Acessibilidade / Reportar erro

Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado: fetiche e busca do corpo ideal

No one is so perfect that they need not be edited: Fetish and the search of the ideal body

Personne n’est si parfait qu’il n’a pas besoin d’être édité : Fétiche et la recherche du corps idéal

Nadie es tan perfecto que no necesita ser editado: fetiche y búsqueda del cuerpo ideal

Resumo

Este artigo problematiza o aspecto fetichista da imagem do corpo ideal a partir da discussão do calendário de uma clínica de nutrição e estética. Discute-se a dinâmica de formação de massas, conforme a teoria freudiana, para pensar como um padrão de corpo perfeito pode ser eleito como ideal a ser alcançado por indivíduos nas sociedades contemporâneas. A lógica do mercado sustenta a imagem dos corpos ditos perfeitos na posição de fetiche e oferece acesso a essa suposta conquista por meio de produtos e serviços que trariam plenitude. Tal estratégia busca velar a castração oferecendo um substituto palpável que nega a falta e afirma a completude do outro, sustentando uma legião de pessoas que se envolve numa busca quase compulsiva pela realização desse ideal.

Palavras-chave:
corpo ideal; imagem do corpo; fetiche; formação de grupos; redes sociais

Abstract

This article analyzes the calendar of a nutrition and aesthetics clinic to discuss the fetishistic aspect of the ideal body image. We verify the dynamics of mass formation, according to Freudian theory, to posit how a perfect body pattern can be elected as the ideal to be achieved by individuals in contemporary societies. The logic of the market sustains the image of the so-called perfect bodies in the position of a fetish, offering access to this supposed conquest through products and services that would lead to fulfilness. This strategy aims to veil castration by offering a palpable substitute that denies the faults and affirms the completeness of others, sustaining a legion of people engaged in an almost compulsive quest towards accomplishing this ideal.

Keywords:
ideal body; image of the body; fetish; mass movements; social networks

Résumé

Cet article questionne l’aspect fétichiste de l’image du corps idéal par l’analyse du calendrier d’une clinique de nutrition et d’esthétique. Nous discutons de la dynamique de la formation de masse, selon la théorie freudienne, pour réfléchir comment un modèle corporel parfait peut être élu comme idéal à atteindre par les individus dans les sociétés contemporaines. La logique du marché soutient l’image des corps dits parfaits comme un fétiche et permet d’accéder à cette supposée conquête à travers des produits et services qui en apporteraient la plénitude. Cette stratégie vise à assurer la castration en offrant un substitut qui nie le manque et affirme la perfection de l’autre, soutenant une légion de personnes qui se lancent dans une quête compulsive pour la réalisation de cet idéal.

Mots-clés:
corps idéal; image corporelle; fétiche; formation de groupe; réseaux sociaux

Resumen

El presente artículo problematiza el aspecto fetichista de la imagen del cuerpo ideal a partir del análisis del calendario de una clínica de nutrición. Se discute la dinámica de formación de masas, según la teoría freudiana, para pensar cómo un patrón de cuerpo perfecto puede ser elegido como lo ideal a ser alcanzado por individuos en las sociedades contemporáneas. La lógica del mercado sostiene la imagen de cuerpos perfectos en fetiches y ofrece acceso a esa supuesta conquista por medio de productos y servicios que traerían la plenitud. Tal estrategia pretende velar la castración, ofreciendo un sustituto que niega la falta y afirma la completud del otro, lo que sostiene una legión de personas involucradas en una búsqueda casi compulsiva para concretizar ese ideal.

Palabras clave:
cuerpo ideal; imagen del cuerpo; fetiche; formación de grupos; redes sociales

Os séculos XX e XXI têm como um de seus marcos a reconfiguração dos espaços sociais proporcionada por avanços tecnológicos inéditos. Com a disseminação de uma nova maneira de explorar o planeta e de nos relacionarmos com humanos e não humanos, transitamos entre o mundo “real” e o “virtual” habitando um ciberespaço inimaginável há poucos anos.

Os avanços da biotecnociência, da nanotecnologia e da indústria de fármacos produziram transformações sociais e em nossos corpos. O aumento da longevidade, o crescimento da medicina estética e a preocupação com alimentação saudável também incorporaram elementos tecnológicos nos “cuidados” com o corpo, concebidos quase sempre a partir de uma perspectiva mercadológica. A transformação dos corpos acontece tanto no nível biológico quanto no âmbito da cultura, e o senso comum já não percebe nossa estrutura corporal como uma fatalidade da natureza: o corpo começa a ser transformado e sua imagem pode ser modificada de acordo com o interesse e a necessidade do sujeito (Le Breton, 2003Le Breton, D. (2003). Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus.).

Ainda que muitas de nossas relações sejam mediadas por aparatos tecnológicos e por novas maneiras de interagir, preservamos características destacadas por Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1921) em seu estudo sobre a formação de grupos sociais. No meio do mar de informações e imagens, nos dividimos em adoradores ou haters1 1 Termo usado na internet para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou crítica sem muito critério, com conteúdo agressivo ou ofensivo. , definindo assim nossas tribos e conferindo uma identidade a partir dessas “escolhas”. O mercado, enquanto esfera precípua da sociabilidade humana na ordem capitalista, ocupa lugar de destaque neste cenário, e a imagem do corpo ou a construção identitária que decorre dela dialoga com as mudanças tecnológicas e com lógica narcisista e espetacularizada das redes sociais.

Este artigo problematiza a questão do ideal da imagem do corpo perfeito, sua suposta oferta enquanto mercadoria e os mecanismos envolvidos na formação de uma legião de pessoas que se envolve numa busca quase compulsiva pela realização desse ideal. Considerando o excesso de imagens de corpos que permeiam nossa vida diária com promessas abusivas e irreais na busca do corpo dito perfeito, pretendemos discutir o papel dessas imagens e como elas figuram em nossa vida, isto é, como elas capturam nossos anseios e desejos.

Imagens e corpo

A fluidez e rapidez de informações têm a imagem como facilitador. É possível, fácil e desejável utilizar uma imagem para sintetizar um conjunto de ideias. Em certos aplicativos, a comunicação, no sentido de “transmissão” de informação por parte do usuário para seus seguidores, é feita quase exclusivamente por meio de imagens. Ao prescindir de palavras, a imagem ocupa lugar de destaque e ganha poder de comunicação e captação de adoradores, tornando-as potencial instrumento de angariação do desejo. Na sociedade de consumidores, é preciso se transformar em um produto comprável e desejável, e, para isso, a “embalagem” é fundamental (Bauman, 2008Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.).

Uma das faces desse fenômeno imagético e mercadológico é a noção de “corpo perfeito”. Imagens de corpos modelares são propagadas pela mídia e têm aparição expressiva nas redes sociais. Nas bancas de jornal, inúmeras capas de revista exibem fotos das barrigas enxutas modeladas no Photoshop, assim como no mundo virtual são ostentadas imagens que nos mostram corpos ditos perfeitos, incontáveis exemplos de “antes e depois” do emagrecimento ou da cirurgia, levando-nos a acreditar em promessas que oferecem atalhos para a realização do corpo ideal.

Por meio de publicidade, serviços, próteses e cirurgias, o mercado fornece a ilusão de um corpo perfeito passível de ser conquistado, o qual, por suposto, não é senão uma idealização. E, mesmo sabendo que atingir a completude de um corpo dito ideal é impossível, muitas pessoas investem tempo, dinheiro e energia libidinal tentando alcançar o que eles mesmos, de um modo ou outro, sabem ser inalcançável (Ferreira, 2011).

Ou seja, ao mesmo tempo que há a percepção dessa idealização e de sua impossibilidade, há a busca desmedida por ela e uma negação das possíveis consequências dessa busca. Opera-se um deslocamento da realidade para o imaginário, outro mundo, feito de formas, ideias e corpos perfeitos no qual devemos malhar, fazer dieta ou cirurgias plásticas.

Mesmo o conteúdo de sites e blogs, que aparentemente promovem a mudança para um estilo de vida mais saudável, pode conter mensagens que induzem à construção da imagem do corpo, associando a prática de exercícios e dietas ao corpo dito perfeito. Pesquisas analíticas de conteúdos recentes sobre blogs de vida saudável (Boepple, Ata, Rum, & Thompsom, 2014Boepple, L., Ata, R., Rum, R., & Thompson, J. (2014). Strong is the new skinny: a content analysis of fitspiration websites. Body Image, 17, 1740-1445.) levaram os pesquisadores a concluir que a maioria das mensagens encontradas nesses blogs normaliza a alimentação restritiva, a culpa baseada em alimentos, os comportamentos de exercícios exagerados, a objetificação do corpo, a estigmatização do excesso de peso e o elogio ao corpo magro idealizado. Outro aspecto relevante do consumo de imagens em rede social apontado por Tiggemann (2015) é que elas estão primordialmente atreladas ao processo de “comparação social” (social comparison), o que leva a um elevado grau de insatisfação.

Neste trabalho daremos ênfase à comercialização desse sonho à luz de conceitos psicanalíticos para compreender o que permite o crescimento vertiginoso desse tipo de fenômeno. Como pano de fundo de nossa discussão, destacaremos um produto digital veiculado no site de uma clínica situada em Brasília, denominada MetaFísicos2 2 Recuperado de https://bit.ly/2Sxy6O7. , em que figuram imagens de corpos perfeitos utilizadas pela equipe na produção de seu calendário anual cujo objetivo final seria a venda de um corpo ideal.

Quais são as portas de entrada para esse fenômeno de fascínio por uma imagem tomada como meta de muitos indivíduos e quais são os efeitos obtidos nesse percurso em busca da silhueta perfeita e da felicidade plena atribuída a ela? Partimos do pressuposto de que as bases dessa felicidade são frágeis e a perfeição, inalcançável. Sempre haverá um detalhe no corpo a ser “melhorado”, por meio de dietas, treinos ou cirurgias, e no momento seguinte à transformação começará a busca por outro detalhe a ser modificado, deslocando o sentido da vida para uma busca narcísica pela perfeição.

Clínica MetaFísicos

“Quando a beleza desperta desejo pode atingir o nível superior de uma obra de arte: nossa Meta, seu Físico”3 3 (http://www.metafisicos.com.br/site/, 2019) . É com essa frase de efeito que a clínica MetaFísicos se apresenta em seu site. Trata-se de um time de dez profissionais, entre eles educadores físicos, cirurgião plástico, psiquiatra, dermatologista, equipe de anamneses e exames antropométricos, liderados por um nutricionista, com pós-graduação em Autogestão em Saúde, e um cirurgião plástico, formado no Hospital de Defeitos da Face.

Em busca do sucesso atrelado à realização das metas baseadas em intervenções nutricionais, cirúrgicas e psíquicas, o cliente conta com uma cartela de serviços diversificada, tais como: rejuvenescimento facial; toxina butolínica; preenchimentos; projeções de queixo e mandíbula; bichectomia; lifting de braço, coxa e púbis; cirurgia íntima; laser de CO2; lipoaspirações; inclusões de próteses de silicone; gluteoplastia; tratamento de gordura localizada; entre muitos outros.

Um aspecto relevante do site MetaFísicos é a ideia de gestão oferecida pela equipe: sugere-se que há uma gestão possível para o corpo como se este fosse uma máquina ou uma empresa na qual é possível calcular riscos e custos, propor investimentos e cortes, e planejar metas e lucros a serem alcançados. A ideia de um empreendedorismo corporal aparece, aqui, como se o corpo pudesse ser administrado por regras e comportamentos análogos ao de uma corporação empresarial, que tem no mercado, por óbvio, seu habitat de sobrevivência. O corpo ideal é assim apresentado à medida que, como qualquer mercadoria, é “bem aceito” no mercado, tornando bem-sucedidos mutuamente seus produtores e consumidores.

Na linha dessa concepção de empreendedorismo corporal, o mais interessante que encontramos no site, levando em conta nosso interesse pelas imagens, é o Calendário MetaFísicos. Trata-se de uma publicação virtual que constitui um verdadeiro cartão de visitas ou portfólio da empresa. Assim como em competições de fisiculturismo, podemos notar que, nas imagens do calendário MetaFísicos, há uma preparação dos modelos com exercícios abdominais e flexões nos minutos que antecedem as fotos, para que no momento de captura da imagem os músculos estejam em seu melhor desempenho. As poses não são aleatórias e remetem à transcendência dos corpos como das estátuas gregas e repetem o princípio das poses das competições de bodybuilding. Com ares de Olimpo, os pacientes que apresentaram as melhores performances no ano anterior emprestam suas imagens - as imagens de seus corpos - para ilustrar o catálogo anual da empresa.

A mídia “calendário” com fotos de corpos ilustrando os meses do ano tem como ponto de partida o catálogo mais famoso do mundo, o Calendário Pirelli, lançado em 1964. Na ocasião, o catálogo The Cal foi criado como uma inovadora estratégia de marketing para a marca e, ao longo desses mais de cinquenta anos, transformou-se esteticamente. Sempre com renomados fotógrafos e mulheres maravilhosas em paisagens estonteantes, o catálogo esteve atento às modificações sociais e fatos relevantes culturalmente, sendo um ícone cult antenado às mudanças dos tempos.

Seguindo essa lógica, a cada ano a empresa MetaFísicos elege um tema para retratar seus ilustres clientes. Em 2019, a clínica apresenta o calendário Neon, que faz um revival dos anos 1980, remetendo ao ritmo frenético da ginástica de academia, com muita acrobacia, como era comum àquela época. Retrata em seus meses os corpos de 23 pacientes (onze mulheres e doze homens) em minúsculas roupas de cores vibrantes, cenários marcados por luz neon e embalados por músicas famosas do período referido.

Em 2018, na sexta edição do calendário, o tema adotado para sua produção foi os signos do zodíaco. Consta na ficha técnica:

O calendário MetaFísicos apresenta sua edição para o ano de 2018 exibindo os pacientes que apresentaram as melhores performances em 2017: Ilustra trajetórias de comprometimento, foco e superação, articulando as bases da clínica de saúde, atividade física, beleza e envelhecimento bem-sucedido. . . . Essa é a motivação: nossos pacientes, nossos modelos. Nossa meta, seu físico. Um 2018 MetaFísicos! Para o alto e avante! Positividade!4 4 Recuperado de https://bit.ly/3flPi2y

No ano de 2017, o calendário “Terra de Gigantes!” homenageou Brasília, cidade-sede da empresa, para mostrar que “a capital não se resume à política e celebra os traços monumentais do arquiteto Oscar Niemeyer nos corpos de seus cidadãos”5 5 Recuperado de https://bit.ly/3fj8Ip6 .

O ano de 2016 homenageou as Olimpíadas que ocorreram no Rio de Janeiro e, em 2015, foi a vez do céu de Brasília, tendo como locação o heliponto do hotel Meliá Brasília, do Complexo Brasil XXI. O de 2014, por sua vez, teve como tema a Copa do Mundo realizada no Brasil e, como cenário, o Estádio Nacional de Brasília “Mané Garrincha”. O primeiro da série, lançado em 2013, teve como tema ou uma comemoração referente a cada mês (como Natal em dezembro) ou temas clichês como noivas, cowboy, Natal, mágico e assistente etc.

No site, podemos contemplar vídeos e fotos do making of e testemunhos dos participantes. Os patrocinadores, em sua maioria, representam a indústria de manipulação farmacêutica e de suplementos. São eles: Adaptogen, Biomundo, Farma Diet, Vico Farma, Vitale, Nutricorpus, entre outras. São empresas que, em uma palavra, vendem serviços cujo resultado é você. A clínica e seus parceiros produzem corpos que assumem ares de deuses gregos e sustentam, assim, uma aparência de completude, sucesso e felicidade.

Os pacientes que chegam à clínica buscam um corpo que obedeça ao planejamento e chegue ao resultado pré-estipulado. Essa peregrinação atrás de uma imagem digna de uma estátua grega parece não ter fim: adentra-se uma série de “mais um ajuste e mais outro e ainda não ficou bom”, que visa a chegar ao corpo dito ideal. Contudo, no mundo dos corpos humanos reais, os elevados índices de obesidade, os insucessos dos programas dietéticos e os fracassos das cirurgias plásticas nos colocam diante do impasse da desobediência do corpo. O corpo humano é muito mais que a soma ou conjunto de órgãos que funcionam numa lógica puramente organicista. Ele está submetido à nossa humanidade, às palavras, aos desejos e ao inconsciente.

O título deste artigo, “Ninguém é tão perfeito que não precise ser editado”, foi uma frase escutada na clínica particular, dita por uma paciente de vinte anos que divide sua vida com muitos seguidores no Instagram. A fala nos sugere não somente o uso de inúmeros filtros e ajustes aplicados nas fotos, como também nos faz pensar onde está essa perfeição. Afinal, que corpo é esse? Quem o forjou? Um objeto ou ideia para que tenha um alcance de tamanha abrangência e força que possui este ideal do corpo perfeito na atualidade precisa de algo que dê a liga, que sustente e mova um conjunto de pessoas que, ofuscadas por essa promessa, se ofereçam como seguidores.

A pregnância da imagem na atualidade

Estamos constantemente influenciados por inúmeras tecnologias que enaltecem as imagens e que, de certa forma, alimentam o que somos, achamos que somos e, sobretudo, o que queremos ser: filmes, anúncios, TV, design, moda, compartilhamento digital de fotos e aplicativos como Facebook, Twitter e Instagram. Todas as imagens que consumimos expressam em si mesmas a visão de mundo ou interesse de seu autor/difusor (Rose, 2016Rose, G. (2016). Visual methodologies: an introduction to researching with visual materials (4a ed.). Los Angeles: Sage.). Um anúncio de grife de roupa ou perfume em uma revista, por exemplo, costuma se resumir a uma foto e uma assinatura. Tal foto comumente nos oferece um universo de informações como o que é ser um consumidor daquela marca, daquele cheiro. Sintetiza em si infinitas mensagens. Ao consumirmos o dito perfume, acreditamos fazer parte daquele perfumado mundo constituído pelos modelos, hábitos e valores da propaganda visual: é como se fôssemos, um pouquinho que seja, parte daquela casta. Desperta-se, assim, o desejo de determinado número de pessoas que passam a consumir não só o produto, como também um estilo, um ethos, um modo de ser.

Essas imagens que exibem corpos ideais, esperados e desejados se tornam, para alguns dos seguidores, uma meta única que guia a vida em suas variáveis extensões. Provocam, entretanto, uma fragilização do pensar e da capacidade de elaborar, pois a ideia do uso da imagem como metáfora dos valores atribuídos a ela faz que ela sintetize tudo o que uma pessoa deseja para sua vida, representando o objeto do desejo que, quando alcançado, realizaria o sonho da plenitude e felicidade.

O que se apresenta nesse jogo não é somente o corpo, mas certamente o que tê-lo significa. Em meio à realimentação da ideia do self-made man, do homem que deve supostamente inventar a si próprio na tentativa de não ser simplesmente uma figura a mais do rebanho, o corpo do indivíduo se torna um produto para dar conta do “como eu quero que as pessoas me vejam”, fortalecendo uma ideologia da estética corporal.

A imagem que se presta a meta, guia, foco e objetivo que a clínica MetaFísicos fornece tem por consequência uma eterna peregrinação por parte do consumidor em busca da realização de uma meta de perfeição que, por se tratar de uma imagem, é sempre ilusória. A enorme aderência a essa busca por uma mesma representação do corpo que seria ideal pode ser considerada por mais de um viés, pois o corpo “perfeito” muda com o tempo.

A apropriação do discurso da saúde é o xeque-mate. A hegemonia do discurso do saudável é taxativa e se mostra em certos estilos discursivos recorrentes que compõem uma retórica que privilegia tanto a exacerbação do cuidado com a saúde quanto a comercialização de um ideal de saúde perfeita (Sfez, 1996Sfez, L. (1996). A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo, SP: Loyola.) que, no caso, vincula-se ao corpo magro e definido por exercícios físicos. Com todo o avanço científico e tecnológico, podemos nos questionar quais são os limites na busca disso que falta - desses músculos, da barriga “negativa” ou de qualquer outra falta - a partir da qual a equipe da referida clínica se propõe, ano a ano, a vender um produto que recubra.

Corpo, mercadoria e fetiche

Conforme explicitou Guy Debord (1997)Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto., o espetáculo se tornou o novo laço social. No caso em tela, a protagonista do espetáculo é a imagem do corpo, um ícone que carrega consigo uma série interminável de crenças, apostas, valores e desejos. Esses corpos materializam normas, códigos e projetos a serem executados e atuam como controladores do comportamento (Coutinho, 2017Coutinho, C. O. (2017). “Não existe gosto melhor do que o gosto de ser magra”: o controle nos blogs pró-anorexia e pró-bulimia (Dissertação de mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.). Apesar de serem entendidas como a expressão das escolhas próprias e objeto de marketing pessoal, essas imagens de corpos ditos perfeitos são verdadeiros fetiches: objetos materiais tributários de poderes mágicos e de um imaginário que os elevam e sustentam no lugar de objetos do desejo. Interessa-nos entender quais mecanismos psíquicos individuais e sociais coletivos permitem que esse poder seja atribuído a determinado tipo de imagem, ainda que essas imagens sejam substituídas de tempos em tempos (Seixas & Lucena, 2016Seixas, C. M. & Lucena, B. B. (2016). O mundo não é um spa. In S. D. Prado, L. Amparo-Santos, L. F. Silva, M. G. Araniz, & M. L. M Bosi, Estudos socioculturais em alimentação e saúde: saberes em rede (pp. 279-296). Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ.).

Nascido no contexto de uma tentativa de desvendar o progresso das crenças religiosas, o conceito de fetiche está vinculado à crença em objetos materiais divinizados cujo estágio mais rudimentar é o fenômeno religioso (Fleck, 2015Fleck, A. (2015). De meios que se tornam fins: o conceito de fetichismo na obra de Theodor W. Adorno. Dissertatio: Revista de Filosofia, 42, 45-61.). O conceito ganha uso revolucionário tanto na teoria marxista quanto na teoria freudiana, já que, apesar de ser cunhado para definir o indivíduo “não civilizado” que acredita no poder miraculoso de certos objetos divinizados, é passível de ser aplicado também ao comportamento dos indivíduos “esclarecidos europeus” das sociedades urbanizadas e industrializadas. Neste artigo, o conceito de fetiche colabora para o entendimento da lógica que opera na formação de seguidores do site MetaFísicos ou tantos outros espaços sociais, virtuais ou não, em que a imagem do corpo se tornou um fetiche.

Na teoria marxista, ao ser analisado o modo capitalista de produção, o conceito de fetiche aparece associado a três entidades: a mercadoria, o dinheiro e o capital. Para Fleck (2015)Fleck, A. (2015). De meios que se tornam fins: o conceito de fetichismo na obra de Theodor W. Adorno. Dissertatio: Revista de Filosofia, 42, 45-61., essas entidades têm em comum o fato de “serem, ao mesmo tempo, algo sensível e suprassensível, físico e metafísico, ou, mais precisamente, serem coisas que servem de suporte para o valor” (p. 47). A mercadoria teria em si um duplo valor, tanto de troca como de uso, sendo o valor de uso aquele que se agrega ao produto por ser desejado e atender a uma necessidade, mesmo que esta seja uma fantasia. O valor de troca de determinada mercadoria, por outro lado, pode aparecer incorporado no dinheiro ou, ainda, em outra mercadoria. Pode, assim, ser percebido em características creditadas como propriedades inerentes aos objetos materiais e determinadas pelas relações sociais em vigor, como se o valor de certo objeto ou mercadoria fossem valores naturalmente pertencentes a eles (Marx, 1867/2013Marx, K. (2013). O capital, livro I: crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1867)). Assim, “as coisas tornam-se portadoras de uma característica social historicamente específica” (Bottomore, 1988Bottomore, T. (1988). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, RJ: Zahar ., p. 150) e carregam em si muito mais do que genuinamente são. Engendram desejos e fomentam a possibilidade de satisfação prometida pela mercadoria no mundo capitalista.

Esse fenômeno, que aqui nomeamos como o fetiche do corpo perfeito, está presente em diferentes discursos, da ciência ao senso comum, passando pelos profissionais de saúde e os meios de comunicação em massa. Nesses discursos há também uma profusão de sentidos que se mesclam à - e ajudam a configurar a - ideologia dominante, a qual difunde valores sociais e morais hegemônicos. A ideologia, conceito marxiano, é concebida como representação “invertida” da realidade no plano da consciência oriunda de uma “inversão” da própria realidade, como podemos observar nas sociedades capitalistas voltadas para a produção de mercadorias, e não para as necessidades humanas propriamente ditas. É remetendo a essa “inversão” existente no âmbito produtivo capitalista - no qual os valores de uso se subordinam aos valores de troca e o produtor parece se curvar ao seu produto - que Marx explica as “inversões” existentes na subjetividade humana (Larrain, 1988Larrain, J. (1988). Ideologia. In T. Bottomore, Dicionário do pensamento marxista (pp. 184-187). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .).

As formas ideológicas têm por faculdade obscurecer as contradições existentes no plano real, proporcionando assim uma representação deformada da realidade na subjetividade do sujeito, representação esta que surge como algo isento dessas mesmas contradições reais que produziram a deformação. Assim, ao projetar na consciência dos indivíduos uma representação distorcida da realidade, as ideologias funcionam enquanto legitimadoras dessa mesma realidade que não apreendem em sua essência.

Nesse sentido, a imagem do corpo dito perfeito assume a forma de uma mercadoria cujo valor de uso se encontra subordinado ao valor de troca, fazendo as relações sociais que subjazem a ela serem obscurecidas. A ideologia da estética corporal, propagadora do ideal de corpo perfeito, não só não escapa a essa dimensão fetichista - na qual as relações entre pessoas aparecem como a relação entre coisas - como a evidencia. Por meio de tal ideologia, a perspectiva de um corpo verdadeiramente saudável, de um corpo como “valor de uso”, por assim dizer, é subordinada pelos sujeitos ao “valor de troca” de tal corpo, a saber, à mercadoria “corpo perfeito” supostamente acessível via mercado.

Compreender o corpo ideal como fetiche nos habilita a avançar no que diz respeito ao que captura o sujeito na trama dessas imagens para além da macroestrutura econômica, como podemos entender a partir de uma leitura sociológica do fetiche. Embora de modo diverso ao de Marx, outro autor que faz o uso revolucionário desse conceito é Freud, ao propor uma leitura do fetiche a partir de teoria da sexualidade. Para Freud (1927/2006)Freud, S. (2006). Fetichismo. In Obras completas (Vol. XXI, pp. 143-152). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1927), trata-se de definir uma patologia (o fetichismo) que elege o fetiche como objeto sexual em função de uma impossibilidade de reconhecimento da castração. Essa construção teórica se dá no seio dos desenvolvimentos freudianos acerca da teoria da libido e de suas fases do desenvolvimento cujo curso “normal” seria o reconhecimento da castração, ou da sua ameaça, que se articularia ao complexo de Édipo, levando à regulação dos impulsos sexuais incestuosos. Entretanto, ao analisar essa patologia, Freud identifica um mecanismo de defesa que consiste numa recusa (Verleugnung) do indivíduo em reconhecer a realidade da castração, cuja percepção se torna traumatizante.

Para Freud, o complexo de castração está relacionado a todos os desdobramentos psíquicos posteriores. Trata-se de uma operação que permite ao sujeito articular simbolicamente a perda primordial enquanto falta simbólica. Ou seja, o complexo de castração instala uma dicotomia fálico/castrado, em que a menina fica indelevelmente marcada pela inveja do pênis (penisneid), enquanto o menino, pela ameaça da castração; ambos circunscritos ao campo da falta fálica (Freud, 1924/2006Freud, S. (2006). El sepultamiento del complejo de Edipo. In Obras completas (Vol. XIX, pp. 177-187). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1924)). Dessa forma, fica definida uma impossibilidade de satisfação total, uma vez que o objeto que traria satisfação está desde sempre perdido. O falo como significante do desejo se exclui da série de objetos imaginários e se torna o padrão simbólico que possibilitará que quaisquer objetos sexuais sejam equivalentes, isto é, estabelece a castração como referência fundamental para o desejo do sujeito.

Na concepção psicanalítica, o fetiche como substituto do falo velaria a castração, oferecendo um substituto palpável que nega a falta e afirma a completude do outro, fixando a satisfação a um único objeto. Se no fetichismo esse mecanismo é estruturante do psiquismo, Freud (1905/2006)Freud, S. (2006). Tres ensayos de teoria sexual. In Obras completas (Vol. VII, pp. 109-223). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1905) afirma que, em certa medida, ele está presente no amor objetal dito normal, já que oferece um objeto de satisfação possível ou um padrão de escolha objetal.

A situação só se torna patológica quando o anseio pelo fetiche passa além do ponto em que é meramente uma condição necessária ligada ao objeto sexual e efetivamente toma o lugar do objetivo normal, e, mais, quando o fetiche se desliga de um determinado indivíduo e se transforma no único objeto sexual. (p. 140)

Assim como uma negação à castração, e à não completude característica do humano, a busca da perfeição lança o sujeito em uma eterna peregrinação rumo ao Eu idealizado, que seria dotado de todos melhores atributos e completude. Os objetos superinvestidos, objetos libidinais aos quais são atribuídas propriedades além de seu valor usual, ganham o caráter de fetiche para a psicanálise ao representarem a possibilidade de satisfação total num processo de negação à falta originária instaurada no psiquismo humano e possibilitadora de toda sua engrenagem desejante.

A ideia de um corpo ideal e sua completude colocada no lugar de fetiche apazigua a angústia diante do vazio, recobrindo-o. Faz pessoas que o elegem como ideal, como meta de vida, agirem de maneira peculiar. Mesmo sabendo que a imagem compartilhada virtualmente provavelmente foi editada e os músculos dispostos de maneira precisa para simular uma perfeição, essa promessa de êxito atua sobre os indivíduos elidindo a dimensão consciente de suas escolhas. O filósofo Zizek (1996)Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto . expande ainda mais essa ideia e engloba todo o contexto social:

há uma nova maneira de ler a fórmula marxista “disso eles não sabem, mas o fazem”: a ilusão não está do lado do saber, mas já está do lado da própria realidade, daquilo que as pessoas fazem. O que elas não sabem é que sua própria realidade social, sua atividade, é guiada por uma ilusão, por uma inversão fetichista, o que desconsideram, o que desconhecem, não é a realidade, mas a ilusão que estrutura sua realidade, sua atividade social. Eles sabem muito bem como as coisas realmente são, mas continuam a agir como se não soubessem. (p. 316)

Esse “objeto” que cada um elege como especial no intuito de dar conta da própria existência não é, dialeticamente, senão a expressão pura da falta. O fato de sermos seres essencialmente faltosos é o que nos impele a forjar algo que possa dar conta desse furo, dessa ausência, e assim investimos sucessivamente em novos objetos de desejo.

Corpo ideal, efeito de grupo

Além da ideia de fetiche em Marx e Freud, vale nos perguntarmos por que acontece de muitas pessoas viverem a atribuir valor excessivo a certas coisas com as quais outros pouco se importam. Ou seja, o que leva determinado grupo (e não todo ser humano) a essa atitude de adoração e submissão ao objeto desejado que tem por efeito a formação de verdadeiros coletivos que compartilham esse ideal?

Para Freud, esse efeito pode ser entendido por meio de um conceito-chave: a identificação e seu efeito coletivo que se expressa na constituição das massas ou de grupos. Apesar de tratar da identificação desde seus primeiros trabalhos, só em 1921 Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1921) aprofunda sua teoria acerca desse conceito num texto em que elenca tipos distintos de identificação e que é referência para o entendimento das formações de grupos nas sociedades humanas.

Se inicialmente olhamos para o fenômeno social que ocorre ao consumirmos massivamente o ideal de corpo perfeito, podemos pensar concomitantemente como isso se dá de forma individual, pois, como nos diz Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1921), a psicologia individual não está apartada do meio social. A própria psicologia individual trabalha a partir de laços sociais e constitui um caminho legítimo para compreendermos a sociedade. A maneira como os indivíduos se agrupam e formam uma “massa” e as consequências dessa coesão que transforma os indivíduos em prol de suas bandeiras de grupo são objeto de seu estudo.

O efeito de fascinação que a ideia de corpo ideal exerce sobre determinados grupos merece aqui atenção especial, uma vez que ganha contornos peculiares. Segundo o psiquiatra e arqueólogo francês Gustave Le Bon (1954)Le Bon, G. (1954). Psicologia das multidões. Rio de Janeiro, RJ: F. Briguet & Cia. (Trabalho original publicado em 1895), o grupo nos coloca numa espécie de “mente coletiva” que nos faz pensar, agir e sentir de modo diferente do que faríamos individualmente. Somos tomados de poder e impulsos que não sustentaríamos de forma isolada. Le Bon propõe também a ideia de um fenômeno de contágio, que faz sentimentos e atos serem contagiosos quando o indivíduo está no grupo, o que seria um efeito da sugestionabilidade. É possível também que o interesse coletivo sobressaia ao interesse individual, o que seria um caráter hipnótico de grupo.

Esse fenômeno do contágio ou do laço hipnótico descrito por Le Bon interessa a Freud à medida que lança luz sobre o fenômeno da identificação. Dentre as diferentes nuances da identificação trabalhadas por Freud (1921/2006)Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1921), destacamos aqui a terceira forma de identificação, apresentada por ele a partir do exemplo das moças do pensionato, quando uma delas recebe uma carta de amor e todas as outras adoecem como ela por identificação. Neste caso, o mecanismo da identificação ao desejo (identificação histérica) desenvolvido por uma das moças opera sobre a base de poder ou querer colocar-se na mesma situação. Trata-se de uma identificação parcial (o desejo de estar na mesma posição da moça que recebe a carta, a partir do qual se desdobra a identificação) que aponta para uma coincidência entre os dois “eus” e indica a Freud o caminho para compreender os fenômenos de identificação nas massas ou grupos. Analisando os exemplos do exército e da igreja, Freud chega à conclusão que, nessas massas altamente organizadas, o que opera como elo entre os indivíduos não é o laço entre eles, e sim o laço identificatório que cada um, um a um, estabelece com o líder. Para Freud, o líder colocado no lugar de ideal do eu carrega o traço que une os indivíduos e fazem que eles sucumbam a uma atitude devotada.

Uma das instâncias psíquicas propostas por Freud ao longo de sua teoria e utilizada no referido texto para o entendimento das diferentes formas de identificação é o ideal do eu. Para Freud (1914/2006)Freud, S. (2006). Introducción del narcisismo. In Obras completas (Vol. XIV, pp. 65-98). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1914), o ideal do eu contém uma parcela individual e uma social que pode corresponder ao ideal comum de uma família, um grupo ou até mesmo de uma nação. Trata-se de uma instância psíquica cuja função é, ao mesmo tempo, regular o eu, fornecendo uma medida em relação ao ideal perdido e inalcançável, e guiar o sujeito em direção ao seu desejo. É também essa instância psíquica, o ideal do eu, que opera de modo determinante nas formações de massas ou grupos, pois, nesse caso, um objeto é alçado ao lugar do ideal do eu marcando um ponto de convergência de diferentes “eus”, alinhando seu desejo pelo ideal. Daí resulta o efeito de hipostasia e fascinação em diversos indivíduos, independentemente da relação que estabeleçam entre si.

E quando um corpo dito ideal ou a imagem do corpo dito ideal é alçado ao lugar do ideal do eu? Podemos pensar que ele, em forma de imagem, torna todos os aspectos relacionados a esse ideal em algo palpável, passível de medidas, quiçá alcançável? Para aquele que não o tem e o deseja, ele se torna uma mercadoria a ser comprada e usufruída. As imagens do calendário a que esse trabalho se refere encarnam a ideia de completude, plenitude, felicidade e sucesso. A satisfação com essa mercadoria requer que o indivíduo possa se olhar após as inúmeras transformações e se entender perfeito e pleno, velando toda “falta”, própria de nossa humanidade.

Se Freud se dedicou a entender as mais relevantes formações de massas de sua época (o exército e a Igreja), atualmente não podemos nos furtar a refletir sobre a expansão desse efeito em tempos de prevalência da realidade virtual. Em todas as novas modalidades de formação de grupos virtuais, os indivíduos almejam algo em comum: seja um traço, um desejo, um mesmo líder ou o interesse por um mesmo objeto. Segundo Peixoto (2014)Peixoto, Z. (2014). O Facebook para além da rede social. O usuário como consumidor-mercadoria. In C. Porto & E. Santos (Orgs.), Facebook e educação: publicar, curtir, compartilhar (pp. 221-236). Campina Grande, PB: EDUEPB., redes sociais digitais se caracterizam pela construção de agrupamentos de indivíduos que produzem e reproduzem identidades para fins de associação e afinidade no ambiente on-line. A dinâmica de grupo se expande no ambiente virtual ainda que preserve os princípios que regem o que vem a ser a formação de massas ou grupos.

A fluidez do ambiente virtual e a quantidade de membros que interagem e se manifestam simultaneamente ou em breve temporalidade fornecem novas marcas nos grupos e em seus membros. O novo modo de encontrar pares afins foi fortemente alterado, por exemplo, no Facebook ou no Instagram, pelo algoritmo EdgeRank6 6 O EdgeRank é o mecanismo que permite filtrar as publicações que surgem no seu mural de acordo com três critérios: afinidade, relevância e tempo. Quanto mais interação entre os perfis ou páinas do Facebook, maior é a afinidade. , que, a partir de dados pessoais e histórico de navegação dos usuários, direciona as postagens que supostamente mais os agradarão. Terão minimamente afinidade com algum traço do usuário daquele perfil, reforçando o efeito de sugestionabilidade entre os membros de um grupo pela repetição das atitudes de outros membros. A partir do momento que seus relacionamentos on-line são ditados por afinidades, observa-se que “O único som que escutam é o eco de suas próprias vozes” (Bauman, 2016Bauman, Z. (2016). As redes sociais são uma armadilha. El País. Recuperado de https://bit.ly/2WcYI81
https://bit.ly/2WcYI81...
, p. 19). Os grupos se tornam uníssonos, e a diferença é tratada a partir da exclusão.

Essa característica de grupo, em que crenças e valores individuais ficam à sombra do valor “maior” que une aqueles indivíduos enquanto grupo, gera uma espécie de apagamento das individualidades. Segundo Bedran (2014)Bedran, C. K. (2014). Da homogeneidade das massas ao singular do desejo. Ide, 36(57), 133-148., em grupo aceita-se exaltar um mesmo objeto como hipnotizado pela ideologia, pelas ideias e pelos ideais comuns, e a aceitação e o pertencimento que os grupos corroboram. Uma das consequências desse apagamento e massificação do pensamento é a vulnerabilidade que o grupo encontra mediante o manejo e a manipulação. Ao se questionarem e irem - na contramão da massificação - de encontro ao seu próprio desejo, os sujeitos podem vislumbrar uma saída para a homogeneização característica da cultura de massa. Em nosso caso, consideravelmente mais corriqueiro, um site oferece um produto que mercadologicamente conquistou um exército de seguidores insaciáveis: o corpo dito ideal com recheio de completude, felicidade e sucesso que, no final, constitui uma recusa da dimensão faltosa e desejante do humano.

Uma nova economia psíquica?

Por seu caráter pulsional, o humano não vive em uma relação clara e direta com um objeto específico, à maneira dos animais com seus instintos. Vivemos referenciados, pelo contrário, a uma perda, à falta de um objeto tão predeterminado quanto perdido. Assim, esse objeto pode ser chamado de “objeto causa de desejo” (Lacan, 2005Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia, 1962-1963. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .), algo que pode estar sempre em falta e nos coloca em eterna busca, um objeto perdido que se presta a ser qualquer um, desde que eleito pelo desejo.

O corpo humano, marcado pela palavra, não se esgota em imagens. Faz uso delas, é verdade, mas sempre as extrapola. Ainda que, como resultado de uma intervenção estética, um corpo se encaixe nas medidas estipuladas por um programa, a equivalência disso com a felicidade não está garantida. Esperamos que ainda falte alguma coisa, que a falta opere e o objeto mude, seja substituído e, assim, a vida siga com suas nuances, curvas e rugas em consonância com o deslizamento desejante. Do contrário, a “adesividade da libido” na busca da concretização do ideal, continuando o corpo dito perfeito a ser indiscutivelmente a meta final, nos chega em forma de fetiche.

As escolhas do sujeito, as afinidades e, principalmente, o compartilhamento de um ideal tão tirânico quanto o do corpo perfeito têm inevitavelmente rastro social. Charles Melman (2008)Melman, C. (2008). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud. sugere que há uma “nova economia psíquica” com base em fatos sociais e econômicos da contemporaneidade. São efeitos como o que acabamos de mencionar que afetam o social e individual em um mesmo golpe. Efeitos em que o mercado aparece como a esfera única de sociabilidade, fazendo até mesmo o sujeito se ver como mercadoria. Consumimos tudo, até a nós mesmos. Trocamos nossas vidas por uma imagem no lugar do Ideal pelo qual possamos nos avaliar e nos validar. O autor retoma a formulação de Marcel Gauchet em La religion dans la démocratie: “É a uma verdadeira interiorização do modelo do mercado que estamos assistindo - um acontecimento de consequências antropológicas incalculáveis, que mal começamos a entrever” (Gauchet, 1998Gauchet, M. (1998). La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard., p. 87).

Da mesma maneira, José Paulo Netto (2011)Paulo Netto, J. (2011). Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo, SP: Cortez. trabalha a questão da “captura” dos espaços privados pela lógica particular do capitalismo, que tenderia a adentrar todos os setores, não somente a vida pública, mas, igualmente, a privada. Há, assim, uma espécie de dominação sobre os indivíduos, seus possíveis consumos, seus gostos.

Aqui é o inteiro cotidiano dos indivíduos que tende a ser administrado, um difuso terrorismo psicossocial se destila pelos poros da vida e se instila em todas as manifestações anímicas e todas as instâncias que outrora o indivíduo podia reservar-se como áreas de autonomia (a constelação familiar, a organização doméstica, a fruição estética. . .) convertem-se em limbos programáveis como áreas de valorização potencial do capital monopolista. Uma mercantilização universal das relações sociais. (Paulo Netto, 2011Paulo Netto, J. (2011). Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo, SP: Cortez., p. 39)

Enquanto alvos da cultura midiática e de propaganda, nós, ao tomarmos os produtos oferecidos como objetos de desejo comum em lugar dos gostos particulares, nos convertemos em massas sociais manipuláveis e acabamos por propagar mais ainda os ideais propostos por essa indústria. Consequentemente, a ideia de ter ou poder ter acesso a isso que apazigua a angústia, por meio da oferta de produtos e soluções que deem conta das falhas e da falta, no ser ou no corpo, nos enquadra em uma equação que encobre o desejo. Nossa subjetividade é peça fundamental de uma engrenagem bilionária e nós, em nossa ávida busca por uma felicidade plena e garantida, nos oferecemos como peões nessa lógica fetichista.

Entretanto há sempre um “a mais” nessa busca, pois esse ideal engloba muito mais do que a variação de alguns quilos a mais ou a menos. Tal busca envolve uma maneira de ver, de ser e de ser visto, determinando como uma pessoa se encaixa no jogo de sua vida. Há, portanto, uma questão ética na relação com os objetos do desejo, uma vez que só há sujeito enquanto for possível a dimensão subjetiva da falta. Se na fantasia tudo podemos, quem ainda impõe um limite é o corpo, o biológico, que se põe a adoecer.

Refêrências

  • Bauman, Z. (2008). Vida para consumo: a transformação das pessoas em mercadorias. Rio de Janeiro, RJ: Zahar.
  • Bauman, Z. (2016). As redes sociais são uma armadilha. El País. Recuperado de https://bit.ly/2WcYI81
    » https://bit.ly/2WcYI81
  • Bedran, C. K. (2014). Da homogeneidade das massas ao singular do desejo. Ide, 36(57), 133-148.
  • Boepple, L., Ata, R., Rum, R., & Thompson, J. (2014). Strong is the new skinny: a content analysis of fitspiration websites. Body Image, 17, 1740-1445.
  • Bottomore, T. (1988). Dicionário do pensamento marxista. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Coutinho, C. O. (2017). “Não existe gosto melhor do que o gosto de ser magra”: o controle nos blogs pró-anorexia e pró-bulimia (Dissertação de mestrado). Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, RJ.
  • Debord, G. (1997). A sociedade do espetáculo. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto.
  • Ferreira, A. B. H. (1999). Novo Aurélio século XXI: o dicionário da língua portuguesa (3a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Nova Fronteira.
  • Fleck, A. (2015). De meios que se tornam fins: o conceito de fetichismo na obra de Theodor W. Adorno. Dissertatio: Revista de Filosofia, 42, 45-61.
  • Freud, S. (2006). Tres ensayos de teoria sexual. In Obras completas (Vol. VII, pp. 109-223). Buenos Aires: Amorrortu Editores. (Trabalho original publicado em 1905)
  • Freud, S. (2006). Introducción del narcisismo. In Obras completas (Vol. XIV, pp. 65-98). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1914)
  • Freud, S. (2006). Psicologia de las masas y análisis del yo. In Obras completas (Vol. XVIII, pp. 63-127). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1921)
  • Freud, S. (2006). El sepultamiento del complejo de Edipo. In Obras completas (Vol. XIX, pp. 177-187). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1924)
  • Freud, S. (2006). Fetichismo. In Obras completas (Vol. XXI, pp. 143-152). Buenos Aires: Amorrortu Editores . (Trabalho original publicado em 1927)
  • Gauchet, M. (1998). La religion dans la démocratie. Paris: Gallimard.
  • Lacan, J. (2005). O seminário, livro 10: a angústia, 1962-1963. Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Larrain, J. (1988). Ideologia. In T. Bottomore, Dicionário do pensamento marxista (pp. 184-187). Rio de Janeiro, RJ: Zahar .
  • Le Bon, G. (1954). Psicologia das multidões. Rio de Janeiro, RJ: F. Briguet & Cia. (Trabalho original publicado em 1895)
  • Le Breton, D. (2003). Adeus ao corpo: antropologia e sociedade. Campinas, SP: Papirus.
  • Marx, K. (2013). O capital, livro I: crítica da economia política. São Paulo, SP: Boitempo. (Trabalho original publicado em 1867)
  • Melman, C. (2008). O homem sem gravidade: gozar a qualquer preço. Rio de Janeiro, RJ: Companhia de Freud.
  • Paulo Netto, J. (2011). Capitalismo monopolista e serviço social. São Paulo, SP: Cortez.
  • Peixoto, Z. (2014). O Facebook para além da rede social. O usuário como consumidor-mercadoria. In C. Porto & E. Santos (Orgs.), Facebook e educação: publicar, curtir, compartilhar (pp. 221-236). Campina Grande, PB: EDUEPB.
  • Rose, G. (2016). Visual methodologies: an introduction to researching with visual materials (4a ed.). Los Angeles: Sage.
  • Seixas, C. M. & Lucena, B. B. (2016). O mundo não é um spa. In S. D. Prado, L. Amparo-Santos, L. F. Silva, M. G. Araniz, & M. L. M Bosi, Estudos socioculturais em alimentação e saúde: saberes em rede (pp. 279-296). Rio de Janeiro, RJ: EDUERJ.
  • Sfez, L. (1996). A saúde perfeita: crítica de uma nova utopia. São Paulo, SP: Loyola.
  • Tiggemann, M. & Zaccardo, M. (2004). “Exercise to be fit, not skinny”: the effect of fitspiration imagery on women’s Body Image. Body Image, 15, 61-67.
  • Zizek, S. (1996). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro, RJ: Contraponto .
  • 1
    Termo usado na internet para classificar pessoas que postam comentários de ódio ou crítica sem muito critério, com conteúdo agressivo ou ofensivo.
  • 2
    Recuperado de https://bit.ly/2Sxy6O7.
  • 3
  • 4
    Recuperado de https://bit.ly/3flPi2y
  • 5
    Recuperado de https://bit.ly/3fj8Ip6
  • 6
    O EdgeRank é o mecanismo que permite filtrar as publicações que surgem no seu mural de acordo com três critérios: afinidade, relevância e tempo. Quanto mais interação entre os perfis ou páinas do Facebook, maior é a afinidade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Jun 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    03 Nov 2019
  • Aceito
    09 Abr 2020
Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo Av. Prof. Mello Moraes, 1721 - Bloco A, sala 202, Cidade Universitária Armando de Salles Oliveira, 05508-900 São Paulo SP - Brazil - São Paulo - SP - Brazil
E-mail: revpsico@usp.br