Acessibilidade / Reportar erro

A imputação e o crime de lavagem de capitais: um estudo crítico sobre a viabilidade da denúncia

The imputation and the crime of money laundering: a critical study on the viability of the accusation

Abstract

Este artigo propõe um estudo aprofundado da viabilidade da denúncia, com foco no crime de lavagem de capitais. Diante do caráter complexo das operações de lavagem, é possível visualizar os problemas decorrentes da descrição insuficiente da conduta e da falta de corroboração empírica da hipótese acusatória. O artigo, portanto, divide-se em dois temas principais: i) a importância da descrição do enunciado fático contido na denúncia e ii) a urgência na definição de um standard de prova, com critérios lógicos e objetivos, a viabilizar o início formal do processo. A partir do estudo crítico da doutrina nacional e estrangeira relacionada ao tema, além da análise de precedentes dos tribunais superiores, demonstra-se como deve ser descrito o enunciado fático contido na inicial e qual nível de suporte probatório (standard) confere legitimidade à atividade processual. A decisão de recebimento da denúncia constitui importante filtro contra acusações infundadas, e, assim, deve ser devidamente motivada pelo julgador. Nesse contexto, o trabalho apresenta, por fim, uma proposta de alteração legislativa capaz de garantir maior controle e racionalidade para a decisão de recebimento da denúncia, tornando a submissão do indivíduo ao processo criminal justa e legítima.

Palavras-chave
denúncia; fato processual; fato penal; standard de prova; lavagem de capitais

Abstract

This article seeks to deeply analyze the crime imputation, especially in cases of money laundering. Given the complex nature of money laundering operations, it is possible to visualize the problems related to the insufficient description of the criminal conduct and lack of empirical evidence for the accusation. Therefore, the article is divided into two main themes: i) the importance of describing the criminal conduct and ii) the urgency in defining a standard of proof with logical and objective criteria to establish the formal beginning of the process. From the critical study of the national and foreign doctrine related to the subject, in addition to the analysis of precedents from the superior courts, it is demonstrated how the factual statement contained in the criminal charge must be described and what level of evidence (standard of proof) confers legitimacy to the process. The judicial decision to receive the complaint is an important barrier against unfounded accusations, and, thus, it must be duly motivated by the judge. In this context, the article proposes a legislative change capable of guaranteeing greater control and rationality for that decision, so the individual’s submission to the criminal process can be fair and legitimate.

Keywords
complaint; procedural fact; criminal fact; standard of proof; money laundering

Introdução

O artigo propõe um estudo aprofundado da imputação criminal, de modo a destacar o cumprimento dos pressupostos básicos para o legítimo recebimento de uma denúncia. O interesse pelo tema surge de uma constatação cotidiana na advocacia criminal, em que são recorrentes denúncias excessivamente longas, mas, não raro, sem a devida vinculação fática da conduta ao tipo penal, ou ainda, sem a demonstração do lastro probatório mínimo, capaz de sujeitar o indivíduo ao processo criminal.

O artigo divide-se em dois temas principais: i) a descrição do enunciado fático contido na denúncia e ii) a definição de um standard de prova, com critérios lógicos e objetivos, a viabilizar o início formal do processo. Nesse contexto, o trabalho se orienta pelos seguintes questionamentos: 1) Qual a importância do enunciado fático contido na inicial? 2) Como este enunciado deve ser descrito, a fim de possibilitar o exercício do direito de defesa? 3) Qual a relevância da fixação de standards de prova ao longo da persecução penal? 4) Como garantir maior racionalidade da decisão de recebimento da denúncia?

Para responder a essas perguntas, realizou-se uma divisão em dois itens: o primeiro item contém considerações gerais sobre a descrição típica das condutas e a definição de standards de prova ao longo do processo; já o segundo item propõe um estudo do crime de lavagem de capitais como forma de observar o problema na prática.

É inegável o crescimento recente dos escândalos envolvendo lavagem de dinheiro. As operações de lavagem possuem natureza complexa e, por isso, demandam uma descrição rigorosa da conduta criminosa. É necessária, ainda, para o combate eficiente a este crime, uma elevação dos níveis de conhecimento produzido pela investigação preliminar. Ao contrário, o que se constata são imputações genéricas, destituídas de base empírica sólida, limitando-se o órgão acusador a repetir os termos da lei, descrição, sem dúvida, insuficiente a atender ao postulado do devido processo legal e à garantia do direito de defesa que lhe é consectário.

Em termos de limitação, optou-se por não adentrar nas discussões relativas ao conceito de justa causa para ação penal, bastando, para os fins deste artigo, identificar como o fato deve ser descrito na denúncia e qual nível de suporte probatório propicia o seu recebimento.

Por último, já nas considerações finais, apresenta-se uma proposta de alteração legislativa, capaz de garantir maior controle e mínimo padrão de racionalidade para a decisão de recebimento da denúncia, tornando a submissão do indivíduo ao processo criminal justa e legítima.

1. Considerações sobre a descrição típica das condutas e a definição de standards de prova ao longo do processo

1.1. A acusação e o exercício da defesa

É incontroverso que o processo penal consiste em fenômeno distinto do processo civil (LOPES JR, 2016LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016., p. 101), embora seja também inegável a influência de uma teoria geral (unitária) do processo2 2 Por todos, ver: JARDIM (1995, p. 27/31); e MARQUES (1998, p.104/105). aproximando ambos. No âmbito penal, para formulação de qualquer acusação, exige-se a comprovação da justa causa3 3 Não se desconhece a difícil conceituação do termo. Todavia, sustenta-se que “tentar conceituar genericamente a justa causa apenas sob um de seus diversos ângulos constitui, em nosso entendimento, o grande equívoco da doutrina, o qual tem colaborado para a considerável divergência reinante na matéria, com reflexos, inclusive, na jurisprudência”. Para os fins deste trabalho, portanto, mais do que uma definição concreta de justa causa, “faz-se imprescindível identificar quando a coação à liberdade jurídica é legítima, pois, caso contrário, a denúncia ou queixa não poderá ser recebida” (MOURA, 2001, p. 173-176). , contendo os elementos mínimos da prática de um delito. Configurada a justa causa a legitimar o exercício da ação penal, o processo opera na reconstrução histórica do fato4 4 Sobre a impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto sobre os fatos, destaca-se que, no campo processual, “situamo-nos plenamente no espaço do raciocínio probabilístico”, pois mesmo que se considere que “não é possível verificar uma hipótese, isso não implica que não possamos preferir racionalmente uma hipótese em relação à outra com base na maior corroboração da primeira”. (FERRER BELTRÁN, 2021, p. 135). supostamente criminoso, momento em que se torna essencial a descrição típica da conduta que compõe a acusação.

Não basta o cumprimento de critérios meramente formais. É mediante a acusação que se efetiva a jurisdição, atendendo ao axioma garantista nullum judicium sine accusatione (não há processo sem acusação) (FERRAJOILI, 2010FERRAJOILI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010., p. 91). Mas quando se inicia esta acusação? A partir de qual momento é possível falar em sua existência? Tais questões preliminares ajudam-nos a introduzir o tema e orientam as reflexões para a pesquisa.

Evidente que o estudo sobre a viabilidade da denúncia deve adotar a interpretação do texto constitucional como ponto de partida. A propósito, a Constituição da República não deixa margens para incompreensões quando assegura em seu artigo 5º, inciso LV, a garantia do contraditório e da ampla defesa aos “acusados em geral”.5 5 “Art. 5º. (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.” Ao utilizar esta expressão, o legislador constitucional atrelou o contraditório não só aos processos criminais, mas a qualquer procedimento de natureza acusatória, em oposição à supressão do direito de defesa vivenciado nos anos de chumbo.6 6 Para uma leitura das violações experimentadas pelos defensores dos presos políticos da ditadura civil-militar de 1964, ver: DOS SANTOS (2011, p. 243/250). Ampliou-se, portanto, o conceito de acusação, com vistas a garantir maior proteção ao indivíduo.

Garantidos, então, ao sujeito a ampla defesa e o contraditório em qualquer procedimento de índole acusatória, não se justifica a ideia de exclusividade da acusação após o recebimento da denúncia. É dizer: sempre que existir alguém a suportar uma imputação (acusado), devem-se respeitar as regras que compõem o contraditório e a ampla defesa, como forma de emprestar legitimidade ética e jurídica aos atos processuais. 7 7 No mesmo sentido, em relação à garantia do direito de defesa, Julio Maier sustenta: “ella no se refiere, exclusivamente, al poder penal del Estado. Al contrario, la formula es amplia y también compreende al procedimento civil, laboral o administrativo, pues protege todo atributo de la persona (vida, libertad, patrimônio, etc.) o los derechos que pudieran corresponderle, susceptibles de ser intervenidos o menoscabados por uma decisión estatal” (MAIER, 1999, p. 541).

No contexto atual de combate à criminalidade organizada na forma dos megaprocessos,8 8 Como se sabe, Luigi Ferrajoili foi o responsável por identificar e descrever o fenômeno dos maxiprocessos, demonstrando que estes se manifestam no interior de um subsistema penal de emergência. A propósito, ver: FERRAJOLI (2010, p. 649/672). o respeito ao direito de defesa durante a fase de investigação9 9 Esse, aliás, tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao assentar que “no âmbito dos inquéritos policiais e inquéritos judiciais originários, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem caminhado no sentido de garantir, a um só tempo, a incolumidade do direito constitucional de defesa do investigado ou indiciado na regular apuração de fatos” (STF, ADPF n° 444, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 22/05/2019). adquire ainda maior relevância. Isto porque, nesse modelo agigantado de persecução penal, ocorre um deslocamento do eixo informativo do processo para a investigação preliminar,10 10 Para um estudo aprofundado do fenômeno, ver: SANTORO (2020). a qual se reveste de um caráter altamente aflitivo e invasivo, a partir da adoção dos “métodos ocultos de investigação” (PRADO, 2014PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014., p. 59/62). A rigor, a própria natureza e estrutura organizacional das empresas, compostas por diversos setores operacionais, oferece terreno amplo e complexo para a atividade investigativa policial (MALAN, 2016MALAN, Diogo. Notas sobre a investigação e prova da criminalidade econômico-financeira organizada. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, volume 2, 2016 http://dx.doi.org/10.22197/rbdpp.v2i1.22
https://doi.org/10.22197/rbdpp.v2i1.22...
, p. 219), o que se traduz, na prática, em uma crescente intromissão do poder penal na vida privada durante os atos de investigação.

1.2. O conteúdo descritivo da imputação

Após os primeiros comentários, importa demonstrar como é composta a descrição típica da conduta dita criminosa. A teoria da consubstanciação, de acordo com a qual o acusado se defende dos fatos contidos na denúncia e não de sua classificação jurídica, constitui manifestação frequente na jurisprudência.11 11 Nesse sentido, ver: STF, HC 90686, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 11/05/2007; Inq 4093, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso. DJ 18/05/2016; RHC 117694, Segunda Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 27/09/2013, entre outros. Todavia, em geral, observa-se uma simples repetição da teoria, sem aprofundar as particularidades da reação defensiva e da descrição do conteúdo fático apresentado na inicial acusatória. A imputação, em essência, representa o juízo de atribuição (ônus do órgão acusador) que vincula o sujeito passivo (imputado) à prática do ato supostamente criminoso (FERNANDES, 2002FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 102/103). Neste ensaio, interessa justamente explicitar como se estabelece a vinculação do sujeito ao ato criminoso por meio da descrição de um fato.

O conceito de fato ultrapassa a ciência do direito, possibilitando as mais diversas conotações. O conceito processual é nitidamente distinto da noção penalística (BADARÓ, 2019BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença. 4ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019, p. 104), sendo tal diferenciação indispensável para delinear o conteúdo insculpido na peça acusatória e como este deve ser descrito, a fim de possibilitar o regular exercício do contraditório e da ampla defesa. A base fática sobre a qual se estrutura toda investigação e toda instrução processual opera ainda como limite ao arbítrio e à opressão estatal, pois delimita o alcance da sentença penal e, com isso, evita surpresas para quem se defende (MAIER, 1999MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. Tomo I. Fundamentos. Buenos Aires: Editores del Puerto s.r.l. 2ª edición, 1999., p. 568).

O fato na concepção do direito penal deriva da previsão da norma em abstrato, isto é, uma situação hipotética descrita em um tipo penal. Por outro lado, o fato processual penal é um acontecimento histórico concreto (BADARÓ, 2019BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019., p. 105). Neste último, trata-se de um fato naturalístico que se diz penalmente relevante. Consiste no recorte, destacado da realidade, de um evento histórico atribuído ao acusado, e sobre o qual incidirá a apreciação judicial para comprovar sua efetiva ocorrência e sua relevância jurídico-penal.

Em síntese: se, para o direito penal importa o fato, enquanto exata descrição hipotética e abstrata da norma, para o processo penal, interessa o real e concreto acontecimento histórico, praticado pelo sujeito em todas as suas circunstâncias (POZZER, 2001POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro. São Paulo: IBCCRIM, 2001., p. 69). Essa distinção, embora relevante, é ainda insuficiente para definir com clareza o conteúdo descritivo da inicial acusatória. Afinal, a denúncia narra um fato concreto (fato processual penal) e, ao fim, atribui a este acontecimento uma qualificação jurídica, conforme o disposto na norma em abstrato (fato penal).

O regular exercício do contraditório e da ampla defesa exige uma imputação12 12 De maneira didática, “a imputação, contudo, não é só jurídica – proposta de adequação tipológica. É, também, fática, ou mais precisamente, a versão de um fato que se atribui a alguém. Envolve, portanto, a narração de um fato, a atribuição a alguém e a qualificação jurídico-penal deste fato” (ZILLI, 2016, p. 152). determinada em todas as suas circunstâncias. Não se discute a dificuldade, inerente aos processos criminais, de se reconstruir fatos passados aos quais não se pode ter acesso de forma direta (TARANILLA, 2012TARANILLA, RAQUEL. La justicia narrante. Um estúdio sobre el discurso de los hechos em el proceso penal. Thomson Reuters, 2012., p. 46/47). Contudo, a restringir tal dificuldade, propõe-se uma definição concreta da narrativa acusatória contida na exordial, de modo que o conhecimento integral da imputação permita ao sujeito reagir de forma efetiva.13 13 Em relação à descrição da conduta criminosa, posicionou-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Al determinar el alcance de las garantías contenidas en el artículo 8.2 de la Convención, la Corte debe considerar el papel de la “acusación” en el debido proceso penal vis-à-vis el derecho de defensa. La descripción material de la conducta imputada contiene los datos fácticos recogidos en la acusación, que constituyen la referencia indispensable para el ejercicio de la defensa del imputado y la consecuente consideración del juzgador en la sentencia. De ahí que el imputado tenga derecho a conocer, a través de una descripción clara, detallada y precisa, los hechos que se le imputan”. CIDH, Fermín Ramírez vs. Guatemala, julgado em 20/06/2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_126_esp.pdf. Acesso em: 05/03/2022 Logo, o conteúdo descritivo da imputação deve corresponder ao elemento de vinculação entre o fato processual (evento histórico determinado) e o fato penal (norma penal em abstrato). Afinal, o fato narrado na denúncia só tem valor quando ligado à norma incriminadora (FERNANDES, 2002FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 232). 14 14 No mesmo sentido: “Um fato é juridicamente relevante (no jargão estadunidense: material) quando corresponde ao tipo de fato definido pela regra jurídica (escrita ou fundada em precedentes) considerada como possível base jurídica para a decisão” (TARUFFO, 2016, p. 61).

A relevância do conteúdo descritivo da imputação torna-se ainda maior com a implementação do juiz de garantias. Isso porque, como se sabe, a competência do juiz de garantias cessa com o recebimento da denúncia (artigo 3º-C, caput da Lei nº. 13.964/2019), ficando os autos da investigação acautelados na secretaria do juízo (§3º). Com efeito, o juiz da instrução, preservando sua originalidade cognitiva, não terá acesso aos atos de investigação, mas tão somente ao enunciado fático descrito na inicial.

1.3. A fixação de standards de prova ao longo do processo

Até o momento vimos que os postulados do contraditório e da ampla defesa pressupõem a existência de uma acusação, ainda que esta não tenha se constituído formalmente por meio de uma denúncia, e que o conteúdo descritivo da imputação consiste no vínculo entre o fato naturalístico (processual) e o fato em abstrato previsto na norma (penal). Entretanto, se é certo que a descrição da conduta penalmente relevante deve ter como base as premissas fixadas, para que se tenha uma denúncia hígida, é necessário um determinado grau de “prova”15 15 A palavra prova em diversas situações será utilizada entre aspas, a evidenciar que “a presença ou ausência de contraditório é o que distingue, respectivamente, ato de prova de ato de investigação” (BADARÓ, 2019, p. 197). que propicie o seu recebimento.

Nessa temática, algumas considerações teóricas são indispensáveis. De início, destaca-se que a “exposição do fato criminoso com todas as suas circunstâncias 16 16 Artigo 41 do Código de Processo Penal. No mesmo sentido, artigo 8.2., b da Convenção Americana de Direitos Humanos. não significa que se exija do órgão acusador certeza quanto à relevância penal da conduta. Nem poderia ser diferente, já que o processo é o mecanismo apto a produzir conhecimento seguro17 17 A expressão refere-se ao ingresso da epistemologia no processo, não apenas como epistemologia pura, mas como epistemologia aplicada, ou seja, uma epistemologia judiciária. Ver: BADARÓ (2018, p. 53). a respeito do caso penal, comprovando ou não a veracidade das proposições representativas do fato (GOMES FILHO, 2005GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE DE MORAES, Maurício (Coord.). Estudos em homenagem á professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ. 2005., p. 317). O devido processo legal-constitucional caracteriza-se, portanto, como um processo originalmente fundado na incerteza, que encontra validade formal no respeito ao contraditório e à ampla defesa, e que reclama a produção de certeza como meta, em harmonia com preceitos garantidores da dignidade da pessoa (PRADO, 2014PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014., p. 17).

A propósito, pergunta-se: se o devido processo legal-constitucional tem a certeza (da prática de uma infração penal) como meta, qual o grau de certeza exigido para o recebimento de uma denúncia? Em outras palavras, qual nível de fundamentação e corroboração da hipótese acusatória autoriza o início formal do processo?

Visando a atender tais questionamentos, é preciso estabelecer um limite a partir do qual se aceita determinada premissa como provada. Isto significa atribuir um grau mínimo de confiança e de credibilidade ao elemento probatório trazido aos autos, essencial para considerar determinado fato provado. Esse limite, o standard de prova, porém, não deve ser o mesmo para todas as decisões durante a persecução penal e sua fixação exige que se atenda a determinadas valorações da política criminal (FERRER BELTRÁN, 2007FERRER BELTRÁN, Jordi. Los estândares de prueba em el processo penal español, 2007., p. 2).

No Brasil, a ausência de previsão legislativa ou jurisprudencial18 18 Em verdade, há exemplos na jurisprudência da utilização do standard para condenação “prova além da dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt). Contudo, não raro, este é importado em descompasso com o que prevê a matriz teórica norte-americana, sendo utilizado não para sentença condenatória, mas sim para o recebimento da denúncia. Ver, a propósito: STF, Inq 2036/PA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 22/10/2004. Em outros casos, porém, o standard anglo-saxão é empregado de forma coerente com sua formulação original, isto é, constituindo o nível mais exigente de prova que, se superado, enseja uma sentença condenatória. Nesse sentido, ver: STF, AP 676, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 06/02/2018. A falta de harmonia leva a uma visível insegurança, deixando clara a urgência na definição dos standards de prova, de modo a distribuir os riscos de erro e aumentar a qualidade epistemológica das decisões tomadas ao longo do processo. semelhante leva a uma indefinição quanto ao grau de “prova” exigido para adotar determinadas medidas - por exemplo, o recebimento da denúncia –, o que, não raro, reflete-se em uma postura decisionista do julgador, típica dos projetos autoritários, desvinculados da delimitação do poder estatal. 19 19 Em relação ao decisionismo, Juarez Tavares ensina: “Quando a base empírica dos elementos do delito é desconstruída e substituída por juízos de valor emitidos apenas de conformidade com o poder normativo, a ordem jurídica deixa de ser democrática e passa a ser a coletânea de enunciados jurisprudenciais, sem qualquer conteúdo crítico, com consequências desastrosas para a doutrina penal, que se transforma em seu mero repetidor” (TAVARES, 2018, p. 106).

Um argumento comum que contribui para este quadro de incerteza é o de que eventuais lacunas na denúncia serão supridas pela instrução processual.20 20 Na irretocável lição do Ministro Celso de Mello: “não tem sentido, sob pena de grave transgressão aos postulados constitucionais, permitir-se que a discriminação da conduta de cada denunciado venha a constituir objeto de prova a ser feita ao longo do procedimento penal.” STF, HC 86.879-7, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/02/2006. A fundamentação é equivocada, já que a prova produzida ao longo da instrução deve necessariamente ter como pressuposto o enunciado fático da denúncia. A falha na produção deste enunciado não será suprida pela instrução, pois, neste caso, a instrução perpetuará uma falha irreparável.21 21 Não menos desarrazoadas são as decisões de recebimento da denúncia fundamentadas no imaginário princípio do in dubio pro societatis (STF, HC 93341, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 06/02/2009). O argumento de que o interesse da sociedade reside na elucidação do caso pelo prosseguimento do processo pode até ser sedutor dentro de uma perspectiva utilitarista, porém, desconsidera o fim máximo de proteção do indivíduo inerente aos Estados de Direito, nos quais o interesse da sociedade reside justamente na impossibilidade de se submeter a uma acusação infundada. Na mesma linha, “a incompreensão a respeito da distribuição da carga probatória nestas fases processuais e o grau de convicção pelo juízo diante do estado inicial de incerteza levam à infeliz confusão a respeito do conteúdo da presunção de inocência no processo, abrindo margem para a criação da estranha figura do “princípio” in dubio pro societate” (LUCCHESI, 2019, p. 169). Além da nítida possibilidade de violação do princípio da correlação entre acusação e sentença, posto que preencher as lacunas da imputação com a prova produzida em contraditório possibilita que a sentença vá além ou contrarie a descrição dos fatos apresentada na inicial.

O processo penal brasileiro adota um sistema escalonado (LOPES JR, 2016LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica. 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016., p. 112), o que se reflete no status libertatis do acusado. Cada etapa da marcha processual proporciona um juízo de valor a respeito do cometimento ou não do crime investigado. A lógica reside em exigir maior grau de corroboração (standard mais elevado) das hipóteses fáticas com consequências mais gravosas para o indivíduo (MATIDA; VIEIRA, 2019MATIDA, Janaina; VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda a dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 156, p. 221-248, jun./2019., p. 11). Assim, o nível de certeza para cada medida adotada no curso do processo se modifica, sendo certo que a sentença penal condenatória exige o nível máximo de certeza, enquanto o recebimento da denúncia demanda um nível mais baixo, em relação à ocorrência do crime e sua autoria. 22 22 É indispensável, portanto, que o grau de exigência probatória seja distinto para cada fase do processo. Afinal, “de otro modo, las decisiones intermedias no serían más que uma anticipación de la decisión final, haciendo inútil todo el procedimento subsiguiente” (FERRER BELTRÁN, 2018, p. 415).

1.4. O controle racional da decisão de recebimento da denúncia

A fixação de um standard de prova, como se viu, deriva da política criminal.23 23 Não se desconsidera a dificuldade inerente à construção de um standard de prova. Alguns países, mesmo alheios à tradição do common law, quando procuraram legislar sobre o tema, adotaram a terminologia norte-americana do beyond a reasonable doubt. Sobre a possibilidade de adoção do beyond a reasonable doubt no ordenamento brasileiro, a partir de critérios lógicos e racionais, ver: VASCONCELLOS (2020). Em oposição, para uma crítica à importação de tal modelo no Brasil, ver: BADARÓ (2019, p. 253/254) e MATIDA; VIEIRA (2019). Ainda que não haja a definição normativa de critérios de suficiência probatória, é inequívoca a escolha constitucional pela preservação do estado de inocência, o que se reflete na distribuição da carga da prova, verificada ao longo da instrução e não apenas no julgamento de mérito (LUCCHESI, 2019LUCCHESI, Guilherme B. O necessário desenvolvimento de standards probatórios compatíveis com o direito processual penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 156, p. 165-188, jun./2019., p. 179). No recebimento da denúncia, portanto, assim como em toda a marcha processual, o standard probatório deve ter como base a presunção de inocência, sendo a dúvida quanto à legitimidade da persecução criminal resolvida por meio do único critério objetivo de solução da incerteza presente no processo penal brasileiro, qual seja: o in dubio pro reo.24 24 Assim, “em todos os instantes de dúvida fática judicial o “in dubio pro reo” deverá ser obedecido como manifestação da presunção de inocência” (ZANOIDE DE MORAES, 2010, p. 418).

Este é um importante critério jurídico de decisão que dá ao magistrado a possibilidade de decidir mesmo diante de uma lacuna cognitiva (GUZMÁN, 2020GUZMÁN, Nicolás. O papel da verdade no processo penal e seu impacto na dinâmica probatória. In: Fundamentos de direito Probatório em matéria penal. AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel (org.). São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020., p. 56/57), mas que não se confunde com o standard de prova, já que o in dubio pro reo não estabelece quando pode ser superado esse estado de dúvida (VASCONCELLOS, 2020VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, v. 16, n. 2, maio/ago. 2020, e1961. https://doi.org/10.1590/2317-6172201961
https://doi.org/10.1590/2317-6172201961...
, p. 7). Embora a doutrina tenha se dedicado mais recentemente a debater a fixação de um standard de prova adequado à condenação, neste ensaio, interessa refletir sobre o nível de corroboração suficiente para o recebimento da denúncia.

A decisão que dá início formal ao processo reclama, por imposição lógica e constitucional, sua devida motivação.25 25 Art. 93, IX da CRFB e, reforçando ainda mais a necessidade de motivação das decisões judiciais, a Lei 13.964/2019 introduziu no CPP o art. 315 § 2º. Para uma análise da resposta (inadequada) do Superior Tribunal de Justiça à exigência constitucional de motivação no juízo de admissibilidade da denúncia, ver: ANDRADE; SANTIAGO; CAMINHA (2021). Não se trata de mero despacho, mas sim de uma mudança no status processual do acusado. A rigor, com a força hipertrofiada da investigação preliminar, promove-se muitas vezes uma verdadeira disfuncionalidade no processo penal, fazendo o próprio resultado do julgamento se diluir frente ao impacto estigmatizante causado pelos primeiros passos da ação penal (ZILLI, 2016ZILLI, Marcos. O povo contra...As condições da ação penal condenatória. Velhos problemas. Novas ideias. Cadernos Jurídicos. São Paulo, n. 44, p.147-162, jul.-set. 2016., p. 148/149). A motivação consiste, na verdade, no mais significativo instrumento jurídico de racionalização da função judicial, operando não como uma exigência técnica da decisão, mas, sobretudo, como fundamento de legitimidade da atuação estatal (GASCÓN ABELLÁN, 2010GASCÓN ABELLÁN, Maria. Los hechos en el derecho. Bases argumentales de la prueba. 3ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2010., p. 170/171).

O objetivo central da fixação de standards de prova ao longo do processo reside justamente na possibilidade de exercer um controle intersubjetivo26 26 Nesse ponto, destaca-se que “nos ordenamentos de civil law, por outro lado, o controle da racionalidade da decisão se realizaria ex post mediante o controle da motivação” (FERRER BELTRÁN, 2021, p. 66). dessas decisões, de modo a afastar o subjetivismo judicial e aumentar a qualidade epistemológica das decisões não terminativas. O recebimento da denúncia constitui verdadeiro ato decisório, com graves repercussões para esfera pessoal. Logo, como forma de garantir coerência e legitimidade a esse ato, é importante uma releitura do conceito de justa causa,27 27 Em razão das limitações de espaço, optou-se, neste artigo, por não aprofundar as discussões relativas ao conceito de justa causa para ação penal, bastando reforçar que “se o que está em análise é uma “justa” causa para a existência de uma “ação penal”, nada mais certeiro do que identificar no instituto um mecanismo para um bloqueio crítico de demandas sem “justificativa” ou para as quais não haja um critério de “justiça” em sua existência ou prosseguimento” (DIVAN, 2015, p. 483). estabelecendo-se critérios objetivos a partir dos quais é possível constatar a “prova da materialidade e os indícios suficientes de autoria”. 28 28 Embora existam opiniões divergentes na doutrina, essa é a posição que concordamos no sentido de que “não há justa causa para a ação penal se não se tem certeza da ocorrência de um crime. Sem a certeza do crime a ação penal seria injusta e desnecessária” (BADARÓ, 2013. p. 411/412).

2. Estudo do crime de lavagem de capitais

2.1. O combate à lavagem de dinheiro e a estrutura típica do delito

No segundo item, o objetivo é aprofundar a análise da questão a partir do estudo do crime de lavagem de capitais. A natureza complexa deste tipo penal e as altas penas cominadas demandam rigor técnico na descrição da conduta e na demonstração da justa causa, a fim de possibilitar o regular exercício do direito de defesa.29 29 Nessa linha, constata-se que “o crime de lavagem de dinheiro, ao visar ocultar, dissimular a origem ilícita de dinheiro, bem ou valor, é praticado muitas vezes, a partir de muitas ações, porque quanto mais ações, mais difícil a persecução e mais difícil se chegar à origem do bem”. Por conseguinte, “em nome da persecução penal e da sua urgência (seja pelo caráter sociológico da noção de risco seja pela celeridade processual), a denúncia passa a ser oferecida mesmo sem elementos suficientes para o exercício de defesa” (BONACCORSI, 2017. p. 240). A relevância do direito de defesa, nesse contexto, eleva-o à condição de garantia ao redor da qual todo o processo gravita (FERNANDES, 2000FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000., p. 254), superando a concepção de defesa como mero direito subjetivo do acusado.

Com base no exposto até aqui, no crime de lavagem, não basta que o acusador descreva a conduta praticada pelo agente, mas também é necessário que a peça inaugural demonstre, com menor grau de corroboração, como a conduta foi capaz de “ocultar ou dissimular a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes, direta ou indiretamente, de infração penal”.30 30 Artigo 1º, caput da Lei 9.613/98. De igual forma, não é suficiente que a acusação repita os elementos normativos do tipo, sem especificar como estes se manifestaram no plano da realidade, pois, neste caso, haveria a descrição do fato penal, sem individualizar a atuação dos sujeitos, descrição insuficiente para oportunizar o legítimo exercício do direito de defesa e a consequente realização da jurisdição. 31 31 Remarque-se, a propósito, que a garantia do direito de defesa supera os limites de uma ótica subjetiva, que a constitui unicamente como direito do acusado. Aqui, “adquire relevância o perfil objetivo da defesa, como ofício essencialmente social: defesa, portanto, como condição de regularidade do procedimento, na ótica do interesse público à atuação do contraditório, defesa, em última análise, legitimante da própria jurisdição” (FERNANDES, 2000, p. 253/254).

No cenário internacional, o combate à lavagem de dinheiro ganhou força a partir da década de 80, com o crescimento e a sofisticação do narcotráfico. Percebeu-se, na época, a relevância de enfrentar o poderio dessas organizações por meio da identificação e do bloqueio de seus fluxos financeiros. A partir de então, foram aprovadas diversas convenções sobre o tema – Convenção de Viena (1988), Convenção de Palermo (2000) e Convenção de Mérida (2003), além da criação do Grupo de Ação Financeira contra Lavagem de Dinheiro e Financiamento ao Terrorismo (1989) –, com o fim de impedir que esses grupos reciclassem o dinheiro de origem criminosa.

No ordenamento brasileiro, a Lei 12.683/2012, ao alterar diversos dispositivos da Lei 9.613/98, representou importante marco no combate à lavagem de dinheiro. A principal mudança foi a extinção do rol de crimes antecedentes, o qual era taxativo (legislação de segunda geração). Hoje, no Brasil, qualquer infração penal pode ser considerada antecedente para fins de lavagem32 32 Questão relevante diz respeito à violação do princípio da proporcionalidade ao se permitir que uma contravenção penal constitua infração penal antecedente para fins de lavagem. Ver: TAVARES; MARTINS (2020. p. 132/133). (legislação de terceira geração).33 33 Sobre as gerações legislativas do crime de lavagem, ver: MACHADO (2015, p. 34/43). Para tanto, basta que a peça acusatória aponte indícios de uma infração penal antecedente que gerou recursos, sendo dispensável a demonstração, de antes da reforma legislativa,34 34 Nesse sentido, “tendo o crime sido praticado antes da alteração legislativa [Lei 12.683/2012], a denúncia teve o cuidado de imputar ao paciente a conduta conforme previsão legal à época dos fatos”. STJ, HC 276.245/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/06/2017. de que tal infração constituiu alguma das puníveis no antigo rol de crimes antecedentes.

O crime de lavagem de capitais pressupõe a prática de uma infração penal antecedente, da qual se extraem bens, direitos ou valores,35 35 “Com a inclusão de direitos e valores, o tipo penal da lavagem diferencia-se da receptação (art. 180 CP), constituindo um tipo complementar a esta” (TAVARES; MARTINS, 2020, p. 112). os quais serão introduzidos na economia formal, como forma de ocultar/dissimular sua origem ilícita. Afinal, se o dinheiro não é sujo, não se cogita a possibilidade de lavá-lo. O injusto possui, então, uma acessoriedade material (PITOMBO, 2003PITOMBO, Antônio Sergio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003., p. 109/110) em relação a um crime que já ocorreu e já produziu seus efeitos – obrigatoriamente financeiros. Nesse ponto, surge o primeiro elemento constitutivo do crime de lavagem de capitais: o delito antecedente.

Embora não seja necessário um processo autônomo referente ao crime antecedente,36 36 Artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/98. será indispensável a certeza de sua ocorrência e de que tal conduta rendeu produto financeiro, capaz de ser ocultado, dissimulado e, posteriormente, reinserido na economia, dando aparência de licitude. Assim, os elementos concretos que caracterizam a infração antecedente devem ser descritos com todas as suas circunstâncias (BADARÓ; BOTTINI, 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 324).

O segundo componente essencial do crime de lavagem de capitais traduz-se no núcleo da ação típica (na modalidade do art. 1º, caput da Lei nº. 9.613/98)37 37 É certo que a Lei nº. 9.613/98 prevê outras formas de execução para o crime de lavagem de capitais, a saber: conversão em ativos lícitos (art. 1º, § 1º, I); condutas assemelhadas à receptação (art. 1º, § 1º, II); superfaturamento/subfaturamento de importação e exportação (art. 1º, § 1º, III); utilização de valores espúrios em atividade econômica ou financeira (art. 1º, § 2º, I) e participação em grupo dirigido à prática de lavagem (art. 1º, § 2º, II). Contudo, para os fins deste trabalho, limita-se o estudo ao tipo legal previsto no caput, pois, além de ser o mais corriqueiro, dentro de uma interpretação sistemática do texto normativo, este necessariamente se harmoniza com os outros dispositivos. , composto pelos verbos ocultar e dissimular. Aqui, vale recordar que uma imputação hígida demanda mais do que a mera repetição dos termos da lei (BADARÓ; BOTTINI, 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 323), pois estes se referem ao fato penal. É crucial que a acusação demonstre como tais ações típicas se manifestaram no plano da realidade (fato processual penal), permitindo a vinculação do fato processual ao fato penal. Delimita-se, desta forma, o enunciado fático (objeto de prova) que será refutado ao longo do processo pela defesa técnica.

O terceiro elemento que compõe a estrutura básica do delito em estudo consiste na relação de causalidade entre o crime antecedente e as ações de ocultação e de dissimulação. Evidente que a condenação pelo ilícito demanda que o conhecimento produzido dialeticamente durante o processo comprove não só a existência de uma infração penal antecedente, como também o nexo de causalidade entre os valores auferidos ilicitamente e as ações de ocultação/dissimulação. Na prática, definir esta relação não é tarefa fácil, já que, em regra, é difícil diferenciar precisamente os valores ilícitos dos valores lícitos.38 38 Questão especialmente complexa no crime de lavagem refere-se à mescla do capital ilícito com o lícito. Para uma breve análise das teorias acerca do tema, ver: BADARÓ; BOTTINI (2016, p. 111/115) e TAVARES; MARTINS (2020, p. 114/116). Todavia, a dificuldade no terreno da prova, marcante nos delitos econômicos, recomenda, com ainda maior razão, a preservação de um modelo ideal de processo concebido como entidade epistêmica (PRADO, 2015PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014., Introdução), apto a sedimentar as balizas do sistema acusatório, elevando os níveis de conhecimento produzido por meio do contraditório.

O último componente da conduta típica é o dolo direcionado à ocultação e dissimulação dos valores de origem criminosa. O delito é necessariamente doloso, não havendo hipótese de responsabilização por culpa.39 39 Há, no entanto, discussão doutrinária a respeito da aplicação do dolo eventual e da teoria da cegueira deliberada. Sobre o tema, ver: LUCCHESI (2018). A rigor, deve haver por parte do sujeito ativo a consciência da origem ilícita dos valores,40 40 De igual forma, no ordenamento espanhol, “el sujeto que blanquea (art. 301.2) o pretende blanquear (art. 301.1) lo ha de hacer “sabiendo” que el origen de los bienes es delictivo. No para ahí el dolo: el sujeto activo debe saber eso y debe saber también que oculta o encubre ese origen” (MARTIN et al. 2018, p. 515). além da intenção voltada à prática das ações contidas no núcleo do tipo.

2.2. O standard de prova e a denúncia na Lei nº. 9.613/98

Com relação ao exercício da ação penal, o artigo 2º, §1º da Lei de Lavagem41 41 “Art. 2º (...) § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente”. estabelece o conteúdo específico da justa causa para este delito. A primeira parte do dispositivo dispõe serem necessários indícios da infração antecedente que gerou recursos para legitimar o exercício da ação pelo órgão ministerial. O termo “indícios” não se refere à prova indireta. Neste caso, “indícios” representa uma prova mais tênue (BADARÓ; BOTTINI 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 317).42 42 Em igual sentido, “a palavra ‘indício’ usada na Lei de Lavagem representa uma prova dotada de eficácia persuasiva atenuada (prova semiplena), não sendo apta, por si só, a estabelecer a verdade de um fato, ou seja, no momento do recebimento da denúncia, é necessário um início de prova que indique a probabilidade de que os bens, direitos ou valores ocultados sejam provenientes, direta ou indiretamente, de um dos crimes antecedentes”. STF, HC 93368, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011. Por relevante, destaca-se, ainda, que “não é possível confundir-se o indício – sempre um dado objetivo, em qualquer das acepções acima referidas – com a simples suspeita, que não passa de um estado de ânimo – fenômeno subjetivo – que pode até possuir um valor heurístico, orientado a pesquisa sobre os fatos, mas que não tem aptidão para fundar o convencimento judicial” (GOMES FILHO, 2005, p. 311). Significa, na linha preconizada por este artigo, que se admite um rebaixamento do standard de prova para oferecimento da inicial acusatória, o que é natural, já que a certeza (em tese) só pode ser alcançada sob o crivo do contraditório judicial. Assim, justifica-se, em um primeiro momento, um mero juízo de probabilidade e não de certeza no que se refere ao delito antecedente (BADARÓ; BOTTINI, 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 318/319).

Remarque-se que os “indícios suficientes da existência da infração penal antecedente” relacionam-se tão somente com o nível de corroboração da tese acusatória para o oferecimento de denúncia, “devendo ser outro o comportamento em relação a eventual juízo condenatório” (Exposição de Motivos da Lei de Lavagem, item 61). O standard, a despeito de certa vagueza semântica,43 43 É natural alguma margem de vagueza na formulação de um standard probatório. Nestes casos, como se viu, “faz-se necessária uma regra de segunda ordem, que estabeleça o que deve ser realizado no caso de dúvida sobre a satisfação do standard. E é aqui onde resultaria aplicável a presunção de inocência como in dubio pro reo” (FERRER BELTRÁN, 2018, p. 175). estabelece a justa causa que possibilita o início de um processo de natureza criminal.

A segunda parte do dispositivo, por sua vez, indica ser desnecessária a constatação da autoria do delito antecedente para a denúncia por crime de lavagem de capitais. Logo, não é preciso aferir a culpabilidade quanto à infração antecedente – no que tange ao delito acessório, o de lavagem, o elemento subjetivo, todavia, permanece indispensável.

A justa causa para oferecimento de denúncia por crime de lavagem exige, pois, “indícios suficientes” da prática da lavagem e do crime antecedente que gerou recursos, configurando uma “justa causa duplicada.44 44 STJ, RHC 106.107/BA. Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/07/2019. Deste modo, é necessária a demonstração não apenas da forma de execução do branqueamento de capitais (com a caracterização de sua estrutura típica), mas também do lastro probatório mínimo a garantir a existência de bens, direitos e valores provenientes da infração penal antecedente.

Melhor entendimento, entretanto, sustenta que não há motivo justo para sujeitar um indivíduo às mazelas de um processo criminal45 45 A deflagração de uma ação penal coloca em risco a liberdade do indivíduo e inicia um violento processo de estigmatização, pois “não se consegue afastar a imagem negativa formada em torno da pessoa acusada pelo simples fato da instauração do processo, imagem que cresce e se propaga pelos meios de comunicação” (FERNANDES, 2002, p. 29). sem que haja certeza ao menos da existência de um fato contrário à ordem jurídica.46 46 Nesse sentido, “a ação somente poderá ser promovida se houver prova do fato e, pelo menos, suspeita de autoria” (TORNAGHI, 1988, p. 41). Se, após toda a investigação direcionada a colher elementos informativos aptos a corroborar a hipótese acusatória, não se tem certeza nem mesmo de que houve uma ação criminosa anterior que gerou valor econômico a ser lavado, não se atinge o standard mínimo a dar prosseguimento à acusação,47 47 Nesse sentido: “não se revela admissível, em juízo, imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação. Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação processual”. STF, Inquérito 1.9780, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgado em 13/09/2006. o que só revela a urgência na definição de um grau de “prova” adequado, tornando a submissão do sujeito ao processo criminal legítima e absolutamente necessária.

Não se diga, por último, que em razão do princípio da obrigatoriedade da ação penal pública haveria um dever indeclinável do órgão ministerial em oferecer denúncia, não obstante a fragilidade dos elementos informativos colhidos pela investigação. É evidente que não há uma imposição irracional no exercício da ação penal, sendo esta condicionada a uma análise criteriosa dos elementos informativos produzidos pela investigação.48 48 Nessa linha, “se inexistentes elementos que recomendem o azo inicial à necessidade de um processo criminal, a ação não merece exercício nem guarida. Não há qualquer razoabilidade, fundamento, assento legal nem inteligência na malfadada e falsária equalização entre uma “obrigatoriedade” do exercício da ação penal e uma espécie de “compulsoriedade” acéfala e inquestionável para com o mesmo” (DIVAN, 2015, p. 488). A obrigação de agir da acusação pública respalda-se em um processo de conhecimento e de reflexão a partir de uma notícia de crime, até porque pode culminar em pedido de arquivamento ou de absolvição (FERRAJOILI, 2010FERRAJOILI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010., p. 457) caso se considere o fato penalmente irrelevante ou faltem indícios de autoria ou de materialidade da infração.

2.3. O conteúdo descritivo da imputação no crime de lavagem de capitais

No tocante à descrição típica da conduta, “a exposição do fato criminoso, com todas as suas circunstâncias”,49 49 Em referência ao artigo 41 do Código de Processo Penal, fundamental a “exposição minuciosa, não somente do fato infringente da lei, como também de todos os acontecimentos que o cercaram; não apenas de seus acidentes, mas ainda das causas, efeitos, condições, ocasião, antecedentes e consequentes” (TORNAGHI, 1988, p. 43). reclama uma narrativa concreta dos meios utilizados para o branqueamento dos valores. De nada adianta a acusação aferir a justa causa para o exercício da ação penal e não retratar de forma minuciosa os elementos que compõe a conduta delituosa. Na verdade, a exposição da conduta, com todos os seus elementos essenciais e circunstanciais,50 50 STF, HC 84.436/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 05 de setembro de 2006. O ex-ministro, com precisão, sustenta que “a pessoa sob investigação penal tem o direito de não ser acusada com base em denúncia inepta”. condiciona o próprio âmbito temático da decisão judicial, pois o enunciado fático delimita o objeto que, submetido ao contraditório judicial,51 51 A propósito, destaca-se que “a estrutura contraditória, típica da apontada metodologia de exercício do poder, permitindo ao interessado a participação ativa nas atividades de preparação das decisões que possam afetá-lo, constitui o mais seguro antídoto contra o arbítrio estatal” (GOMES FILHO, 2001, p. 239). empresta legitimidade jurídica à sentença penal.

Pela natureza acessória do crime de lavagem, é inequívoco o dever do Ministério Público de narrar a infração penal antecedente, sendo certo que a superveniência de sentença condenatória não poderá suprir as omissões fáticas da denúncia.52 52 O processo penal acusatório, regido pela separação funcional das posições de acusar e julgar, impede a atuação do julgador para suprir lacunas deixadas pela acusação. Ver: STF, HC 132.179/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 26/07/2017. A descrição de como se deu o delito antecedente é ainda mais relevante, tendo em vista a regra de independência do processo e julgamento nos crimes de lavagem (artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/98). Isto porque o Estado-juiz do processo por lavagem pode precisar conhecer de questões incidentais, relativas à infração antecedente, a fim de formar seu convencimento, tais como: a data em que ela ocorreu53 53 Até para estabelecer uma relação lógica de antecedência entre a obtenção dos bens, direitos e valores e os atos posteriores de ocultação e dissimulação. e se, de fato, foram gerados recursos a serem lavados (BADARÓ; BOTTINI, 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 324).

Há, desse modo, uma dependência necessária entre a prática de um delito prévio e o crime de lavagem de dinheiro.54 54 “La comisión de ese delito previo constituye el pressupuesto indispensable que sirve de nexo con el objeto sobre el que van recaer las conductas constitutivas de blanqueo de bienes. De no existir ese nexo, no podrá haber objeto material idóneo para cometer el delito de blanqueo de bienes” (CARPIO DELGADO, 1997, p. 284). Malgrado o processo por lavagem possa ser instaurado de forma autônoma, constitui ônus da acusação demonstrar o elo de causalidade entre os dois ilícitos, já que tal relação “não pode ser presumida, sob pena de ofensa ao princípio da presunção de inocência” (BORGES, 2021BORGES, Ademar. Inépcia da denúncia por lavagem de dinheiro em razão da atipicidade das infrações penais antecedentes. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BORGES, Ademar (orgs.). Lavagem de dinheiro: pareceres jurídicos. Jurisprudência selecionada e comentada. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021., p. 171).

A imputação no crime de lavagem de capitais, além de evidenciar em concreto como ocorreram os atos de ocultação/dissimulação, demanda a descrição do delito antecedente e da relação de causalidade entre o produto gerado por este e os atos posteriores que configurariam o núcleo da conduta criminosa. Embora a exigência da comprovação empírica de tais aspectos seja evidentemente menor do que em uma sentença condenatória, sem essa definição, não é possível vincular o acontecimento histórico (fato processual) à norma penal prevista na Lei de Lavagem (fato penal). Tal vinculação, entretanto, carece de uma exposição ainda mais detalhada.

No que se refere ao produto da infração penal antecedente, indaga-se: a imputação deve necessariamente individualizar este produto? Para responder ao questionamento, é indispensável uma avaliação sistemática da Lei nº. 9.613/98. Neste ponto, a legislação assegura que os bens passíveis de lavagem são os provenientes, “direta ou indiretamente, de infração penal” (artigo 1º, caput).55 55 Em igual sentido, artigo 2º, e, Convenção de Mérida (Decreto 5.687/06): “Por “produto de delito” se entenderá os bens de qualquer índole derivados ou obtidos direta ou indiretamente da ocorrência de um delito;”. Somente o produto ou proveito do crime é suscetível de ser lavado (BADARÓ; BOTTINI, p. 110BADARÓ, Gustavo. As condições da ação penal. In: ZUFELATO, Camilo; YARSHELL, Flávio Luiz (orgs). 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Malheiros, 2013.). Não há sentido falar em lavagem se não ficar claro quais os bens, direitos e valores provenientes de uma infração antecedente foram posteriormente ocultados/dissimulados e reinseridos na economia formal.

Seguindo a análise do texto legal, veja-se que a condenação penal definitiva pelo crime de lavagem produz consequências secundárias, que poderão repercutir nas esferas civil e administrativa. Ao tratar dos efeitos desta condenação, o artigo 7º, inciso I, prevê a perda, em favor do Erário, “de todos os bens, direitos e valores relacionados, direta ou indiretamente, à prática dos crimes previstos nesta Lei”.56 56 Na verdade, tal previsão se harmoniza com os efeitos genéricos da condenação, previstos no Código Penal: “art. 91 - São efeitos da condenação: (...) II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (...) b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.” Diante de tal previsão, fica evidente a necessidade de se explicitar o produto da lavagem, como meio de delimitar a incidência da norma. Afinal, como proceder com o perdimento de valores, se não se identifica quais valores seriam esses?

A considerar que a existência de parte maculada do patrimônio não contamina sua integralidade (BADARÓ; BOTTINI, 2016BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016., p. 114), resta clara a imposição lógica de se indicar o produto do crime antecedente. Do contrário, o artigo 7º, inciso I, teria uma aplicação muito ampla e indiscriminada, inviabilizando o exercício da defesa. A denúncia, como se viu, delimita todo o conteúdo que será submetido ao contraditório judicial e, por isso, deve conter a individualização do produto da infração antecedente, sob pena de rejeição por inépcia – artigo 395, inciso I, do Código de Processo Penal.

A defesa exercerá seu múnus constitucional a partir dos estreitos limites estabelecidos pelo conteúdo da imputação contido na inicial. Se essa imputação não aponta, em um standard mínimo, o produto da infração penal antecedente, torna-se inviável não só a fixação da necessária relação de causalidade dos bens, direitos e valores lavados com o delito antecedente, mas também não se demarca o possível efeito civil da condenação por lavagem, de forma que o artigo 7º, inciso I, da Lei nº. 9.613/98 perde a eficácia.

O último componente a ser descrito na inicial consiste no dolo direcionado a ocultar ou dissimular os valores ilícitos.57 57 Sobre o tema: “Imprescindível seria à denúncia indicar o dolo e condutas de escondimento ou dissimulação da prévia corrupção imputada, como apontado pela Corte local, de modo que a ausência dessas condições torna impossível manter a persecução criminal por lavagem de capitais”. STJ, REsp 1.746.470/DF. Sexta Turma. Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 27/11/2018. Antes da edição da Lei nº. 12.683/2012, o rol taxativo de crimes antecedentes repercutia no aspecto subjetivo do tipo, exigindo do órgão ministerial indícios da prática de um dos crimes pressupostos e ainda da consciência do autor desta proveniência ilícita (TIGRE MAIA, 1999TIGRE MAIA, Rodolfo. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime). Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros Editores, 1999., p. 86). Hoje, qualquer infração penal pode ser considerada antecedente da prática de lavagem,58 58 Assim também estabelece a Convenção de Palermo (Decreto 5.015 de 2004) ao prever que o crime de lavagem resulta da “mais ampla gama possível de infrações principais” (artigo 6, 2, a). o que não exclui a demonstração do dolo nas ações destinadas a ocultar/dissimular a origem espúria dos bens, direitos e valores. 59 59 Como explicitado, a configuração típica do crime de lavagem exige a demonstração da vontade direcionada à prática dos verbos nucleares (ocultar e dissimular), e do conhecimento sobre a origem espúria dos valores. A propósito, “(...) necessário, isto sim, que o sujeito ativo do delito de lavagem de dinheiro tenha inteira ciência quanto aos elementos do tipo, aí incluído o conhecimento quanto à origem criminosa dos bens ou valores”. STJ, HC 88.791/SP, Rel. Min. Félix Fischer, Quinta Turma, DJe 10/11/2008.

O elemento subjetivo deve indicar a finalidade específica de dar aparência lícita aos valores oriundos da infração penal antecedente. Nestes termos, a simples intenção de esconder tais valores configuraria fato atípico,60 60 “Ora, o esconder o dinheiro, mesmo comprovadamente lícito, é diferente do esconder, dissipar ou ocultar a natureza, a origem ilícita do dinheiro. A ideia da lavagem de dinheiro e do seu combate é que aquele que pretende lavar o dinheiro o faz para dar aparência lícita a algo obtido ilicitamente”. Voto do Min. Alexandre de Moraes. STF, Inq 3.515/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 08/10/2019. pois trata-se de mero exaurimento da conduta anterior, isto é, um pós-fato impunível. A despeito de não ser obrigatória, para o recebimento da denúncia ou para a condenação, a completa realização das três fases da lavagem,61 61 “A doutrina majoritária e os principais órgão reguladores do tema destacam serem três as fases: colocação ou ocultação, estratificação ou escurecimento e integração ou lavagem propriamente dita. (...) as fases são teoricamente divididas para fins de estudo, mas na prática não ocorrem necessariamente de forma separada, ou podem ocorrer concomitantemente” (CALLEGARI; WEBER, 2017, p. 27/37). com a consequente reintrodução dos valores na economia formal, faz-se necessária, na imputação ministerial, a descrição de um estratagema específico capaz de conformar o acontecimento histórico à norma penal. 62 62 Sobre o tema, manifestou-se o Ministro Cezar Peluso: “creio não se deva confundir o ato de ‘ocultar’ e ‘dissimular’ a natureza ilícita dos recursos, presente no tipo penal de lavagem de dinheiro, e o que a doutrina especializada descreve como estratagemas comumente adotados para que o produto do crime antecedente — já obtido — seja progressivamente reintroduzido na economia, agora sob aparência de licitude, com os atos tendentes a evitar-lhe o confisco ainda durante o iter criminis do delito antecedente, em outras palavras, para garantir a própria obtenção do resultado do delito” STF, AP 470/DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 29/08/2012. Acórdão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ap470.pdf . Acesso em 07 de março de 2021.

Em síntese, uma imputação hígida por lavagem de capitais, para possibilitar o seu regular recebimento pelo Juízo competente, deve descrever: i) a infração penal antecedente que gerou recursos; ii) a relação de causalidade desta com as ações de ocultação/dissimulação; iii) a individualização do produto da infração antecedente e iv) o elemento subjetivo do tipo (dolo), com a exposição em concreto dos atos de ocultação e dissimulação dos bens, direitos e valores. Havendo esta descrição, em um standard adequado de corroboração da hipótese acusatória, será necessária e legítima a submissão do indivíduo, protegido pela presunção de inocência, a um processo criminal, com a incidência do contraditório judicial, como mecanismo apto a comprovar empiricamente sua culpabilidade.

Considerações finais

Diante do exposto neste artigo, é preciso retomar os problemas que orientaram o seu desenvolvimento: 1) Qual é a importância do enunciado fático contido na inicial? 2) Como este enunciado deve ser descrito, a fim de possibilitar o exercício do direito de defesa? 3) Qual é a relevância da fixação de standards de prova ao longo da persecução penal? 4) Como garantir maior racionalidade da decisão de recebimento da denúncia?

  1. Como se viu, o direito de defesa se estrutura a partir dos limites estabelecidos pelo conteúdo da imputação. Assim, o enunciado fático descrito na inicial adquire enorme relevância ao delimitar o objeto que, submetido ao contraditório judicial, empresta legitimidade jurídica à sentença penal. A exposição da conduta, por conseguinte, condiciona o próprio âmbito temático da decisão sobre os fatos.

  2. Não é possível se defender de fatos indeterminados. Neste artigo, demonstrou-se que a imputação deve atender a parâmetros rígidos, de modo que o conhecimento integral permita ao sujeito reagir de forma efetiva. O órgão acusador precisa, por dever de ofício, especificar o vínculo descritivo entre o fato processual (acontecimento histórico) e o fato penal (norma em abstrato), impedindo a nunca abandonada tentação autoritária de recorrer a práticas ilegais para obter uma punição. Para tanto, o estudo do crime de lavagem é fundamental, já que reclama uma descrição complexa das operações, como forma de possibilitar o exercício da defesa.

  3. O processo penal adota um sistema escalonado, de modo que cada etapa da marcha processual proporciona um juízo de valor a respeito do cometimento do crime investigado. As decisões interlocutórias também causam impactos na vida e na liberdade dos indivíduos, sendo necessário estabelecer diferentes graus de suficiência probatória ao longo do processo. A imputação por lavagem de capitais possui consequências não só de natureza penal, mas também civil e administrativa e, por isso, é indispensável a definição de critérios racionais para cada decisão.

  4. É inequívoco o dever de motivação das decisões judiciais. A fundamentação não representa apenas uma exigência técnica dos atos judiciais, mas, sobretudo, uma garantia de racionalidade, capaz de conferir legitimidade à atuação estatal. Dada a relevância da decisão que submete o indivíduo ao processo criminal, esta precisa ser intersubjetivamente controlável. Nesse contexto, por fim, propõe-se uma alteração legislativa simples, mas capaz de garantir maior controle da decisão de recebimento da denúncia. Sugere-se, portanto, a incorporação, em um dos incisos do art. 581 do CPP, do cabimento de Recurso em Sentido Estrito contra a decisão que recebe a denúncia.63 63 Recorde-se, pois oportuno, que a decisão que não recebe a denúncia ou queixa já é passível de impugnação por meio do mesmo recurso (art. 581, I do CPP). Tal medida proporcionaria maior equilíbrio na dialética processual e, ainda, evitaria a proliferação de habeas corpus visando ao trancamento da ação penal.

  • 1
    Graduado pela Universidade Federal do Rio de Janeiro. Pós-graduado em Direito Penal e Criminalidade Complexa pelo Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais. Advogado criminal.
  • 2
    Por todos, ver: JARDIM (1995, p. 27/31)JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal. Rio de Janeiro: Forense, 1995.; e MARQUES (1998, p.104/105)MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal – volume I. Campinas: Bookseller, 1998..
  • 3
    Não se desconhece a difícil conceituação do termo. Todavia, sustenta-se que “tentar conceituar genericamente a justa causa apenas sob um de seus diversos ângulos constitui, em nosso entendimento, o grande equívoco da doutrina, o qual tem colaborado para a considerável divergência reinante na matéria, com reflexos, inclusive, na jurisprudência”. Para os fins deste trabalho, portanto, mais do que uma definição concreta de justa causa, “faz-se imprescindível identificar quando a coação à liberdade jurídica é legítima, pois, caso contrário, a denúncia ou queixa não poderá ser recebida” (MOURA, 2001MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal – Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001., p. 173-176).
  • 4
    Sobre a impossibilidade de se chegar a um conhecimento absoluto sobre os fatos, destaca-se que, no campo processual, “situamo-nos plenamente no espaço do raciocínio probabilístico”, pois mesmo que se considere que “não é possível verificar uma hipótese, isso não implica que não possamos preferir racionalmente uma hipótese em relação à outra com base na maior corroboração da primeira”. (FERRER BELTRÁN, 2021FERRER BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Tradução: Vitor de Paula Ramos. Salvador: JusPodivm, 2021., p. 135).
  • 5
    “Art. 5º. (...) LV - aos litigantes, em processo judicial ou administrativo, e aos acusados em geral são assegurados o contraditório e ampla defesa, com os meios e recursos a ela inerentes.”
  • 6
    Para uma leitura das violações experimentadas pelos defensores dos presos políticos da ditadura civil-militar de 1964, ver: DOS SANTOS (2011, p. 243/250)DOS SANTOS, JR. Belissário. A advocacia nos anos de chumbo. In: Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos. Luiz Flávio Gomes, Valerio de Oliveira Mazuoli (organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011..
  • 7
    No mesmo sentido, em relação à garantia do direito de defesa, Julio Maier sustenta: “ella no se refiere, exclusivamente, al poder penal del Estado. Al contrario, la formula es amplia y también compreende al procedimento civil, laboral o administrativo, pues protege todo atributo de la persona (vida, libertad, patrimônio, etc.) o los derechos que pudieran corresponderle, susceptibles de ser intervenidos o menoscabados por uma decisión estatal” (MAIER, 1999MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. Tomo I. Fundamentos. Buenos Aires: Editores del Puerto s.r.l. 2ª edición, 1999., p. 541).
  • 8
    Como se sabe, Luigi Ferrajoili foi o responsável por identificar e descrever o fenômeno dos maxiprocessos, demonstrando que estes se manifestam no interior de um subsistema penal de emergência. A propósito, ver: FERRAJOLI (2010, p. 649/672)FERRAJOILI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010..
  • 9
    Esse, aliás, tem sido o entendimento do Supremo Tribunal Federal ao assentar que “no âmbito dos inquéritos policiais e inquéritos judiciais originários, a jurisprudência do Supremo Tribunal tem caminhado no sentido de garantir, a um só tempo, a incolumidade do direito constitucional de defesa do investigado ou indiciado na regular apuração de fatos” (STF, ADPF n° 444, Tribunal Pleno, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJe 22/05/2019).
  • 10
    Para um estudo aprofundado do fenômeno, ver: SANTORO (2020)SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na Operação Lava Jato. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan.-abr. 2020 https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.333
    https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.333...
    .
  • 11
    Nesse sentido, ver: STF, HC 90686, Primeira Turma, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJ 11/05/2007; Inq 4093, Primeira Turma, Rel. Min. Roberto Barroso. DJ 18/05/2016; RHC 117694, Segunda Turma, Rel. Min. Carmen Lúcia, DJ 27/09/2013, entre outros.
  • 12
    De maneira didática, “a imputação, contudo, não é só jurídica – proposta de adequação tipológica. É, também, fática, ou mais precisamente, a versão de um fato que se atribui a alguém. Envolve, portanto, a narração de um fato, a atribuição a alguém e a qualificação jurídico-penal deste fato” (ZILLI, 2016ZILLI, Marcos. O povo contra...As condições da ação penal condenatória. Velhos problemas. Novas ideias. Cadernos Jurídicos. São Paulo, n. 44, p.147-162, jul.-set. 2016., p. 152).
  • 13
    Em relação à descrição da conduta criminosa, posicionou-se a Corte Interamericana de Direitos Humanos: “Al determinar el alcance de las garantías contenidas en el artículo 8.2 de la Convención, la Corte debe considerar el papel de la “acusación” en el debido proceso penal vis-à-vis el derecho de defensa. La descripción material de la conducta imputada contiene los datos fácticos recogidos en la acusación, que constituyen la referencia indispensable para el ejercicio de la defensa del imputado y la consecuente consideración del juzgador en la sentencia. De ahí que el imputado tenga derecho a conocer, a través de una descripción clara, detallada y precisa, los hechos que se le imputan”. CIDH, Fermín Ramírez vs. Guatemala, julgado em 20/06/2005. Disponível em: https://www.corteidh.or.cr/docs/casos/articulos/seriec_126_esp.pdf. Acesso em: 05/03/2022
  • 14
    No mesmo sentido: “Um fato é juridicamente relevante (no jargão estadunidense: material) quando corresponde ao tipo de fato definido pela regra jurídica (escrita ou fundada em precedentes) considerada como possível base jurídica para a decisão” (TARUFFO, 2016TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de Paula Ramos, 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016, p. 61).
  • 15
    A palavra prova em diversas situações será utilizada entre aspas, a evidenciar que “a presença ou ausência de contraditório é o que distingue, respectivamente, ato de prova de ato de investigação” (BADARÓ, 2019BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019., p. 197).
  • 16
    Artigo 41 do Código de Processo Penal. No mesmo sentido, artigo 8.2., b da Convenção Americana de Direitos Humanos.
  • 17
    A expressão refere-se ao ingresso da epistemologia no processo, não apenas como epistemologia pura, mas como epistemologia aplicada, ou seja, uma epistemologia judiciária. Ver: BADARÓ (2018, p. 53)BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138
    https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138...
    .
  • 18
    Em verdade, há exemplos na jurisprudência da utilização do standard para condenação “prova além da dúvida razoável” (beyond a reasonable doubt). Contudo, não raro, este é importado em descompasso com o que prevê a matriz teórica norte-americana, sendo utilizado não para sentença condenatória, mas sim para o recebimento da denúncia. Ver, a propósito: STF, Inq 2036/PA, Tribunal Pleno, Rel. Min. Carlos Britto, DJ 22/10/2004. Em outros casos, porém, o standard anglo-saxão é empregado de forma coerente com sua formulação original, isto é, constituindo o nível mais exigente de prova que, se superado, enseja uma sentença condenatória. Nesse sentido, ver: STF, AP 676, Primeira Turma, Rel. Min. Rosa Weber, DJ 06/02/2018. A falta de harmonia leva a uma visível insegurança, deixando clara a urgência na definição dos standards de prova, de modo a distribuir os riscos de erro e aumentar a qualidade epistemológica das decisões tomadas ao longo do processo.
  • 19
    Em relação ao decisionismo, Juarez Tavares ensina: “Quando a base empírica dos elementos do delito é desconstruída e substituída por juízos de valor emitidos apenas de conformidade com o poder normativo, a ordem jurídica deixa de ser democrática e passa a ser a coletânea de enunciados jurisprudenciais, sem qualquer conteúdo crítico, com consequências desastrosas para a doutrina penal, que se transforma em seu mero repetidor” (TAVARES, 2018TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito. Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018., p. 106).
  • 20
    Na irretocável lição do Ministro Celso de Mello: “não tem sentido, sob pena de grave transgressão aos postulados constitucionais, permitir-se que a discriminação da conduta de cada denunciado venha a constituir objeto de prova a ser feita ao longo do procedimento penal.” STF, HC 86.879-7, Segunda Turma, Rel. Min. Gilmar Mendes, DJ 24/02/2006.
  • 21
    Não menos desarrazoadas são as decisões de recebimento da denúncia fundamentadas no imaginário princípio do in dubio pro societatis (STF, HC 93341, Segunda Turma, Rel. Min. Joaquim Barbosa, DJ 06/02/2009). O argumento de que o interesse da sociedade reside na elucidação do caso pelo prosseguimento do processo pode até ser sedutor dentro de uma perspectiva utilitarista, porém, desconsidera o fim máximo de proteção do indivíduo inerente aos Estados de Direito, nos quais o interesse da sociedade reside justamente na impossibilidade de se submeter a uma acusação infundada. Na mesma linha, “a incompreensão a respeito da distribuição da carga probatória nestas fases processuais e o grau de convicção pelo juízo diante do estado inicial de incerteza levam à infeliz confusão a respeito do conteúdo da presunção de inocência no processo, abrindo margem para a criação da estranha figura do “princípio” in dubio pro societate” (LUCCHESI, 2019LUCCHESI, Guilherme B. O necessário desenvolvimento de standards probatórios compatíveis com o direito processual penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 156, p. 165-188, jun./2019., p. 169).
  • 22
    É indispensável, portanto, que o grau de exigência probatória seja distinto para cada fase do processo. Afinal, “de otro modo, las decisiones intermedias no serían más que uma anticipación de la decisión final, haciendo inútil todo el procedimento subsiguiente” (FERRER BELTRÁN, 2018FERRER BELTRÁN, Jordi. Prolegómenos para una teoria sobre los estándáres de prueba. El test case de la responsabilidad del Estado por prisión preventiva errónea. Em: Filosofía del Derecho Privado. Madrid: Marcial Pons, 2018., p. 415).
  • 23
    Não se desconsidera a dificuldade inerente à construção de um standard de prova. Alguns países, mesmo alheios à tradição do common law, quando procuraram legislar sobre o tema, adotaram a terminologia norte-americana do beyond a reasonable doubt. Sobre a possibilidade de adoção do beyond a reasonable doubt no ordenamento brasileiro, a partir de critérios lógicos e racionais, ver: VASCONCELLOS (2020)VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, v. 16, n. 2, maio/ago. 2020, e1961. https://doi.org/10.1590/2317-6172201961
    https://doi.org/10.1590/2317-6172201961...
    . Em oposição, para uma crítica à importação de tal modelo no Brasil, ver: BADARÓ (2019, p. 253/254) e MATIDA; VIEIRA (2019)MATIDA, Janaina; VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda a dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 156, p. 221-248, jun./2019..
  • 24
    Assim, “em todos os instantes de dúvida fática judicial o “in dubio pro reo” deverá ser obedecido como manifestação da presunção de inocência” (ZANOIDE DE MORAES, 2010ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010., p. 418).
  • 25
    Art. 93, IX da CRFB e, reforçando ainda mais a necessidade de motivação das decisões judiciais, a Lei 13.964/2019 introduziu no CPP o art. 315 § 2º. Para uma análise da resposta (inadequada) do Superior Tribunal de Justiça à exigência constitucional de motivação no juízo de admissibilidade da denúncia, ver: ANDRADE; SANTIAGO; CAMINHA (2021)ANDRADE, J. H. de; SANTIAGO, N. E. A.; CAMINHA, U. Decisão de admissibilidade da denúncia no Superior Tribunal de Justiça: uma pesquisa quali-quantitativa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 511-534, 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389
    https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389...
    .
  • 26
    Nesse ponto, destaca-se que “nos ordenamentos de civil law, por outro lado, o controle da racionalidade da decisão se realizaria ex post mediante o controle da motivação” (FERRER BELTRÁN, 2021FERRER BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova. Tradução: Vitor de Paula Ramos. Salvador: JusPodivm, 2021., p. 66).
  • 27
    Em razão das limitações de espaço, optou-se, neste artigo, por não aprofundar as discussões relativas ao conceito de justa causa para ação penal, bastando reforçar que “se o que está em análise é uma “justa” causa para a existência de uma “ação penal”, nada mais certeiro do que identificar no instituto um mecanismo para um bloqueio crítico de demandas sem “justificativa” ou para as quais não haja um critério de “justiça” em sua existência ou prosseguimento” (DIVAN, 2015DIVAN, Gabriel A. Processo penal e política criminal: uma reconfiguração da justa causa para a ação penal. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015., p. 483).
  • 28
    Embora existam opiniões divergentes na doutrina, essa é a posição que concordamos no sentido de que “não há justa causa para a ação penal se não se tem certeza da ocorrência de um crime. Sem a certeza do crime a ação penal seria injusta e desnecessária” (BADARÓ, 2013BADARÓ, Gustavo. As condições da ação penal. In: ZUFELATO, Camilo; YARSHELL, Flávio Luiz (orgs). 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro. São Paulo: Malheiros, 2013.. p. 411/412).
  • 29
    Nessa linha, constata-se que “o crime de lavagem de dinheiro, ao visar ocultar, dissimular a origem ilícita de dinheiro, bem ou valor, é praticado muitas vezes, a partir de muitas ações, porque quanto mais ações, mais difícil a persecução e mais difícil se chegar à origem do bem”. Por conseguinte, “em nome da persecução penal e da sua urgência (seja pelo caráter sociológico da noção de risco seja pela celeridade processual), a denúncia passa a ser oferecida mesmo sem elementos suficientes para o exercício de defesa” (BONACCORSI, 2017BONACCORSI, Daniela Villani. Lavagem de dinheiro e imputação: seus limites e possibilidades no estado democrático de direito. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017. p. 240).
  • 30
    Artigo 1º, caput da Lei 9.613/98.
  • 31
    Remarque-se, a propósito, que a garantia do direito de defesa supera os limites de uma ótica subjetiva, que a constitui unicamente como direito do acusado. Aqui, “adquire relevância o perfil objetivo da defesa, como ofício essencialmente social: defesa, portanto, como condição de regularidade do procedimento, na ótica do interesse público à atuação do contraditório, defesa, em última análise, legitimante da própria jurisdição” (FERNANDES, 2000FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional. 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000., p. 253/254).
  • 32
    Questão relevante diz respeito à violação do princípio da proporcionalidade ao se permitir que uma contravenção penal constitua infração penal antecedente para fins de lavagem. Ver: TAVARES; MARTINS (2020. p. 132/133)TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020..
  • 33
    Sobre as gerações legislativas do crime de lavagem, ver: MACHADO (2015, p. 34/43)MACHADO, Leonardo Marcondes. A lavagem de dinheiro no Brasil: breves apontamentos sobre as gerações legislativas. Revista Síntese de direito penal e processual penal. n. 90, v. 15, 2015..
  • 34
    Nesse sentido, “tendo o crime sido praticado antes da alteração legislativa [Lei 12.683/2012], a denúncia teve o cuidado de imputar ao paciente a conduta conforme previsão legal à época dos fatos”. STJ, HC 276.245/MG, Quinta Turma, Rel. Min. Reynaldo Soares da Fonseca, julgado em 13/06/2017.
  • 35
    “Com a inclusão de direitos e valores, o tipo penal da lavagem diferencia-se da receptação (art. 180 CP), constituindo um tipo complementar a esta” (TAVARES; MARTINS, 2020TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020., p. 112).
  • 36
    Artigo 2º, inciso II, da Lei 9.613/98.
  • 37
    É certo que a Lei nº. 9.613/98 prevê outras formas de execução para o crime de lavagem de capitais, a saber: conversão em ativos lícitos (art. 1º, § 1º, I); condutas assemelhadas à receptação (art. 1º, § 1º, II); superfaturamento/subfaturamento de importação e exportação (art. 1º, § 1º, III); utilização de valores espúrios em atividade econômica ou financeira (art. 1º, § 2º, I) e participação em grupo dirigido à prática de lavagem (art. 1º, § 2º, II). Contudo, para os fins deste trabalho, limita-se o estudo ao tipo legal previsto no caput, pois, além de ser o mais corriqueiro, dentro de uma interpretação sistemática do texto normativo, este necessariamente se harmoniza com os outros dispositivos.
  • 38
    Questão especialmente complexa no crime de lavagem refere-se à mescla do capital ilícito com o lícito. Para uma breve análise das teorias acerca do tema, ver: BADARÓ; BOTTINI (2016, p. 111/115)BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro. Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016. e TAVARES; MARTINS (2020, p. 114/116)TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias. São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020..
  • 39
    Há, no entanto, discussão doutrinária a respeito da aplicação do dolo eventual e da teoria da cegueira deliberada. Sobre o tema, ver: LUCCHESI (2018)LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2018..
  • 40
    De igual forma, no ordenamento espanhol, “el sujeto que blanquea (art. 301.2) o pretende blanquear (art. 301.1) lo ha de hacer “sabiendo” que el origen de los bienes es delictivo. No para ahí el dolo: el sujeto activo debe saber eso y debe saber también que oculta o encubre ese origen” (MARTIN et al. 2018MARTIN, Adán Nieto; SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín; GOMEZ-ALLER, Jacobo Dopico e BARRANCO, Norberto J. De La Mata. Derecho Penal Económico y de la Empresa. Madrid: Editorial Dykinson, 2018., p. 515).
  • 41
    “Art. 2º (...) § 1º A denúncia será instruída com indícios suficientes da existência da infração penal antecedente, sendo puníveis os fatos previstos nesta Lei, ainda que desconhecido ou isento de pena o autor, ou extinta a punibilidade da infração penal antecedente”.
  • 42
    Em igual sentido, “a palavra ‘indício’ usada na Lei de Lavagem representa uma prova dotada de eficácia persuasiva atenuada (prova semiplena), não sendo apta, por si só, a estabelecer a verdade de um fato, ou seja, no momento do recebimento da denúncia, é necessário um início de prova que indique a probabilidade de que os bens, direitos ou valores ocultados sejam provenientes, direta ou indiretamente, de um dos crimes antecedentes”. STF, HC 93368, Rel. Min. Luiz Fux, Primeira Turma, julgado em 09/08/2011. Por relevante, destaca-se, ainda, que “não é possível confundir-se o indício – sempre um dado objetivo, em qualquer das acepções acima referidas – com a simples suspeita, que não passa de um estado de ânimo – fenômeno subjetivo – que pode até possuir um valor heurístico, orientado a pesquisa sobre os fatos, mas que não tem aptidão para fundar o convencimento judicial” (GOMES FILHO, 2005GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE DE MORAES, Maurício (Coord.). Estudos em homenagem á professora Ada Pellegrini Grinover. São Paulo: DPJ. 2005., p. 311).
  • 43
    É natural alguma margem de vagueza na formulação de um standard probatório. Nestes casos, como se viu, “faz-se necessária uma regra de segunda ordem, que estabeleça o que deve ser realizado no caso de dúvida sobre a satisfação do standard. E é aqui onde resultaria aplicável a presunção de inocência como in dubio pro reo” (FERRER BELTRÁN, 2018FERRER BELTRÁN, Jordi. Uma concepção minimalista e garantista de presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 4, n. 1, p. 149-182, jan./abr. 2018. P. 175. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.131
    https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.131...
    , p. 175).
  • 44
    STJ, RHC 106.107/BA. Quinta Turma, Rel. Min. Ribeiro Dantas, julgado em 25/07/2019.
  • 45
    A deflagração de uma ação penal coloca em risco a liberdade do indivíduo e inicia um violento processo de estigmatização, pois “não se consegue afastar a imagem negativa formada em torno da pessoa acusada pelo simples fato da instauração do processo, imagem que cresce e se propaga pelos meios de comunicação” (FERNANDES, 2002FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., p. 29).
  • 46
    Nesse sentido, “a ação somente poderá ser promovida se houver prova do fato e, pelo menos, suspeita de autoria” (TORNAGHI, 1988TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal, vol. 1. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1988., p. 41).
  • 47
    Nesse sentido: “não se revela admissível, em juízo, imputação penal destituída de base empírica idônea, ainda que a conduta descrita na peça acusatória possa ajustar-se, em tese, ao preceito primário de incriminação. Impõe-se, por isso mesmo, ao Poder Judiciário, rígido controle sobre a atividade persecutória do Estado, notadamente sobre a admissibilidade da acusação penal, em ordem a impedir que se instaure, contra qualquer acusado, injusta situação de coação processual. STF, Inquérito 1.9780, Rel. Min. Celso de Mello, Plenário, julgado em 13/09/2006.
  • 48
    Nessa linha, “se inexistentes elementos que recomendem o azo inicial à necessidade de um processo criminal, a ação não merece exercício nem guarida. Não há qualquer razoabilidade, fundamento, assento legal nem inteligência na malfadada e falsária equalização entre uma “obrigatoriedade” do exercício da ação penal e uma espécie de “compulsoriedade” acéfala e inquestionável para com o mesmo” (DIVAN, 2015DIVAN, Gabriel A. Processo penal e política criminal: uma reconfiguração da justa causa para a ação penal. Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015., p. 488).
  • 49
    Em referência ao artigo 41 do Código de Processo Penal, fundamental a “exposição minuciosa, não somente do fato infringente da lei, como também de todos os acontecimentos que o cercaram; não apenas de seus acidentes, mas ainda das causas, efeitos, condições, ocasião, antecedentes e consequentes” (TORNAGHI, 1988TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal, vol. 1. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1988., p. 43).
  • 50
    STF, HC 84.436/SP, Segunda Turma, Rel. Min. Celso de Mello, julgado em 05 de setembro de 2006. O ex-ministro, com precisão, sustenta que “a pessoa sob investigação penal tem o direito de não ser acusada com base em denúncia inepta”.
  • 51
    A propósito, destaca-se que “a estrutura contraditória, típica da apontada metodologia de exercício do poder, permitindo ao interessado a participação ativa nas atividades de preparação das decisões que possam afetá-lo, constitui o mais seguro antídoto contra o arbítrio estatal” (GOMES FILHO, 2001GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001., p. 239).
  • 52
    O processo penal acusatório, regido pela separação funcional das posições de acusar e julgar, impede a atuação do julgador para suprir lacunas deixadas pela acusação. Ver: STF, HC 132.179/SP. Segunda Turma. Rel. Min. Dias Toffoli, julgado em 26/07/2017.
  • 53
    Até para estabelecer uma relação lógica de antecedência entre a obtenção dos bens, direitos e valores e os atos posteriores de ocultação e dissimulação.
  • 54
    La comisión de ese delito previo constituye el pressupuesto indispensable que sirve de nexo con el objeto sobre el que van recaer las conductas constitutivas de blanqueo de bienes. De no existir ese nexo, no podrá haber objeto material idóneo para cometer el delito de blanqueo de bienes” (CARPIO DELGADO, 1997CARPIO DELGADO, Juana Del. El delito de blanqueo de bienes em el nuevo Código penal. Sevilla, 1997., p. 284).
  • 55
    Em igual sentido, artigo 2º, e, Convenção de Mérida (Decreto 5.687/06): “Por “produto de delito” se entenderá os bens de qualquer índole derivados ou obtidos direta ou indiretamente da ocorrência de um delito;”.
  • 56
    Na verdade, tal previsão se harmoniza com os efeitos genéricos da condenação, previstos no Código Penal: “art. 91 - São efeitos da condenação: (...) II - a perda em favor da União, ressalvado o direito do lesado ou de terceiro de boa-fé: (...) b) do produto do crime ou de qualquer bem ou valor que constitua proveito auferido pelo agente com a prática do fato criminoso.”
  • 57
    Sobre o tema: “Imprescindível seria à denúncia indicar o dolo e condutas de escondimento ou dissimulação da prévia corrupção imputada, como apontado pela Corte local, de modo que a ausência dessas condições torna impossível manter a persecução criminal por lavagem de capitais”. STJ, REsp 1.746.470/DF. Sexta Turma. Rel. Min. Nefi Cordeiro, julgado em 27/11/2018.
  • 58
    Assim também estabelece a Convenção de Palermo (Decreto 5.015 de 2004) ao prever que o crime de lavagem resulta da “mais ampla gama possível de infrações principais” (artigo 6, 2, a).
  • 59
    Como explicitado, a configuração típica do crime de lavagem exige a demonstração da vontade direcionada à prática dos verbos nucleares (ocultar e dissimular), e do conhecimento sobre a origem espúria dos valores. A propósito, “(...) necessário, isto sim, que o sujeito ativo do delito de lavagem de dinheiro tenha inteira ciência quanto aos elementos do tipo, aí incluído o conhecimento quanto à origem criminosa dos bens ou valores”. STJ, HC 88.791/SP, Rel. Min. Félix Fischer, Quinta Turma, DJe 10/11/2008.
  • 60
    “Ora, o esconder o dinheiro, mesmo comprovadamente lícito, é diferente do esconder, dissipar ou ocultar a natureza, a origem ilícita do dinheiro. A ideia da lavagem de dinheiro e do seu combate é que aquele que pretende lavar o dinheiro o faz para dar aparência lícita a algo obtido ilicitamente”. Voto do Min. Alexandre de Moraes. STF, Inq 3.515/SP. Primeira Turma. Rel. Min. Marco Aurélio, julgado em 08/10/2019.
  • 61
    “A doutrina majoritária e os principais órgão reguladores do tema destacam serem três as fases: colocação ou ocultação, estratificação ou escurecimento e integração ou lavagem propriamente dita. (...) as fases são teoricamente divididas para fins de estudo, mas na prática não ocorrem necessariamente de forma separada, ou podem ocorrer concomitantemente” (CALLEGARI; WEBER, 2017CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro. 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2017., p. 27/37).
  • 62
    Sobre o tema, manifestou-se o Ministro Cezar Peluso: “creio não se deva confundir o ato de ‘ocultar’ e ‘dissimular’ a natureza ilícita dos recursos, presente no tipo penal de lavagem de dinheiro, e o que a doutrina especializada descreve como estratagemas comumente adotados para que o produto do crime antecedente — já obtido — seja progressivamente reintroduzido na economia, agora sob aparência de licitude, com os atos tendentes a evitar-lhe o confisco ainda durante o iter criminis do delito antecedente, em outras palavras, para garantir a própria obtenção do resultado do delito” STF, AP 470/DF. Rel. Min. Joaquim Barbosa, julgado em 29/08/2012. Acórdão disponível em: https://www.conjur.com.br/dl/ap470.pdf . Acesso em 07 de março de 2021.
  • 63
    Recorde-se, pois oportuno, que a decisão que não recebe a denúncia ou queixa já é passível de impugnação por meio do mesmo recurso (art. 581, I do CPP).
  • Declaration of originality: the author assures that the text here published has not been previously published in any other resource and that future republication will only take place with the express indication of the reference of this original publication; he also attests that there is no third party plagiarism or self-plagiarism.

HOW TO CITE (ABNT BRAZIL):

  • MATTOS, Pedro Henrique. A imputação e o crime de lavagem de capitais: um estudo crítico sobre a viabilidade da denúncia. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 8, n. 1, p. 409-440, jan./abr. 2022. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v8i1.553

Bibliografía

  • ANDRADE, J. H. de; SANTIAGO, N. E. A.; CAMINHA, U. Decisão de admissibilidade da denúncia no Superior Tribunal de Justiça: uma pesquisa quali-quantitativa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 511-534, 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389
    » https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389
  • BADARÓ, Gustavo. As condições da ação penal. In: ZUFELATO, Camilo; YARSHELL, Flávio Luiz (orgs). 40 anos da teoria geral do processo no Brasil: passado, presente e futuro São Paulo: Malheiros, 2013.
  • BADARÓ, Gustavo Henrique. Correlação entre acusação e sentença 4ª edição. São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019
  • BADARÓ, Gustavo Henrique. Editorial dossiê “Prova penal: fundamentos epistemológicos e jurídicos”. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 4, n. 1, p. 43-80, jan.-abr. 2018. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138
    » https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.138
  • BADARÓ, Gustavo Henrique. Epistemologia judiciária e prova penal São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2019.
  • BADARÓ, Gustavo; BOTTINI, Pierpaolo Cruz. Lavagem de dinheiro Aspectos penais e processuais penais. 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2016.
  • BONACCORSI, Daniela Villani. Lavagem de dinheiro e imputação: seus limites e possibilidades no estado democrático de direito. Belo Horizonte: D’Plácido, 2017
  • BORGES, Ademar. Inépcia da denúncia por lavagem de dinheiro em razão da atipicidade das infrações penais antecedentes. In: BOTTINI, Pierpaolo Cruz; BORGES, Ademar (orgs.). Lavagem de dinheiro: pareceres jurídicos. Jurisprudência selecionada e comentada São Paulo: Thomson Reuters Brasil, 2021.
  • CALLEGARI, André Luís; WEBER, Ariel Barazzetti. Lavagem de dinheiro 2ª edição. São Paulo: Atlas, 2017.
  • CARPIO DELGADO, Juana Del. El delito de blanqueo de bienes em el nuevo Código penal Sevilla, 1997.
  • DIVAN, Gabriel A. Processo penal e política criminal: uma reconfiguração da justa causa para a ação penal Porto Alegre: Elegantia Juris, 2015.
  • DOS SANTOS, JR. Belissário. A advocacia nos anos de chumbo. In: Crimes da Ditadura Militar: uma análise à luz da jurisprudência atual da Corte Interamericana de direitos humanos Luiz Flávio Gomes, Valerio de Oliveira Mazuoli (organizadores). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2011.
  • FERNANDES, Antonio Scarance. A reação defensiva à imputação São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002.
  • FERNANDES, Antonio Scarance. Processo penal constitucional 2ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000.
  • FERRAJOILI, Luigi. Direito e Razão. Teoria do Garantismo Penal 3ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010.
  • FERRER BELTRÁN, Jordi. Valoração racional da prova Tradução: Vitor de Paula Ramos. Salvador: JusPodivm, 2021.
  • FERRER BELTRÁN, Jordi. Los estândares de prueba em el processo penal español, 2007.
  • FERRER BELTRÁN, Jordi. Prolegómenos para una teoria sobre los estándáres de prueba. El test case de la responsabilidad del Estado por prisión preventiva errónea. Em: Filosofía del Derecho Privado Madrid: Marcial Pons, 2018.
  • FERRER BELTRÁN, Jordi. Uma concepção minimalista e garantista de presunção de inocência. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, vol. 4, n. 1, p. 149-182, jan./abr. 2018. P. 175. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.131
    » https://doi.org/10.22197/rbdpp.v4i1.131
  • GASCÓN ABELLÁN, Maria. Los hechos en el derecho Bases argumentales de la prueba. 3ª ed. Madrid: Marcial Pons, 2010.
  • GOMES FILHO, Antonio Magalhães. A motivação das decisões penais São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
  • GOMES FILHO, Antonio Magalhães. Notas sobre a terminologia da prova (reflexos no processo penal brasileiro). In: YARSHELL, Flávio Luiz; ZANOIDE DE MORAES, Maurício (Coord.). Estudos em homenagem á professora Ada Pellegrini Grinover São Paulo: DPJ. 2005.
  • GRINOVER, Ada Pellegrini; FERNANDES, Antonio Scarance; GOMES FILHO, Antonio Magalhães. As nulidades no processo penal 7ª edição. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
  • GUZMÁN, Nicolás. O papel da verdade no processo penal e seu impacto na dinâmica probatória. In: Fundamentos de direito Probatório em matéria penal AMBOS, Kai; MALARINO, Ezequiel (org.). São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
  • JARDIM, Afrânio Silva. Direito processual penal Rio de Janeiro: Forense, 1995.
  • LAUDAN, Larry. Es razonable la duda razonable? In: El estândar de prueba y las garantias em el processo penal 1ª edición. Buenos Aires, 2011.
  • LOPES JR., Aury. Fundamentos do processo penal: introdução crítica 2ª edição. São Paulo: Saraiva, 2016.
  • LUCCHESI, Guilherme B. O necessário desenvolvimento de standards probatórios compatíveis com o direito processual penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, São Paulo, v. 156, p. 165-188, jun./2019.
  • LUCCHESI, Guilherme Brenner. Punindo a culpa como dolo: o uso da cegueira deliberada no Brasil 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2018.
  • MACHADO, Leonardo Marcondes. A lavagem de dinheiro no Brasil: breves apontamentos sobre as gerações legislativas. Revista Síntese de direito penal e processual penal n. 90, v. 15, 2015.
  • MAIER, Julio B. J. Derecho procesal penal. Tomo I. Fundamentos Buenos Aires: Editores del Puerto s.r.l. 2ª edición, 1999.
  • MALAN, Diogo. Notas sobre a investigação e prova da criminalidade econômico-financeira organizada. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, volume 2, 2016 http://dx.doi.org/10.22197/rbdpp.v2i1.22
    » https://doi.org/10.22197/rbdpp.v2i1.22
  • MARQUES, José Frederico. Elementos de direito processual penal – volume I Campinas: Bookseller, 1998.
  • MARTIN, Adán Nieto; SÁNCHEZ, Juan Antonio Lascuraín; GOMEZ-ALLER, Jacobo Dopico e BARRANCO, Norberto J. De La Mata. Derecho Penal Económico y de la Empresa Madrid: Editorial Dykinson, 2018.
  • MATIDA, Janaina; VIEIRA, Antonio. Para além do BARD: uma crítica à crescente adoção do standard de prova “para além de toda a dúvida razoável” no processo penal brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, v. 156, p. 221-248, jun./2019.
  • MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis. Justa causa para a ação penal – Doutrina e Jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001.
  • PITOMBO, Antônio Sergio A. de Moraes. Lavagem de dinheiro: a tipicidade do crime antecedente São Paulo: Revista dos Tribunais, 2003.
  • POZZER, Benedito Roberto Garcia. Correlação entre acusação e sentença no processo penal brasileiro São Paulo: IBCCRIM, 2001.
  • PRADO, Geraldo. Prova penal e sistemas de controles epistêmicos: a quebra da cadeia de custódia das provas obtidas por métodos ocultos. 1ª edição. São Paulo: Marcial Pons, 2014.
  • SANTORO, Antonio Eduardo Ramires. A imbricação entre maxiprocessos e colaboração premiada: o deslocamento do centro informativo para a fase investigatória na Operação Lava Jato. Rev. Bras. de Direito Processual Penal, Porto Alegre, v. 6, n. 1, p. 81-116, jan.-abr. 2020 https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.333
    » https://doi.org/10.22197/rbdpp.v6i1.333
  • TARANILLA, RAQUEL. La justicia narrante. Um estúdio sobre el discurso de los hechos em el proceso penal Thomson Reuters, 2012.
  • TARUFFO, Michele. Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. Tradução Vitor de Paula Ramos, 1ª ed. São Paulo: Marcial Pons, 2016
  • TAVARES, Juarez. Fundamentos de teoria do delito Florianópolis: Tirant lo Blanch, 2018.
  • TAVARES, Juarez; MARTINS, Antonio. Lavagem de capitais: fundamentos e controvérsias São Paulo: Tirant lo Blanch, 2020.
  • TIGRE MAIA, Rodolfo. Lavagem de dinheiro (lavagem de ativos provenientes de crime) Anotações às disposições criminais da Lei n. 9.613/98. São Paulo: Malheiros Editores, 1999.
  • TORNAGHI, Hélio. Curso de processo penal, vol. 1. 5ª edição. São Paulo: Saraiva, 1988.
  • VASCONCELLOS, Vinicius Gomes de. Standard probatório para condenação e dúvida razoável no processo penal: análise das possíveis contribuições ao ordenamento brasileiro. Revista Direito GV, v. 16, n. 2, maio/ago. 2020, e1961. https://doi.org/10.1590/2317-6172201961
    » https://doi.org/10.1590/2317-6172201961
  • ZANOIDE DE MORAES, Maurício. Presunção de Inocência no Processo Penal Brasileiro: análise de sua estrutura normativa para a elaboração legislativa e para a decisão judicial. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2010.
  • ZILLI, Marcos. O povo contra...As condições da ação penal condenatória. Velhos problemas. Novas ideias. Cadernos Jurídicos São Paulo, n. 44, p.147-162, jul.-set. 2016.

Editado por

Editorial team
  • Editor-in-chief: 1 (VGV)

  • Reviewers: 3

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    14 Abr 2021
  • Revisado
    14 Jun 2021
  • Aceito
    29 Mar 2022
Instituto Brasileiro de Direito Processual Penal Av. Praia de Belas, 1212 - conj 1022 - Praia de Belas, Porto Alegre - RS / Brasil. CEP 90110-000., +55 (51) 3406-1478 - Porto Alegre - RS - Brazil
E-mail: revista@ibraspp.com.br