da relação da proposição com conceitos gerais e efeitos produzidos por certas combinações sintáticas. Aborda-se a relação entre proposições, encadeamentos que situam o sentido como resultado de raciocínio lógico. A significação emerge como certa ordem de implicação conceitual, como demonstração que se dá a partir de premissas e conclusões:

A demonstração não deve ser somente entendida no sentido restrito, silogístico ou matemático, mas também no sentido físico das probabilidades, ou no sentido moral das promessas e compromissos, sendo a asserção da conclusão, neste último caso, representada pelo momento em que a promessa é efetivamente cumprida (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 15)

A significação é responsável pela articulação verificada entre os planos da expressão e do conteúdo. Quanto ao plano do conteúdo, a crítica da autonomia dos objetos, do referente, isto é, a crítica do objetivismo subjaz à noção de representação. Embasando a referida crítica, Deleuze e Guattari propõem a noção de agenciamento maquínico do desejo: a linguagem está longe de representar um objeto natural; as coisas a que ela se refere são construídas no social. No que tange ao plano da expressão, procede-se à crítica do subjetivismo, isto é, a crítica do sujeito consciente, identitário, da interioridade que se exterioriza na produção do mundo. Deleuze e Guattari novamente contribuem com conceitos que deverão destronar tal subjetividade: agenciamento maquínico de corpos e agenciamento coletivo de enunciação, formulações que ampliam, respectivamente, os planos do conteúdo e da expressão hjelmslevianos, pelo fato de pressuporem uma rede complexa e heterogênea que não se restringe ao plano da linguagem, como ocorre nas formulações do referido linguista. É bem verdade que Guattari elogia a intuição de Hjelmslev, que, ao teorizar sobre o modo como se articulam matéria, forma e substância, propõe uma forma comum para o conteúdo e a expressão, colocando em cena "uma máquina formal, transversal a toda modalidade de Expressão como de Conteúdo" (Guattari, 1992, p. 36Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético (A. L. Oliveira & L. C. Leitão, Trads). São Paulo: 34 .). Porém, é preciso, de acordo com Guattari, ultrapassar os domínios semiológicos, estendendo o conceito de substância também aos domínios "extralinguísticos, não humanos, biológicos, tecnológicos, estéticos etc." (Guattari, 1992, p. 37Guattari, F. (1992). Caosmose: um novo paradigma estético (A. L. Oliveira & L. C. Leitão, Trads). São Paulo: 34 .).

Desde já, cabe ressaltar que objetivismo e subjetivismo funcionam como pontos de apoio ao que Deleuze denomina de senso comum. Subjetivamente, é operação do senso comum organizar um "eu" em uma identidade: "É um só e mesmo eu que percebe, imagina, lembra-se, sabe, etc; e que respira, que dorme, que anda, que come " (Deleuze, 2000, p. 28) e, objetivamente, é ele que "subsume a diversidade dada e a refere à unidade de uma forma particular de objeto ou de uma forma individualizada de mundo: é o mesmo objeto que eu vejo, cheiro, saboreio todo, o mesmo que percebo, imagino e do qual me lembro" (Elias & Axt, 2004Elias, C. R. & Axt, M. (2004). Quando aprender é perder tempo... Compondo relações entre linguagem, aprendizagem e sentido. Psicologia & Sociedade, 16(3), 17-28. , p. 22).

A impossibilidade de apontar uma das três dimensões como primeira em relação às demais reside em tomar o sentido como um paradoxo, já que este "é, em primeiro lugar, o que destrói o senso comum como designação das identidades fixas" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 3). Esse paradoxo aponta simultaneamente para a impotência do falante e o poder da linguagem: "Minha impotência em dizer o sentido do que digo, em dizer ao mesmo tempo alguma coisa e seu sentido, mas também o poder infinito da linguagem de falar sobre as coisas" (Deleuze, 2007, p. 31).

Com efeito, o sentido não é localizável em qualquer ponto - no estado de coisas em referência, no falante que toma a palavra, ou na relação que se estabelece entre as proposições. Em outras palavras, "o sentido é o expresso da proposição, este incorporal na superfície das coisas, entidade complexa irredutível, acontecimento puro que insiste e subsiste na proposição" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 20). O estatuto complexo do sentido se produz a partir de uma proposição, ao mesmo tempo que não se reduz a ela. O sentido insiste, subsiste. "Mas, por outro lado, não se confunde de forma nenhuma com a proposição, ele tem uma 'objetividade' completamente distinta. O expresso não se parece de forma nenhuma com a expressão" (Deleuze, 2007, p. 22).

Rejeitando qualquer possibilidade de descolamento entre as ações concretas e sua "reapresentação" na linguagem, o sentido é um "acontecimento", "com a condição de não confundir o acontecimento com sua efetuação espaço-temporal em um estado de coisas" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 23).

Dizer que o sentido não é localizável, é irreiterável, nos conduz a uma afirmação familiar aos analistas do discurso: o sentido se produz. Ou seja, "o acontecimento não é o que acontece (acidente), ele é no que acontece o puro expresso que nos dá sinal e nos espera" (Deleuze, 2007Deleuze, G. (2007). Lógica do sentido (L. R. S. Fortes, Trad.). São Paulo: Perspectiva., p. 152).

O acontecimento implica a ultrapassagem da dimensão comunicativa das proposições, uma vez que as dimensões tradicionais da linguagem são insuficientes para captar o sentido (ou seja, o acontecimento, o extrasser). Acontecimento é efeito do encontro de corpos, incompatível com o bom senso e com o senso comum da linguagem. Infinitivo sem pessoa, sem presente (é a divisão infinita do instante em passado recente e futuro imediato), o acontecimento é o destino de todos os presentes: devir.

É preciso romper o círculo dos três termos proposicionais que submetem a diferença ao jogo do Mesmo e do Oposto: verdadeiro e falso (designação), veracidade e engano (manifestação) e forma de possibilidade da verdade e do absurdo (significação). Para tal, o paradoxo instaura o pensamento da diferença no interior da lógica do anel de Moebius, distinguindo-se, deste modo, da lógica circular da proposição (Silva, 2006Silva, V. L. (2006). Diferença: filosofia da fronteira - o pensamento do acontecimento de Gilles Deleuze. Tese de Doutorado, Programa de Pós-graduação em Filosofia, Universidade de São Paulo, SP., p. 44). A ruptura desse círculo faz emergir o sentido como entidade exterior à proposição, "que independe da verdade ou da falsidade de seus termos ou mesmo de sua absurdidade. Eles fazem aparecer a dimensão da diferença para que ela seja pensada, pois levam tudo a seu limite." (Silva, 2006, p. 45).

Eis aqui a possibilidade de pensar o sentido em sua relação com os corpos: corpos se conjugam em função da potência que possuem, e um efeito da conjugação de tais potências é o campo dos sentidos. Para além da lógica da representação - seja no plano de representação sensível produzida pelos corpos, seja no plano de representação racional gerador de conceitos -, atualiza-se, com os estoicos, uma lógica do acontecimento, a qual, em última instância, coincide com o poder dos corpos de saírem do presente.

Práticas discursivas e a produção de mundos

[frente ao plano de diferenças] o pensamento é chamado menos a representar do que a acompanhar o engendramento daquilo que ele pensa. Eis, então, o sentido da cartografia: acompanhamento de percursos, implicação em processos de produção, conexão de redes ou rizomas. (Passos, Kastrup, & Escóssia, 2010Passos, E., Kastrup, V., & Escóssia, L. (2010). Pistas do método da cartografia. Porto Alegre: Sulina., p. 10)

Retomando o evento em foco com todas as suas nuanças - estudantes de uma universidade pública do estado do Rio de Janeiro que foram impedidos de ingressar no local em que se daria a inauguração (teste para o funcionamento?) de um Restaurante Universitário (bandejão?), situação geradora de uma manifestação (protesto? tumulto?) -, passamos à análise das notícias que circularam em páginas eletrônicas da grande imprensa. Nosso objetivo será o de sustentar um modo de apreensão do sentido como não passível de localização em um ponto específico da materialidade linguística dos textos. Com efeito, eis nossa hipótese: o sentido não se encontra em uma única dimensão do texto, mas as atravessa todas, em menor ou maior grau. Hipótese que realiza uma aproximação muito produtiva entre os estudos do discurso e a reflexão de DeleuzeDeleuze, G. (2006). Controle e devir. In Conversações (pp. 209-218) São Paulo: 34., entendendo o sentido como o conjunto de formas sempre provisórias que dão expressão a forças: "Há sempre uma pluralidade de sentidos - uma constelação, um complexo de sucessões, mas também coexistências - que faz da interpretação uma arte" (Deleuze, 1976, p. 3Deleuze, G. (1976). Nietzsche e a filosofia (E. F. Dias & R. J. Dias, Trads.). Rio de Janeiro: Editora Rio.).

A reflexão proposta tem o mérito de explicitar de que modo se constrói a chamada "objetividade" em notícias veiculadas pelas diferentes mídias de informação. Como buscaremos demonstrar, aquilo que se reconhece como objetividade não encontra justificativa na univocidade dos "fatos" relatados por intermédio de certo poder de representação da linguagem, sendo, antes, um efeito cuja construção pode ser paulatinamente reconstruída.

Como seleção/construção de córpus para análise, chegamos a um total de seis notícias extraídas da página eletrônica Google, além do convite oficial de inauguração enviado por e-mail a servidores da universidade e da nota oficial divulgada pela reitoria no dia seguinte ao ocorrido. Na busca feita no Google, foram utilizados como indicadores os sintagmas "restaurante universitário Uxx"1 1 Para fazer referência à universidade em questão, recorremos à forma "Uxx", que garante o anonimato desejável. e "bandejão Uxx" nos seguintes portais eletrônicos: "oglobo.globo.com", "noticias.yahoo.com.br", "mancheteonline.com.br", "sidneyrezende.com.br". Para a delimitação do período no qual seriam coletadas matérias sobre o tema, optamos por textos divulgados no próprio dia do evento e no dia subsequente, isto é, nos dias 12 e 13 de setembro de 2011.

Para antecipar alguns dos itens da polêmica criada pelo cotejamento dos diferentes textos, o quadro a seguir reúne os itens pertinentes aos diversos níveis de afrontamento verificados, tendo em vista um antagonismo criado entre a versão do ocorrido fornecida pelos estudantes e a versão da reitoria da universidade:

Quadro 1:
Embates criados sobre o evento de 12/09/2011 a partir da perspectiva dos estudantes e da reitoria

Como se percebe no quadro 1, quatro são os grandes embates que se dão em nosso córpus:

1. tipo de evento em tela: inauguração (simbólica) ou teste de funcionamento do novo bandejão?

2. tipo de espaço em tela: bandejão ou restaurante universitário?

3. tipo de reação em tela: manifestação, comemoração, protesto ou tumulto?

4. participantes: 500 universitários ou, na melhor das hipóteses, menos de 100?

Apresentados desta forma, os dados silenciam alguns matizes do embate produzido. Como veremos adiante, será ainda preciso levar em consideração a voz da imprensa, que ora parece assumir a perspectiva dos estudantes, ora a da reitoria. Por outro lado, o quadro 1 ainda deixa de esclarecer em que condições a designação "inauguração" também é assumida pela voz da reitoria.

Neste trabalho, centraremos nossas análises nos debates em torno das duas primeiras linhas do quadro 1, referentes ao tipo de evento e ao tipo de espaço em questão, deixando para outra ocasião a discussão dos demais embates. Comecemos, assim, pelo texto que cronologicamente antecedeu todos os outros: o convite para a inauguração do Restaurante Universitário, distribuído à comunidade universitária.

O Chanceler da Uxx, Excelentíssimo Senhor Governador Sérgio Cabral, e o Magnífico Reitor, Professor X2 2 Com o objetivo de manter o anonimato dos participantes do evento, não mencionaremos seus nomes. , têm a honra de convidar V. Sa. para a cerimônia de inauguração do Restaurante Universitário da Uxx, a ser realizado no dia 12 de setembro de 2011, às 12h, no campus Maracanã. [Convite]

É inequívoco o convite feito à "cerimônia de inauguração" do Restaurante Universitário, momento único em que a voz da reitoria assume a designação "inauguração", uma vez que, já no dia seguinte ao ocorrido, nota oficial amplamente divulgada na Universidade e citada em textos da grande imprensa passa a se referir ao evento como "teste para o funcionamento do restaurante universitário", como se percebe no texto a seguir:

Nota da Uxx

Na segunda-feira, 12 de setembro, foi feito um teste para o funcionamento do Restaurante Universitário no campus Maracanã, com a presença de um grupo de professores, técnicos administrativos e alunos. [Nota reitoria]

Como se dá a repentina passagem de "inauguração" a "teste para (o) funcionamento"?

Segundo relato da imprensa, a reformulação de "inauguração" por "teste para (o) funcionamento" se explica pelo recuo da reitoria frente à reação dos estudantes excluídos do evento, posto que os convidados à anunciada inauguração eram poucos. Desse modo, era preciso descaracterizar o ocorrido como "inauguração", passando-se a falar de mero "teste para (o) funcionamento" do Restaurante Universitário.

Uma perspectiva que apostasse no poder representacional da linguagem diria, talvez, que, nesse contexto, "teste (para o funcionamento)" é uma designação que melhor retrataria a natureza do evento ocorrido: "O que houve realmente foi apenas um teste de funcionamento do restaurante [e não a sua inauguração]".

Poderíamos fazer o relato de tal divergência recorrendo ainda à ideia de polifonia, e não seria difícil identificar as diferentes vozes que sustentam cada uma das posições elencadas: atribuir a escolha de "teste (para o funcionamento)" à voz dos representantes da reitoria, ficando "inauguração" e "comemoração" por conta principalmente de seus opositores, os estudantes. Observe-se o trecho a seguir:

Uma inauguração simbólica foi realizada nesta segunda-feira, onde alunos que estariam no local queriam participar da comemoração, mas foram impedidos de entrar pelos seguranças da própria instituição. [Notícia 6]

Com efeito, não apostamos no poder representacional da linguagem para explicar a distância entre "inauguração" e "teste (para o funcionamento)". Se a = b (isto é, se "inauguração" = "teste (para o funcionamento)", é porque algo da ordem das condições de enunciação se alterou significativamente: alteração que implica também reconfiguração dos corpos em embate. O avanço reside em sustentar que cada enunciado produz uma transformação incorpórea, caracterizada por sua imediaticidade, "pela simultaneidade do enunciado que a exprime e do efeito que ela produz" (Deleuze & Guattari, 2005Deleuze, G. & Guattari, F. (2005). Mil Platôs (Vol. 2). São Paulo: 34 ., p. 19).

Senão, vejamos: (a) a reitoria faz circular o convite à inauguração do Restaurante Universitário; (b) por alguma razão, a ocasião é favorável à reafirmação dos laços entre reitoria e governo estadual; (c) em reconhecimento às hierarquias instituídas, atribui-se a autoria do convite primeiramente ao governador do Estado e, em seguida, ao reitor da Universidade; (d) o convite se dirige não a toda a comunidade universitária, mas, de acordo com critérios aos quais não tivemos acesso, àqueles segmentos da Universidade que aceitam compartilhar (com a reitoria e com o governo estadual) o mérito da obra realizada; (e) em decorrência do ocorrido no momento da "inauguração", a reitoria se vê na obrigação de justificar a escolha dos (poucos) que tiveram acesso à cerimônia; (f) tal justificativa deve ser dirigida não mais a uma pequena parcela de eleitos, mas a toda a comunidade universitária, a fim de legitimar a ação da reitoria; (g) a reitoria não pode sustentar junto a esse novo interlocutor (o conjunto dos que participam da comunidade universitária) que o convite havia sido dirigido apenas a alguns poucos; (h) a reitoria recaracteriza o evento como mero "teste para o funcionamento do Restaurante Universitário".

Não é um detalhe o que se altera do convite à nota da reitoria: é o próprio corpo de coenunciadores que passa a ser qualitativamente outro, uma transformação incorpórea. Com efeito, uma leitura que não problematizasse o ocorrido veria uma mesma figura de enunciador nos dois textos: é o mesmo enunciador-reitoria que assumiria a autoria de ambos. Argumentaremos, porém, em sentido contrário.

O convite inicial promove a "cerimônia de inauguração" do Restaurante Universitário. Ora, tal inauguração surge como efeito do encontro de diferentes corpos: obra recém-concluída + integrantes da reitoria desejosos de dar visibilidade à obra + aliados da reitoria dispostos a alardear o feito alcançado + promessa de reafirmação de vínculo com o corpo-governo estadual. Para falar do efeito de tal encontro de corpos, deixaremos de lado a forma substantiva "inauguração" e daremos preferência a 'inaugurar", forma verbal que melhor apreende este atributo dos seres em questão: a reitoria (e seus aliados) inaugurando o Restaurante Universitário.

Lógica semelhante ocorre em "teste para funcionamento", designação resultante do embate de corpos entre reitoria e conjunto de estudantes, paralelamente à (pretensa) aliança verificada entre o corpo-reitoria e o corpo-comunidade acadêmica. Longe de se constituírem como entidades substantivas, "inauguração", "teste para funcionamento" são processos - inaugurar, testar o funcionamento de, ou seja, trata-se de incorporais, puro efeito do encontro de corpos. Os agenciamentos coletivos designam esse vínculo instantâneo entre os enunciados e as transformações incorpóreas (Deleuze & Guattari, 2005Deleuze, G. & Guattari, F. (2005). Mil Platôs (Vol. 2). São Paulo: 34 ., p. 19).

A respeito do referido encontro de corpos, parece-nos lícito fazer a hipótese de um embate nada ameno entre o corpo-reitoria e o corpo-estudantes, tendo em vista a presença de mais um reformulante que vem ocupar a mesma posição de "inauguração" e "teste para funcionamento": o reformulante "inauguração simbólica".

De acordo com a assessoria da Uxx, o bandejão começará a funcionar em menos de um mês, mas houve uma inauguração simbólica que reuniu o reitor X, representantes de professores, de funcionários e de alunos. [Notícia 5]

De que modo entendemos a entrada em jogo desse terceiro reformulante para designar o ocorrido naquela manhã do dia 12/09/2011? Fazemos a hipótese de acirramento do embate então verificado, quando a reitoria da universidade não mais é capaz de negar a ocorrência de uma "inauguração", devendo convencer o corpo-comunidade acadêmica de que o ocorrido naquela manhã não era de modo algum excludente: a comunidade não ficara de fora de cerimônia comemorativa de inauguração, visto que o que aconteceu foi uma inauguração - aceita-se o uso do termo -, todavia, simbólica.

O efeito produzido por "inauguração simbólica" revela-se positivo, chegando a ser assumido por uma voz que parece ser a da imprensa, ou que pelo menos não é mais inequivocamente a voz da reitoria:

Segundo a assessoria da Uxx, o bandejão estará em funcionamento em menos de um mês. Uma inauguração simbólica foi realizada nesta segunda-feira, onde alunos que estariam no local queriam participar da comemoração, mas foram impedidos de entrar pelos seguranças da própria instituição. Durante esse impasse, alunos teriam sido agredidos e uma aluna teria levado um soco no peito. [Notícia 6]

Em consonância com a ideia de que tudo não passou de uma "inauguração simbólica", a reitoria faz menção em sua nota da efetiva abertura do Restaurante em um futuro próximo:

A abertura do RU para a comunidade acadêmica acontece ainda este mês, em data a ser divulgada oportunamente. [Nota da reitoria]

O início efetivo do funcionamento do bandejão para a comunidade acadêmica, segundo a Uxx, ainda será marcado. [Notícia 4]

Uma última observação acerca desse momento futuro ao qual se faz referência e que coincidirá com a abertura do Restaurante para toda a comunidade acadêmica diz respeito às etapas a serem cumpridas para que tudo possa "funcionar normalmente":

Segundo a assessoria da Uxx, o bandejão será aberto para funcionamento normal assim que alunos e funcionários se cadastrarem para a elaboração de um cartão, que será usado para o pagamento das refeições. [Notícia 5]

Ainda de acordo com a Uxx, o funcionamento será normalizado assim que alunos e funcionários fizerem um cadastramento para a criação de um cartão que dará direito às refeições. [Notícia 6]

A coexistência entre o evento "inauguração", "comemoração" e o evento "teste para funcionamento", ou ainda "inauguração simbólica", dialoga com a alternância verificada entre "manifestação", "comemoração", "protesto" e "tumulto", os quatro reformulantes localizados nos textos para fazer referência ao episódio daquela manhã:

Menos de 100 manifestantes, muitos de fora da Uxx, fizeram uma manifestação em frente ao prédio onde está localizado o Restaurante. [Nota reitoria]

A estudante do 10º período de História, Y, de 23 anos, disse que foi uma das agredidas durante a confusão: A manifestação era pacífica e tomei um soco no peito de um segurança. [Notícia 1]

De acordo com W, também estudante de História e membro do Conselho Superior de Ensino e Pesquisa, o protesto era para reclamar do valor do bandejão. [Notícia 1]

O tumulto terminou com seis pessoas feridas e um carro danificado. [Notícia 4]

Os alunos fizeram um protesto em frente ao bandejão da Universidade. [Notícia 5]

"Manifestação" funciona como designação assumida por ambos os lados em disputa, o que já não ocorre com as demais formas. Tanto a nota da reitoria como a declaração da estudante na notícia 1 ratificam a escolha de "manifestação"; "protesto", por sua vez, encontra-se fortemente ligado à perspectiva dos estudantes (declaração de um estudante também na notícia 1), enquanto "tumulto" expressa mais claramente uma ótica da reitoria, assumida também pela voz da imprensa (notícia 4).

Assim como observamos em relação a "inaugurar", "testar funcionamento" e "comemorar", insistimos no modo como pretendemos apreender essa "manifestação", esse "protesto" ou "tumulto": não como substantivos, isto é, como corpos situados no presente, mas como efeitos do encontro de corpos - acontecimento - conforme o determina sua apreensão como verbos (no infinitivo ou no gerúndio): os estudantes manifestando / os estudantes protestando / os estudantes tumultuando.

Por que recusamos o caráter substantivo de "manifestação", "protesto" ou "tumulto"? Porque assumi-los substantivamente implicaria conferir-lhes realidade de corpos situados no presente, o que não parece ser o caso: manifestar, protestar e tumultuar são efeitos de sentido que resultam do encontro de corpos. Reitoria, grupos de apoio à reitoria, estudantes, bandejão universitário - eis os corpos envolvidos na trama apresentada e cuja tessitura queremos minimamente reconstituir. Corpos cuja essência é a potência do devir: corpos constituídos por outros corpos, sempre experimentando novas combinações de forças, uma vez que, afinal, são os afetos que os impulsionam em direção às mais variadas misturas, aos mais diversos agenciamentos.

A opção metodológica de recusa do caráter substantivo dos vocábulos "manifestação", "protesto" ou "tumulto" permite fazer ver a instantaneidade do ato, captar a instauração do agenciamento ou da palavra de ordem. Ao observar os deslocamentos mínimos operados nas condições de enunciação do evento-inauguração, ressaltamos os movimentos de significância que remetem ao regime de signos, instituídos pelo agenciamento coletivo.

"Isto é inauguração" e "isto é teste para o funcionamento" parece ser o embate central. Ao invés da proposição que alia um ser a um atributo (essencial ou acidental, pouco importa), preferimos a opção do atributo-acontecimento: "isto inaugurando" e "isto testando para o funcionamento". Enunciados nos quais o importante não mais deve ser buscado no atributo, mas no próprio ser, nos corpos mesmos que, deixando-se afetar por forças diversas, combinam-se em misturas insólitas - misturas que promovem efeitos diversificados:

reitoria + grupos de apoio à reitoria + restaurante universitário = inauguração

reitoria e seus grupos de apoio + estudantes + restaurante universitário + imprensa = teste para funcionamento

Corpos agindo uns sobre outros, produzindo acontecimentos (incorpóreos): inauguração e teste para funcionamento não são coisas, nem estados de coisas, mas efeitos de superfície. Há algo que tem uma corporalidade - alunos que se dirigem cotidianamente à universidade e que, por terem fome, ali se alimentam -, e é exatamente a tal corporalidade que se atribuem incorporais - alunos-manifestantes que emergem das reuniões, que respondem a convocações.

No que tange à série aberta pela inauguração, esta supõe ações no mundo (distribuir convites, comparecer ao local, degustar alimentos), o que remete ao extralinguístico. Tudo isso é acompanhado do verbal, que não se produz depois do ocorrido: convidam-se pessoas, fazem-se alocuções oficiais em comemoração ao ato. Já em relação à série "teste para o funcionamento", não há convidados, mas indivíduos que aí participam na qualidade de "cobaias". As ações de impedimento e de tentativa de entrada assumem lugares distintos em cada uma das séries: na primeira, trata-se de inauguração restrita a pequeno grupo, pouco comum, sobretudo quando se refere ao Restaurante Universitário, em que a presença dos estudantes é, no mínimo, esperada; na segunda série, um "teste" supõe, entre outros aspectos, um compromisso distinto daquele previsto em uma inauguração, além de certo controle, como garantia da validade dos resultados esperados.

O plano linguístico e o plano extralinguístico se articulam em reciprocidade. A emergência de textos propõe segmentações diversas, convoca novas ações, evidenciando o coengendramento entre os planos.

(In)conclusões

O que quer que tenha ocorrido naquela manhã de 12 de setembro de 2011, algo permanece fora de dúvida: assistiu-se a uma mistura de corpos - estudantes, manifestantes, convidados para uma inauguração ou cobaias de um teste para funcionamento - dificilmente reconhecíveis sem a intervenção do verbal. Aliás, desde sempre o verbal esteve mesclado a outras formas de ação no mundo para produzir aquele fragmento de real: redação do texto-convite, envio do e-mail institucional ao corpo de servidores e (alguns poucos) alunos, preparo da refeição, formulação dos discursos comemorativos de "mais um feito da administração central", concentração de estudantes no pátio da universidade, textos cuidadosamente escolhidos para figurarem nas faixas de protesto, o corpo a corpo entre os excluídos da festa e os seguranças, a discussão travada entre os opositores, etc.

O tempo se abre para a potência de diferir. O problema do significado busca o idêntico a si mesmo, enquanto o sentido, afirmando-se como paradoxo, busca captar não as contradições (que se constituem entre versões dadas), mas as séries divergentes, a produção de mundos em vias de atualização.

O modo pelo qual uma proposição se refere a algo no mundo depende do modo pelo qual ela é qualificada no momento em que ela é escrita ou falada por alguém, e isto, a seu turno, depende do modo pelo qual seu significado é estabelecido, por exemplo, de acordo com definições do dicionário, mas isto também se revela incompleto sem uma referência. (Williams, 2008Williams, J. (2008). Gilles Deleuze's logic of sense - a critical introduction and guide. Edinburgh: Edinburgh University Press., p. 40)

Tal circularidade de efeitos paralisantes ganha corpo quando se insiste na polêmica criada em torno de perguntas como as que se seguem: efeito-inauguração do restaurante universitário ou efeito-teste para funcionamento? O que se passava, afinal, naquele lugar e naquele exato momento? O que eram aqueles corpos que ali se moviam? Convidados para a inauguração? Cobaias de um teste de funcionamento? Participantes de uma inauguração simbólica? Por meio de perguntas como essas permanecemos prisioneiros das grades da designação, da manifestação e da significação. Escolher qualquer uma das alternativas apresentadas e atribuir-lhe valor de verdade acerca do ocorrido somente é possível enquanto gesto político - a produção de uma aliança com a administração central da Universidade ou com a voz dos manifestantes excluídos.

Queremos, desse modo, concluir (provisoriamente) o debate, reafirmando duas posições centrais: (a) a inadequação de se pensar o verbal como representação; (b) a necessidade de ultrapassar as dimensões clássicas da proposição - designação, manifestação e significação. Quanto à primeira dessas posições, diremos que, com efeito, pensar o verbal como um momento posterior ao da produção do real, isto é, como mero relato que representaria os fatos ocorridos, significa, minimamente:

. conferir um lugar de protagonista na produção de realidade a todo e qualquer encontro de corpos, a toda e qualquer forma de linguagem, contanto que se excetue o plano verbal;

. atribuir ao verbal um papel de mero coadjuvante desse real;

. privilegiar uma versão de real dentre outras que seriam igualmente possíveis, afastando toda e qualquer possibilidade de devir.

Quanto à segunda posição que aqui assumimos, vemos que, segundo nos indica o córpus com o qual trabalhamos, a criação de sentido consiste em acolher o que perturba a ordem, o que faz pensar, além e aquém das oposições. Em outras palavras, a criação de sentido não passa pelos significados acionados por "inauguração", "teste para funcionamento" ou qualquer outra designação que ganhasse corpo naquele contexto, nem pelas crenças e intenções de seus manifestantes, ou ainda pela possibilidade de se encontrar no real um referente para o que vai sendo tematizado; a criação de sentido passa, sim, pelos diferentes efeitos produzidos e pelas associações que se atualizam em cada uma dessas experimentações. Antes de pretender "pacificar" as manifestações, personificá-las em corpos manifestantes em oposição significaria acolher a potência de diferir como parte do processo de criação de novas formas de gestão da circulação dos corpos, outros modos de apropriação do tempo, que não estejam aprisionados nas decisões, de um lado, e nas reações, de outro. Mais do que disputar diferentes versões do real, parece ser desejável a produção de mundo(s) em que a própria gestão do sentido se dê às séries divergentes.

Agradecimentos

Ao Conselho Nacional de Pesquisa - CNPq, pela bolsa de bolsa de Produtividade em Pesquisa concedida (Processo 305820/2012-5). À Faperj/Programa Jovem Cientista do Nosso Estado (Processo no. 214710. Edital 06/2015) e à Associação Brasileira de Psicologia Social.

Referências

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  • Zourabichvili, F. (2009). O vocabulário de Deleuze (A. Telles, Trad.). Rio de Janeiro: Relume Dumará; Sinergia; Ediouro .
  • 1
    Para fazer referência à universidade em questão, recorremos à forma "Uxx", que garante o anonimato desejável.
  • 2
    Com o objetivo de manter o anonimato dos participantes do evento, não mencionaremos seus nomes.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    10 Abr 2015
  • Revisado
    26 Out 2015
  • Aceito
    28 Dez 2015
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