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Crítica e contestação: o movimento reformista da geração 1870

Critique et contestation: le mouvement réformiste de la génération de 1870

Criticism and contestation: the reformist movement of the 1870's generation

Resumos

O artigo analisa o movimento intelectual da geração 1870 do ponto de vista do processo político. Critica as interpretações do movimento que enfatizam a influência de doutrinas estrangeiras e a origem social de seus membros e argumenta que o sentido dos seus escritos deve ser buscado na conjuntura de crise do Império. Deste ângulo, apresenta-se como um movimento de contestação da ordem imperial formado por grupos socialmente heterogêneos, mas que partilhavam uma mesma experiência de marginalização política. Autores e teorias estrangeiras são parte do repertório político-intelectual do oitocentos ao qual o movimento recorreu em busca de elementos para gerar uma interpretação da sociedade brasileira, exprimir sua crítica às instituições, valores e formas de agir característicos do status quo imperial e propor projetos de reforma. Dessa forma, positivismo, darwinismo, spencerianismo, novo liberalismo compõem modalidades de um mesmo reformismo.

Movimento intelectual; Geração 1870; Movimento reformista; Experiência social; Repertório


L'article analyse le mouvement intellectuel de la génération de 1970 du point de vue du processus politique. Les interprétations de ce mouvement qui mettent l'accent sur l'influence des doctrines étrangères et l'origine sociale de ses membres sont critiquées. L'article soutient que le sens des écrits issus de ce mouvement doit être recherché dans la conjoncture de la crise de l'Empire. De ce point de vue, il se présente comme un mouvement de contestation de l'ordre impérial formé par des groupes socialement hétérogènes, mais qui partageaient une même expérience de marginalité politique. Les auteurs et les théories étrangères font partie du répertoire politique et intellectuel du XIXe siècle, auxquels le movement à eu recours à la recherche d'éléments pour générer une interprétation de la société brésilienne; exprimer sa critique aux institutions, aux valeurs et aux formes d'agir caractéristiques du statu quo impérial; et proposer des projets de réforme. Positivisme, darwinisme, spencerisme et nouveau libéralisme composent, ainsi, diverses facettes d'un même réformisme.

Mouvement intellectuel; Génération 1870; Mouvement réformiste; Expérience sociale; Répertoire


The article analyzes the intellectual movement of the 1870's generation from the perspective of the political process. It criticizes the interpretations of this movement which emphasize the influence of foreign doctrines and the social origin of its members, and argues that the meaning of their writings are to be found in the crisis context of the Empire. From this point of view, the author presents it as a movement in opposition to the imperial order and composed by socially heterogeneous groups who shared the same political marginality. Foreign authors and theories are considered part of the political and intellectual repertoire of the 1800s. The movement selected elements from this repertoire to build an interpretation of Brazilian society, to express its criticism of institutions, values, and typical modes of action of the imperial status quo and to propose projects for reform. Thus, positivism, Darwinism, Spencerianism, and new liberalism compose modalities of the same reformism.

Intellectual movement; 1870's generation; Reformist movement; Social experience; Repertoire


CRÍTICA E CONTESTAÇÃO:

o movimento reformista da geração 1870* * Este artigo resume o argumento de minha tese de doutorado em Sociologia, defendida em maio de 2000 na FaculDade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Agradeço os comentários dos professores José Murilo de Carvalho, Élide Rugai Bastos, Eduardo Kugelmas e Sérgio Miceli, da banca examinadora, e especialmente ao meu orientador Brasílio Sallum Jr., pelo empenho destes cinco anos. Registro também meu reconhecimento ao GT de Pensamento Social Brasileiro da Anpocs, pela indicação para a publicação e pelas discussões de que meu trabalho muito se beneficiou. Agradeço ainda o parecerista anônimo da RBCS e a leitura cuidadosa de sua editora, Argelina Figueiredo. Sou grata especialmente a Fernando Limongi, pela interlocução e pela solidariedade.

Angela Alonso

No Brasil de fins do Império formou-se o movimento da "nova geração", assim autonomeado numa referência à juventude de seus membros. Os intérpretes passaram depois, convencionalmente, a identificá-lo como "movimento intelectual da geração 1870".

À primeira vista, a unidade geracional parece ser mesmo o único critério unificador deste movimento. Embora os intérpretes usualmente o subdividam conforme a adesão a correntes intelectuais européias — cientificismo, positivismo, liberalismo, spencerianismo, darwinismo social —, o retrato mais comum aponta um sincretismo, quando não um caos teórico: intelectuais imitativos, deslumbrados com as modas européias; suas preferências oscilando ao sabor delas.

Pesa sobre a geração 1870 a acusação de ter se interessado mais em edificar novos sistemas filosóficos que em interpretar a realidade nacional, ignorando solenemente, salvo honrosas exceções, como Joaquim Nabuco, os problemas cruciais da sociedade brasileira, sobretudo a escravidão.

Mesmo quando se admite um lugar para as idéias, ele é freqüentemente pouco lisonjeiro. Na formulação de Sérgio Buarque, a geração 1870 teria incorporado idéias européias essencialmente como "ornatos discursivos". Por princípio artificiais em relação ao patrimonialismo brasileiro, tais idéias forneceriam tão-somente uma forma para o alheamento, a "evasão", o "secreto horror à nossa realidade" acalentado pelos intelectuais.

A controvertida tese de Roberto Schwarz (1989) igualmente tem por ponto de partida que a questão central perpassando os escritos da geração 1870 seria a imitação de teorias estrangeiras. Existiria também uma contradição entre as formas de pensar estrangeiras copiadas e os traços coloniais da realidade brasileira. Schwarz supõe, porém, que certos membros da geração 1870 tivessem habilidades para desvelar os fundamentos desta experiência social, inacessíveis aos demais: Machado de Assis teria logrado uma obra de valor cognitivo superior à de seus contemporâneos. Nogueira (1984) aplica esquema similar para Nabuco. Nos dois casos, intelectuais de grande estatura servem como ponto de vista para análises que visam produzir conhecimento acerca dos dilemas estruturais da sociedade escravista brasileira. Continuamos sem uma explicação para os "autores menores" que compõem a maior parte do movimento intelectual da geração 1870.

Nas análises que enfocam diretamente o movimento intelectual, como já veremos, o fenômeno aparece reduzido ora às posições sociais de seus membros, ora a sistemas de "idéias", descolados das práticas.

Acredito que o quadro de imitação resulta de dois procedimentos adotados pelos analistas. De um lado, a incorporação acrítica das explicações e classificações construídas por membros da própria geração 1870 pós-factum, já na República, endossando, assim, a clivagem doutrinária como eixo explicativo do movimento. De outro lado, a suposição de uma autonomia do campo intelectual. Por isso tomaram os sistemas intelectuais europeus contemporâneos como parâmetro de avaliação do movimento. É por comparação a teorias européias e em acordo com as memórias e reconstruções dos próprios agentes que se forma o juízo do movimento da geração 1870 como "intelectual" e imitativo.

Neste artigo apresento uma nova interpretação para o fenômeno. Minha proposta é tomar por ponto de vista para a análise do movimento intelectual da geração 1870 a experiência social compartilhada por seus membros. Parto da posição mais ou menos consensual na sociologia contemporânea de que formas de pensar e formas de agir estão em íntima conexão, de sorte que não é possível compreendê-las separadamente. Não se trata de reduzir mecanicamente uma esfera à outra; a questão é, antes, como a cultura se vincula à experiência. A interpretação, por isso, exige uma análise fina, empírica, do modo pelo qual uma certa experiência social concreta plasma certas formas de pensar.

Assim, analiso o movimento intelectual da geração 1870 do ponto de vista da experiência compartilhada por seus membros. Dada a inexistência de um campo intelectual autônomo no século XIX, a experiência da geração 1870 é diretamente política. Por isso adoto a dinâmica política como ângulo de análise. Ao invés de organizar textos e práticas conforme referências teóricas estrangeiras, inscrevo-os na conjuntura política local.

Esta mudança de ótica revela que aquele movimento intelectual nem era alheio à realidade nacional, nem visava formular teorias universais. As teorias estrangeiras não eram adotadas aleatoriamente, sofriam um processo de triagem: havia um critério político de seleção.

O sentido principal do movimento intelectual da geração 1870 foi a intervenção política. Argumento que grupos politicamente marginalizados pela ordem imperial recorreram ao repertório estrangeiro e à própria tradição nacional em busca de recursos para expressar seu descontentamento. Suas opções teóricas adquirem, assim, uma dimensão inusitada: auxiliaram na composição de uma crítica ao status quo imperial.

O movimento intelectual revela ser um movimento político de contestação. Suas obras exprimem interpretações do Brasil críticas ao status quo monárquico e programas de reformas. Por isso proponho nomeá-lo reformismo.

A seguir, procuro demonstrar meu argumento inicialmente apresentando uma crítica às interpretações de que o movimento intelectual foi objeto e, em seguida, construindo uma nova abordagem para suas obras e ações a partir de três conceitos-chave: estrutura de oportunidades políticas, comunidade de experiência e repertório.

Movimentos intelectuais e crise do Império: principais linhas de interpretação

O movimento intelectual da geração de 1870 tem sido tema de análises há mais de um século. Os tratamentos que recebeu são muito desiguais em escopo. O movimento tanto compõe uma dimensão de obras de "interpretação do Brasil", como as de Raimundo Faoro, Sérgio Buarque de Holanda e Florestan Fernandes, amalgamado às explicações da formação do Estado e da sociedade nacionais, quanto é incorporado como a atmosfera do oitocentos, espécie de "espírito de época", nos estudos culturais sobre o fin-de-siècle (por exemplo, Skidmore, 1976).

Os estudos diretamente sobre o tema podem ser agrupados em duas grandes vertentes: uma perspectiva cognitiva considera o movimento intelectual do ponto de vista de sua capacidade de gerar teorias sociais, situando-o no plano da história das idéias; outra, prática, caracteriza o movimento como produtor de ideologia modernizadora para novos grupos sociais, particularmente uma nova classe média.

A ótica da história das idéias é a mais tradicional no tratamento do movimento intelectual. Os dois principais nomes nesta linha são Cruz Costa e Antonio Paim. Embora ambos divirjam em vários e importantes pontos, concordam em tomar o movimento do ângulo da produção de textos.

No caso de Paim e de seus seguidores, não há pretensão de relacionar texto e contexto. Antes o contrário. A explicação privilegia o valor heurístico das obras e extirpa qualquer característica exógena ao próprio campo das idéias. O conceito operatório é a noção de "influência". O movimento intelectual aparece como feixe de réplicas nacionais de linhas de pensamento europeu, compondo "escolas de pensamento" (Paim, 1966).

Este passo tem por efeito tomar um fenômeno disseminado no período — a formulação de interpretações do Brasil e de projetos de reforma — como desiderato de grandes sistemas de pensamento. De outro lado, supõe uma anterioridade lógica das idéias: a ação política dos "intelectuais" não é nem mesmo aventada. O levantamento sistemático de autores e obras é louvável. Mas atribuir aos agentes o propósito de produzir conhecimento de valor teórico universal tem o efeito de elevá-los à categoria de filósofos. O metro heurístico suprime a conjuntura: toda conexão com a problemática social contemporânea desaparece.

Cruz Costa, de outro lado, propõe-se a conectar correntes intelectuais européias ao processo de formação da sociedade nacional brasileira, jogando o foco para o modo pelo qual as idéias européias se conformam à "experiência americana" (Cruz Costa, 1956, p. 436). O padrão da formação nacional e o rescaldo colonial no plano das idéias são apresentados como obstáculos ao desenvolvimento de escolas nativas de pensamento, fazendo a reflexão pender mais para a sociologia que para a metafísica. Por isso, o estudo da "história das idéias no Brasil" deve se concentrar nos anos 1870 e no positivismo, momento de origem de uma sociologia nacional. A investigação sublinha os processos de "deformação" das teorias estrangeiras no Brasil de modo a servir como "instrumentos de ação, principalmente de ação social e política", para grupos sociais específicos.

Dada a ênfase em uma perspectiva prática, seria de esperar aqui uma avaliação da ação política. No entanto, o material empírico aparece, como em Paim, organizado conforme autores e escolas européias. Embora o propósito geral seja conectar as "doutrinas" européias e a experiência brasileira, precisamente a chave desta conexão é excluída da análise: todo o pensamento "não-sistemático", não imediatamente "sociológico", é expelido da análise — como os escritos de Silva Jardim e de Joaquim Nabuco. O liberalismo do Segundo Reinado praticamente não é mencionado.

Mesmo rivais, as duas linhagens convergiram na circunscrição de um campo intelectual no fim do Império, a partir dos critérios e informações de um dos agentes (Sílvio Romero, talvez o mais faccioso deles), e na cristalização do movimento intelectual como "escolas". Contribuíram, assim, para a naturalização da "Escola de Recife", da "Igreja Positivista", do "Darwinismo Social", do "Castilhismo", do "Positivismo Ilustrado". Porque evitam o reconhecimento direto dos agentes que produzem o "pensamento" do período, ambos os trabalhos deságuam na constatação de um voluntarismo político ou de uma ingenuidade teórica como características da geração 1870.

Estas duas versões de história das idéias são muito influentes. Suas categorias foram acatadas e incorporadas pela bibliografia especializada, como se descrevessem instituições, com distinção clara entre membros e não-membros. Mesmo estudos que recusaram as explicações de Cruz Costa ou Paim recorreram às suas categorias e fontes.

A perspectiva da história das idéias tomou por pressuposto que o objetivo central do movimento intelectual fosse a criação de uma filosofia, uma literatura e uma ciência nacionais e sua institucionalização acadêmica. Por isso, nem procurou possíveis conexões com a prática política, assumindo como dada sua inclinação teórica e seu apoliticismo. No máximo, supôs os "intelectuais" como ideólogos da ação de outrem.

Estudos mais contemporâneos têm estreitado o foco e tendido para uma história intelectual. São essencialmente monografias que reconstroem a visão dos "intelectuais", pela análise combinada de biografia e obra representativas de uma tendência (Sussekind e Ventura, 1984; Carvalho, 1998). Estudos deste tipo ganham em precisão ao explodirem categorias gerais como "positivismo" e "liberalismo" em troca da ênfase na constituição da identidade de um grupo ou na visão de um personagem sobre seu tempo. Mas seus objetos empíricos restritos os levam a abandonar a própria perspectiva de um "movimento" intelectual.

De outro lado, há estudos restringindo o movimento intelectual às instituições "intelectuais" do Império, como, por exemplo, às faculdades de direito e medicina (Schwarcz, 1993) e à escola militar (Castro, 1995). De fato, os membros dos movimentos intelectuais são jovens altamente educados. Mas daí não se segue que as escolas de ensino superior do Império sejam as unidades de organização do movimento ou de produção de sua identidade coletiva. Uma abordagem não-institucionalista permitiria ler a criação de associações pelo movimento intelectual como indício da própria falência dessas instituições em socializarem a "nova geração" segundo o espírito e o cânon do Império (Alonso, 1998). Será apenas na República que os membros do movimento passarão a integrar instituições propriamente intelectuais.

A interpretação alternativa à da história das idéias consiste em explicar o movimento intelectual em termos da posição social de seus membros. Especialmente nos anos 1970, surgiram estudos associando a configuração de novos grupos sociais na esfera econômica, ou classes, com a emergência de novos movimentos intelectuais, ou "ideologias": burguesia urbana e darwinismo social/spencerianismo (Graham, 1973); positivismo e "setores médios urbanos" (Nachman, 1972); "liberalismo democrático"/positivismo "ilustrado" e "nova burguesia" do café de São Paulo (Bresciani, 1976 e 1993); novo liberalismo e classe média (Hall, 1976); positivismo e estancieiros gaúchos (Love, 1971); positivismo "ortodoxo" e classe média/contra-elite (Carvalho, 1989).

Assim, o movimento intelectual expressaria anseios de grupos sociais novos, surgidos com o processo de modernização econômica do país. Este raciocínio equaliza pertencimento a uma classe, posicionamento político e crença ideológica: grupos de constituição moderna, como "as classes médias" ou a "burguesia", adotariam teorias coerentes com seus interesses, isto é, variações do liberalismo (moderado por adjetivos — "spenceriano", "doutrinário" — ou moderando substantivos — "positivismo ilustrado").

Esta equiparação apressada gera equívocos, como a apresentação dos filhos da elite imperial brasileira, de famílias socialmente enraizadas, como representantes de novas classes médias (Hall, 1976). Mas esta linha de análise traz também ganhos explicativos. A justaposição entre os estudos aponta uma pluralidade de grupos se apropriando das "novas doutrinas". Diversidade inclusive geográfica, como Bosi (1992, p. 274) sintetiza: "positivismo ortodoxo" na Corte; "spencerianismo paulista"; positivismo modernizador e de bem-estar no Rio Grande Sul e "novo liberalismo" no Nordeste. Quando comparada com as interpretações em termos de história das idéias, essa abordagem ilumina um fenômeno antes invisível: a ação política dos grupos "intelectuais".

Dois pressupostos partilhados pela bibliografia

Embora tenham clivagens e nuanças aqui abstraídas, estas duas grandes linhagens de explicação do movimento intelectual comungam dois pressupostos que, me parece, têm obstado uma interpretação adequada do fenômeno: a separação entre campo intelectual e político e a incorporação das autodefinições doutrinárias dos agentes.

Boa parte dos intérpretes supõe que o movimento intelectual da geração 1870 seja, por definição, formado por intelectuais voltados para a produção de conhecimento e apartados do cerne do processo político. A suposta autonomia do campo intelectual gera a secção da geração 1870 em dois "objetos" de análise. Os intelectuais (imitadores de idéias importadas ou criadores de sistemas de pensamento próprios) pertencem aos estudos de história das idéias, alocados em grandes correntes, como "cientificismo. A outra metade é de estudos sobre o "pensamento político" de agentes que, admite-se, andaram envolvidos em práticas para além de seus gabinetes e escreveram "obras políticas".

Entretanto, os autores das "obras filosóficas" e das "obras políticas" não são assim tão facilmente discerníveis. Empiricamente, os dois círculos são parcialmente sobrepostos, com membros duplamente alocados.

O pressuposto da autonomia do campo intelectual, quero argumentar, é de validade duvidosa para o Brasil da segunda metade do século XIX. A separação entre um campo político e outro intelectual estava ainda em processo mesmo na Europa. Na França e na Inglaterra, o próprio termo "intelectual" só se firma nos anos 1870. Ao longo do século XIX, o clima de turbulência e ativismo político produziu uma reflexão intelectual colada à conjuntura, visando à intervenção política (Epstein, 1996, pp. 54 ss). O contexto intelectual do oitocentos europeu tem uma clivagem política forte e suas circunscrições — "escolas" — teóricas são frouxas. Se nem mesmo na "matriz" havia teorias puras e bem delineadas à disposição, não há razão para tomar as classificações "teóricas" como critério para a leitura das obras da geração 1870.

O fato de muitos membros da geração 1870 exercerem profissões ou pertencerem a instituições intelectuais na República não autoriza expandir o raciocínio para trás. Observando as trajetórias individuais e o conjunto de obras publicadas, é impossível distinguir "intelectuais" de "políticos". A divisão é um anacronismo. Não havia um grupo social cuja atividade exclusiva fosse a produção intelectual. A existência de uma única carreira pública centralizada no Estado, incluindo de empregos no ensino a candidaturas ao parlamento, fazia da sobreposição de elites política e intelectual a regra antes que a exceção.

A partição convencional da geração 70 em positivistas, liberais, darwinistas etc. é resultado do critério adotado. É o intérprete quem seleciona características intelectuais em detrimento das políticas. Empiricamente, os grupos tanto se identificam por recurso a termos doutrinários quanto a posições políticas.

Se ainda se quiser falar de duas esferas, digo que elas estavam preenchidas pelas mesmas pessoas. Tanto os autores de "obras filosóficas" desenvolveram atividade política contínua, quanto os "políticos" escreveram interpretações com base em recursos doutrinários. Não tomar o fato em conta significa decepar parte do objeto: a atividade política dos "intelectuais" ou a atividade intelectual dos "políticos".

O agravante da separação de campos é que o critério requer das obras uma consistência teórica que simplesmente não visavam e supõe dos autores uma dedicação prioritária à atividade intelectual que não existia. Um recorte estrito do universo das idéias num momento em que faltam as instituições de um campo intelectual plenamente constituído só pode concluir pela fluidez dos grupos, pela baixa qualidade das obras e pela inconstância dos autores.

Daí a desvantagem explicativa de uma sociologia dos intelectuais estrito senso para o movimento intelectual da geração 1870. Como argumentam Hale (1989) e Rosanvallon (1985) para casos contemporâneos, o México do Porfiriato e a França da Monarquia de Julho, ao invés de ignorada, a sobreposição entre cultura e política deve ser iluminada.

O outro pressuposto comum a várias interpretações do movimento intelectual da geração 1870 é a incorporação acrítica de termos genéricos criados pelos próprios agentes para nomear o movimento intelectual. Autodefinições de partidários da própria luta doutrinária — como Sílvio Romero — viram conceitos.

Categorias como "darwinismo", "positivismo", "spencerianismo", "liberalismo" sofreram apropriações, redefinições, usos políticos. Isso é evidente nas polêmicas entre facções: termos como "positivistas laffittistas" e "littreístas", "darwinistas" e "spencerianos", "liberais" e "conservadores" foram criados nas controvérsias. As categorias se constroem por constraste, exprimem relações entre grupos: a própria nomeação é uma arma em meio a conflitos de definição de identidades. Os termos estão inscritos num contexto de significados; são construções não só históricas como políticas. Grande parte das guerras doutrinárias disputa precisamente significados. Como demonstra Bannister (1988) para o darwinismo, o uso de terminologia doutrinária obedece motivação polêmica contra adversários mais que exprime filiação teórica.

É da natureza dos movimentos intelectuais e políticos inventarem rótulos de identidade como estratégia de diferenciação, bem como uma tradição, um panteão de heróis e obras de legitimação de suas posições, especialmente em períodos de mudança social (Hobsbawn, 1984; Wuthnow, 1992; Tilly, 1993). "Positivista ortodoxo" ou "liberal radical" não são categorias adstritas, neutras. Seu uso inquestionado implica assumir as autoclassificações, os preconceitos, as torções e o próprio esquema explicativo dos agentes, numa tradução direta da terminologia da disputa doutrinária em conceitos sociológicos. A auto-imagem e as explicações dos agentes devem ser o objeto, não o guia da análise. Daí o imperativo de desmistificar as próprias categorias, de redefini-las, de modo a "perguntar não quais indivíduos ou grupos eram darwinistas sociais, mas como o rótulo ele mesmo funcionava nos debates [ ]" (Bannister, 1988, p. xi).

Outro inconveniente é que o caso europeu se torna parâmetro automático de avaliação do movimento intelectual. Ler os textos brasileiros conforme graus de fidelidade doutrinária a teorias estrangeiras conduz sempre a um diagnóstico de insuficiência: a questão acaba formulada como relação de cópia/desvio entre sistemas intelectuais nativos e estrangeiros.

Neste tipo de raciocínio, os agentes do processo são as idéias. Os "intelectuais" são seus meros portadores. Como se idéias, lembra Ringer, por alguma força lógica ou verdade imanente, fossem capazes de induzir pensamentos e ações dos agentes num determinado sentido. Quando processos de "influência" direta não são facilmente identificáveis, geram-se explicações em termos de "difusão", "distorção", "diluição" das idéias no senso comum. "A fraqueza deste esquema repousa particularmente em seu extremo idealismo ou intelectualismo. Idéias nunca são totalmente separáveis de seu enraizamento em instituições, práticas e relações sociais." (Ringer, 1992, p. 11).

Este modo de pôr a questão tem outro alicerce bambo. Supõe uma distinção de natureza entre a problemática intelectual européia e a americana nos fins do século XIX, que tornaria qualquer transferência de conceitos e argumentos deslocada por definição. A sobrevalorização das singularidades dos países coloniais leva, como argumenta Hale, a ignorar a partilha, por europeus e americanos, de uma tradição e de um universo de valores, de um repertório ocidental.

Paradoxalmente, muitas análises apagam o elemento efetivamente singular: a tradição político-intelectual brasileira. Porque ex-colônias, os países americanos teriam mantido as tradições herdadas. Isto é só parcialmente verdade. As nações novas se empenham em inventar tradições que as definam e as distinguam (Hobsbawn, 1984). O fato de ser inventada não torna esta tradição menos ativa.

A relação entre contexto brasileiro e teorias européias é dinâmica. A frase de Hale para o México aplica-se perfeitamente ao Brasil: "Devemos superar a contróversia estéril acerca do caráter imitativo ou original das idéias mexicanas, se elas eram periféricas à `realidade' mexicana ou propriamente incorporadas e `mexicanizadas'." (Hale, 1989, p. 19). Há um repertório comum, que inclui tanto teorias estrangeiras quanto a tradição nacional. A apropriação de elementos deste repertório é seletiva e envolve necessariamente supressão, modificação.

A explicação do movimento intelectual da perspectiva cognitiva, como formação de filiais brasileiras de matrizes européias, implica assumir um critério de avaliação exógeno ao objeto e que solapa o contexto sociopolítico em que ele se constitui. O movimento é analisado principalmente a partir de seus escritos e conforme sua capacidade de produzir sistemas de pensamento coerentes. Assim acentua-se a intenção cognitiva dos agentes: reduz-se o movimento intelectual a um projeto de conhecimento, seja de teorias estrangeiras, seja da realidade nacional. As teorias — a liberal de Locke e Rousseau ou ainda Tocqueville, a positivista de Comte ou a evolucionista de Spencer e Darwin — tornam-se parâmetros automáticos. Por conseqüência, autores profusamente citados pelo movimento intelectual da geração 1870 que não atravessam a alfândega da qualidade intelectual, como Théophilo Braga, Littré, Renan e Taine, e políticos profissionais, como Gladstone, Gambetta e Jules Ferry, são expurgados da análise.

O suposto de que os agentes estivessem buscando teorias de maior potencial cognitivo esbarra no fato de que o hit do século XIX brasileiro foi o positivismo, não o marxismo. Diante deste quadro, os analistas deslocam o foco das teorias para a capacidade cognitiva da elite intelectual oitocentista: seu caráter tacanho, sua mania de imitação das modas européias, a impediria de compreender teorias sofisticadas.

A perspectiva cognitiva reduz o movimento intelectual. O verbo não é acidental. Ao menosprezarem a prática dos agentes, os analistas deixaram de perceber que o debate político coetâneo é a principal fonte "intelectual" do movimento da geração 1870.

Uma abordagem política do movimento intelectual

A explicação do movimento intelectual em termos de correspondência ou desvio em relação ao padrão intelectual estrangeiro ampara-se na análise das obras publicadas. Uma dimensão relevante, sem dúvida. Mas a interpretação das idéias como sistemas oculta o fundamental: são os agentes sociais que fazem uso de idéias, que as selecionam, que as tomam como orientação de sua ação.

O mesmo efeito unilateral resulta das análises em termo de ideologias. Vários intérpretes declaram tomar em conta a ação dos agentes, mas acabam por reduzir o movimento intelectual a posições e origens sociais de seus membros. Assim, põem na sombra o significado do substantivo "movimento". De um modo ou de outro, perde-se de ver que o fenômeno a explicar tem dupla face: são tanto textos quanto práticas.

A dificuldade provém antes do critério dos analistas que das opções dos agentes. O nó desaparece se admitirmos que os agentes recorreram a um certo repertório por razões práticas, ao invés de atribuir-lhes a intenção de gerar teorias universais.

A base de meu argumento é um truísmo sociológico: formas de pensar estão imersas em práticas e redes sociais. Minha proposta é tomar a experiência compartilhada pelos componentes do movimento intelectual como perspectiva analítica. Adotar este ponto de vista significa, como argumentam Rosanvallon (1985) e Hale (1989), explodir a distinção entre textos e práticas, teoria e obra de circunstância, e privilegiar a tensão entre a obra e a experiência social de seus autores.

O efeito desta mudança de ângulo é considerável. Ao invés de partir das "teorias" e da "realidade brasileira" como dois blocos a serem relacionados, procuro empreender uma análise conjugada da experiência social da geração 1870 e de seus textos. A inscrição da produção doutrinária do movimento intelectual no processo sociopolítico em que surge lhe confere nova inteligibilidade: a própria produção de textos aparece como uma forma de ação.

As abordagens cognitiva e prática podem se completar se tomarmos em conta que representações e comportamentos estão já articulados nas "estratégias de ação" criadas pelos agentes sociais (Swidler, 1986). Ações e escritos unificam-se politicamente.

Dada a indistinção de campos no Império, uma manifestação intelectual era imediatamente política. Por isso, a própria dinâmica política — a performance política de agentes e argumentos, e não as "teorias" ou os "intelectuais" — oferece a melhor perspectiva de análise.

Esta opção metodológica permite lançar luz sobre a atividade política dos "intelectuais" brasileiros de final do Império e identificar uma complementaridade entre textos e formas de ação. Assim se vislumbra o sentido principal dos escritos do movimento da geração 1870: a intervenção política.

O recurso a argumentos de teorias estrangeiras explica-se como busca de armas retóricas de combate aos modos de pensar e agir do Império. Nesta chave, o problema passa a ser "como capacidades culturais criadas em um contexto histórico são reapropriadas e alteradas em novas circunstâncias. [...] [e qual a] capacidade de determinadas idéias [ ] organizarem dados tipos de ação que afetam as oportunidades históricas que os atores são capazes de capturar" (Swidler, 1986, p. 283). Meu argumento é que os agentes não visavam reproduzir e/ou construir sistemas abstratos: estavam em busca de subsídios para compreender a situação que vivenciavam e para desvendar linhas mais eficazes de ação política.

A ótica das práticas permite ver a dimensão de ação coletiva do movimento intelectual:

Se a luta entre movimentos e seus oponentes fosse primariamente simbólica, então um movimento social poderia ser entendido como nada mais que um centro cognitivo de mensagem. [ ] Neste caso, nós estaríamos habilitados a "ler" a interação entre movimentos e autoridades como um crítico literário lê um texto [ ] Mas, se [ ] os significados são construídos através da interação social e política por empreendedores de movimento, não há substitutivo para relacionar textos e contextos e perguntar como os movimentos eles mesmos fazem esta conexão. (Tarrow, 1994, p. 119)

Assim, para entender por que certos movimentos recorrem a certas práticas simbólicas é preciso inscrever a análise do discurso do movimento na estrutura de relações de poder.

Esta abordagem do movimento intelectual como movimento político se ampara em três noções básicas: estrutura de oportunidades políticas, comunidade de experiência e repertório.

A estrutura de oportunidades políticas

Movimentos intelectuais são uma modalidade de movimento social. Por sua vez, movimentos sociais são uma das formas modernas de ação coletiva, que surgem com o enfraquecimento das formas tradicionais de expressar demandas, seja por sua ineficácia, seja pelo aumento da participação política. Segundo Tilly (1978 e 1993), estão associados a momentos nos quais as instituições políticas falham em responder as demandas de parte dos membros da própria comunidade política. Esta situação de crise permite que pequenos grupos insatisfeitos com as regras de distribuição de bens e recursos e de representação, antes silenciosos ou inaudíveis, possam vocalizar suas demandas mesmo fora das instituições políticas estabelecidas. Isto é, movimentos sociais surgem tipicamente em momentos de crise.

Tarrow (1994) agrega que movimentos sociais se formam quando há uma expansão da "estrutura de oportunidades políticas". Quando processos de crise dilatam as "[...] dimensões consistentes — mas não formais ou permanentes — do ambiente político que fornece incentivos para pessoas se engajarem em ações coletivas, por afetarem suas expectativas de sucesso ou fracasso." (Tarrow, 1994, p. 85).

A estrutura de oportunidades políticas que propicia a configuração do movimento intelectual da geração 1870 é composta por dois processos fundamentais: a cisão da elite política imperial e uma modernização conservadora incompleta.

Uma parte da elite política monárquica começou, no início dos anos 1870, uma reforma controlada, modernizante para a economia e a sociedade mas sem alterar o âmago das instituições políticas — o gabinete Rio Branco (1871-75) sintetiza esta iniciativa. O impasse quanto ao rumo das reformas gerou uma crise política sem precedentes: os partidos se desestabilizaram, com a formação de dissidências em cascata, desembocando mesmo na criação de um partido anti-regime. A crise política enfraqueceu os pilares e instituições que sustentavam o Segundo Reinado, desfigurando a lógica política imperial e criando um clima de incerteza. A pulverização tornou a política mais dinâmica e permeável. Diante da crise do regime, vários grupos sociais alijados pela política imperial adquiriram condições para expressar publicamente seus dissensos e projetos.

A reforma conservadora, doutra parte, impulsionou uma significativa modernização da infra-estrutura, com conseqüências políticas inadvertidas e desestabilizadoras para o regime. A disseminação de tipografias e a implantação de estradas de ferro e do telégrafo revolucionaram o padrão da imprensa. Nivelaram o acesso a informações sobre temas políticos e culturais nacionais e estrangeiros entre todos os grupos sociais alfabetizados. A mudança social e a crise política alteraram os contornos da população capacitada para agir politicamente também pela redistribuição de recursos materiais, políticos e simbólicos.

O pacote conservador de reformas quebrou duas regras tácitas do regime. Na forma, violava o princípio do consenso na tomada de decisões no Império, que dava às medidas seu caráter de responsabilidade coletiva. Substantivamente, inseria na agenda política os próprios fundamentos do status quo: a escravidão, a religião de Estado, a monarquia representativa.

Assim, a estrutura de oportunidades políticas abre vias de ação política inéditas para agentes sociais até então alijados do sistema político. A crise expandiu a discussão dos dilemas estruturais para além do círculo da elite, configurando um espaço público paralelo à vida parlamentar. Esta conjuntura política incentivou grupos marginalizados ou insatisfeitos com o arranjo político imperial a externarem pública e coletivamente seus dissensos.

Meu argumento é que o movimento "intelectual" contemporâneo da geração 1870 é uma dessas formas coletivas de contestação à ordem imperial formadas por grupos marginalizados pelas instituições monárquicas.

A combinação entre rápida mudança social e crise política minou a capacidade repressiva do regime e seus mecanismos de legitimação e reprodução. Contexto em que tipicamente, argumenta Ringer, gera-se uma "clarificação": "[ ] assunções culturais [ ] tornam-se explícitas, condições e ocasiões são criadas para a transcendência parcial dessas assunções pela inovação intelectual" (Ringer, 1992, p. 8). A crise obriga a explicitação do repertório de valores e princípios que legitimava o establishment monárquico no debate público: os princípios estamentais do liberalismo imperial e a justificação das bases coloniais do status quo (a monarquia e a escravidão). A reiteração dos princípios, do "espírito do regime" e dos modos de agir das instituições ameaçadas do status quo imperial se fez em opúsculos e discursos de uma ala da elite imperial. Pondo em alto-relevo a letra não escrita do regime, trazendo ao debate público temas antes indiscutíveis.

A experiência compartilhada

Algumas interpretações, vimos, associam a emergência do movimento intelectual à constituição de uma "classe média", resultante da modernização econômica. Entretanto, num contexto de mudança social acentuada, os contornos dos grupos sociais são pouco precisos. A crise da sociedade brasileira de finais do século XIX, decorrente da mudança de padrão da organização do trabalho, era estrutural (Holanda, 1972; Fernandes, 1977), modificando a distribuição de recursos econômicos, sociais, políticos e de status, e mesmo a capacidade de manipulá-los. Por sua magnitude, atingia todos os grupos sociais, provocando não apenas a emergência de "novos" segmentos, mas a desestruturação e reorganização dos antigos.

O movimento intelectual não é de classe média. Nenhum membro do movimento intelectual era totalmente alijado de recursos sociais e econômicos. Por definição, um movimento intelectual é um movimento de elite. Quanto mais em uma sociedade em que o acesso à educação era tão restrito. Ao contrário da maioria da população do Império, os membros do movimento tinham acesso ao diploma superior, que era também o primeiro degrau da carreira política. Tinham acesso aos meios materiais (imprensa, posição social) e intelectuais (educação superior, ingresso no universo erudito) imprescindíveis para exprimir e amplificar suas opiniões e reivindicações.

Entretanto, não são homogêneos. Seguindo a trajetória de cerca de 130 de seus membros, encontrei uma enorme diversidade. Não é possível definir o movimento em termos de socialização escolar ou origem regional:há bacharéis em direito, em engenharia, em medicina; militares e civis; há gente de praticamente todas as províncias. Tampouco pode-se reduzi-los a uma classe. Havia tanto representantes de grupos sociais novos quanto de outros que há muito cresciam na margem ou nos interstícios da sociedade estamental, e havia mesmo membros de famílias tradicionais do Império. Portanto, não representavam exclusivamente nem setores médios ascendentes, nem grupos decadentes.

Os componentes do movimento intelectual se definem melhor pela negativa. São um pouco o que sobra entre o dinheiro e a política da Corte e o universo escravista rural: os filhos de famílias sem vínculo com a atividade agroexportadora; os oriundos de províncias de peso político grande, como Pernambuco, mas de grupos marginais à aliança hegemônica nacional; os de famílias de estancieiros, mas sem entrada nos feudos políticos da província; os de origem excêntrica, não alocados no mundo da elite política e da grande economia, filhos de professores; de profissionais liberais urbanos; de pequenos comerciantes; de imigrantes portugueses; de estancieiros; de inspetores de alfândega; de juízes; de oficiais do exército (major; marechal; tenente-coronel); de médicos de província; de tipógrafos; de pequenos lavradores; de mestres-escolas e até de um vigário de paróquia. O que os une é uma situação.

O epíteto "geração 70" delimita um grupo social que partilhava uma certa "comunidade de experiência": "[ ] isso inclui um largo número de modos possíveis de pensar, de experiências, sentimentos e ações, e restringe o escopo de auto-expressão aberta para o indivíduo a certas possibilidades circunscritas." (Mannheim, 1997, p. 366). Esta "unidade de geração" circunscreve os indivíduos chegando à idade adulta e ao "mercado" de trabalho ao longo dos anos 1870 e início dos anos 1880. Mas certos contemporâneos só criam laços concretos entre si, configurando uma ação coletiva, "ao serem expostos aos sintomas sociais e intelectuais de um processo de desestabilização dinâmica. [ ], compartilhando um destino comum e idéias e conceitos os quais são de certo modo delimitados com seus desdobramentos." (idem, p. 378).

A idéia de geração dá a chave para entender por que o movimento surge em concomitância com a crise do Império. Seus membros vivenciaram uma mesma experiência social, compartilhavam uma comunidade de situação: a marginalização frente às instituições centrais da sociedade imperial.

Esta marginalização é relativa, diferenciada: diz respeito ao cerne do establishment e comporta várias modalidades. A longa dominação conservadora bloqueava o acesso aos melhores postos públicos, cadeiras no parlamento e empregos na burocracia do Estado. Gerava, assim, para os grupos não diretamente vinculados à facção hegemônica da elite imperial, alocada no Partido Conservador, uma falta de perspectiva de carreira. De outra parte, a lentidão da modernização econômica obstava o andamento dos negócios de grupos econômicos novos, não representados pela elite política.

Uma parte dos membros do movimento intelectual vinha de grupos sem laços estreitos com a elite imperial. Estes eram, pois, negativamente privilegiados pela estrutura estamental de distribuição de recursos sociais e de status. Outros eram oriundos ou de grupos sociais novos ou das facções politicamente subordinadas da elite imperial e estavam alijados das instituições políticas fundamentais do regime. Por razões diferentes, os grupos que compõem o movimento intelectual não tinham suas demandas processadas pelo sistema político. Todos amargavam uma insatisfação com um regime fechado, que não se modernizava.

As interpretações do movimento intelectual têm procurado estabelecer características positivas comuns a seus membros. Assim, perdem o mais relevante: são vários grupos, heterogêneos entre si, que compõem o movimento.

Embora socialmente diferenciados, estes grupos comungam uma marginalização política. É a experiência compartilhada de exclusão que dá a sentido seus escritos e associações: são a expressão de uma crítica às instituições, valores e práticas fundamentais do regime imperial. O movimento intelectual da geração 1870 pode ser definido, então, como manifestações de contestação ao status quo imperial por parte de grupos sociais parcial ou totalmente marginalizados em seu arranjo político.

As diferenciações entre os grupos e a ausência de uma unidade institucional levaram a bibliografia a segmentar a análise em termos de filiações doutrinárias. Entretanto, a reconstrução das trajetórias dos membros do movimento intelectual e de seus principais agrupamentos revela duas outras características importantes: (1) havia uma flagrante indistinção entre suas atividades políticas e intelectuais; (2) suas associações e publicações não se restringem a instituições e têm o caráter de contestação ao status quo imperial.

A lógica das manifestações intelectuais apenas se torna inteligível no contexto de crise do Império. Todos os grupos exprimem um dissenso concomitantemente político e intelectual em relação ao status quo imperial. Recorrem a um repertório intelectual distinto do liberalismo estamental à cata de recursos para a compreensão da crise e de armas para a luta política. A incorporação de novas perspectivas intelectuais se compreende, desta ótica, como busca de novos recursos teóricos e retóricos para gerar uma explicação da crise e da mudança social, bem como para oferecer vias de ação alternativas aos grupos sociais alijados das principais instituições monárquicas.

As referências a doutrinas estrangeiras tinham um significado político. Os grupos expressaram suas especificidades adotando para si nomes que os distinguissem precisamente uns dos outros. Esse mecanismo de identidade constrastiva formou rótulos que combinam termos descritivos da pauta política e da orientação intelectual de cada grupo. Assim, "novos liberais", "igreja positivista", "comteanos", "científicos", "darwinistas", "abolicionistas", "federalistas" são termos que vão sendo criados no processo mesmo em que os grupos se criam.

O movimento intelectual não está voltado para um debate doutrinário alheado da realidade brasileira. Muito ao contrário, seus membros são participantes ativos do debate político em torno dos princípios do liberalismo estamental e da reforma das instituições monárquicas. Este é o sentido do "positivismo", do "cientificismo", do "novo liberalismo": são modalidades de crítica ao status quo imperial.

O critério doutrinário e a assunção anacrônica da autonomia dos campos político e intelectual têm dificultado a percepção desta unidade essencial: a dimensão coletiva da revolta político-intelectual nos fins do Império e sua participação na própria derrocada do regime. As diferenças entre "liberais", "positivistas", "darwinistas", "spencerianos" configuram oposições internas a um único movimento de ataque ao Império.

As obras da geração 1870 e seu repertório político-intelectual

Dada esta redefinição do fenômeno, estamos agora em condições de entender melhor as obras produzidas pelos membros do movimento intelectual. Podemos lê-las como formas de intervenção no debate público.

Os livros têm um propósito político que escapa ao leitor cujas vistas estão fixas nas questões doutrinárias ou que parte do fosso entre positivistas e liberais, monarquistas e republicanos. Os "intelectuais" da crise do Império não visavam produzir obras de valor universal, mas interpretações do Brasil.

Seguir por uma interpretação em termos de "influências" teóricas e de linhagens de liberalismo versus linhagens de positivismo ou cientificismo (por exemplo, Faoro, 1993; Morse, 1988) nubla uma parte importante do fenômeno: a unidade de temas e problemas, de repertório político-intelectual e de postura crítica da "nova geração". A separação convencional em cientificistas, liberais, positivistas impede de ver a dimensão coletiva da revolta político-intelectual dos anos 1870 e 1880 no Brasil.

A circunscrição geracional evidencia que, apesar das separações doutrinárias autoproclamadas, as posições políticas de autores usualmente classificados como extremos, como por exemplo Joaquim Nabuco e Miguel Lemos, são muito mais próximas do que se apregoa. Seus livros O Abolicionismo (1883) e O Positivismo e a escravidão moderna (1884) defendem a mesma plataforma: abolição imediata e não indenizada da escravidão. De outro lado, "novos liberais", como Nabuco, estão um pouco mais longe e cientificistas como Miguel Lemos, um pouco mais perto da tradição liberal do Império do que se costuma imaginar: os "novos liberais" assim se autonomearam precisamente para se distinguir do "velho liberalismo" da geração de seus pais, com o qual travaram guerras abertas, enquanto vários positivistas estiveram em franco namoro com liberais dissidentes.

A análise das obras da geração 1870 conforme os parâmetros do debate público permite constatar que há uma unidade de problemas compartilhada. A maior parte dos escritos tematiza sistematicamente dimensões da sociedade imperial. Seus temas acompanham a conjuntura política e coincidem com a agenda parlamentar do período: são os dilemas estruturais da sociedade imperial brasileira vindos a público durante a crise política dos anos 1870, sobretudo a organização política e o regime de trabalho. As obras da geração 1870 são respostas ao contexto de crise política.

Este sentido coletivo apenas se esclarece com a inscrição dos livros no processo de luta política. Os textos brasileiros precisam ser analisados com referência local, a partir dos significados contemporâneos. Ao invés de buscar semelhanças teóricas entre as fontes citadas pela geração 1870, podemos entendê-las a partir de seu potencial rendimento político para o movimento intelectual.

As citações e referências são selecionadas conforme seu potencial para legitimar posições políticas, antes que teóricas. Os autores recorrentemente mencionados não são filósofos. Vige uma literatura de autores menores, voltados para a política. Sobretudo políticos estrangeiros e pensadores da reforma social. É também o propósito político que orienta a citação. Assim, a referência a Littré deixa de significar o uso de um manual de vulgarização do sistema filosófico de Comte, donde se derivaria uma "escola" positivista "heterodoxa", para sinalizar a simpatia pelo republicanismo francês de orientação científica. O mesmo vale para Théophilo Braga, líder republicano português, talvez o nome mais citado entre "cientificistas" e "positivistas". As soluções positivas da política brasileira (1880) de Pereira Barreto são, no título e no argumento, um versão nacional de seu As soluções positivas da política portuguesa (1879). A própria série Biblioteca útil de Abílio Marques repetia o nome de uma coleção republicana portuguesa. Vários títulos da biblioteca positivista foram traduzidas com intuito político: Aarão Reis (1881) escolheu na obra de Condorcet um texto abolicionista para traduzir: L´esclavage. A tipografia do Diário da Bahia fez reimprimir em 1883 a versão portuguesa das obras completas do republicano francês Leon Gambetta. O critério de eleição é o republicanismo dos citados. Do mesmo modo, o alemão Theodor Mommsen e o português Oliveira Martins comparecem como propugnadores de uma monarquia esclarecida, espécie de cesarismo, que foi referência para novos liberais como Rebouças e Nabuco. A regra de relação entre autores brasileiros e estrangeiros é de filiação política. Mesmo os pensadores sociais mais recorrentes como Comte, Spencer, Stuart Mill, Renan não são referidos como filósofos, mas como teóricos da reforma da sociedade.

O interesse pela reflexão e experiência estrangeira pode ser lido não como deslumbramento provinciano, mas como constituição de uma perspectiva comparada: os países usualmente citados estavam atravessando crises similares à brasileira — caso de Portugal, da Itália, da Espanha, da Alemanha e da França (Hobsbawn, 1996, pp. 22-23).

Meu ponto é que a perspectiva política de crítica ao status quo imperial explica o recurso a determinado conjunto de autores e argumentos. A questão relevante não está em determinar qual autor ou matiz teórico de predileção de cada grupo. Havia um repertório político-intelectual compartilhado.

Um repertório é o conjunto de recursos intelectuais disponível numa dada sociedade em certo tempo: padrões analíticos; noções; argumentos; conceitos; teorias; esquemas explicativos; formas estilísticas; figuras de linguagem; conceitos e metáforas (Swidler, 1986). Não importa a consistência teórica entre os elementos que o compõem. Seu arranjo é histórico e prático.

Repertórios são criações culturais aprendidas, mas elas não descendem de uma filosofia abstrata ou ganham forma como resultado de propaganda política; eles emergem da luta. [ ]. Repertórios de ação coletiva designam não performances individuais, mas meios de interação entre pares ou grandes conjuntos de atores. [ ] um conjunto limitado de esquemas que são aprendidos, compartilhados e postos em prática através de um processo relativamente deliberado de escolha. (Tilly, 1993, p. 264)

Repertórios funcionam como caixas de ferramentas (tool kit) às quais os agentes recorrem seletivamente, conforme suas necessidades de compreender certas situações e definir linhas de ação.

O movimento intelectual da geração 1870 buscou no repertório político-intelectual de fins do oitocentos os recursos que lhe permitisse exprimir sua crítica ao regime imperial numa forma distinta da tradição liberal-romântica inventada pela elite imperial.

Dois grupos de elementos foram mobilizados pelo movimento: a incorporação de teorias estrangeiras da reforma da sociedade, o que Hale (1989) chamou, no estudo do congênere mexicano, de "política científica", e uma resignificação da própria tradição nacional.

"Política científica" designa a simplificação e conversão das principais descobertas da sociologia nascente em princípios de orientação política. O recurso a uma ciência da sociedade é um modo de distanciamento em relação à filosofia política do liberalismo francês da Restauração que orientou a fundação das instituições do Segundo Reinado (Matos, 1987). O movimento intelectual encontrou aí uma linguagem e um esquema conceitual para se diferenciar da tradição imperial. Incorporou especialmente duas teorias fundamentais: uma para a história, outra para a política.

Uma teoria da história sociologicamente formulada forneceu-lhe uma explicação científica da sociedade brasileira. Uma lei de evolução universal organizaria todas as sociedades em graus de atraso e civilização conforme padrões sucessivos de produção, sociabilidade, instituições políticas e formas de pensar. Há uma teleologia, uma crença no progresso social: a história caminha no sentido de desenvolvimento econômico; complexificação social; secularização das instituições; expansão da participação política; racionalização do Estado. A correlação entre mudança econômica, social e polýtica aparece como necessidade. Civilização significa modernização: a obsolescência das instituições e dos modos de pensar e agir das sociedades aristocráticas.

Em par, vem uma teoria da mudança política. A modernidade estaria gerando um novo padrão político. Em oposição à preponderância das personalidades excepcionais na direção do Estado, glorificada no início do século (Rosanvallon, 1985), a "política científica" recomendava a aplicação do saber sociológico na condução do governo, mediante uma planificação racional das tarefas político-administrativas (Hale, 1989).

Estas teorias, comuns a vários autores da segunda metade do século XIX, permitiram ao movimento intelectual reinterpretar as opções estruturais da elite política e a própria história brasileira, inscrevendo o processo de colonização e de formação do Estado-nação numa história mundial. Por este parâmetro, o Brasil aparecia em meio a impasses e dilemas da "crise de transição": da economia escravista ao trabalho livre; de um regime político aristocrático a outro mais democrático; de uma monarquia católica a um Estado laico e representativo. Desaguando na constatação da incompatibilidade entre a sociedade imperial — seu fundamento escravista, o caráter estamental de suas instituições políticas — e a modernidade. A conjuntura nacional é interpretada, assim, como decadência: crise "inevitável" do padrão de sociedade e do regime político típicos do ancient régime e prenúncio de mudança da estrutura social e de abertura do sistema de representação política. A política científica poderia regrar essa mudança, impedindo a anarquia potencial. A política científica fornece, assim, conceitos e macroexplicações para o movimento intelectual.

De outra parte, a prosa organicista típica da política científica oferece formas de expressão para o movimento: o estilo de tese e principalmente as metáforas organicistas e químicas, científicas, contrastam a com a retórica liberal-romântico do Império. Comparece, assim, como a linguagem comum pela qual experiências particulares de marginalização podem se sintonizar em um mesmo discurso de crítica. O movimento intelectual adotou mesmo o gênero literário experimental típico dos adeptos europeus da política científica, o romance naturalista. Romances de tese, minuciosamente descritivos, sociológicos, rompiam com a estetização da sociedade imperial que o indianismo de Alencar tinha nutrido e se dedicavam ao desvelamento das "patologias" da sociedade estamental e escravista.

O movimento intelectual incorporou seletivamente elementos da política científica para compor seu repertório por razões práticas. Conforme a capacidade de certos gêneros de argumentos para: (a) interpretar os rumos da mudança social, dando respostas aos dilemas estruturais (particularmente a escravidão e a representação política) expostos no debate público a partir da cisão da elite; (b) exprimir as insatisfações e anseios políticos dos diferentes tipos de marginalizados que compunham o movimento; (c) oferecer recursos para combater os princípios liberais que justificavam os bloqueios políticos e sociais impostos pela sociedade estamental, bem como para legitimar reivindicações por reformas. Neste sentido, a política científica foi decisiva na passagem do estado de descontentamento difuso com a ordem imperial para uma situação de contestação política.

Não estamos diante de um quadro de importação aleatória de idéias a serem adaptadas a um contexto inteiramente diverso. Os elementos que o movimento intelectual privilegia no repertório europeu são aqueles que permitem o diálogo com a tradição político-intelectual imperial. As formas tradicionais de pensar e de agir constrangem e impõem balizas para as inovações. Novos movimentos "[...] geralmente inovam no perímetro do repertório existente, ao invés de romper inteiramente com as maneiras antigas" (Tilly, 1993, pp. 265-266).

A contraparte nativa da política científica é uma releitura do repertório de símbolos e práticas do próprio Império. Em períodos de transformação, os esquemas de pensamento e o repertório cultural cristalizado são não só contestados, como também reinterpretados (Swidler, 1986). O movimento intelectual gerou parte de seu repertório a partir de uma apropriação e reinterpretação dos esquemas de pensamento e formas de ação cristalizados como tradição político-intelectual nacional.

Esta reelaboração implica o manejo do cânon de personagens, efemérides e símbolos nacionais contra o status quo imperial. A explicação histórico-sociológica permite recuperar passagens e personagens nacionais, edificando uma tradição alternativa à da elite imperial a partir de seu próprio panteão. Assim é que os movimentos políticos reformistas derrotados, como a revolução pernambucana de 1817 e a vertente semi-republicana do liberalismo da Regência, expurgados na história oficial do Segundo Reinado, são recuperados como autênticas manifestações da nação. Figuras como frei Caneca são reabilitadas como heróis épicos, decisivos na fundação da pátria.

O movimento intelectual preserva certos traços românticos, sobretudo a oratória inflamada. O próprio estilo de seus opúsculos em parte se inspira no tom jacobino e na retórica clássica do panfletismo político do Primeiro Reinado e da Regência.

Também recupera o americanismo, segregando-o do nativismo. O modelo americano, porém, não expressa mais o indianismo, mas antes o padrão de desenvolvimento dos Estados Unidos. O núcleo da tradição inventada é atacado também em sua ambição de definir a identidade nacional. A deslegitimação do cânon se expressa no ataque ao cerne da imagem da nacionalidade que o indianismo romântico cristalizara: a idéia de singularidade brasileira. As efemérides dos anos 1880 em torno de Camões e de Castro Alves, poeta-símbolo do movimento, são exemplos do modo pelo qual a herança cultural ibérica é recuperada, em alternativa à tradição nativista imperial.

O movimento logra um efeito crítico a partir da manipulação do passado imperial: a história serve de referência para a avaliação do presente.

A política científica e a resignificação da tradição imperial são os dois elementos centrais que o movimento intelectual selecionou no repertório oitocentista para construir uma explicação e uma crítica do modus operantis da sociedade brasileira.

A partir deste repertório, os diferentes grupos geraram interpretações cujo fulcro era a detecção de uma "crise" da ordem sociopolítica legada pela colonização. Os fundamentos socioeconômicos da sociedade imperial e suas principais instituições surgem como herança colonial e como obstáculos para o desenvolvimento do país.

É essencialmente esta concepção que os livros do movimento intelectual exprimem. Além da convergência temática, trazem um ponto de vista político comum. A principal dimensão da produção doutrinária da geração 1870 é a construção de uma crítica coletiva às instituições, práticas, valores e modos de agir do status quo imperial.

Os livros privilegiam um ou ambos os flancos principais da ordem imperial: a base socioeconômica escravista e a forma da monarquia centralizada. Entretanto, a crítica se expande para praticamente todos os setores da sociedade imperial: o caráter oligárquico e a vitaliciedade das instituições políticas centrais; a organização escravista da produção; o caráter estamental do liberalismo político; a definição indianista da identidade nacional; o tradicionalismo e a hierarquia da sociedade imperial. Trata-se de um ataque coletivo à lógica excludente do liberalismo estamental. Empenham-se em rechaçar a justificação do regime político pelo direito divino do monarca, em negar a desigualdade racial entre os indivíduos como base legítima da hierarquia social e anfase e escopo, os pontos centrais comuns são: (1) a reforma das instituições políticas: supressão ou esvaziamento político dos postos vitalícios (Poder Moderador; Senado; Conselho de Estado); Judiciário independente do Executivo, que garantisse a lisura das eleições; mudança dos critérios de representação política; adoção do federalismo; (2) a reforma do Estado: descentralização político-administrativa e tributária e liberalismo econômico; (3) a secularização das instituições: separação Igreja/Estado; instituição do registro civil de nascimento, casamento e óbito; abolição da religião de Estado; liberdade de exercício público de cultos e direitos políticos plenos para adeptos de qualquer credo; laicização do ensino público; (4) a extensão da cidadania: expansão dos direitos civis a estrangeiros e escravos; liberdade civil, religiosa, de imprensa e tribuna; veto à censura; habeas-corpus pleno; expansão do direito de voto e de candidatura; expansão do ensino; (5) a "questão social": abolição completa do regime escravista e liberação da imigração; (6) na política externa, um americanismo pacificista.

As obras demandavam um novo arranjo político-institucional e a instituição de um mercado livre tanto para o trabalho quanto para as mercadorias. O sentido das obras do movimento intelectual era, em uma palavra, a contestação dos valores e instituições da ordem imperial e a proposição de reformas estruturais.

Até aqui tenho falado do "movimento intelectual". Entretanto, conforme mencionei antes, o movimento é formado por diferentes grupos marginalizados. Esta diferença significa que os pontos de estrangulamento da sociedade imperial variavam conforme a posição de cada grupo. Em conseqüência, há diferenças de ênfase em elementos do repertório político-intelectual; em modalidades de crítica ao status quo imperial; no gênero de explicação da crise do Império; e no programa de reformas proposto.

Assim, a crise do Império é associada por todos os grupos à herança colonial, mas para novos liberais e positivistas abolicionistas, da Corte e de Pernambuco, a causa determinante é o complexo latifúndio-monocultor-escravista, enquanto para liberais republicanos e federalistas científicos de São Paulo e do Rio Grande do Sul o nódulo é a forma monárquica do regime polýtico. Em consonância, cada grupo privilegiou uma reforma como crucial: a dos liberais republicanos da Corte foi a república; a dos novos liberais foi a abolição; federalistas científicos demandaram sobretudo uma república federativa, enquanto os positivistas abolicionistas sobrepuseram as duas pautas, a abolição e a república. De modo geral, eram favoráveis à universalização de direitos civis, com a abolição da escravidão; de direitos políticos, com o sufrágio universal (à exceção de parte dos positivistas abolicionistas), e de direitos sociais, com uma legislação protetora do trabalhador (positivistas abolicionistas e parte dos novos liberais). À exceção de parte dos novos liberais agrupados em torno de Nabuco, todos os grupos entenderam que a conseqüência lógica da abolição da escravidão era a república.

A produção intelectual da geração 1870 compõe, então, modalidades de crítica a instituições, práticas e valores fundamentais do status quo imperial e de projetos de reforma. As modalidades variam conforme o grau de marginalização dos grupos em relação às instituições, bens e privilégios da ordem imperial. E não conforme a adesão a doutrinas estrangeiras.

A divisão doutrinária entre positivismo, spencerianismo, darwinismo social, novo liberalismo e a separação entre política e vida intelectual dificultam a percepção desta unidade essencial: os escritos e as atividades dos vários grupos "intelectuais" compõem modalidades de contestação do status quo imperial e de demanda por reformas estruturais. Neste sentido, o movimento "intelectual" contemporâneo à crise do Império pode ser entendido como um movimento de contestação.

A ruptura crítica, entretanto, não se efetiva numa plataforma revolucionária. O movimento intelectual comunga com o status quo a opção pela reforma ao invés da revolução. Os projetos de todos os grupos têm por ponto de fuga a mudança controlada das instituições. A política científica fornece elementos para um novo tipo de elitismo. As mudanças no sentido da modernização social e econômica e da universalização da participação política rompem com o critério de propriedade como base da comunidade política. Mas são compensadas pela criação de uma nova elite político-intelectual para gerir as reformas: uma intelligentsia. O elitismo aparece também na reedição da solução pedagógica: a criação do próprio povo pelo Estado. Essa vocação antipopular do movimento ajuda a explicar a recepção da política positiva em detrimento das teorias da revolução, também disponíveis em fins do século XIX. A questão de fundo em todas as obras é encontrar princípios de organização social que preservem a hierarquia social, a distinção entre elite e povo, depois de findo o regime escravista.

O movimento não é, pois, revolucionário. É reformista. Então, melhor que defini-lo por preferências intelectuais é nomeá-lo a partir desta característica central, como reformismo, uma categoria que permite abranger todos os seus grupos: positivistas, liberais, científicos.

O termo permite também evidenciar o caráter igualmente constitutivo das formas de contestação política às instituições monárquicas e de contestação intelectual ao liberalismo estamental.

As formas da mobilização

No início deste artigo enfatizei que o reformismo deve ser analisado do ponto de vista da prática dos agentes. Isto significa tanto a leitura de suas obras a partir do debate político quanto a análise de suas formas de ação e organização.

O reformismo se materializa tanto em formas discursivas quanto numa ação política coletiva. O sentido das práticas é consonante com o dos textos: a contestação às instituições, práticas e valores essenciais da sociedade imperial. Os grupos "doutrinários" — "positivistas", "spencerianos", "novos liberais" — foram os principais articuladores das duas maiores campanhas de contestação ao status quo imperial: o abolicionismo e o republicanismo. Cada uma abrangeu a quase a totalidade desses grupos, por visarem o cerne do regime: sua forma de reprodução material e sua organização política.

Ambas foram movimentos de rua. O reformismo recorreu especialmente a formas não institucionalizadas de ação coletiva, como as campanhas, associações de curta duração, passeatas, comícios, banquetes. A razão é dupla. Marginalizados pelas principais instituições imperiais, como as cátedras das faculdades, o parlamento e os partidos imperiais, os vários grupos buscavam formas alternativas de associação política e de manifestação. De outro lado, o reformismo incorporou práticas que estavam em uso por seus congêneres estrangeiros.

Repertórios são compostos não só por formas de pensar, como também por formas de agir. Conectam-se a formas históricas de ação coletiva. Tilly (1993) designa como "repertórios de contenção" o conjunto de formas de ação política surgidas em meio a conflitos a partir de fins do século XVIII e que ficaram à disposição dos movimentos sociais desde então, incluindo desde a manifestação pública de reivindicações através da formação de associações temáticas e clubes, a organização de comícios e passeatas, até as greves (Tilly, 1993; Favre, 1990).

Foi neste repertório de estratégias de ação, formas de organização e de mobilização que o reformismo buscou modelos para suas práticas. Inspirou-se especialmente nas formas contenciosas do abolicionismo americano, do movimento pró-reformas eleitorais na Inglaterra e dos republicanismos francês e português.

Este gênero de organização explica a fluidez, a ação dispersa, a flutuação de membros do movimento. Porque correm em paralelo e mesmo em desafio às instituições políticas, os movimentos são formas intermitentes e pouco estruturadas de mobilização (Tilly, 1993-94, p. 8). Mas as atividades e associações, manifestos e eventos estão conectados entre si. Há uma rede de solidariedade entre as práticas dos diferentes grupos e há coalizões tópicas conforme a convergência em um item de protesto ou reforma, como é o caso da abolição da escravidão. É isto que permite considerar esta forma de ação como um movimento.

As coalizões são negativas. Como qualquer movimento político, o reformismo extraía unidade da situação de marginalização política compartilhada pelos vários grupos. Era um inimigo comum, mais que um programa unificado, que alinhava o movimento. Por isto sua unidade é instável (1878-1888) e se desfaz com o esfacelamento do adversário A abolição da escravidão, ponto de convergência central do movimento, também chancela seu esboroamento. Desde 1888 os reformistas deixam de ser um bloco contra o status quo e passam a disputar entre si a prerrogativa de gerir as mudanças políticas.

Porque o reformismo é formado por grupos socialmente heterogêneos e divergentes em interesses, quando a pauta negativa tem de se converter em propostas concretas, começam os dissensos desagregadores quanto às modalidades e ao alcance das mudanças. Neste momento a coalizão se pulveriza em vários pequenos grupos, conforme combinações de ênfase em certos componentes da política positiva e alternativas de reforma: reforma política (republicanos/monarquistas; federalistas/centralistas; presidencialistas/parlamentaristas); programa de reformas sociais (imigração/trabalhador nacional; educação estatal/privada; tipos de seguridade social) e econômicas (agricultura/indústria; latifúndio/minifúndio). De tal sorte que os aliados de uma década serão freqüentemente inimigos na seguinte.

Para os agentes, esta cisão ganhou uma forma doutrinária, especialmente na primeira década republicana: a preferência teórica passou a contar como critério de distinção, como forma de legitimação da ação e de um projeto positivo de nova ordem. O desfecho do reformismo é sua dissolução como movimento e a integração dos seus componentes aos canais políticos, aos partidos, às associações profissionais, aos seus grupos sociais de origem. Muitos dos derrotados ou alijados da grande política se dedicarão a atividades estritamente intelectuais e disputarão rótulos como "positivistas" e "liberais". É essa última faceta da identidade reformista que sobreviveu nas memórias de seus membros, criando a imagem que a bibliografia depois consagrou: a de um conflito entre linhagens intelectuais descoladas da política.

O sentido do reformismo

O sentido das manifestações intelectuais da geração 1870, como procurei mostrar, é precisamente o contrário da "evasão", do "alheamento", da "indiferença" em relação à realidade nacional usualmente apregoada pelos intérpretes. O reformismo desenvolveu interpretações acerca dos principais problemas brasileiros e buscou instrumentos para intervir politicamente.

O sentido da adoção de "idéias" estrangeiras é político. A produção intelectual não era alheia à realidade nacional e os critérios de seleção de argumentos no repertório estrangeiro não residiam na consistência teórica da combinação de autores e teorias, e sim na sua relevância para clarificar a conjuntura brasileira e evidenciar linhas de ação política até então inauditas.

O aproveitamento do repertório europeu pelo reformismo não visou legitimar ou ocultar os fundamentos do status quo imperial, mas precisamente compreendê-los e contestá-los. Trata-se de um pensamento engajado e de contestação. A radicalidade das idéias não está dada a priori, em sistemas de pensamento prontos ("liberalismo" versus "conservadorismo"), mas no uso político que os agentes fazem do repertório disponível no seu tempo, extraindo mesmo efeitos "progressistas", como o abolicionismo, de sistemas "reacionários", como o positivismo.

A formulação do problema em termos de doutrinas põe foco nas diferenças internas ao movimento, como aquelas entre positivistas e liberais. Encobre, assim, a polarização essencial: entre modalidades de reformismo e o liberalismo estamental que elas combatem. As distinções políticas são mais explicativas do que as filiações intelectuais estritas. O ponto de vista político permite mostrar como liberais e positivistas estiveram mais próximos tanto no diagnóstico da crise (centralidade da escravidão na formação social brasileira) quanto no gênero de solução política proposta (reformas pelo alto através do Poder Moderador). A análise doutrinária — a oposição entre positivistas e liberais — oculta a proximidade política: o "novo" liberalismo, as variações de positivismo e cientificismo compõem modalidades de crítica à ordem imperial.

A ótica da importação e adaptação de idéias estrangeiras à realidade nacional perde ainda de vista que o movimento recorreu não apenas ao repertório estrangeiro disponível, mas também à própria tradição nacional.

A boa questão, me parece, é por que o movimento intelectual recorre a determinados elementos do repertório estrangeiro e nacional, composto por práticas e idéias, de seu tempo. Minha resposta é que suas razões são políticas. Os agentes mobilizaram intencionalmente elementos da política científica e da tradição nacional para exprimir seu dissenso com a ordem imperial. O movimento "intelectual" da geração 1870 foi, sobretudo, um movimento político de contestação.

NOTAS

1 "Todo o nosso pensamento dessa época [fim do Império] revela [ ] a mesma indiferença, no fundo, ao conjunto social [ ]. Não existiria à base dessa confiança no poder milagroso das idéias um secreto horror à nossa realidade?" (Holanda, 1990 [NA BIBLIOGRAFIA CONSTA 1972], pp. 121 e 118).

2 Dois balanços recentes do debate sobre cultura e experiência (Boudon, 1997; Lamont e Wuthnow, 1998) apontam uma espécie de convergência negativa: o esgotamento de análises que tentam corresponder mecanicamente as duas esferas, a das representações e a das práticas; a crítica a todos os gêneros de reducionismo. Vários autores argumentam que a questão está menos em saber qual o grau de autonomia ou determinação das formas de pensamento pelas práticas sociais, e mais em entender as articulações entre estas duas dimensões. Assim, contemporaneamente as discussões se encaminham rumo a uma reformulação do próprio problema: ação e representações são duas faces da mesma moeda, duas dimensões da vida social. Para entendê-las é preciso conjugar o estudo da cultura como complexo de categorias cognitivas e como conjunto de práticas sociais.

3 Outros estudos em termos de [?] "obras filosóficas" compondo[?] "escolas" são os do próprio Paim (1966, 1979 e 1980) para a Escola de Recife e o "positivismo ilustrado"; o de Lins (1964) para o positivismo; o de Collichio (1988) para o darwinismo social. As "obras políticas", no mesmo diapasão, são organizadas em doutrinas como o "liberalismo doutrinário" (Macedo, 1977) e o "castilhismo" (Velez Rodrigues, 1980). De modo geral, o movimento intelectual oitocentista seria a fase de nascença de uma "ilustração brasileira" (Barros, 1967, p. 253).

4 "A nossa origem, as condições da nossa formação, a nossa experiência histórica nos afastam do alcantilado das metafísicas e nos impelem para a meditação de realidades concretas e vivas." Daí a opção por estudar as "transformações ou deformações das doutrinas européias no Brasil e indagar das influências que estas tiveram entre nós [...]" (Cruz Costa, 1956, pp. 10 e 14-15; grifos do autor).

5 "O caráter proselitista das doutrinas filosóficas em nossa terra [...] traduz, ao nosso ver, o desajustamento histórico entre as doutrinas intelectuais, de importação, e as nossas condições históricas." (Cruz Costa, 1956, p. 312).

6 Bresciani (1976), por exemplo, evidencia que em São Paulo o debate doutrinário corria junto com uma atividade jornalística e pedagógica intensa. Carvalho (1989) mostra como a "Igreja positivista" desenvolveu ação jacobina no começo da República. Mesmo período em que, segundo Nachman (1972), "positivistas" atingiram cargos políticos de relevo.

7 No primeiro caso estão autores de obras sistemáticas, "obras filosóficas", como as capas das edições do século XX anunciam. Aí se classificam gente como Pereira Barreto, Tobias Barreto, Miranda Azevedo, Clóvis Beviláqua, Farias Brito, Sílvio Romero — não acidentalmente, eleitos para ingressar nas tipologias de Cruz Costa e de Paim. No segundo caso, os "políticos", há uma subdivisão conforme posições político-ideológicas: "liberais-democratas", como Joaquim Nabuco, André Rebouças, Tavares Bastos, e "autoritários", como Júlio de Castilhos, Anibal Falcão, Alberto Torres e Lauro Muller.

8 Os postos "intelectuais" eram ocupados por políticos e o teor da produção oriunda das faculdades e institutos era dirigido para o debate político (Adorno, 1988; Salgado Guimarães, 1988; Castro, 1995).

9 Todas as traduções das citações em língua estrangeira são minhas.

10 Os componentes do movimento foram definidos por bola de neve [É ISSO MESMO?], conforme sua participação no debate público, autoria de opúsculos e atuação em associações e eventos. Reconstruí uma biografia mínima, enfatizando a trajetória pública, para os 130 indivíduos identificados. Nomeei os seis microgrupos mais claramente delineados, de modo a enfatizar o cerne de suas reivindicações, como: liberais republicanos, novos liberais, positivistas abolicionistas da Corte e de Pernambuco; federalistas científicos do Rio Grande do Sul e de São Paulo. Uma pesquisa em profundidade foi feita para as lideranças de cada um dos grupos: Quintino Bocaiúva e Salvador de Mendonça; Joaquim Nabuco, Rui Barbosa e André Rebouças; Miguel Lemos e Teixeira Mendes; Anibal Falcão e Martins Jr.; Júlio de Castilhos e Assis Brasil; Alberto Sales e Pereira Barreto, respectivamente. Veja Alonso (2000, cap. 2).

11 A socialização escolar não lhes deu uma identidade comum, como acontecera à primeira leva de estadistas do Segundo Reinado (Carvalho, 1980), ou da Alemanha contemporânea (Ringer, 1983). A educação superior imperial falhou em homogeneizá-los — não houve alteração curricular significativa para acompanhar a mudança de perfil dos alunos (Haidar, 1972; Adorno, 1988; Alonso, 1998).

12 Ainda que essa alternativa traga o empecilho evidente de restringir por um meio estranho ao problema e, no caso da "geração 1870", tenha por custo adicional o bizarro de muitos de seus membros só passarem a se manifestar coletivamente no fim da década, ainda assim a idéia de geração é eficiente como técnica de circunscrição. Este critério permite excluir os muito jovens, que são meros aderentes do movimento. Este é o caso, por exemplo, de Alberto Torres, Manoel Bonfim, Euclides da Cunha e Nina Rodrigues, que praticamente só começaram sua atividade pública depois da queda do Império.

13 Esta subseção se baseia no inventário de cerca de 200 obras publicadas no Brasil entre 1870 e 1897. Foram excluídas obras literárias, de teoria literária e as que classifiquei como técnicas (teses de medicina, livros sobre técnicas de cultivo, manuais de engenharia e afins). O próximo passo foi a organização do material a partir dos parâmetros da conjuntura política, o que permitiu distinguir três ondas temáticas: (a) 1868-1878: a configuração de uma autocrítica do status quo imperial conforme o cânon do liberalismo imperial; (b) 1878-1888: a consolidação do movimento intelectual da geração 70; (c) 1889-1897: o memorialismo, a reconstituição da história política e intelectual do Império em termos doutrinários. Minha análise restringe-se ao segundo período.

14 O caráter de intervenção política destes escritos fica claro em vários títulos: A incorporação do proletariado escravo e o recente projeto do governo (1884), de Miguel Lemos; A República federal (1881), de Assis Brasil; Apontamentos para a solução do problema social no Brasil (1880), de Teixeira Mendes, Anibal Falcão e Teixeira de Souza; Os abolicionistas e a situação do país (1880), de Pereira Barreto; As três formas de organização republicana (1888), de Sílvio Romero; A República no Brasil (1889), de Silva Jardim.

15 Comparecem nomes agora obscuros: autores de artigos de jornais ou revistas de variedade, como a Revue des Deux Mondes; referências a parlamentares europeus, como ao inglês William Gladstone (1809-1898), quatro vezes primeiro-ministro e um verdadeiro símbolo do reformador responsável nas décadas finais do Império; a Camillo Benso di Cavour (1810-1861), líder do movimento de unificação da Itália; aos franceses da passagem da Monarquia de Julho à Terceira República; políticos profissionais como Adolphe Thiers, Leon Gambetta e Jules Ferry e políticos-intelectuais como Littré, Laffitte, Taine e Renan; aos abolicionistas ingleses e americanos; ao positivista chileno Lastarria.

16 Estes são os temas, por exemplo, de A questão social (1879), de Quintino Bocaiúva; O oportunismo e a revolução (1880) e A República federal (1881), de Assis Brasil; As soluções positivas da política brasileira (1880), de Pereira Barreto; Apontamentos para a solução do problema social no Brasil (1880), obra conjunta de Teixeira Mendes, Anibal Falcão e Teixeira de Souza; Trabalhadores asiáticos (1881), de Salvador de Mendonça; A política republicana (1882), de Alberto Sales; A República federal (1882), de Alcides Lima; Agricultura nacional — estudos econômicos (propaganda abolicionista e democrática) (1883), de André Rebouças; A fórmula da civilização brasileira (1883), de Anibal Falcão; A incorporação do proletariado escravo e o recente projeto do governo (1884), de Miguel Lemos; Processo da monarquia brasileira: necessidade da convocação de uma Constituinte (1885), de Anfrísio Fialho; O erro do imperador (1886), de Joaquim Nabuco; A pátria paulista (1887), de Alberto Sales; A escravidão, o clero e o abolicionismo (1887), de Anselmo da Fonseca; Salvação da pátria (1888), de Silva Jardim; Abolição da miséria (1888), de André Rebouças.

BIBLIOGRAFIA

RESUMOS / ABSTRACTS / RÉSUMÉS

CRÍTICA E CONTESTAÇÃO: O MOVIMENTO REFORMISTA DA GERAÇÃO 1870

Angela Alonso

Palavras-chave

Movimento intelectual; Geração 1870; Movimento reformista; Experiência social; Repertório.

O artigo analisa o movimento intelectual da geração 1870 do ponto de vista do processo político. Critica as interpretações do movimento que enfatizam a influência de doutrinas estrangeiras e a origem social de seus membros e argumenta que o sentido dos seus escritos deve ser buscado na conjuntura de crise do Império. Deste ângulo, apresenta-se como um movimento de contestação da ordem imperial formado por grupos socialmente heterogêneos, mas que partilhavam uma mesma experiência de marginalização política. Autores e teorias estrangeiras são parte do repertório político-intelectual do oitocentos ao qual o movimento recorreu em busca de elementos para gerar uma interpretação da sociedade brasileira, exprimir sua crítica às instituições, valores e formas de agir característicos do status quo imperial e propor projetos de reforma. Dessa forma, positivismo, darwinismo, spencerianismo, novo liberalismo compõem modalidades de um mesmo reformismo.

CRITICISM AND CONTESTATION: THE REFORMIST MOVEMENT OF THE 1870'S GENERATION

Angela Alonso

Key words

Intellectual movement; 1870's generation; Reformist movement; Social experience; Repertoire.

The article analyzes the intellectual movement of the 1870's generation from the perspective of the political process. It criticizes the interpretations of this movement which emphasize the influence of foreign doctrines and the social origin of its members, and argues that the meaning of their writings are to be found in the crisis context of the Empire. From this point of view, the author presents it as a movement in opposition to the imperial order and composed by socially heterogeneous groups who shared the same political marginality. Foreign authors and theories are considered part of the political and intellectual repertoire of the 1800s. The movement selected elements from this repertoire to build an interpretation of Brazilian society, to express its criticism of institutions, values, and typical modes of action of the imperial status quo and to propose projects for reform. Thus, positivism, Darwinism, Spencerianism, and new liberalism compose modalities of the same reformism.

CRITIQUE ET CONTESTATION: LE MOUVEMENT RÉFORMISTE DE LA GÉNÉRATION DE 1870

Angela Alonso

Mots-clés

Mouvement intellectuel; Génération 1870; Mouvement réformiste; Expérience sociale; Répertoire.

L'article analyse le mouvement intellectuel de la génération de 1970 du point de vue du processus politique. Les interprétations de ce mouvement qui mettent l'accent sur l'influence des doctrines étrangères et l'origine sociale de ses membres sont critiquées. L'article soutient que le sens des écrits issus de ce mouvement doit être recherché dans la conjoncture de la crise de l'Empire. De ce point de vue, il se présente comme un mouvement de contestation de l'ordre impérial formé par des groupes socialement hétérogènes, mais qui partageaient une même expérience de marginalité politique. Les auteurs et les théories étrangères font partie du répertoire politique et intellectuel du XIXe siècle, auxquels le movement à eu recours à la recherche d'éléments pour générer une interprétation de la société brésilienne; exprimer sa critique aux institutions, aux valeurs et aux formes d'agir caractéristiques du statu quo impérial; et proposer des projets de réforme. Positivisme, darwinisme, spencerisme et nouveau libéralisme composent, ainsi, diverses facettes d'un même réformisme.

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    Este artigo resume o argumento de minha tese de doutorado em Sociologia, defendida em maio de 2000 na FaculDade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP. Agradeço os comentários dos professores José Murilo de Carvalho, Élide Rugai Bastos, Eduardo Kugelmas e Sérgio Miceli, da banca examinadora, e especialmente ao meu orientador Brasílio Sallum Jr., pelo empenho destes cinco anos. Registro também meu reconhecimento ao GT de Pensamento Social Brasileiro da Anpocs, pela indicação para a publicação e pelas discussões de que meu trabalho muito se beneficiou. Agradeço ainda o parecerista anônimo da RBCS e a leitura cuidadosa de sua editora, Argelina Figueiredo. Sou grata especialmente a Fernando Limongi, pela interlocução e pela solidariedade.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Abr 2001
    • Data do Fascículo
      Out 2000
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