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Influência das condições socioeconômicas nas alterações nutricionais e na taxa de metabolismo de repouso em crianças escolares moradoras em favelas no município de São Paulo

Characterization of mild stunting according to socioeconomic conditions and resting metabolic rate in school girls living in shantytowns of the city of São Paulo, Brazil

Resumos

OBJETIVOS: Realizou-se um estudo transversal para avaliar a taxa de metabolismo de repouso (TMR) e condições socioeconômicas em 15 crianças escolares do sexo feminino; eutróficas (EU= estatura/idade 3 95% e peso/idade entre 90-110%) e 15 com desnutrição pregressa (DP= estatura/idade < 95% e peso/estatura entre 90-110%) moradoras em favelas no município de São Paulo. MÉTODOS: Avaliou-se a TMR por calorimetria indireta, e a situação socioeconômica por entrevista domiciliar. RESULTADOS: O grupo DP apresentou TMR mais alta quando expressa por unidade de peso corpóreo (EU= 40,5 Kcal/kg/dia; DP=44,4 Kcal/kg/dia, p<0,05) e por quilograma de massa magra (EU= 49,2 Kcal/kg/dia; DP=52,5 Kcal/kg/dia, p<0,05); e diferenças significantes para renda per capita, analfabetismo materno, número de parasitas por criança, número de ordem entre os filhos e número de irmãos. Em análise multivariada as variáveis associadas à desnutrição foram renda per capita e analfabetismo materno. CONCLUSÕES: Embora os dois grupos tenham peso/estatura normais, a presença de baixa estatura leve foi acompanhada por alterações metabólicas e socioeconômicas típicas de um quadro de desnutrição.

Desnutrição proteico-energética; Criança; Condições sociais; Metabolismo energético; Parasitoses intestinais


PURPOSE: A cross-sectional study was carried out to characterize the alterations in the resting metabolic rate (RMR), and socioeconomic conditions of 15 stunted (DP= height/age < 95% and 110% 3 weight/height >90%) and 15 nonstunted (EU= height/age > 95% and 110% 3 weight/height >90%) school girls living in shantytowns of São Paulo. METHODS: Resting metabolic rate was measured using indirect calorimetry. Socioeconomic data was collected during home visits by administration of a questionnaire. RESULTS: The mildly stunted group had a higher RMR when expressed as Kcal/kg body weight (EU= 40,5 Kcal/kg/day; DP=44,4 Kcal/kg/day; p<0.05) and lean body mass (EU= 49,2 Kcal/kg/day; DP=52,5 Kcal/kg/day; p<0.05). Stunting was associated with maternal illiteracy (EU= 13,3%; DP=57,1%; p<0.05), income per capita (EU=US$107,14; DP=US$54,40; p< 0.05), number of parasites per child (EU=0; DP=1; p<0.05), birth order (EU=2; DP=4; p< 0.05), and number of siblings (EU=4; DP=6; p<0.01). Stunting was best predicted by income percapita and maternal illiteracy by using multiple logistic regression. CONCLUSIONS: Although the two groups had normal weight/height, the group with mild stunting showed socioeconomic and metabolic alterations, typical of a malnourished condition.

Resting metabolic rate; Stunting; Girls; Intestinal parasitic infection; Socioeconomic conditions


Artigo Original

Influência das condições socioeconômicas nas alterações nutricionais e na taxa de metabolismo de repouso em crianças escolares moradoras em favelas no município de São Paulo

L.P. Grillo*, L.R. de Carvalho**, A.C. Silva*, I.T.N. Verreschi***, A.L. Sawaya*

*Departamento de Fisiologia da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina; **Departamento de Bioestatística da Universidade Estadual Paulista, Botucatu, SP; ***Departamento de Medicina, Disciplina de Endocrinologia da Universidade Federal de São Paulo, Escola Paulista de Medicina, São Paulo, SP.

RESUMO

OBJETIVOS: Realizou-se um estudo transversal para avaliar a taxa de metabolismo de repouso (TMR) e condições socioeconômicas em 15 crianças escolares do sexo feminino; eutróficas (EU= estatura/idade ³ 95% e peso/idade entre 90-110%) e 15 com desnutrição pregressa (DP= estatura/idade < 95% e peso/estatura entre 90-110%) moradoras em favelas no município de São Paulo.

MÉTODOS: Avaliou-se a TMR por calorimetria indireta, e a situação socioeconômica por entrevista domiciliar.

RESULTADOS: O grupo DP apresentou TMR mais alta quando expressa por unidade de peso corpóreo (EU= 40,5 Kcal/kg/dia; DP=44,4 Kcal/kg/dia, p<0,05) e por quilograma de massa magra (EU= 49,2 Kcal/kg/dia; DP=52,5 Kcal/kg/dia, p<0,05); e diferenças significantes para renda per capita, analfabetismo materno, número de parasitas por criança, número de ordem entre os filhos e número de irmãos. Em análise multivariada as variáveis associadas à desnutrição foram renda per capita e analfabetismo materno.

CONCLUSÕES: Embora os dois grupos tenham peso/estatura normais, a presença de baixa estatura leve foi acompanhada por alterações metabólicas e socioeconômicas típicas de um quadro de desnutrição.

UNITERMOS: Desnutrição proteico-energética. Criança. Condições sociais. Metabolismo energético. Parasitoses intestinais.

INTRODUÇÃO

Na segunda metade deste século ocorreu um grande crescimento da população urbana no mundo. Esse fato, para os países ricos, esteve associado a maiores avanços científicos, tecnológicos e, especialmente, na organização socioeconômica. Nos países de baixa renda, ao contrário, o processo de urbanização não foi acompanhado pelo mesmo nível de progresso econômico daqueles países. O crescimento acelerado das populações urbanas aumentou a pobreza, trazendo enormes conseqüências sociais, nutricionais, ambientais e de saúde, uma vez que um número cada vez maior de pessoas passam a viver em favelas e cortiços superlotados, com acesso limitado a infra-estruturas básicas que lhes permitam uma existência produtiva e saudável1.

Um estudo recente sobre a situação socioeconômica e o estado nutricional de 535 famílias moradoras em favelas do município de São Paulo2 mostrou uma prevalência de 30% de desnutrição em crianças, sendo o problema mais importante a desnutrição crônica. Sobrepeso e obesidade associados com desnutrição pregressa foram encontrados em 5,8% de meninos e 6,8% de meninas. Desnutrição pregressa foi o tipo predominante de desnutrição em ambos os sexos na adolescência. A obesidade foi mais comum em adolescentes com desnutrição pregressa (10,8% dos meninos e 35% das meninas) do que em adolescentes com estatura para idade normal (7,8% em meninos e 13% em meninas). Estes achados revelam então a possibilidade de crianças com desnutrição pregressa, ou seja, baixa estatura mas com valores de peso para estatura normais apresentarem alterações no metabolismo que poderiam levar à obesidade futura.

Variações no gasto energético, tais como redução na taxa de metabolismo de repouso, têm sido associadas ao ganho de peso e acúmulo de gordura corporal. Roberts et al.3 observaram que, entre crianças caucasianas nascidas de mães obesas, aquelas que apresentaram um sobrepeso com um ano de idade tinham uma TMR menor que as outras aos três meses de vida. Um estudo em índios Pima adultos revelou ainda uma associação entre TMR baixa, para uma dada composição corporal, e risco aumentado de ganho de peso4. No entanto, ao se comparar crianças Pima obesas, com crianças caucasianas normais, não foi encontrado um decréscimo na TMR destas5.

O presente estudo procurou então caracterizar melhor possíveis alterações metabólicas, em termos de taxa de metabolismo de repouso, em dois grupos de crianças escolares do sexo feminino: eutróficas ou com desnutrição pregressa leve. Avaliou-se ainda algumas variáveis socioeconômicas e presença de parasitoses intestinais para caracterização da desnutrição.

MATERIAL E MÉTODOS

A população da presente pesquisa foi composta por 30 crianças do sexo feminino, na faixa etária entre 7 e 11 anos moradoras em favelas do município de São Paulo, Brasil. Para localizar a população de estudo, foi realizado um censo através de visitas domiciliares em seis favelas do Município de São Paulo.

Cálculos baseados em diferenças intergrupos e seus respectivos desvios padrão mostraram, em estudos prévios, que um número de 15 crianças por grupo deveria ser suficiente para um poder do teste de 80% e detectar diferenças a um nível de significância de 0,05.

A avaliação clínica foi utilizada para incluir somente meninas em estágio de desenvolvimento de pelos pubianos 1 e mamário 1, P1 e M1, respectivamente. O LH foi dosado por um ensaio imunofluorimétrico sensível6 para confirmação laboratorial do estágio M1 do desenvolvimento puberal. Esta avaliação foi realizada pela Profª. Dr.ª I. T. N. Verreschi da Disciplina de Endocrinologia. O estadiamento puberal seguiu os critérios estabelecidos por Tanner7 .

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Universidade Federal de São Paulo/Escola Paulista de Medicina (UNIFESP/EPM), tendo-se obtido, na primeira visita domiciliar, a assinatura do termo de consentimento dos pais e/ou responsáveis.

Condições socioeconômicas e ambientais

Através de um questionário aplicado pelo pesquisador aos pais e/ou responsáveis obteve-se dados sobre características do domicílio e saneamento básico; composição e renda familiar; escolaridade; ordem da criança na família.

Dados antopométricos

• Crianças < 10 anos: O estado nutricional de crianças menores de 10 anos foi avaliado utilizando-se o programa de computador, ANTHRO2, baseado na subrotina ZSANTH do Centro para Controle e Prevenção de Doenças dos Estados Unidos, utilizando como dados a idade, sexo, estatura e peso do indivíduo. O estado nutricional foi classificado de acordo com o padrão americano do National Center for Health Statistics (NCHS), usando os critérios peso/idade, estatura/idade e peso/estatura. As definições de desnutrição usadas no presente estudo foram descritas em estudo anterior2 sendo modificadas a partir das recomendações de Waterlow8,9. Utilizou-se no momento da seleção dos grupos o nível de corte de < 95% de estatura/idade e de 90-110% de peso/estatura para classificar as crianças com desnutrição pregressa leve. O grupo de crianças eutróficas foi selecionado a partir de valores de peso/estatura na faixa de 90-110% e estatura/idade ³ 95% de adequação.

• Crianças ³ 10 anos: O estado nutricional destas crianças foi determinado utilizando-se o ANTHRO, como descrito acima, que possui uma extensão para cálculo de peso/estatura em adolescentes devido a ausência de dados de referência para este critério nesta faixa etária. Esta extensão é uma adaptação da distribuição dos percentis estatura/idade e peso/idade das tabelas do NCHS para fornecer dados referentes à classificação de peso/estatura. A porcentagem de adequação para o critério peso/estatura foi calculada comparando-se o peso do indivíduo com o peso mediano da criança cuja estatura específica para idade é igual à estatura do indivíduo2. O estado nutricional destas crianças foi então determinado usando as classificações peso/estatura e estatura/idade com os níveis de corte descritos acima.

O peso corporal foi obtido com balança eletrônica, marca Kratos com capacidade máxima de 150Kg e subdividida em 5g, estando a criança em jejum noturno de pelo menos 10h. A estatura foi verificada com fita métrica (Microtoise-Stanley, Mabo Ltd), de 2.00m, dividida em centímetros e subdividida em milímetros, com visor plástico e esquadro acoplado a uma das extremidades10. A circunferência braquial foi medida no ponto lateral médio entre o acrômio e o olécrano10. Trabalhou-se com valores médios de três verificações consecutivas de pregas cutâneas triciptal11 e subescapular12,13 com cáliper Lange. Através destas medidas, determinamos a porcentagem de gordura corporal, através da fórmula14 : % de gordura = 1,33 x (média da PCT + média da PSE ) - 0,013 x (média da PCT + média da PSE )2 - 2,5. A gordura corporal total, em Kg, foi obtida multiplicando-se o peso corporal total pela porcentagem de gordura13,15 e a massa magra através da fórmula: massa magra (Kg) = peso corporal (Kg) - gordura corporal (Kg), segundo Gibson16.

Taxa de metabolismo de repouso

As escolares foram trazidas de carro às 6:30h diretamente do domicílio, após jejum noturno de dez horas para o Laboratório de Fisiologia Respiratória e do Exercício em Humanos da UNIFESP/EPM . Após 30 minutos de repouso, deitadas e em vigília, o gasto energético de repouso foi medido, por calorimetria indireta por um período de 30 minutos. As crianças podiam ler e escutar música mas eram instruídas a se movimentar o menos possível e a não dormir. Foi utilizado um calorímetro marca Sensormetric Vacumed Co., EUA, que era calibrado antes e após cada medida. O exame foi realizado duas vezes com um intervalo de uma semana entre cada medida, obtendo-se os valores médios para análise dos dados. Caso houvesse discrepância nestes o exame era repetido. O exame foi realizado, individualmente, por um técnico especializado no manuseio do aparelho.

Parasitoses intestinais

No protoparasitológico foi pesquisada a presença de helmintos e protozoários. Os exames foram analisados no Laboratório Central do Hospital São Paulo e os métodos utilizados foram os de Hoffman e Eter17.

Análise estatística

Para a análise dos dados foram utilizados testes paramétricos e não paramétricos, levando em consideração a natureza das variáveis estudadas. Para as variáveis paramétricas foram utilizados o teste t, correlação de Pearson e regressão linear para comparação entre escolares eutróficas e com desnutrição pregressa. Para as variáveis não paramétricas foram utilizados o teste de Wilcoxon e correlação de Spearman. Quanto às condições socioeconômicas, foi realizado o teste para proporções utilizando a distribuição normal para as comparações entre os grupos, nas variáveis tipo de construção, saneamento básico e escolaridade dos pais. Utilizou-se também análise multivariada através de regressão logística. As diferenças foram consideradas significantes ao nível de p < 0,05. Nas análises dos dados foram utlizados os programas Excel 5.0; Systat (Systat Inc, Evanston IL); Epi Info, version 6; SAS 6.08 (Statistical Analysis Sistems) e BMDP - Statistical Software, Los Angeles, California, 1992.

RESULTADOS

A Tabela 1 mostra as características socioeconômicas das crianças escolares. Diferenças nas condições socioeconômicas, familiares e de moradia foram encontradas nos dois grupos de crianças. Verificou-se uma maior freqüência de crianças desnutridas em casas de madeira e mista, embora a diferença entre os grupos não tenha sido significante. Todos os domicílios estudados eram servidos pela rede pública de água. A cobertura da rede de esgotos, por sua vez, foi significantemente diferente nos dois grupos, 100% para as escolares eutróficas e apenas 46,7% para o grupo com desnutrição pregressa. Quando se analisou os índices de analfabetismo materno encontrou-se um número significantemente maior de mães analfabetas nas crianças com desnutrição pregressa. A renda familiar média foi ligeiramente superior nas crianças eutróficas em relação ao grupo com desnutrição. Mas quando se levou em consideração o tamanho da família verificou-se uma renda significantemente menor para o grupo DP em relação ao grupo EU. As mães das crianças com desnutrição possuíam um número significantemente maior de filhos do que as mães do grupo eutrófico. A mediana do número de ordem de nascimento do grupo DP foi de 4 enquanto que a das crianças eutróficas foi 2, mostrando que as crianças desnutridas nasciam quando a mãe já possuía um número considerável de filhos. Em análise multivariada através de regressão logística, as variáveis associadas à desnutrição foram renda per capita e analfabetismo materno (Tabela 2). Domicílios com renda per capita inferior apresentaram um risco 26 vezes maior de desnutrição em relação aqueles com renda maior que US$ 71,78 (mediana do grupo todo). Mães analfabetas apresentaram um risco 11 vezes maior de ter filhos desnutridos do que mães com algum grau de instrução (Tabela 2).

Observou-se um número significantemente maior de parasitas em crianças com desnutrição (66,6%) em relação ao grupo eutrófico (33,3%). O grupo desnutrido mostrou ainda um número significantemente maior de parasitas por criança e uma prevalência maior de infecção por Ascaris (47,1%) que no grupo de crianças eutróficas (33,3%). Os parasitas mais comuns no grupo das EU foram Trichiurus trichiura, Ascaris lumbricóides e Giardia lamblia e no grupo DP foram Ascaris lumbricóides, Trichiuris trichiura e Entamoeba coli (Tabela 3). Observou-se ainda uma relação negativa entre o número de parasitas por criança e o estado nutricional das escolares estudadas. A medida que o número de parasitas aumenta, os valores de peso/idade diminuem significantemente, enquanto que esta associação é quase significante em relação aos valores de estatura/idade (Fig. 1).


Na Tabela 4 encontram-se as características antropométricas e a taxa de metabolismo de repouso. Crianças com desnutrição apresentaram valores inferiores de estatura, peso, estatura/idade e peso/idade, mas valores similares para o índice de massa corporal, peso/estatura, percentual de gordura e massa magra. No grupo com desnutrição, a taxa de metabolismo de repouso (TMR) mostrou valores significantemente mais altos quando expressos por quilograma de peso corpóreo e por quilograma de massa magra; porém, semelhantes quando expressos por kcal/dia (Fig. 2).


DISCUSSÃO

Este estudo procurou caracterizar a desnutrição pregressa leve em crianças escolares do sexo feminino moradoras em favelas do município de São Paulo do ponto de vista socioeconômico e metabólico. É comum na literatura a crença que quando se alcança adequação de peso para estatura, a criança nessa faixa etária seria considerada normal do ponto de vista da situação nutricional. Este estudo procurou então, primeiramente, analisar uma série de variáveis socioeconômicas conhecidas como fatores de risco para desnutrição, e compará-las entre os dois grupos de crianças para verificar se a desnutrição pregressa estaria associada a uma maior pobreza entre as famílias.

Observou-se que o grupo de crianças eutróficas morava em casas de alvenaria em uma proporção maior (73%) que as com desnutrição (46,7%). Assim, embora essa diferença não fosse significante, esses achados indicam uma situação socioeconômica mais precária entre as crianças com desnutrição.

Em segundo lugar, verificou-se que o estado nutricional estava associado a condições de saneamento básico precárias, ou seja, 100% do grupo eutrófico pertencia ao grupo de famílias moradoras em domicílios ligados à rede de esgoto, enquanto que no grupo DP apenas 47% dos domicílios estavam ligados à rede de esgoto. Esses dados mostram a influência que as condições de saneamento básico exercem sobre a desnutrição. É notória que a falta de saneamento básico está diretamente associada aos índices de mortalidade infantil. No Brasil, somente 58% do total de crianças e adolescentes de 0-17 anos são beneficiados por esgotamento sanitário, água e lixo coletados adequadamente. Na região Sudeste a proporção de crianças e adolescentes que vivem em domicílios com saneamento adequado é de 67,6%18. Segundo dados da Superintendência de Habitação Popular do município de São Paulo19 o percentual de casas com ligação individual à rede pública de água aumentou atingindo 64,2% nas favelas do município de São Paulo, em 1994. A porcentagem de unidades com ligação domiciliar de esgoto, por outro lado, diminuiu de 19,3% em 1987 para 12,1% em 1994. O estudo de Sawaya et al.2 nas favelas da região Sudeste de São Paulo verificou que em 1989/1991, 89% dos domicílios tinham acesso à água da rede pública e 36% das moradias estavam ligadas à rede oficial de esgoto.

Vários estudos têm mostrado que famílias numerosas são um fator de risco para a desnutrição em crianças jovens. Um estudo realizado com famílias mexicanas verificou uma maior prevalência de crianças com atraso no crescimento associado a um consumo de dietas de qualidade mais pobre em relação a famílias menores20. No presente estudo encontramos famílias relativamente mais numerosas no grupo DP que no grupo EU, embora esta diferença não tenha sido significante. Encontrou-se porém um número maior e significante de filhos no grupo DP em relação ao grupo EU.

Similarmente, verificou-se no presente estudo que mães analfabetas apresentaram um risco 11,3 maior de ter filhos desnutridos do que as mães com algum grau de instrução, mostrando uma associação entre escolaridade materna e desnutrição. Gupta21 e outros relataram que a educação materna está diretamente relacionada com o estado nutricional da criança. Os resultados da Pesquisa Nacional de Saúde e Nutrição (PNSN)22, realizada em 1989, mostraram que o risco de nascimentos com baixo peso para crianças cujas mães possuem menos de um ano de estudo é 2,6 vezes mais alto que para os filhos de mulheres com oito ou mais anos de estudo18.

Quanto à renda familiar, dados da PNSN22 evidenciaram a relação estreita entre renda familiar e desempenho do crescimento, sendo ótimo quando o nível de renda mensal é equivalente a pelo menos 70 dólares per capita18. No presente estudo, o grupo DP apresentou mediana de salário inferior a esse nível confirmando esses achados. Posada et al.23 mostraram que salários baixos estavam associados a baixas estaturas em crianças de 2 a 7 anos, enquanto que crianças de categorias salariais mais altas apresentavam tendência a estaturas maiores. Campino24 concluiu estudando os aspectos socioeconômicos da desnutrição no Brasil que a renda é o fator isoladamente mais importante na determinação do estado nutricional. De acordo com dados nacionais estipulou-se que uma renda abaixo de 1,0 salário mínimo per capita coloca a família em risco de desnutrição25. Sawaya et al.2 encontraram valores médios de 4,2 salários mínimos mensais e uma mediana de 0,83 salários mínimos per capita ao estudarem em 1989-90 famílias moradoras em favelas semelhantes às das escolares estudadas. Esses achados indicam então importante risco de desnutrição para essas famílias. No presente estudo encontrou-se valores de renda familiar ainda menores a estes para ambos os grupos, sugerindo um aumento da pobreza nesses últimos seis anos nas favelas da região. Ao analisar-se a renda familiar per capita verificou-se que o grupo EU e DP mostraram renda inadequada e dentro dos valores de risco para desnutrição, com o grupo DP, apresentando valores ainda menores (0,43 salários mínimos per capita) e com um risco 26,1 maior de desnutrição em relação aqueles com renda maior que US$ 71,78 (mediana do grupo todo).

Quanto à ordem de nascimento, Gupta21 e outros observaram que esta é uma variável importante pois tem efeito sobre o estado nutricional. Este autor verificou que maior número de filhos está associado a pequenos intervalos interpartais, resultando em efeitos adversos para a saúde e nutrição da criança. Encontrou-se no presente estudo uma associação significante entre ordem de nascimento e desnutrição, ou seja, o grupo DP apresentou valores de mediana de ordem de nascimento significantemente superiores em relação ao grupo EU, mostrando que as escolares com desnutrição pertenciam a famílias mais numerosas e sua ordem de nascimento era mais tardia.

Vários estudos de crianças infectadas com parasitas, tais como Ascaris lumbricóides, Giardia lamblia e Trichiurus trichiura, têm demonstrado redução de crescimento, má-absorção de nutrientes e danos na mucosa intestinal17. Loewenson et al.26 encontraram forte associação entre infecção por Giardia e desnutrição, aguda e pregressa, mas não encontraram evidências com infecções por helmintos e desnutrição. No presente estudo observou-se uma alta prevalência de parasitoses nas escolares faveladas (50%). Verificou-se ainda um percentual de escolares desnutridas com exame protoparasitológico positivo significantemente maior que de escolares eutróficas. O grupo DP apresentou também um maior número de parasitas por criança, mostrando a associação entre número de parasitas e estado nutricional. As escolares desnutridas apresentaram ainda uma prevalência maior de Ascaris, E. coli, E. vermicularis e E. nana. Enquanto que a prevalência de Trichiuris e Giardia foi mais alta nas escolares eutróficas.

Por fim, o presente trabalho observou que as crianças escolares desnutridas pregressas apresentaram piores condições socioeconômicas do que as eutróficas, com fatores de risco significantes para a desnutrição.

Quando se avaliou a TMR entre o grupo de crianças eutróficas e desnutridas em relação aos resultados de massa magra, observou-se que a medida que a massa magra aumenta, eleva-se significantemente os valores de TMR em termos de Kcal/dia. Em vários outros estudos com escolares27,28 e adultos29,30 desnutridos e controles encontrou-se valores similares ao do presente estudo, isto é, valores mais altos quando expressos por quilograma de peso corpóreo e massa magra para os grupos desnutridos quando comparados com os grupos controles. É difícil conhecer a explicação para esses resultados. Recentemente Waterlow31 levantou uma hipótese ressaltando que a TMR é determinada principalmente pelos tecidos metabólicos ativos, tais como vísceras e cérebro, e na desnutrição a massa celular em geral não está somente reduzida em quantidade, mas sua distribuição está também alterada. Sabe-se que estes tecidos estão proporcionalmente aumentados na desnutrição em detrimento da massa muscular e adiposa, que são tecidos menos ativos metabolicamente. Assim, quando a proporção destes tecidos está aumentada em relação ao peso corporal, a TMR por quilograma de peso corporal poderia ser alta, como foi encontrado em nosso e nesses outros estudos com indivíduos desnutridos. Este autor sugere, então, medir a massa celular ativa, e o melhor indicador seria o potássio corporal. Essas sugestões são interessantes para serem realizadas em estudos futuros em nossa população, com a finalidade de caracterizar melhor as alterações metabólicas presentes na desnutrição.

Por outro lado, não se encontrou diferenças na taxa de metabolismo de repouso entre os dois grupos quando os resultados foram expressos em kcal/dia, diverso do que descrito na literatura para crianças e adultos com desnutrição crônica ou atual27-31,33. Uma possível explicação para esse resultado é o fato de ambos os grupos serem semelhantes em termos de peso/estatura. Nesse sentido, um estudo longitudinal poderia trazer mais informações quanto às variações da taxa de metabolismo de repouso no decorrer do processo de crescimento, permitindo uma averiguação mais aprofundada das possíveis alterações no metabolismo de repouso que pudessem explicar a ocorrência de desnutrição pregressa associada à obesidade nessa população2 .

Finalmente, estes achados mostram que embora os níveis de corte para a desnutrição sejam pouco exigentes < 95% de adequação de estatura/idade), sendo estas crianças consideradas eutróficas por muitos autores, observa-se no grupo com desnutrição pregressa alterações metabólicas típicas de um quadro de desnutrição.

SUMMARY

Characterization of mild stunting according to socioeconomic conditions and resting metabolic rate in school girls living in shantytowns of the city of São Paulo, Brazil.

PURPOSE: A cross-sectional study was carried out to characterize the alterations in the resting metabolic rate (RMR), and socioeconomic conditions of 15 stunted (DP= height/age < 95% and 110% ³ weight/height >90%) and 15 nonstunted (EU= height/age > 95% and 110% ³ weight/height >90%) school girls living in shantytowns of São Paulo.

METHODS: Resting metabolic rate was measured using indirect calorimetry. Socioeconomic data was collected during home visits by administration of a questionnaire.

RESULTS: The mildly stunted group had a higher RMR when expressed as Kcal/kg body weight (EU= 40,5 Kcal/kg/day; DP=44,4 Kcal/kg/day; p<0.05) and lean body mass (EU= 49,2 Kcal/kg/day; DP=52,5 Kcal/kg/day; p<0.05). Stunting was associated with maternal illiteracy (EU= 13,3%; DP=57,1%; p<0.05), income per capita (EU=US$107,14; DP=US$54,40; p< 0.05), number of parasites per child (EU=0; DP=1; p<0.05), birth order (EU=2; DP=4; p< 0.05), and number of siblings (EU=4; DP=6; p<0.01). Stunting was best predicted by income percapita and maternal illiteracy by using multiple logistic regression.

CONCLUSIONS: Although the two groups had normal weight/height, the group with mild stunting showed socioeconomic and metabolic alterations, typical of a malnourished condition. [Rev Ass Med Bras 2000; (46)1: 7-14]

KEY WORDS: Resting metabolic rate. Stunting. Girls. Intestinal parasitic infection. Socioeconomic conditions.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Abr 2000
  • Data do Fascículo
    Mar 2000
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