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REVISTA BRASILEIRA, DIRIGIDA POR JOSÉ VERÍSSIMO – MOTOR DE UMA GERAÇÃO*

REVISTA BRASILEIRA, DIRECTED BY JOSÉ VERÍSSIMO – ENGINE OF A GENERATION

REVISTA BRASILEIRA, DIRIGÉE PAR JOSÉ VERÍSSIMO - MOTEUR D’UNE GÉNÉRATION

Resumos

O estudo aborda o projeto editorial da Revista Brasileira em sua terceira fase (1895-1899), levando em conta seus aspectos materiais, como o fato de ter sido financiada por uma sociedade anônima (algo não contemplado em sua bibliografia). Dirigida pelo crítico literário José Veríssimo como uma plataforma eclética de ideias, a Revista correspondeu aos anseios de autonomia dos intelectuais (que botaram de lado a política para convergir na divergência). Assim, fundaram a Academia Brasileira de Letras a partir da publicação, cuja proposta editorial espelhou, ainda, o projeto literário que Veríssimo compartilhava com Machado de Assis: brasileira, mas não nacionalista, pretendia-se cosmopolita, em diálogo não reverente com literaturas e tradições editoriais do exterior. O objetivo era criar um movimento que desse relevância intelectual ao Brasil. Aponta-se para a importância de se observar a imprensa de então em suas esferas transnacionais, e a crítica nos circuitos da rede discursiva.

Palavras-Chave:
Revista Brasileira; Crítica literária; Cosmopolitismo; José Veríssimo


This study addresses the editorial Project of Revista Brasileira, in its third phase, between 1895 and 1899, taking into account its material aspects, such as the fact that an anonymous company (S.A.) financed it (something not covered in its pertinent bibliography). Directed by the literary critic José Veríssimo in a way that it served as a platform of eclectic ideas, the Journal responded to the intellectuals’ desire for autonomy – which set aside politics in order to converge on divergence. Thus, they founded the Brazilian Academy of Letters from the publication, whose editorial proposal also mirrored the literary project that Veríssimo shared with Machado de Assis. It was to be Brazilian, but not nationalist, it intended to be cosmopolitan, dialoguing with literature and editorial traditions from abroad, but without revering them. The goal was to create a movement that gave intellectual relevance to Brazil. It points to the importance of observing the press of that time in its transnational spheres, and the criticism in the circuits of the discursive network.

Keywords:
Revista Brasileira; Literary Criticism; Cosmopolitanism; José Veríssimo


L’étude aborde le projet éditorial de la Revista Brasileira (Revue Brésilienne) dans sa troisième phase (1895-1899), en tenant compte de ses aspects matériels, tels que le fait qu’il a été financé par une société anonyme (fait qui n’est pas considéré dans sa bibliographie). Dirigée par le critique littéraire José Veríssimo comme une plate-forme éclectique d’idées, la Revista a correspondu aux désirs d’autonomie des intellectuels (qui ont mis la politique de côté pour converger dans la divergence). Ainsi, ils fondèrent l’Académie brésilienne des lettres à partir de la publication, dont la proposition éditoriale reflétait également le projet littéraire que Veríssimo partageait avec Machado de Assis: brésilienne, mais pas nationaliste, elle se voulait cosmopolite, dans un dialogue sans révérence avec les littératures et les traditions éditoriales de l’étranger. L’objectif était de créer un mouvement qui engendre une importance intellectuelle pour le Brésil. L’article souligne l’importance d’observer la presse de l’époque dans ses sphères transnationales, et la critique dans les circuits du réseau discursif.

Mots-clés:
Revista Brasileira; Critique littéraire; Cosmopolitisme; José Veríssimo


O circuito da crítica

A crítica literária na imprensa, especialmente no que se refere ao período oitocentista, oferece frentes de pesquisa ainda inexploradas fora da área literária. Isso apesar de ter sido uma instância de bastante prestígio no século XIX, em sociedades então profundamente identificadas com a literatura. O crítico era visto como aquele que detinha os códigos da criação literária: assim, podia dispor deles de modo a ordenar o circuito cultural, no qual a literatura era central, e costumava concentrar poder e prestígio. Não se trata, portanto, de investigar o crítico exclusivamente a partir de uma lupa sobre os seus textos, mas de tomá-lo também em sua atuação no circuito cultural, levando em conta as estratégias e as negociações buscadas para obter centralidade. No caso de José Veríssimo (1857-1916), o crítico literário mais ativo na imprensa nas duas primeiras décadas da República1 1 Os outros dois críticos mais relevantes do período foram Sílvio Romero (1851-1914) e Araripe Jr. (1848-1911), que tinham presença significativa em jornais, porém menos constante. – e eixo desta investigação –, quero analisar aqui como se deu sua atuação à frente da Revista Brasileira, que recriou e dirigiu entre 1895 e 1899.2 2 Entre 1857 e 1861, a publicação foi dirigida pelo cientista Candido Batista de Oliveira e editada pela Laemmert com o título Revista Brasileira, Jornal de Ciências Letras e Artes. Teve quatro tomos. No editorial de relançamento, em 1895, Veríssimo diz que a primeira versão tinha “feição talvez demasiado científica e técnica, que lhe devia certamente estorvar o acesso ao público” (p. 1). Já na segunda fase, entre 1879 e 1881, dirigida por Nicolau Midosi, a publicação obteve grande sucesso. Machado lá publicou Memórias póstumas de Brás Cubas. Doyle (1995) aponta outra fase da Revista Brasileira, em 1855, sob direção de Francisco de Paula Menezes. Veríssimo a conhecia, como se pode verificar em seus escritos sobre a história da imprensa, mas não a leva em conta no editorial de 1895, certamente por não ter tido grande impacto.

A Revista, de alguma forma, foi vítima de seu sucesso. Em sua redação, fermentou a ideia de criação da Academia Brasileira de Letras (ABL), fundada em 1897, e sua história costuma ser abordada de maneira rápida, quase como apêndice folclórico desse feito, ofuscada pela “imortalidade”. Ampliando o campo de visão, a investigação sobre a Revista indica que sua centralidade no meio intelectual do período não advém desse episódio. Tendo se tornado um dos motores para a consolidação da política artística de toda uma geração, com Machado de Assis (1939-1908) e Joaquim Nabuco (1849-1910) à frente, ela congregou intelectuais de maneira inédita na Primeira República – como se pode demonstrar inclusive por meio de documentos encontrados na pesquisa, que indicam que foi mantida por uma sociedade de ações, algo que a bibliografia a respeito ainda não contemplava.3 3 O fato de a Revista Brasileira ser a publicação oficial da ABL (retomada nos anos 1930) e de ainda haver documentos inéditos relativos à sua fundação já é indício de que ela foi pouco estudada. Seu projeto editorial abarcava o ecletismo de ideias; e o sentido do “brasileira” presente no nome encerra, paradoxalmente, uma contradição em relação à ideia de nacionalismo então vigente, associando-se, por meio da atuação de Veríssimo, a uma esfera transnacional e cosmopolita de circulação de impressos (Abreu e Mollier, 2016ABREU, Márcia; MOLLIER, Jean-Yves. (2016), “Nota introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX”, in M. Abreu (org.), Romances em Movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), Campinas: Editora da Unicamp., p. 9).

O crítico reforçou sua centralidade com a Revista; mas não agia sozinho. A atividade crítica, portanto, não deve ser vista como algo limitado à escrita sobre os autores. Há redes de convivência e invenção social em torno da escrita, constituindo-se e firmando-se numa instância coletiva. Nesse sentido, a Revista Brasileira foi o principal feito de Veríssimo.

Para compreender como se deu a atuação do crítico, no que se refere à publicação, naquilo que chamamos de “circuito”, parte-se da ideia de “instantâneo”, na proposição de Kittler (1990)KITTLER, Friedrich. (1990), Discourse Networks, 1800/1900, trad. Michael Metteer e Chris Cullens, Stanford: Stanford University Press., cujo trabalho seminal teve como um de seus objetivos mostrar como surgiu a demanda pela crítica no romantismo alemão, no período que denomina “rede discursiva 1800”, e como esta começa a perder espaço, na virada do século XIX para o XX, no limiar da “rede discursiva 1900”. Não se trata de uma história estritamente intelectual, embora também o seja; no “instantâneo”, no caso deste trabalho, quer-se “flagrar” o crítico em ação, em especial no espaço da redação, levando em conta as especificidades técnicas e as sociabilidades lá demandadas.

Ou seja, é a própria ideia de materialidade da comunicação – conceito desenvolvido por Gumbrecht e Pfeiffer (1994)GUMBRECHT, Hans Ulrich & PFEIFFER, Ludwig (orgs). (1994), Materialities of Communication, Stanford: Stanford University Press. a partir de Kittler – que surge na maneira como propicia a conjunção de ideias e a formação de sentidos. Para esse propósito, a pesquisa em fontes primárias torna-se fundamental. Assim, buscam-se subsídios não apenas na publicação, a partir do arquivo do periódico, como em material epistolar, outros periódicos, documentos diversos, referências na literatura do período etc.

O “instantâneo” é o método pelo qual se acessa a “rede discursiva”, expressão que se toma de empréstimo da tradução norte-americana de Aufschreibesysteme (Discourse Networks),4 4 Ver Muller e Felinto (2008). neologismo em alemão e título original da obra de Kittler, cuja tradução literal poderia ser “sistema de notação”. Não se trata apenas de um “discurso”, mas deste imbricado numa “rede” (aqui se prefere o termo “circuito”), ou um “sistema de notação” que dê conta dos códigos acionados e coordenados por um determinado meio de comunicação. Trata-se de observar as condições que propiciam sua existência e a maneira como esta pode gerar sentidos.

O termo rede discursiva [...] também pode designar a rede de tecnologias e instituições que permitem a uma determinada cultura selecionar, estocar e processar dados relevantes. Tecnologias como as de impressão de livros e as instituições relacionadas a isso, como a literatura e a universidade, constituíram, portanto, uma disposição histórica muito poderosa, que na Europa da era de Goethe se tornou a condição de possibilidade para a crítica literária. (Kittler, 1990KITTLER, Friedrich. (1990), Discourse Networks, 1800/1900, trad. Michael Metteer e Chris Cullens, Stanford: Stanford University Press., p. 369)5 5 Tradução minha. No inglês: “The term discourse network […] can also designate the network of technologies and institutions that allow a given culture to select, store, and process relevant data. Technologies like that of book printing and the institutions coupled to it, such as literature and university, thus constituted a historically very power formation, which in Europe of the age of Goethe became the condition of possibility for literary criticism”.

Se a crítica hermenêutica – que irá emergir no tempo de Goethe – tem na busca do sentido sua razão de ser, Kittler lembra que a sociologia da literatura, em oposição, aproxima-se dos textos como se fossem reflexos de relações de produção, tendo o trabalho como importante paradigma. Na sua perspectiva, entretanto, não há essa oposição. “A crítica literária tradicional, provavelmente porque se originou a partir de uma prática particular de escrita, investigou tudo sobre livros, exceto a maneira como processam dados” (Kittler, 1990KITTLER, Friedrich. (1990), Discourse Networks, 1800/1900, trad. Michael Metteer e Chris Cullens, Stanford: Stanford University Press., p. 369). Segundo a análise fundamental de Wellbery (1990)WELLBERY, David E. (1990), “Prefácio”, in KITTLER, F., Discourse Networks, 1800/1900, trad. Michael Metteer e Chris Cullens, Stanford: Stanford University Press., a própria escrita de Kittler, nesse sentido, quer-se “pós-hermenêutica”. É um projeto grandioso (e, sem dúvida, polêmico), do qual não será possível dar conta no escopo do atual trabalho; mas pode-se reter que o teórico alemão das mídias abriu muitas frentes de pesquisa, com a possibilidade de aporte de múltiplos campos.

Por meio dessa perspectiva, podemos acessar a complexidade da Revista Brasileira, que se tornou uma meca intelectual na capital, para a qual convergiram os principais debates de seu tempo. A publicação possuía ainda ramificações internacionais – aspecto que também não aparece na bibliografia a respeito –, na medida em que surge afinada com importantes tendências intelectuais expressas em revistas culturais de outros países. É o próprio lugar do Brasil no mundo que se discute. João Alexandre Barbosa, por exemplo, realiza uma análise pioneira sobre a atuação do crítico à frente da Revista,6 6 No livro A tradição do impasse: Linguagem da crítica & crítica da linguagem em José Veríssimo (1974), baseado na tese de doutorado defendida pelo autor na USP, sob orientação de Antonio Candido, a primeira de teoria literária desenvolvida no Brasil. ao destacar o ecletismo que orientava seu projeto editorial; mas não leva em conta o aspecto internacional.

O autor não observa a contradição no fato de Veríssimo ser um crítico do nacionalismo então vigente, quase um antipatriota na visão de muitos contemporâneos. Assim, o sentido de “brasileira” que imprimia à publicação não deveria passar despercebido. “Não sou patriota, ao menos não o quero ser na acepção política deste vocábulo, assevandijado pelo uso desonesto com que com ele se qualificam os mais indignos repúblicos”, escreveu, no prefácio da segunda edição de A educação nacional (2013 [1906]VERÍSSIMO, José. (2013 [1906]), A Educação Nacional, 4a edição, Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC-MG., p. 59).7 7 Nesse prefácio de 1906, Veríssimo se desculpa pelo tom “nacionalístico” da primeira edição, de 1890. Num texto impiedoso em relação a Veríssimo, no Correio da Manhã (6 jan. 1903, p. 1), Antonio Salles o acusa de não ser patriota em suas avaliações críticas, diferentemente de Araripe Jr. e Sílvio Romero. Salles ecoava, e reafirmava, opiniões que circulavam sobre Veríssimo. A comparação com os dois críticos se justificava porque, segundo Salles, tratava-se dos três maiores do período; mas destes, ainda segundo o autor, Veríssimo era o mais assíduo na imprensa, com quem os autores podiam de fato contar para avaliar suas obras. Depois da Revista Brasileira, Veríssimo havia se tornado o crítico do Jornal do Commercio, com a seção “Revista Literária” (os leitores o identificavam à importante revista que havia dirigido), mas se transferiu para o Correio da Manhã em 1901, assim que o jornal (de oposição ao governo) foi fundado. O texto de Salles teria sido decisivo para a saída do crítico do jornal. E reiterou: “Não façamos da Pátria um ídolo, um novo Moloch, a quem tudo sacrifiquemos”.8 8 Segundo Carvalho (2013), as ideias de Veríssimo são as de um pensador da cultura brasileira de alto calibre. O livro A educação nacional foi o passaporte com que ingressou em importantes círculos na capital. Em 1891, ele se mudou de Belém para o Rio, onde logo começou a colaborar com o Jornal do Brasil, ao lado de Joaquim Nabuco e Rodolfo Dantas (apesar de fervoroso republicano, identificava-se com o monarquista Nabuco em muitas de suas críticas à República). No Jornal do Brasil, a primeira série relevante de artigos que escreveu criticava duramente a política educacional do positivista Benjamin Constant. Saiu de lá no início de 1892, ao se tornar diretor do Ginásio Nacional (Pedro II).

Nesse sentido, pode ser útil lembrar que Veríssimo, até por dever diante de seus leitores, buscava sempre se manter atualizado em relação ao que se publicava no exterior. Foi autor de inúmeros textos sobre autores estrangeiros, que reuniu nos volumes de Homens e coisas estrangeiras (2003)VERÍSSIMO, José. (2003), Homens e coisas estrangeiras. 1899-1908, Rio de Janeiro: Topbooks., e leitor assíduo de revistas de fora. Sua correspondência com o diplomata Oliveira Lima (1867-1928), material inédito que serviu para dar corpo a grande parte da pesquisa que apresentamos parcialmente neste artigo,9 9 A correspondência de Veríssimo para o diplomata, composta por 180 cartas, encontra-se na Oliveira Lima Library, na Universidade Católica da América, Washington. São cerca de mil páginas manuscritas, inéditas, que fotografei e transcrevi. demonstra como estava atento ao circuito da imprensa estrangeira.

Sendo diplomata com passagens por diferentes países, Oliveira Lima lhe trazia muitas informações úteis. A política internacional tomava bastante tempo de suas conversas. A amizade só foi rompida na Primeira Guerra Mundial, quando Lima apoiou os alemães. Veríssimo, de seu lado, defendendo ideias pacifistas e socialistas, tornou-se praticamente o líder da Liga Pró-Aliados (embora Rui Barbosa fosse o presidente oficial). Com Oliveira Lima compartilhava, ainda, a paixão pela aproximação cultural do Brasil com a América Latina. Escreveu muitos artigos sobre questões de política internacional10 10 No início de 1898, Veríssimo iniciou uma colaboração em A Notícia, escrevendo a coluna “O exterior pelo telégrafo”, que era publicada, esporadicamente, a cada dois ou três dias; nela, comentava em poucos parágrafos as notícias internacionais. Assinava os textos apenas com a inicial “V.”. A coluna já existia antes de 1898, mas a marca de Veríssimo só apareceria na edição de 9 de fevereiro daquele ano. A colaboração duraria anos, e afiava o crítico para o debate de assuntos de política internacional. e nunca se cansava de sublinhar a dificuldade que enfrentava para conhecer autores de países vizinhos. Foi, aliás, com notícias que trouxe do exterior que Veríssimo começou a se tornar conhecido na capital, justamente em um texto editado pela Revista Brasileira – sua estreia na publicação –, em sua segunda fase, sob a direção de Nicolau Midosi. No oitavo tomo (abril-junho), uma análise sua do Congresso Literário Internacional, do qual participara em Lisboa entre 20 e 25 de setembro de 1880, foi inserida em artigo de J. M. Vaz Pinto Coelho.11 11 Sobre essa passagem, Araripe Jr. escreveu, em artigo para A Semana de 1894: “Foi a Revista Brasileira (entre outras citarei este exemplo) que trouxe ao conhecimento dos espíritos cultos desta capital que em 1880 havia no Pará um movimento literário bem notável, iniciado por um escritor, hoje muito reputado na imprensa fluminense” (A semana, 31 mar. 1894, n. 31). O artigo foi publicado um ano antes do relançamento da Revista Brasileira por Veríssimo, o que indica sua proeminência na capital.

Sua associação e amizade com Machado de Assis desempenha papel crucial não apenas no sucesso da publicação,12 12 A reunião da correspondência de Machado de Assis (2009-2015) pela ABL demonstra como eram próximos e se identificavam na visão cética e irônica do mundo. como para a formatação do projeto editorial “brasileiro”.13 13 Podemos lembrar, a esse respeito, que Veríssimo é autor de História da Literatura Brasileira, publicado em 1916, logo após sua morte. Na correspondência com Oliveira Lima, ficamos sabendo que desde o fim do século XIX o autor planejava realizar o livro, que seria uma espécie de contrapartida à obra de Silvio Romero. Seria escrito muito tempo depois, quando Veríssimo já se mostrava mais cético e pessimista em relação ao movimento intelectual brasileiro. Levando-se em conta a variedade de seus escritos para jornal, fez um esforço de depuração grande para chegar ao resultado final. O livro é também uma homenagem a Machado. Não se pode esquecer que Machado, em 1897, tornou-se o presidente perpétuo da ABL, que nasceu dentro da Revista Brasileira; ele era, de fato, o “chefe dos chefes”, na expressão que usou para definir José de Alencar (Assis, 2008ASSIS, Machado de. (2008), Obra completa em quatro volumes, Rio de Janeiro: Nova Aguilar., vol. 4, p. 1.124), que escolheu como patrono de sua cadeira na Academia. Machado considerava Veríssimo o maior crítico da literatura brasileira e, mesmo, segundo a interpretação de Guimarães (2004)GUIMARÃES, Hélio de Seixas. (2004), Os leitores de Machado de Assis: O romance machadiano e o público de literatura no século 19, São Paulo: Nankin Editorial/ Edusp., seu “leitor ideal”. De seu lado, Veríssimo defendia Machado como o maior autor da literatura brasileira (inclusive para o futuro).14 14 “E como eu creio que Machado de Assis será no século XXI um nome muito maior do que é hoje, tudo isso será precioso e a posteridade lhe será reconhecida meu caro Mário pela sua piedade para com ele” (Veríssimo, carta a Mário de Alencar, 20 dez.1908, acervo da ABL). Veríssimo e Alencar trabalharam juntos para manter viva a obra de Machado logo após a morte do escritor, planejando edições (às vezes frustradas), homenagens na imprensa e até o nome de rua que até hoje existe no Rio de Janeiro. Assim, podemos tomar Machado como o polo positivo em relação a ele no circuito da crítica – polo que tende a diminuir a partir de 1908, com a morte do escritor.

Um projeto editorial de cunho cosmopolita

É numa de suas primeiras críticas escritas na capital, em janeiro de 1892, chegado há poucos meses da província, que Veríssimo sela sua associação com Machado de Assis. Ao realizar a apreciação de Quincas Borba (Jornal do Brasil, 11 jan. 1892), o crítico rompe com o “critério nacionalístico”, como disse, tributário que era de Sílvio Romero (a quem cita), ao destacar que, sob esse ponto de vista, o romance seria praticamente nulo. Diante do texto machadiano, diz sentir vontade de despir-se de fórmulas: sua obra deveria ser lida “sem nenhum preconceito de escolas e teorias literárias”. Ao reiterar como o emprego de fórmulas pode ser injusto, Veríssimo afirma: “Eu por mim cada vez acredito menos nelas”.

Nessa crítica, de alguma forma, ele esboçou o projeto editorial que pôs em prática na Revista Brasileira, em sua terceira fase, a partir de 1895. A publicação se queria brasileira, mas não “nacionalística”, e mostrava-se aberta a diferentes escolas e teorias. O editorial em que anunciou seu programa evoca a crítica a Quincas Borba:

Republicana, mas profundamente liberal, aceita e admite todas as controvérsias que não se achem em completo antagonismo com a inspiração da sua direção. Em Política, em Filosofia, em Arte não pertence a nenhum partido, a nenhum sistema, a nenhuma escola. Pretende simplesmente ser uma tribuna onde todos os que tenham alguma coisa a dizer, e saibam dizê-la, possam livremente manifestar-se.15 15 Veríssimo, Revista Brasileira, tomo I, 1895, p. 3.

Indícios encontrados na publicação mostram que, além de buscar se situar com vigor na cena local, a Revista foi criada de forma articulada em relação ao que de mais moderno havia, em âmbito internacional, no ramo das revistas intelectuais.16 16 Dutra (2018) analisa a relação entre a Revista Brasileira editada por Veríssimo e a Revue des Deux Mondes no período em que foi comandada por Ferdinand Brunetière, na década de 1890. Aqui, apresentamos indícios de que o modelo de Brunetière não era isolado: havia então outras publicações do mesmo tipo que circulavam, com grande influência junto a público. Ao observar esse aspecto, aponta-se uma lacuna metodológica que, aos poucos, vem sendo suprida nos estudos de história da imprensa (lacuna que, não por coincidência, também marca a crítica machadiana no Brasil). Ela reside no fato de que dificilmente se compreende de forma plena a história dos impressos no Brasil – aqui neste caso, a história da imprensa periódica – sem uma consideração não superficial dos movimentos editoriais em outros países.17 17 Uma iniciativa importante nesse sentido foi desenvolvida pelo projeto A Circulação Transatlântica dos Impressos – 1789-1914, coordenado por Abreu e Mollier (2016). Usamos aqui o conceito de trocas transnacionais a partir das ideias desenvolvidas nesse estudo. Nesse sentido, a França se manteve como epicentro, mas Veríssimo fez em sua trajetória um esforço para se manter atualizado em relação a outros países europeus e não apenas, já que o continente americano, com destaque para os vizinhos latinos, surge de forma constante, e contundente, em seus escritos.18 18 O primeiro esforço relevante para destacar a face latino-americanista de Veríssimo foi feito por João Alexandre Barbosa, que organizou Cultura, literatura e política na América Latina, coletânea de críticas do intelectual a autores de países da América hispânica (1986).

Em seu estudo sobre os periódicos ilustrados no Segundo Reinado, Cardoso (2011)CARDOSO, Rafael. (2011), “Projeto gráfico e meio editorial nas revistas ilustradas do Segundo Império”, in: P. Knauss et al. (orgs.), Revistas ilustradas: modos de ler e ver no Segundo Reinado, Rio de Janeiro: Maud X/Faperj. lembra que a historiografia não reconhece devidamente o papel decisivo que os artistas gráficos estrangeiros tiveram nessas publicações. O autor destaca que esse “esquecimento” se deve ao pendor nacionalista que dirigia a maioria das pesquisas históricas sobre imprensa até meados do século XX, caso, por exemplo, do livro ainda incontornável de Sodré (1999)SODRÉ, Nelson Werneck. (1999), História da Imprensa no Brasil, 4º ed., Rio de Janeiro: Mauad.. A “influência” estrangeira não é ignorada, mas tomada somente de maneira transversal; as publicações locais são vistas quase que exclusivamente dentro de uma tradição nacional. Não se leva em conta o movimento propriamente em relação a congêneres internacionais.

Já no caso machadiano, lembra Rocha (2005ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis., p. 11), por muito tempo as pesquisas se concentraram no debate “sobre os possíveis laços entre o trabalho do autor e a realidade local”. Machado teria sua obra analisada somente a partir dos dilemas da história brasileira, e nunca situada no âmbito transnacional, embora trave intenso diálogo com literaturas de escopo universal, notadamente com Shakespeare. Assim, Rocha propõe o desenvolvimento de ferramentas analíticas para lidar com essa esfera, levando em conta o jogo internacional de poderes entre as nações. Essa proposição, inclusive pela participação decisiva de Machado na Revista Brasileira – de cujo prestígio o escritor foi fiador –, pode ser transposta em parte para o caso da publicação.

Na “república mundial das letras” que Rocha toma como ponto de partida, reconhece-se que há uma história da literatura além da esfera nacional, que nem sempre coincide com os limites, os capitais e as formas de comunicação predominantes no mundo político e econômico (Casanova, 2004CASANOVA, Pascale. (2004), The world republic of letters, trad. M. B. DeBevoise, Cambridge: Harvard University Press., p. 11).19 19 Para Rocha, “apesar de seu inquestionável compromisso”, o livro de Casanova é atravessado pelo uso de adjetivos inadequados, tais como “pequenas” línguas, que contradizem suas premissas (2005, p. XXXIV). Assim, o século XIX viu a chegada à cena internacional das literaturas do continente americano, que, segundo a autora, “geraram novas demandas para a existência literária”. No início do século XX, Larbaud já falava da necessidade de uma abordagem global para a crítica literária, a partir da emergência do “intelectual internacional” (apudCasanova, 2004CASANOVA, Pascale. (2004), The world republic of letters, trad. M. B. DeBevoise, Cambridge: Harvard University Press., p. 5). Com hierarquias próprias, a esfera transnacional da literatura teria sua geografia baseada na oposição entre um centro e uma dependência periférica deste, definida por uma “distância estética” (Casanova, 2004CASANOVA, Pascale. (2004), The world republic of letters, trad. M. B. DeBevoise, Cambridge: Harvard University Press., p. 12).

De fato, observa Rocha, o fantasma de uma “modernidade atrasada” sempre assustou os intelectuais latino-americanos, e o desejo de estar em dia com as correntes consideradas as mais modernas fez com que se lançassem frequentemente em corridas vãs (Rocha, 2005ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis., p. XXIV). Se há uma “distância estética” em relação a um centro, supõe-se que a periferia esteja-lhe em tempo anterior. No entanto, a proposição de Castelnuevo e Ginzburg põe em questão esse esquema “um tanto maniqueísta” (Rocha, 2005ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis., p. XXIII). Considerar apenas o “atraso” equivaleria a um esquema tautológico que eliminaria a dificuldade, ao querer lidar com ela: “Vista de uma perspectiva polivalente, a relação entre centro e periferia revela-se muito diferente de uma imagem pacífica […]. Não se trata de uma questão de difusão, mas de conflito” (Castelnuevo e Ginzburg apudRocha, 2005ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis., p. XXIII).

A ideia de “conflito” seria chave para compreender a maneira como a Revista Brasileira buscou se posicionar diante de congêneres internacionais. Rocha afirma que Machado toma o suposto “atraso” como um projeto crítico, ao trabalhar com a ideia de um “anacronismo deliberado”, que o autor praticaria à maneira do Pierre Ménard borgiano, o “autor” de Quixote. Há irreverência e ironia em relação à tradição literária. Já Veríssimo certamente não via a Revista Brasileira como “atrasada” (ao contrário) e tampouco mantém postura reverente, sendo a ironia uma das pedras-de-toque de seu projeto, afinado ao gosto machadiano.

Se a ideia de atraso assombrava os próprios escritores – ou havia uma percepção a respeito, que alguns ousavam desafiar, caso provável de Veríssimo e Machado –, os ciclos de circulação de impressos, pelo menos a partir do século XIX, indicam que as ideias de imitação e atraso cultural de fato resultariam

[...] da supervalorização de algumas das nações mais desenvolvidas da Europa e de uma falta de atenção aos modos específicos de produção da cultura letrada nas diferentes partes do globo, seus fluxos e conexões, que são muito mais intensos do que normalmente se supõe (Abreu e Mollier, 2016ABREU, Márcia; MOLLIER, Jean-Yves. (2016), “Nota introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX”, in M. Abreu (org.), Romances em Movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), Campinas: Editora da Unicamp., p. 12).

Pode-se observar uma sincronia no interesse por determinadas obras em diferentes lugares. Se há nítida preponderância cultural francesa e proeminência econômica britânica, estas não seriam absolutas. “Assim, não há um centro fixo nem uma periferia absoluta, como um fim de linha da cadeia de transmissão da cultura. Há múltiplos centros e eles não ocupam pontos fixos” (Abreu e Mollier, 2016ABREU, Márcia; MOLLIER, Jean-Yves. (2016), “Nota introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX”, in M. Abreu (org.), Romances em Movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), Campinas: Editora da Unicamp., p. 11). O conceito de circulação defendido pelos autores torna-se útil ao enfatizar a ideia de movimento, sem estabelecer lugares fixos de partida e chegada.

Albuquerque (2017)ALBUQUERQUE, João. (2017), “O nacional cosmopolitismo de Machado de Assis”, in Machado de Assis em linha, São Paulo, (10)21: pp. 105-118, agosto. defende, a partir de Instinto de nacionalidade, “a afirmação de um Machado de Assis de índole muito mais cosmopolita” (ele se refere sobretudo a Baptista),20 20 Abel Barros Baptista, “O episódio brasileiro”, em A formação do nome, 2003. ao destacar a maneira como o escritor reconhecia a “existência de um mundo literário concreto, que tem uma geografia, uma construção, uma temporalidade, uma moral, leis e políticas próprias”. Como diz, trata-se do campo da world literature.21 21 Rocha (2005) qualifica a proposição de uma Weltliteratur, lançada por Goethe no início do século XIX, como “superada” (outmoded, no original), mas não explica o motivo. É no próprio terreno da “materialidade”, à maneira de Gumbrecht/ Kittler, que assim nos encontramos. Wellbery lembra que a proposição de Kittler, com sua construção de “instantâneos”, pode ser enriquecida por aportes da world literature, que se realiza no trânsito, “no comércio, na troca, na comunicação” (1990, p. XVIII). A consciência de Machado desse mundo concreto, segundo Albuquerque, inclusive pelo reconhecimento de que o Brasil teria um capital literário “pobre e que carece de corporização”, possivelmente não se separa de seu desejo de afirmação pessoal. Com esse intuito, o autor de Quincas Borba teria tido ainda o “vislumbre dos benefícios” de buscar o suporte de uma afirmação coletiva (ALBUQUERQUE, 2017). Sua literatura fala por si, mas esse propósito não é estranho ao da própria Revista Brasileira.

União dos contrários numa sociedade de ações

Em Revistas em revista (2001), Ana Maria MartinsMARTINS, Ana Luiza. (2001), Revistas em revista: imprensa e práticas culturais em tempos de República, São Paulo (1890-1922), São Paulo: Edusp. cita o amadorismo como traço das revistas do século XIX. Ao falar da Revista Brasileira, nada apresenta sobre sua sociedade comanditária, diferentemente do que faz quando trata da Revista do Brasil, criada em 1916 nesses moldes (e, em muitos aspectos, inspirada na Revista Brasileira). Wilson Martins, embora dê destaque à publicação de Veríssimo como o acontecimento mais importante de 1895 no “campo do periodismo” no país (1977-78MARTINS, Wilson. (1977-78), História da inteligência brasileira – volume IV (1877-1896), São Paulo: Cultrix/Edusp., p. 484), também nada fala sobre as ações em comandita, assim como Sodré, que enfatiza a posição proeminente conquistada pela Revista Brasileira no panorama da imprensa literária da época (1999, p. 267). Essa informação, todavia, não deveria ser menosprezada.

A pesquisa no acervo de Oliveira Lima revelou, em meio às cartas que este recebeu de Veríssimo, dois recibos que comprovam a participação do diplomata como sócio no empreendimento, e confirmam a existência deste. No período inicial da correspondência, em 1896, a Revista é o tema dominante, assim como se fará muito presente nesse tempo nas cartas de Machado de Assis a diferentes pessoas, reunidas pela ABL. Disputava-se espaço nas páginas da publicação.

Segundo dados obtidos a partir dos recibos, cerca de duzentas pessoas, pelo menos, teriam se associado à “Revista Brazileira – Sociedade em commandita por acções J. VERÍSSIMO & CIA”. A iniciativa de congregar os intelectuais foi tomada para o segundo ano da Revista, já que no primeiro ela foi editada pela Laemmert. Essa mudança também não costuma ser levada em conta. Doyle (1995)DOYLE, Plinio; LYRA, Helena Cavalcanti de; SENA, Homero; COUTO, Ivette Maria S. Sanches do. (1995), História de Revistas e Jornais Literários, Índice da Revista Brasileira, II, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. é dos poucos a observá-la – a novidade surge no 24º fascículo – mas ele também não cita a sociedade comanditária. Machado acompanhava tudo de perto. Quando ocorre a mudança de editor após o primeiro ano, conta a novidade a seu grande amigo Magalhães de Azeredo (1872-1963), poeta e diplomata que morava na Itália:

Tem lido a Revista Brasileira? Vai passar agora a uma sociedade anônima, com cinquenta contos de capital. Creio que é já no princípio do ano. Tem dado bons trabalhos, e há dedicação da parte dos que escrevem, e muito zelo na direção do José Veríssimo. Amigos deste têm tomado a peito levar a cabo a nova forma da publicação. (Assis, carta de 9 dez. 1895, 2011, p. 129)

O sucesso desse crowdfunding oitocentista fez com que a centralidade de Veríssimo, enquanto crítico, se reforçasse. Em 12 de janeiro de 1896, Machado voltou ao assunto com Azeredo: “José Veríssimo trata agora, como deve saber, de a melhorar e consolidar. Tem bons auxiliares consigo; está formando uma sociedade em comandita para assegurar-lhe capital” (2011, p. 139). O crítico promoveu jantares mensais para reunir os sócios e o primeiro aconteceu em 12 de maio de 1896. Machado se deliciou com os convivas:

Chego ao hotel do Globo. Subo ao segundo andar, onde acho já alguns homens. São convivas do primeiro jantar mensal da Revista Brasileira. O principal de todos, José Veríssimo, chefe da Revista e do Ginásio Nacional, recebe-me como a todos, com aquela afabilidade natural que os seus amigos nunca viram desmentida um só minuto. Os demais convivas chegam, um a um, a literatura, a política, a medicina, a jurisprudência, a armada, a administração [...]. Ao fim de poucos instantes, sentados à mesa, lembrou-me Platão; vi que o nosso chefe tratava não menos que de criar também uma República, mas com fundamentos práticos e reais. O Carceler [no Centro do Rio] podia ser comparado, por uma hora, ao Pireu. Em vez das exposições, definições e demonstrações do filósofo, víamos que os partidos podiam comer juntos, falar, pensar e rir, sem atritos, com iguais sentimentos de justiça. Homens vindos de todos os lados, – desde o que mantém nos seus escritos a confissão monárquica, até o que apostolou, em pleno Império, o advento republicano – estavam ali plácidos e concordes, como se nada os separasse (Assis, A Semana, 17 mai. 1896, apud Martins, 1977-78, p. 484).

Como pano de fundo, tornando mais óbvio o motor gregário, tem-se o investimento na Sociedade J. VERÍSSIMO & CIA. É interessante observar que o escritor o apresenta como chefe não apenas da Revista, mas também do Ginásio Nacional, nome tomado pelo Colégio Pedro II logo após a proclamação da República. O crítico dirigia a instituição desde 1892, e manteria-se nela até o fim da década; e, com esse cargo, angariava muito prestígio. O fato de intelectuais de diferentes correntes, até antagônicas, financiarem a publicação demonstra sua confiança no crítico.

Em 16 de agosto de 1896, Machado escreveu sobre o quarto jantar mensal: “enquanto o espírito não falir, a Revista comerá os seus jantares mensais até que venha o centésimo, que será de estrondo” (apudAranha, 1923ARANHA, Graça (org., int. e notas). (1923), Correspondência: Machado de Assis e Joaquim Nabuco, São Paulo: Monteiro Lobato & Cia., p. 126). Em pequenos anúncios daquele ano, a Revista chamou para o depósito do pagamento das parcelas da sociedade. Em 25 de setembro, no Jornal do Commercio, o “diretor-gerente” José Veríssimo (seu nome não aparecia com a designação de gerente na publicação) assinou nota avisando que os “senhores acionistas são convidados a fazer a segunda entrada de 20% (20$ por ação), desta data a 10 de Outubro futuro, no escritório da Revista”.

Em 17 de fevereiro, também no Jornal do Commercio, fez publicar o primeiro balanço, com saldo positivo de 5:105$680 (este é outro documento que não era conhecido). Laemmert continuou sócia, ainda que com pequeno investimento (367$950). A maioria do capital foi obtida com os acionistas (32:400$000), e um pouco por empréstimos (8:965$000, no Banco do Brasil). Portanto, houve intenso trabalho de administração realizado por Veríssimo, embora ele não fale a respeito nas cartas nem na Revista. Vê-se, ainda, que contava com o apoio de amigos, como o jovem Graça Aranha, que assinou o balanço como membro do conselho fiscal (seu melhor amigo na época, Veríssimo o apresentou a Machado e Joaquim Nabuco).

Sócios de todas as correntes juntaram-se à publicação, que não tinha (e nem queria) fechar-lhes as portas. Toda nova edição era motivo de notícia no Jornal do Commercio, que contava aos leitores o que lá encontrariam. O projeto correspondeu aos anseios dos intelectuais, que se sentiam cansados das disputas políticas dos anos anteriores (da Abolição e do início conturbado da República). Espelhava-se na Revista o desejo de uma República ideal, como observa Wilson Martins a partir da crônica de Machado sobre o primeiro jantar. Segundo Barbosa (1974)BARBOSA, João Alexandre. (1974), A tradição do impasse: Linguagem da crítica & crítica da linguagem em José Veríssimo, São Paulo: Ática., era um meio para a conquista de autonomia intelectual, algo que iriam reforçar com a ABL. Vem do escritor Coelho Neto (que não era amigo de Veríssimo) uma das mais vívidas descrições do ambiente:

Duas salas acanhadíssimas: redação em uma, secretaria em outra. Dos sócios da casa o menos assíduo era o sol, representado quase sempre, pelo gás, porque, desde a escada, tinha-se a impressão de que, em tal cacifro, mal os galos começavam a cantar matinas, a Noite recolhia a sua sombra... Na redação, reuniam-se, diariamente, chuchurreando um chá childro, José Veríssimo, diretor da Revista, Paulo Tavares, secretário, Machado de Assis, Joaquim Nabuco, Lúcio de Mendonça, Graça Aranha, Paula Nei, Domício da Gama, Alberto de Olveira, Rodrigo Octávio Ramos, e Filinto de Almeida. Por vezes apareciam Bilac, Guimarães Passos, Raimundo Correia, Valentim Magalhães, Pedro Rabelo e outros. Com o negrume do recinto contrastava o brilho da palestra que ali se travava. Se as ideias fulgissem e as imagens relumbrassem, certo não haveria em toda a cidade casa mais iluminada do que aquela. Infelizmente, porém, apesar dos conceitos diamantinos de Machado de Assis, do esplendor dos períodos de Nabuco, da cintilação do espírito de Lúcio e dos paradoxos relampejantes de Paula Nei, era necessário manter sempre aceso um bico, ao menos, de gás, para que tantos luzeiros não andassem aos esbarros desmantelando pilhas de brochuras, abalroando nas mesas, que eram duas, uma das quais de pinho réles e tripeta, claudicando sob o peso glorioso de obras-primas à espera de editores (Neto apud Neves, 2008NEVES, Fernão. (2008 [1940]), A Academia Brasileira de Letras – Notas e Documentos para a sua história (1896-1940), Rio de Janeiro: ABL., pp. 176-77).

Ao todo, foram dezenove tomos em 93 fascículos. Os artigos tratavam, além da literatura, de temas jurídicos, antropológicos, científicos, financeiros, políticos, amazônicos. Emílio A. Goeldi, diretor do Museu Paraense, de Belém, e Luiz Cruls, do Observatório Astronômico, no Rio de Janeiro, estavam entre os colaboradores assíduos, assim como o poeta simbolista Alphonsus de Guimaraes (expoente de corrente da qual Veríssimo não era admirador). Nina Rodrigues, que viria a ser autor de estudos sobre antropologia criminal de fundo racista, lá publicou, entre outros, O animismo fetichista dos negros baianos, obra pioneira sobre as religiões, os cultos e as práticas mágicas dos negros baianos, em diferentes fascículos dos tomos VI e VII, de 1896. Sílvio Romero, desafeto de Machado e de Veríssimo, também foi importante colaborador.

Veríssimo mantinha a coluna “Bibliografia”, em que se revezava com outros autores; era dedicada à crítica, às vezes brevíssima (a cada número, pelo menos meia dúzia de obras, de ficção ou não ficção, era analisada). Além desta, havia outras seções fixas e a segunda mais frequente era “Notícias de Ciências, Letras e Artes”. Outras eram: “Revista Científica”, assinada por Luís Cruls; “Notas e Observações”, quando às vezes a Revista falava dela própria, como no caso que iremos analisar; “Várias”; “Música”; “Teatro”; “Poesia Lírica Brasileira” etc. Todas eram esporádicas. No segundo tomo, também surge a seção “As Revistas e Outros Periódicos Nacionais”, certamente inspirada em publicações como Revue des Revues (França) e Review of Reviews (Grã-Bretanha).

No 11º tomo (com fascículos de julho a setembro de 1897), surge a seção “Revista das Revistas”, que reaparecerá em quatro tomos, com textos de Mário de Alencar e João Ribeiro. Os autores escreviam artigos inspirados em outros, publicados em revistas estrangeiras. Alencar estreia com referências a The Graphic (Grã-Bretanha); Cosmopolis (editada em diferentes capitais europeias); The Forum (EUA); e Revue des Deux Mondes (França). Os assuntos variavam da política à cultura, com temas como wagnerismo e versificação. No 12º tomo, ele destaca somente um artigo, da britânica Nineteenth Century, sobre decadência política, e João Ribeiro escreve inspirado na Deutsche Rundschau (Alemanha). No tomo seguinte, Ribeiro dá bastante espaço a um artigo de balanço histórico sobre a literatura brasileira (“La littérature brésilienne – Le roman contemporain”, pp. 408-415),22 22 O artigo, segundo a classificação da Gallica (BnF), aparece no tomo de outubro de 1897, mas é datado (em pé de página) como sendo de fevereiro de 1897. Isso pode indicar que saiu primeiramente em fascículo, e depois foi reunido em tomo, mesmo tipo de processo de edição da Revista Brasileira e da maioria das publicações então. Como há um rearranjo na hora de editar os fascículos, o tomo muitas vezes não segue sua ordem numérica (da p. 100, pode-se passar à p. 400). assinado por Leopoldo de Freitas, na Revue des Revues. É um texto panorâmico, mas superficial. Veríssimo é citado como uma das principais referências para a compreensão da nossa literatura. O 14º tomo é o último em que a seção é publicada, assinada por Ribeiro.

No restante, a Revista costumava publicar ensaios e trechos de inéditos. Machado foi tema de estudos (como o de Araripe Jr., na estreia, sobre seu humor), e lá publicou textos entre os quais se destaca O Velho Senado, crônica de suas memórias de repórter do Senado imperial. Nabuco antecipou trechos de Um estadista do Império, assim como Graça Aranha, sob o pseudônimo de Flávia do Amaral, testou a recepção a partes de Canaã. No último número que circulou, em meados de 1899, Veríssimo publicou trecho de Os Sertões, de Euclides da Cunha (tempos depois, apresentou o escritor aos editores da Laemmert e escreveu a primeira crítica à obra, no Correio da Manhã, consagrando o livro diante do público e dos críticos).

Naquele fim de século, chegava o momento de convergir na divergência, como disse Nabuco no discurso com que inaugurou a ABL, em 1897. Não se trata, assim, de ausência de projeto editorial, como a princípio pode parecer. A sociedade de ações contribuiu para a vocação de tribuna eclética, e isto não é mero detalhe e não é à toa.

Rocha (2005ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis., p. XXIX) lembra que o fato de Machado estar situado fora do centro do mundo capitalista fez com que pudesse lançar um olhar profundamente crítico e irônico a noções consideradas universais. A paródia das teorias científicas da época, no que chamou Humanitismo, a “religião” de Quincas Borba, seria “a ilustração perfeita de uma zombaria sofisticada” do positivismo, do evolucionismo social, do behaviorismo e até do espiritualismo (p. XXXI).

Veríssimo havia escrito que, diante do texto machadiano, sentia vontade de se despir de teorias e escolas. Foi o que pôs em prática na Revista Brasileira. Concordava com Machado, que lhe dissera que faltava ao Brasil “público de revistas” em carta que lhe enviara em 1883, quando o crítico ainda morava em Belém23 23 Essa correspondência foi publicada pela ABL, tomo II (2009). e era editor da Revista Amazônica, que criara em moldes semelhantes aos que tentaria replicar na capital. Essas palavras foram citadas por Veríssimo para Oliveira Lima anos depois, em momento de afirmação dos seus propósitos, um sinal de que nunca as esqueceu.24 24 “Esta [Revista Brasileira] vai indo, ganhando terreno é certo, mas muito lentamente. Ainda não temos, como me dizia há muitos anos o Machado de Assis, nem público, nem escritores de Revista. Creio, porém, que é teimando que conseguiremos, uma e outra coisa” (Veríssimo, carta inédita a O.L., 27 fev.1896). A questão da leitura (como pode haver literatura sem leitores?) era-lhes cara; não se pode esquecer que, além de crítico, Veríssimo foi professor e pensador sobre questões educacionais. Desde os anos da Revista Amazônica, tinha claro o seu objetivo; quando dirigiu a Revista Brasileira, era, portanto, experiente: tratava-se de criar uma massa crítica que pudesse dar relevância intelectual ao Brasil. Assim, ele e Machado queriam leitores, mas, como se isso já não fosse bastante no Brasil, não queriam meros leitores. Buscavam algo mais. No primeiro editorial da Revista Amazônica, Veríssimo destacou:

Não basta – cremos nós – produzir borracha, cumpre também gerar ideias; não é suficiente escambar produtos, é ainda preciso trocar pensamentos; e um desenvolvimento material que se não apoiasse num correlativo progresso moral seria, não somente improfícuo, mas funesto, pela extensão irregular que daria aos instintos – já a esta hora muito exagerados – do mercantilismo (Revista Amazônica, tomo I, 1883, vol. 1, p. 5).

Não é o caso de se acomodar em um auto-exotismo, ao preconceito do estrangeiro, como lembra Rocha (2006) ao analisar a proposta cosmopolita de Machado. Trata-se, antes, de uma visão mais afinada àquela que se verá no Manifesto Pau Brasil (1924), de Oswald de Andrade. Um dos motes do texto, continua Rocha, é a defesa da autonomia do Brasil por meio de sua cultura (2005, p. XXXIV), e não apenas pela venda de recursos naturais. Propósito que lembra o editorial da Revista Amazônica e pelo qual, sem dúvida, a Revista Brasileira se bateu.

Revista das revistas

Ávido leitor de periódicos estrangeiros, José Veríssimo almejava que a Revista Brasileira fosse conhecida no exterior. Em 15 de outubro de 1895, é possível ler na francesa La revue des revues: un recueil des articles paraissant dans les revues françaises et étrangères o seguinte telegrama: “Redação da Revista Brazileira no Rio de Janeiro. Feito. Esperamos seus envios” (p. 200).25 25 Acervo da Gallica (BnF). Nessa mesma edição da Revue, publicava-se em seguida a seção “Revue des Livres”, com o título “Le mouvement des livres au Portugal”, assinada por Theophilo Braga, que citava, no fim, em meio aos títulos portugueses, o surgimento de Pernambuco, seu desenvolvimento histórico, do brasileiro Oliveira Lima (sem identificar sua nacionalidade). Ou seja, é indício de que Veríssimo entrou em contato com a publicação para que a Revista Brasileira encontrasse eco no exterior.

La Revue des Revues, dirigida por Jean Finot (1856-1922), era especializada em publicar resumos do conteúdo de revistas. Fora lançada em 1890 – embora a Biblioteca Nacional da França (BnF) não possua a coleção completa, sendo o primeiro número disponível de 1894 –, e tinha como similar The Review of Reviews, publicada em Londres no mesmo período (às vezes, encontramos referências a esta no periódico francês).

Uma vez por mês (a metodologia havia sido explicada e modificada na edição de 15 de novembro),26 26 A Revue era publicada nos dias 1º e 15 de cada mês. Nesse número, explicou-se que, nas edições do dia 15, ela passaria a publicar um índice, apenas citando o título da revista, o artigo destacado e seu autor. A ideia era continuar com a seleção e o resumo dos artigos nas edições do dia 1º. a Revue publicava um resumo destacando o que considerava mais importante em algumas revistas selecionadas, sem se furtar a emitir opiniões e fazer breves análises. A seção de revistas francesas era fixa, mas aquelas dedicadas a outras regiões variavam um pouco a cada número. A seção francesa, no período analisado – de 1895 até 1899, quando circulou a Revista Brasileira –, dava espaço quase sempre às mesmas publicações, começando com a Correspondant. A Revue des Deux Mondes, muito influente e conhecida desde o período imperial no Brasil, recebia comentários alentados. Outras eram Revue Bleu, Nouvelle Revue, Revue de Paris, Journal des Savants etc. Mercure de France aparecia nessa rubrica, mas às vezes em uma subdivisão dedicada a “revistas independentes”.

A publicação francesa também trazia artigos sobre assuntos variados, muitos voltados para questões culturais e a realidade de outros países. Seu texto era leve e recheado de ilustrações. Também procuravam se autopromover: na edição de 15 de outubro, há uma página inteira com opiniões elogiosas a respeito da própria publicação, assinadas, entre outros, pelo Journal des Débats, Le Figaro, Alexandre Dumas filho, Jules Simon, Émile Zola.

A primeira menção à Revista Brasileira (depois do telegrama inicial) aparece no tomo de 15 de dezembro de 1895, na seção “Revistas espanholas e portuguesas”. Pode-se ler que a Revue havia recebido remessa da “muito interessante Revista Brasileira” (p. 586), da qual destacava artigo de A. Getúlio “dos Nieves” (na verdade, “das Neves”) sobre a indústria brasileira, e outro de R. Villa-“Lobes” (na verdade, “Lobos”) sobre gravura.

O interesse pelo que se editava em muitas regiões acentuava o caráter cosmopolita da publicação, reiterado, na edição de 15 de outubro de 1895, por uma análise longa de artigo de Ferdinand Brunetière sobre a questão do cosmopolitismo. “O cosmopolitismo e a literatura nacional” (p. 149) elogiava o crítico por sua defesa dessa visão na Revue des Deux Mondes (da qual era diretor),27 27 Todas as traduções são minhas. em 10 de outubro: “Os defensores do cosmopolitismo literário, todos que enfim argumentam com tanto talento a necessidade, para a França, de seguir e estudar as literaturas estrangeiras, acabam de encontrar um poderoso e eloquente aliado na pessoa de M. Ferdinand Brunetière”.28 28 Sua ideia de cosmopolitismo era embasada no evolucionismo, como o autor explica no texto, na medida em que este teria mostrado que as características das pessoas não mudavam com base nos limites das culturas nacionais. Esse cosmopolitismo, entretanto, encontrava limites: é possível deduzir que a ideia de cosmopolitismo literário expressa em Brunetière e na Revue, tão importante para os críticos na época, se relacionava a um europeísmo, ou a um cosmopolitismo literário europeu. Pressente-se até uma ideia de superioridade francesa quando a Revue des Revues atribui à França a invenção do cosmopolitismo literário.

Veremos como essa questão, de forma muito discreta, encontrará atritos com o projeto editorial, digamos que também cosmopolita, da Revista Brasileira.

Na edição de 1º de fevereiro de 1896, a Revue traz um comentário bastante elogioso sobre a publicação brasileira, dessa vez na seção “Revistas espanholas, portuguesas e brasileiras” (grifos meus, para destacar a inclusão).29 29 No período analisado, a Revista Brasileira é a publicação brasileira mais citada pela Revue, mas há outras, como A Nova Revista, editada por Adolfo Caminha no Rio de Janeiro, e lembrada na edição de 1º mar. 1896, e a União Acadêmica, de estudantes de faculdades brasileiras, mencionada ao surgir, em 1897. Dos 23º e 24º fascículos da Revista, de 1º e 15 de dezembro de 1895, destaca elogiosamente um artigo de Veríssimo sobre Sílvio Romero, e um debate sobre o positivismo no Brasil. Os comentários costumavam ser leves. Em 1897, a Revue publicou um alentado artigo (comentado, como vimos, por João Ribeiro na Revista Brasileira) e fez pelo menos duas outras menções elogiosas à publicação carioca, que já aparecera na seção sul-americana (vê-se como era difícil saber onde colocar o Brasil, que era encaixado em seções variadas de blocos geográficos). Num dos comentários, entre os elogios, a publicação lamentava que a Revista não trouxesse mais artigos sobre autores brasileiros e latino-americanos.

Veríssimo, no entanto, ficou certamente contrariado com uma análise publicada pela revista em 1o de fevereiro de 1898. Os franceses diziam que não havia nada de real importância na edição de 15 de dezembro de 1897 da Revista Brasileira. Os dois únicos artigos de valor, afirmavam, eram um de Oliveira Lima sobre suas impressões dos Estados Unidos, e outro de Magalhães de Azeredo sobre a Itália. Mas, acrescentavam, esses dois textos “nada têm a ver com o Brasil”. Isso era algo a lamentar, ainda mais, diziam, porque a Revista Brasileira era “quase o órgão oficial” da ABL.

O editor brasileiro não hesitou em responder aos franceses em texto do primeiro tomo de 1898, na seção “Notas e Observações” (p. 246). Era praticamente uma nota, de tom irritado (inclusive, no sumário, ele se equivocou e, no lugar de La Revue des Revues, escreveu Revue des Deux Mondes). Os nomes que apresenta demonstram que a Revista Brasileira se identificava com outras publicações do mesmo tipo em diferentes países, e se via em pé de igualdade em relação a estas. É possível analisar sua brevíssima, porém muito irritada resposta, em duas partes, como farei.

A primeira parte se refere ao modelo que escolheu para a Revista Brasileira. Veríssimo reitera que, mesmo nas mais famosas publicações desse gênero no mundo, como La Revue des Deux Mondes, Nineteenth Century, Deutsche Rundschau, Nuova Antologia – “e mesmo La Revue des Revues” –, havia números por ventura fracos. No entanto, escreveu, não era o caso da edição da Revista Brasileira criticada pelo periódico francês (de fato, esse número não destoa de outros e traz, ainda, textos de Afonso Arinos, Sílvio Romero, Araripe Jr., Nina Rodrigues, Emílio Goeldi, Domício da Gama etc., além da seção “Revista das Revistas”, assinada por Mário de Alencar e João Ribeiro). A Revue tecia ressalvas mesmo ao artigo de Azeredo, que dizia ser interessante, e Veríssimo lembrou que outros textos do autor da série sobre a Itália haviam sido bem recebidos pela publicação. “Não imaginamos que movimento de mau humor fez mudar a Revue des Revues [com] respeito ao trabalho do nosso distinto colaborador” (p. 247).

Embora estivesse em sua terceira fase (conectada a uma tradição nacional), a publicação brasileira mantinha-se atualizada em relação ao movimento internacional. Primeiramente, deve-se destacar a Revue des Deux Mondes. Num de seus artigos na Revista Brasileira, Oliveira Lima escrevera que a publicação francesa era o “repositório [...] no qual [...] continua a encontrar-se a nota literária do dia, o eco nítido de todas as transformações mentais do século” (“O romance francês em 1895”, p. 35, jan.-mar. 1896).

A importância da Revue des Deux Mondes, criada em 1829, pode ser explicada por sua longa existência e presença frequente entre os leitores brasileiros. No tempo do Império, como destacou Gilberto Freyre, era a publicação mais influente no Brasil (apudCamargo, 2014CAMARGO, Katia Aily de. (2014), A Revue des deux Mondes: intermediária entre dois mundos, Natal, RN: Edufrn.), lida por D. Pedro II e citada em obras literárias. Quincas Borba, por exemplo, tinha o hábito de ler a revista francesa. Em 1894, quando Brunetière tornou-se editor e gerente da publicação, criou em torno dela um movimento de intelectuais (Camargo, 2014CAMARGO, Katia Aily de. (2014), A Revue des deux Mondes: intermediária entre dois mundos, Natal, RN: Edufrn.). Foi este também o molde de congregação adotado pela Revista Brasileira.

As outras revistas citadas também são importantes referências sobre a maneira como os intelectuais se organizavam no fim do século XIX. A Nineteenth Century (1877) foi criada para apresentar os principais debates em curso na Grã-Bretanha. Brake (1994BRAKE, Laurel. (1994), Subjugated knowledges: journalism, gender & literature in the nineteenth century, Londres: The Macmillan Press., p. 51) destaca que foi uma das mais radicais de seu tempo, por publicar, lado ao lado, textos filosóficos e teológicos divergentes, deístas e ateístas, de acerbispos e cientistas. A heterogeneidade foi sua marca, tornando-a “um espaço aberto para os melhores trabalhos com posições divergentes” nessas áreas; e, como vimos, a heterogeneidade também é marca da Revista Brasileira. A publicação britânica contou ainda com o apoio de uma rede de sociabilidade (mesmo caso da congênere brasileira) tecida a partir da Sociedade Metafísica, que lhe fornecia temas e colaboradores.

A alemã Deutsche Rundschau (1874), de seu lado, também possuía grande prestígio na Alemanha, com debates sobre política, cultura e literatura, tendo sido banida, na Segunda Guerra, por se opor ao nacional-socialismo. A outra revista citada por Veríssimo, Nuova Antologia (1865), era muito produtiva no fim do século XIX e circula ainda hoje, tendo sido considerada, por muito tempo, a mais importante publicação intelectual da Itália.30 30 Ver: https://nuovaantologia.it/. Acesso em 14 ago. 2019. Todas eram, ainda, parecidas no aspecto gráfico, com aparência de livro.

Veríssimo, portanto, oferece um ponto de vista privilegiado para o mapeamento das estratégias adotadas pelos intelectuais, num período de desenvolvimento dos mercados editoriais. Havia uma espécie de anel de conexões. Nesse sentido, o Brasil participa dos debates de seu tempo. Para compreender a extensão dos projetos que se firmavam, não basta analisar somente as tradições nacionais às quais a Revista se filiava.

A segunda parte da resposta de Veríssimo se refere mais diretamente ao debate sobre nacionalismo. O crítico lembrou seus leitores que a revista francesa parecia querer culpar a Revista Brasileira por não tratar exclusivamente do Brasil e dos temas brasileiros. “A censura não tem nenhuma razão de ser” (p. 247), escreveu. Era pelo menos a terceira vez que La Revue des Revues mostrava-se surpresa pelo fato de a publicação não se limitar a questões brasileiras. Mas por que deveria se limitar?

“O eminente diretor da Revue des revues sabe melhor que ninguém que o título nacionalístico de uma revista não a obriga a confinar-se em coisas nacionais”, reiterou. Mais uma vez, ele lista publicações variadas, de diferentes países, que, apesar de seu nome nacionalístico, não limitavam seus conteúdos geograficamente. “Nem só dos respectivos países tratam a Deutsche Revue, ou a Revue de Belgique, ou a Revista de Espana ou a North-American Review, mas de quanto possa interessar um público inteligente e culto” (p. 248).

Em suas observações aparentemente simples, Veríssimo formulou questões sofisticadas: que lugar deveria o Brasil ocupar no quebra-cabeça das ideias e de soberania intelectual? Na visão dos franceses, era suspeito que uma publicação com o título “brasileira” abordasse questões de cunho internacional relevantes. Veríssimo ironizou, com seu sarcasmo: afinal, como um povo bárbaro poderia almejar ter um público “inteligente e culto”?

Sobre as revistas a que Veríssimo fez referência, North-American Review é celebrada como a primeira revista literária dos Estados Unidos, fundada em 1815. A Revista de Espana (1868-1895) também influenciou o debate literário, assim como La Revue de Belgique (1869-1914), um caso especialmente interessante a observar, por ser uma publicação de país bilíngue. Tack (2001)TACK, Lieven (2001), “Relations interculturelles belges dans les revues littéraires (1869-1899)”, in Revue de littérature comparée, (299)3: pp. 379-396. destaca, a partir das relações interculturais que a publicação estabeleceu, o seu “internacionalismo literário”. Segundo o autor, a maioria das revistas literárias da Bélgica se engajou na apresentação de autores estrangeiros.

Veríssimo dava seu recado para a revista francesa, mas também para os brasileiros. Seus princípios eram os princípios editoriais que punha em prática. O editor propunha conectar o “título nacionalístico” a uma perspectiva internacional. Finalmente, encerra sua breve resposta explicando, com certa impaciência, que a Revista Brasileira não era a publicação oficial da recém-criada ABL.

O crítico via-se numa encruzilhada: para os franceses, seu projeto não seria suficientemente brasileiro; para muitos brasileiros, não era suficientemente nacionalista. Sua ação editorial espelhou essa perspectiva, e o “instantâneo” de sua atuação pode mostrar os dilemas que viveu. A ideia de “internacionalismo literário”, lançada para o estudo dos trânsitos internacionais dos periódicos, poderia ser um passo para se aprofundar o conceito de world literature, retomado ainda, nos últimos anos, por autores como Moretti (2000)MORETTI, Franco. (2000), “Conjeturas sobre a literatura mundial”, in Novos Estudos, 58., que questiona a constituição de “cânones nacionais” e se refere mais especificamente aos livros. No caso das revistas, é preciso um olhar mais direto sobre sua natureza efêmera, periódica, fragmentária; em geral são obras coletivas relacionadas a um forte sentido de sociabilidade, pelo menos nesse período.

A questão do internacionalismo pode, aqui, ser associada àquela do cosmopolitismo, cara aos contemporâneos de Veríssimo e ao próprio, engajados que estavam em afirmar as singularidades das literaturas nacionais, o que consistia em diferenciá-las do que se fazia em outros lugares. No entanto, para La Revue des Revues, o cosmopolitismo era quase sinônimo de um “espírito europeu”, 31 31 Na vertente internacionalista, como lembra Masson (2010), a “convicção de inspiração marxista” é de que “todas as sociedades obedecem às mesmas leis de evolução e passam por estágios análogos”. conforme a expressão que usavam. “O cosmopolita é certamente um ‘cidadão do mundo’, mas foi na Europa que nasceu e que se afirmou esse sentimento de ser cidadão do mundo: ele é o produto das Luzes” (Masson, 2010MASSON, Jean-Yves. (2010), “Le cosmopolitisme littéraire de Charles Dédéyan”, in Revue de Littérature Comparée, 4(336): pp. 485-492.). Seria possível pensar, nesse sentido, que o “espírito” europeu não se limitaria às suas fronteiras geográficas, e que países como Argentina ou Uruguai, como diz Masson, “são ou foram lugares de cultura profundamente europeias”. A adoção acrítica dessa visão, entretanto, poderia anular qualquer singularidade da literatura brasileira, que, vendo-se inicialmente como vertente daquela de Portugal, vai levar os críticos a se debater continuamente, a partir do Romantismo, com dilemas desse tipo. O cosmopolita não é aquele que copia, mas alguém que compara e cria.

Não é essa, porém, a discussão que está propriamente em jogo na pequena querela com a Revue, cujo projeto editorial cosmopolita se assentava numa certa ideia de superioridade, inclusive moral, da cultura francesa. O que Veríssimo exige da Revue é um cosmopolitismo mais radical. Nesse sentido, o exercita na prática, conforme Masson:

“a virtude do cosmopolitismo não exclui a violência [...]. O cosmopolitismo não se alimenta somente de afinidades e de alianças, mas também de polêmicas, rivalidades e combates. [...] O cosmopolitismo não engendra, portanto, como se acredita muitas vezes, o desaparecimento de todo conflito”.

O editor paraense revidou a crítica da Revue, impaciente, com mais cosmopolitismo. Nessa vertente, o cosmopolitismo se liga a redes de trocas culturais e sociabilidade. Há um comparatismo em jogo, que precede a ideia de literatura comparada (MASSON, 2010).

Há ainda outro tópico a observar sobre a relação de Veríssimo com Machado, já que ambos não apenas se interessavam em afirmar suas ideias e obra, como em formar leitores (uma luta é consequência da outra). A constante e prolífica militância de Machado na imprensa pode ser analisada, entre outros, também por esse enfoque. No caso de Veríssimo, a imagem que Antonio Salles usou para denegri-lo em 1903, publicada no Correio da Manhã (do qual Veríssimo era o crítico literário), pode nos ajudar a entender a extensão de sua ambição. Veríssimo, escreveu, teria se familiarizado com as obras-primas da literatura universal de tal modo que sentiria o desdém de um viajante acostumado a grandes monumentos diante dos “modestos edifícios de uma pequena cidade” – modestos como seria a literatura brasileira, comparada a grandes criações da literatura universal. Tudo o que não fosse “a grande arte” seria alvo desse desdém do crítico, expresso em palavras frias e “vagamente benévolas” (6 jan.1903, p. 1). Em carta enviada dois dias depois a Salles, Edmundo Bittencourt, o dono do Correio, reiterou: “Gostei muito do teu artigo: o Veríssimo é aquilo mesmo, e como é grande para o nosso meio!”.32 32 A carta foi escrita em Teresópolis e encontra-se na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.

Assim, não se trata de tomar o episódio da discreta polêmica com a Revue como metonímia para uma estratégia. Trata-se, antes, de um indício ou rastro. Afirmar intelectualmente o Brasil era tarefa para os próprios brasileiros, para se convencerem de suas potencialidades. Desde a juventude, em Belém, Veríssimo militava por isso, como quando lançou a Revista Amazônica, criando em torno dela um movimento intelectual relevante. O apoio e todo o movimento geracional que despertou em torno da Revista Brasileira vai nesse sentido – e a descoberta da sociedade em comanditas reforça e esclarece essa perspectiva.

Considerações finais

Resta mais uma questão a levantar agora (o tema abre muitas vias de análise). Mais tarde, quando escreveu sua História da Literatura Brasileira, em 1912, depois de abandonar a ABL, decepcionado com seus rumos e desavenças internas, Veríssimo reiterou a independência de Machado diante das escolas literárias vigentes e, sobretudo, diante de um viés nacionalístico. Essa independência, por outro lado, o tornaria mais profundamente brasileiro. Estava-se nos primórdios de uma tradição de crítica nacional machadiana que, segundo Abel Barros Baptista (2009)BAPTISTA, Abel Barros. (2009), “Ideia de Literatura Brasileira com propósito cosmopolita”, in Revista Brasileira de Literatura Comparada, 15., acabaria por adquirir um pendor anticosmopolita, por não levar em conta uma vertente internacional com outros valores, não necessariamente conhecedora das questões locais. O crítico português detecta algo dessa visão em Antonio Candido e, sobretudo, em Roberto Schwartz.

Afinal, segundo Masson (2010)MASSON, Jean-Yves. (2010), “Le cosmopolitisme littéraire de Charles Dédéyan”, in Revue de Littérature Comparée, 4(336): pp. 485-492., o cosmopolitismo literário não foi inventado pelos críticos, especialmente os acadêmicos, ciosos em preservar suas áreas de especialidade: “Os escritores é que foram os primeiros comparatistas”. Ele exemplifica: “Victor Hugo é o pai do comparatismo francês: e é verdade, com a condição de se afirmar que ele não é o único”. Fica-se tentado a dizer que Machado de Assis é o pai do comparatismo brasileiro... A ideia de um brasileiro ainda mais brasileiro que outros autores (não sendo propriamente brasileiro, segundo os padrões da época) funcionou, de fato, estrategicamente muito bem para consolidar para o escritor não um mero lugar na literatura brasileira, mas um lugar distinto e especial. Era isso que Veríssimo almejava. Agora, porém, os tempos são outros.

O breve episódio de 1898 não fez com que a Revue deixasse de falar da Revista Brasileira. No ano seguinte, publicou vários comentários positivos a seu respeito. Anos depois, em 1909, quando Oliveira Lima teria se tornado colaborador da Revue – Ancienne Revue des Revues (a mudança no nome ocorrera em 1900),33 33 As edições de 1909 da Revue não estão no acervo da Gallica. podemos encontrar nas cartas de Veríssimo ao diplomata algumas referências a Jean Finot, o diretor da publicação. Veríssimo chegou inclusive a ensaiar certa reserva em relação a algumas de suas ideias sobre raça, mas não há detalhes a respeito.

Tratava-se, portanto, de uma rede de sociabilidades literárias que, havia muito, implodira fronteiras geográficas “espirituais” que pareciam intransponíveis.

O crítico expressa seu programa como articulador cultural. A descoberta dos recibos que indicam a existência da “Revista Brazileira – Sociedade em commandita por acções J. VERÍSSIMO & CIA”, e de todo o movimento intelectual à sua volta, permite compreender que a publicação teve uma relevância maior que os poucos estudos a seu respeito deixam entrever. Desse modo, se ainda há conexões a se explorar mesmo dentro da tradição nacional dos estudos de periódicos – tomando, assim, a Revista Brasileira como indício –, pode-se supor que haja muito a se descobrir também sobre as redes transnacionais das publicações. A vertente da crítica nacional não deveria ser pensada apartada da transnacional, porém. Trata-se de metodologia de pesquisa que não precisaria ficar restrita à Revista Brasileira: é projeto que se estende a toda uma geração de periódicos, inclusive jornais.

  • 1
    Os outros dois críticos mais relevantes do período foram Sílvio Romero (1851-1914) e Araripe Jr. (1848-1911), que tinham presença significativa em jornais, porém menos constante.
  • 2
    Entre 1857 e 1861, a publicação foi dirigida pelo cientista Candido Batista de Oliveira e editada pela Laemmert com o título Revista Brasileira, Jornal de Ciências Letras e Artes. Teve quatro tomos. No editorial de relançamento, em 1895, Veríssimo diz que a primeira versão tinha “feição talvez demasiado científica e técnica, que lhe devia certamente estorvar o acesso ao público” (p. 1). Já na segunda fase, entre 1879 e 1881, dirigida por Nicolau Midosi, a publicação obteve grande sucesso. Machado lá publicou Memórias póstumas de Brás Cubas. Doyle (1995)DOYLE, Plinio; LYRA, Helena Cavalcanti de; SENA, Homero; COUTO, Ivette Maria S. Sanches do. (1995), História de Revistas e Jornais Literários, Índice da Revista Brasileira, II, Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa. aponta outra fase da Revista Brasileira, em 1855, sob direção de Francisco de Paula Menezes. Veríssimo a conhecia, como se pode verificar em seus escritos sobre a história da imprensa, mas não a leva em conta no editorial de 1895, certamente por não ter tido grande impacto.
  • 3
    O fato de a Revista Brasileira ser a publicação oficial da ABL (retomada nos anos 1930) e de ainda haver documentos inéditos relativos à sua fundação já é indício de que ela foi pouco estudada.
  • 4
    Ver Muller e Felinto (2008)MULLER, Adalberto, e FELINTO, Erick. (2008), “Medialidade: encontro entre os estudos literários e os estudos de mídia”, in Contracampo, Niterói, 19..
  • 5
    Tradução minha. No inglês: “The term discourse network […] can also designate the network of technologies and institutions that allow a given culture to select, store, and process relevant data. Technologies like that of book printing and the institutions coupled to it, such as literature and university, thus constituted a historically very power formation, which in Europe of the age of Goethe became the condition of possibility for literary criticism”.
  • 6
    No livro A tradição do impasse: Linguagem da crítica & crítica da linguagem em José Veríssimo (1974), baseado na tese de doutorado defendida pelo autor na USP, sob orientação de Antonio Candido, a primeira de teoria literária desenvolvida no Brasil.
  • 7
    Nesse prefácio de 1906, Veríssimo se desculpa pelo tom “nacionalístico” da primeira edição, de 1890. Num texto impiedoso em relação a Veríssimo, no Correio da Manhã (6 jan. 1903, p. 1), Antonio Salles o acusa de não ser patriota em suas avaliações críticas, diferentemente de Araripe Jr. e Sílvio Romero. Salles ecoava, e reafirmava, opiniões que circulavam sobre Veríssimo. A comparação com os dois críticos se justificava porque, segundo Salles, tratava-se dos três maiores do período; mas destes, ainda segundo o autor, Veríssimo era o mais assíduo na imprensa, com quem os autores podiam de fato contar para avaliar suas obras. Depois da Revista Brasileira, Veríssimo havia se tornado o crítico do Jornal do Commercio, com a seção “Revista Literária” (os leitores o identificavam à importante revista que havia dirigido), mas se transferiu para o Correio da Manhã em 1901, assim que o jornal (de oposição ao governo) foi fundado. O texto de Salles teria sido decisivo para a saída do crítico do jornal.
  • 8
    Segundo Carvalho (2013)CARVALHO, José Murilo. (2013 [1906]), “Prefácio”, in: J. Veríssimo, A Educação Nacional, 4a ed., Rio de Janeiro: Topbooks; Belo Horizonte: PUC-MG., as ideias de Veríssimo são as de um pensador da cultura brasileira de alto calibre. O livro A educação nacional foi o passaporte com que ingressou em importantes círculos na capital. Em 1891, ele se mudou de Belém para o Rio, onde logo começou a colaborar com o Jornal do Brasil, ao lado de Joaquim Nabuco e Rodolfo Dantas (apesar de fervoroso republicano, identificava-se com o monarquista Nabuco em muitas de suas críticas à República). No Jornal do Brasil, a primeira série relevante de artigos que escreveu criticava duramente a política educacional do positivista Benjamin Constant. Saiu de lá no início de 1892, ao se tornar diretor do Ginásio Nacional (Pedro II).
  • 9
    A correspondência de Veríssimo para o diplomata, composta por 180 cartas, encontra-se na Oliveira Lima Library, na Universidade Católica da América, Washington. São cerca de mil páginas manuscritas, inéditas, que fotografei e transcrevi.
  • 10
    No início de 1898, Veríssimo iniciou uma colaboração em A Notícia, escrevendo a coluna “O exterior pelo telégrafo”, que era publicada, esporadicamente, a cada dois ou três dias; nela, comentava em poucos parágrafos as notícias internacionais. Assinava os textos apenas com a inicial “V.”. A coluna já existia antes de 1898, mas a marca de Veríssimo só apareceria na edição de 9 de fevereiro daquele ano. A colaboração duraria anos, e afiava o crítico para o debate de assuntos de política internacional.
  • 11
    Sobre essa passagem, Araripe Jr. escreveu, em artigo para A Semana de 1894: “Foi a Revista Brasileira (entre outras citarei este exemplo) que trouxe ao conhecimento dos espíritos cultos desta capital que em 1880 havia no Pará um movimento literário bem notável, iniciado por um escritor, hoje muito reputado na imprensa fluminense” (A semana, 31 mar. 1894, n. 31). O artigo foi publicado um ano antes do relançamento da Revista Brasileira por Veríssimo, o que indica sua proeminência na capital.
  • 12
    A reunião da correspondência de Machado de Assis (2009-2015)ASSIS, Machado de. (2009-2015), Correspondência de Machado de Assis (cinco tomos), Sergio Paulo Rouanet e Irene Moutinho e Sílvia Eleutério (orgs.), Rio de Janeiro: ABL. pela ABL demonstra como eram próximos e se identificavam na visão cética e irônica do mundo.
  • 13
    Podemos lembrar, a esse respeito, que Veríssimo é autor de História da Literatura Brasileira, publicado em 1916VERÍSSIMO, José. (1998 [1916]), História da literatura brasileira, de Bento Teixeira (1601) a Machado de Assis (1908), 7a edição, Rio de Janeiro: Topbooks., logo após sua morte. Na correspondência com Oliveira Lima, ficamos sabendo que desde o fim do século XIX o autor planejava realizar o livro, que seria uma espécie de contrapartida à obra de Silvio Romero. Seria escrito muito tempo depois, quando Veríssimo já se mostrava mais cético e pessimista em relação ao movimento intelectual brasileiro. Levando-se em conta a variedade de seus escritos para jornal, fez um esforço de depuração grande para chegar ao resultado final. O livro é também uma homenagem a Machado.
  • 14
    “E como eu creio que Machado de Assis será no século XXI um nome muito maior do que é hoje, tudo isso será precioso e a posteridade lhe será reconhecida meu caro Mário pela sua piedade para com ele” (Veríssimo, carta a Mário de Alencar, 20 dez.1908, acervo da ABL). Veríssimo e Alencar trabalharam juntos para manter viva a obra de Machado logo após a morte do escritor, planejando edições (às vezes frustradas), homenagens na imprensa e até o nome de rua que até hoje existe no Rio de Janeiro.
  • 15
    Veríssimo, Revista Brasileira, tomo I, 1895, p. 3.
  • 16
    Dutra (2018)DUTRA, Eliana de Freitas. (2018), “Revistas de cultura no Brasil do oitocentos: trânsitos e apropriações. O caso da ‘Revue des Deux Mondes’ e da ‘Revista Brasileira’”, in GRANJA, L.; LUCA, T. de (orgs.), Suportes e mediadores: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), Campinas: Unicamp. analisa a relação entre a Revista Brasileira editada por Veríssimo e a Revue des Deux Mondes no período em que foi comandada por Ferdinand Brunetière, na década de 1890. Aqui, apresentamos indícios de que o modelo de Brunetière não era isolado: havia então outras publicações do mesmo tipo que circulavam, com grande influência junto a público.
  • 17
    Uma iniciativa importante nesse sentido foi desenvolvida pelo projeto A Circulação Transatlântica dos Impressos – 1789-1914, coordenado por Abreu e Mollier (2016)ABREU, Márcia; MOLLIER, Jean-Yves. (2016), “Nota introdutória: circulação transatlântica dos impressos – a globalização da cultura no século XIX”, in M. Abreu (org.), Romances em Movimento: a circulação transatlântica dos impressos (1789-1914), Campinas: Editora da Unicamp.. Usamos aqui o conceito de trocas transnacionais a partir das ideias desenvolvidas nesse estudo.
  • 18
    O primeiro esforço relevante para destacar a face latino-americanista de Veríssimo foi feito por João Alexandre Barbosa, que organizou Cultura, literatura e política na América Latina, coletânea de críticas do intelectual a autores de países da América hispânica (1986)VERÍSSIMO, José. (1986), in BARBOSA, João Alexandre (org.), Cultura, literatura e política na América Latina, São Paulo: Brasiliense..
  • 19
    Para Rocha, “apesar de seu inquestionável compromisso”, o livro de Casanova é atravessado pelo uso de adjetivos inadequados, tais como “pequenas” línguas, que contradizem suas premissas (2005, p. XXXIV).
  • 20
    Abel Barros Baptista, “O episódio brasileiro”, em A formação do nome, 2003.
  • 21
    Rocha (2005)ROCHA, João Cezar de Castro. (2005), “Machado de Assis – The location of an author”, in ROCHA, J. C. C. (org.), The author as a plagiarist: The case of Machado de Assis. qualifica a proposição de uma Weltliteratur, lançada por Goethe no início do século XIX, como “superada” (outmoded, no original), mas não explica o motivo.
  • 22
    O artigo, segundo a classificação da Gallica (BnF), aparece no tomo de outubro de 1897, mas é datado (em pé de página) como sendo de fevereiro de 1897. Isso pode indicar que saiu primeiramente em fascículo, e depois foi reunido em tomo, mesmo tipo de processo de edição da Revista Brasileira e da maioria das publicações então. Como há um rearranjo na hora de editar os fascículos, o tomo muitas vezes não segue sua ordem numérica (da p. 100, pode-se passar à p. 400).
  • 23
    Essa correspondência foi publicada pela ABL, tomo II (2009).
  • 24
    “Esta [Revista Brasileira] vai indo, ganhando terreno é certo, mas muito lentamente. Ainda não temos, como me dizia há muitos anos o Machado de Assis, nem público, nem escritores de Revista. Creio, porém, que é teimando que conseguiremos, uma e outra coisa” (Veríssimo, carta inédita a O.L., 27 fev.1896).
  • 25
    Acervo da Gallica (BnF). Nessa mesma edição da Revue, publicava-se em seguida a seção “Revue des Livres”, com o título “Le mouvement des livres au Portugal”, assinada por Theophilo Braga, que citava, no fim, em meio aos títulos portugueses, o surgimento de Pernambuco, seu desenvolvimento histórico, do brasileiro Oliveira Lima (sem identificar sua nacionalidade).
  • 26
    A Revue era publicada nos dias 1º e 15 de cada mês. Nesse número, explicou-se que, nas edições do dia 15, ela passaria a publicar um índice, apenas citando o título da revista, o artigo destacado e seu autor. A ideia era continuar com a seleção e o resumo dos artigos nas edições do dia 1º.
  • 27
    Todas as traduções são minhas.
  • 28
    Sua ideia de cosmopolitismo era embasada no evolucionismo, como o autor explica no texto, na medida em que este teria mostrado que as características das pessoas não mudavam com base nos limites das culturas nacionais.
  • 29
    No período analisado, a Revista Brasileira é a publicação brasileira mais citada pela Revue, mas há outras, como A Nova Revista, editada por Adolfo Caminha no Rio de Janeiro, e lembrada na edição de 1º mar. 1896, e a União Acadêmica, de estudantes de faculdades brasileiras, mencionada ao surgir, em 1897.
  • 30
    Ver: https://nuovaantologia.it/. Acesso em 14 ago. 2019.
  • 31
    Na vertente internacionalista, como lembra Masson (2010)MASSON, Jean-Yves. (2010), “Le cosmopolitisme littéraire de Charles Dédéyan”, in Revue de Littérature Comparée, 4(336): pp. 485-492., a “convicção de inspiração marxista” é de que “todas as sociedades obedecem às mesmas leis de evolução e passam por estágios análogos”.
  • 32
    A carta foi escrita em Teresópolis e encontra-se na Casa de Rui Barbosa, no Rio de Janeiro.
  • 33
    As edições de 1909 da Revue não estão no acervo da Gallica.
  • 10.1590/3510306/2020
  • *A pesquisa nos Estados Unidos contou com o apoio da Universidade de Princeton e bolsa da Faperj; no Brasil, obtive bolsa da Capes e, no último ano, da Fundação Biblioteca Nacional, por meio do Programa Nacional de Apoio à Pesquisa.
  • Acervos de correspondência
  • Academia Brasileira de Letras
  • Oliveira Lima Library, Universidade Católica da América, Washington, D.C.
  • Arquivo-Museu da Literatura Brasileira - Fundação Casa de Rui Barbosa
  • Acervos de periódicos
  • Hemeroteca Digital da Fundação Biblioteca Nacional (FBN)
  • Biblioteca Nacional da França (BnF) - Gallica

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Fev 2020
  • Data do Fascículo
    2020

Histórico

  • Recebido
    06 Jan 2019
  • Aceito
    08 Out 2019
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