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A ideia de universidade em Van Rensselaer Potter e Jürgen Habermas: novos olhares para a universidade na era digital

La idea de universidad en Van Rensselaer Potter y Jürgen Habermas: nuevas miradas sobre la universidad en la era digital

RESUMO

A universidade está inserida no processo de “digitalização social” e coloca-se como espaço de interação discursiva. A ideia de universidade tem o seu sentido a partir de seu estabelecimento na forma de projeto de formação integral e cidadã. O objetivo deste artigo é analisar as concepções de universidade e suas implicações no contexto de tecnologias digitais com base nos referenciais teóricos de Van Rensselaer Potter e Jürgen Habermas. Essa investigação constitui-se em estudo filosófico e pesquisa bibliográfica por meio da análise minuciosa e comparada dos referenciais teóricos. Potter compreende que o ambiente universitário é o espaço para a prospecção do futuro da humanidade e a garantia de sua sobrevivência. O olhar bioético de Potter enraíza a universidade em seu projeto de servir à sociedade por meio da resolução de problemas globais. Em Habermas, a ideia de universidade resplandece o espaço para o agir comunicativo na formação humana. Nesse contexto, a universidade na era digital projeta sua atuação formativa e constitui-se em ambiente aberto e plural de fortalecimento das bases democráticas da sociedade.

Palavras-chave:
Bioética; Universidade; Sociedade Digital; Van Rensselaer Potter; Jürgen Habermas

RESUMEN

La Universidad es parte del proceso de “digitalización social” y se sitúa como un espacio de interacción discursiva. La idea de Universidad tiene su sentido desde su constitución en forma de proyecto de formación integral y ciudadana. El objetivo de este artículo es analizar los conceptos de Universidad y sus implicaciones en el contexto de las tecnologías digitales desde los marcos teóricos de Van Rensselaer Potter y Jürgen Habermas. Esta investigación consiste en un estudio filosófico e investigación bibliográfica a través de un análisis minucioso y comparativo de referentes teóricos. Potter entiende que el ámbito universitario es el espacio de prospección del futuro de la humanidad y la garantía de su supervivencia. La visión bioética de Potter arraiga a la Universidad en su proyecto de servir a la sociedad a través de la resolución de problemas globales. En Habermas, la idea de Universidad hace brillar el espacio de la acción comunicativa en la formación humana. En este contexto, la Universidad en la Era Digital proyecta sus actividades formativas y constituye un ámbito abierto y plural para el fortalecimiento de las bases democráticas de la sociedad.

Palabras clave:
Bioética; Universidad; Sociedad Digital; Van Rensselaer Potter; Jürgen Habermas

ABSTRACT

The university is part of the process of “social digitization” and shows itself as a space for discursive interaction. The idea of university derives its meaning from its establishment in the form of a project of integral and citizen formation. The aim of this article is to analyze the concepts of university and their implications in the context of digital technologies based on the theoretical frameworks of Van Rensselaer Potter and Jürgen Habermas. This investigation consists of a philosophical study and bibliographic research through a thorough and comparative analysis of the theoretical references. Potter understands that the university environment is the space for the prospection of humanity’s future and the guarantee of its survival. Potter’s bioethical view roots the university in its project of serving society through the resolution of global problems. In Habermas, the idea of university shines the space for communicative action in human formation. In this context, the university in the digital era projects its training activities and constitutes an open and plural environment for strengthening the democratic foundations of society.

Keywords:
Bioethics; University; Digital Society; Van Rensselaer Potter; Jürgen Habermas

INTRODUÇÃO

A universidade do século XXI está vivenciando uma profunda transformação em sua concepção como instituição e sua contínua interação com as questões sociais. A revolução digital proporcionou que o conhecimento não estivesse mais centrado nas instituições. As diversas formas de conhecimento e saberes podem ser acessadas, compartilhadas e construídas entre os sujeitos que não estão no ambiente universitário. A universidade inseriu-se na modalidade digital para manter a sua capacidade de análise e investigação dos problemas com rigor científico e veracidade (UNESCO, 1998UNESCO. Declaração mundial sobre a educação superior: declaração mundial sobre educação superior no século XXI; visão e ação, marco referencial de ação prioritária para a mudança e o desenvolvimento da educação superior. Brasília: UNESCO; 1998. Disponível em: Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000140457 . Acesso em: 20 fev. 2022.
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). O processo de informatização da sociedade sublinha a necessidade de um novo paradigma na educação superior: a interatividade entre as áreas e os saberes na formação para a cidadania e o desenvolvimento de pesquisa (Sônego, 2015SÔNEGO, Aline. Os desafios da universidade no século XXI e algumas reflexões sobre a posição docente frente a este processo. REBES - Revista Brasileira de Ensino Superior, v. 1, n. 1, p. 30-35, jul-set. 2015.).

A educação universitária deve repensar suas formas de ensino-aprendizagem em um contexto de cultura digital (Damas, 2001DAMAS, Luiz Antonio. Novo paradigma e novos desafios educacionais. Revista de Educação PUC-Campinas, Campinas, n. 10, p. 23-39, 2001.). As ferramentas de ensino digital podem favorecer o engajamento dos estudantes. As tecnologias educacionais constituem-se de forma a fomentar o processo de ensino-aprendizagem com qualidade na educação superior porque os aplicativos educativos possibilitam o desenvolvimento de amplas habilidades e competências. Elas enfatizam a competência dos estudantes para desenvolver o processo formativo com autonomia. Isso porque o ensino deve estar centrado na capacidade dos estudantes em adquirir as habilidades conforme as ferramentas digitais que melhor se adaptam às suas características de aprendizagem (Perrenoud, 2002PERRENOUD, Philippe. A formação dos professores no século XXI. In: PERRENOUD, Philippe; THURLER, Monica Gather; MACEDO, Lino de; MACHADO Nilson José; ALLESSANDRINI, Cristina Dias. As competências para ensinar no século XXI: a formação dos professores e o desafio da avaliação. Porto Alegre: Artmed Editora, 2002. p. 11-27.; Zabala e Arnau, 2010ZABALA, Antoni; ARNAU, Laia. O termo competência surge como resposta às limitações do ensino tradicional. In: ZABALA, Antoni; ARNAU, Laia. Como aprender e ensinar competências. Porto Alegre: Artmed, 2010. p. 17-26.).

A universidade no século XXI estará em rede e não terá fronteiras geográficas. Ela continuará a desenvolver a função de orientar as sociedades para o futuro com responsabilidade. A qualidade na educação superior terá a capacidade de aproximar os estudantes e inseri-los nas questões sociais por meio das tecnologias digitais de ensino e o compartilhamento da cultura digital. A prática docente no ensino superior está sendo reestruturada para a valorização das relações interativas e dialógicas entre o educador e os educandos no processo de construção de conhecimento e os saberes aplicados ao cotidiano. Esse processo de reconstrução das habilidades como docente faz repensar a identidade docente e a busca de novas estratégias de ensino para propiciar os contextos autênticos de aprendizagem. Essa nova prática docente colabora para a efetivação do ideal de universidade como instituição que atua nas áreas de ensino, pesquisa e extensão. Os estudantes percebem a interligação entre a teoria e a prática e agem como cidadãos críticos.

Dessa forma, esta investigação realiza o estudo filosófico e a pesquisa bibliográfica sobre as concepções de universidade na perspectiva bioética de Van Rensselaer Potter e na teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas. Esse referencial teórico colabora para a melhor compreensão da universidade como espaço de interação comunicativa e sua preocupação com os problemas que afetam a sociedade. Nesse estudo comparado, as obras de Van Rensselaer Potter e Jürgen Habermas orientam a reflexão sobre a função e propósito da universidade no século XXI e a forma como as inovações tecnológicas na educação podem fomentar a sociedade dialógica e crítica. Ademais, o referencial teórico possibilita pensar o sentido da universidade no contexto de digitalização social e sua capacidade de influenciar o processo de ensino-aprendizagem.

O referencial bioético de Van Rensselaer Potter indaga sobre a orientação da universidade para o futuro da sociedade e da humanidade. A bioética instiga a refletir sobre as novas formas de ação docente que priorizam a resolução de problemas em conformidade com os princípios éticos, o “saber ser” e o “saber conviver”. Como disciplina e saber interdisciplinar, ela se propõe a desenvolver as habilidades reflexivas e críticas dos educandos ao associar os valores éticos e o conhecimento científico em uma formação holística (Potter, 2018aPOTTER, Van Rensselaer. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Edições Loyola, 2018a.). O desenvolvimento da reflexão bioética no contexto universitário segue uma sequência didática que seja significativa, dialógica e colaborativa. A bioética convida os estudantes a refletirem sobre as suas corresponsabilidades no processo de tomada de decisão em um estudo de caso. A ação docente realiza previamente o brainstorming para diagnosticar os conhecimentos prévios dos estudantes e incentivar a pesquisa dos temas de estudo e os conceitos centrais da disciplina. Posteriormente, é apresentada a situação-problema e o docente atua como intermediador no desenvolvimento das competências e na resolução do caso.

O trabalho docente está se remodelando para propiciar o protagonismo dos estudantes. A universidade constitui-se como o espaço interativo para a realização de sua função social de ensino, pesquisa e extensão. A bioética propicia a investigação de situações-problemas e a efetivação da mediação pedagógica pela capacidade colaborativa entre o educador e o educando.

A reconstrução do sentido de universidade conforme a teoria do agir comunicativo de Jürgen Habermas irá complementar as discussões sobre o ambiente universitário como o espaço público de debate e comunicação para a formação humanística na sociedade digital e na resolução de situações-problemas.

Nesse sentido, as reflexões serão apresentadas da perspectiva da concepção bioética de universidade em Potter, sua função e seu propósito, com o intuito de enfatizar a pluralidade dos saberes e das práticas sociais na sociedade digital. Posteriormente, as reflexões teórico-críticas de Habermas colaborarão para pensar a universidade como esfera pública e formação cidadã e seu resgate do valor da interação comunicativa no processo de ensino-aprendizagem.

REFLEXÕES BIOÉTICAS E A FUNÇÃO DA UNIVERSIDADE EM VAN RENSSELAER POTTER

Em 1970, Van Rensselaer Potter, inspirado pela concepção de Aldo Leopold sobre a ética da terra, cunhou o termo “bioética”. Em seu primeiro livro, Bioética: ponte para o futuro, Potter descreveu este novo campo de estudo e ação localizado nos limites entre a biologia e a humanidades. Ele intitulou seu segundo livro Global Bioethics: Building on the Leopold Legacy (“Bioética Global: Construindo a partir do legado de Leopold”) (Whitehouse, 2018WHITEHOUSE, Peter J. Em direção a uma bioética mais profunda. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos, (orgs.). Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018. p. 189-200., p. 192).

Van Rensselaer Potter é considerado o pioneiro fundador dos estudos em bioética, na década de 1970, nos Estados Unidos da América. Deu significado ao neologismo “bio-ética” ao concebê-lo como a “ciência da sobrevivência” e o direcionamento das reflexões ao cuidado com a terra (questões ecológicas) e o cuidado com os seres humanos (questões sociais, sanitárias, econômicas, educacionais etc.). A bioética é a análise da complexidade das relações humanas e ambientais em prol da sobrevivência da espécie humana e das diferentes formas de vida, animal e vegetal (Schramm, 2011SCHRAMM, Fermin Roland. Uma breve genealogia da bioética em companhia de Van Rensselaer Potter. Revista Bioethikos (Centro Universitário São Camilo), v. 5, n. 3, p. 302-308, 2011.; Pessini, 2013PESSINI, Leo. As origens da bioética: do credo bioético de Potter ao imperativo bioético de Fritz Jahr. Revista Bioética, v. 21, n. 1, p. 9-19, 2013.). Potter (2016POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola, 2016.) propôs essa nova concepção sobre as relações humanas e o meio ambiente como área interdisciplinar de reflexão sobre o conhecimento científico e a orientação aos valores humanos (ética). Empenhou-se em construir o diálogo entre a formação acadêmica/científica e a preocupação com o futuro da espécie humana.

Se existem “duas culturas” que parecem incapazes de dialogar entre si - a ciência e as humanidades - e se isso é parte da razão de que o futuro parece em dúvida, então possivelmente nós podemos construir uma “ponte para o futuro”, por edificar a disciplina da bioética como uma ponte entre as duas culturas (Potter, 2016POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola, 2016., p. 23).

A bioética cumpre a função de ser a “ponte para o futuro” e estabelecer o diálogo entre as diversas áreas do conhecimento científico e saberes em conformidade com a orientação ética. Nesse primeiro momento de reflexão, a bioética é denominada como a “ciência da sobrevivência” e tem o intuito de aprimorar a qualidade de vida de todas as pessoas e o cuidado com o meio ambiente (Potter, 2016POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola, 2016., p. 27). Em outras palavras, Potter assentou o pensar bioético na possibilidade de direcionar o conhecimento científico para o bem da humanidade. Ele tinha o anseio de que os resultados da pesquisa científica se transformassem em sabedoria. A sabedoria expressa a interação entre a formação acadêmica, a experiência de vida e os saberes em consonância com os valores éticos.

O olhar para o futuro da humanidade e do meio ambiente foi uma inquietação constante nos escritos de Potter. A proposta de elaboração do “Conselho do Futuro” e seu estabelecimento como o espaço público para o debate interdisciplinar entre a ciências e as humanidades demonstra a centralidade da questão da sobrevivência humana em harmonia com o meio ambiente (Potter, 2011POTTER, Van Rensselaer. Credo bioético. Revista Bioethikos (Centro Universitário São Camilo), v. 5, n .3, p. 345, 2011.). É importante notar a influência de John Dewey em Potter, e posteriormente veremos em Habermas, na concepção do desenvolvimento científico como aberto à comunidade, a interação entre os diversos atores de pesquisa e os membros da sociedade civil e organizações não governamentais1 1 Em seu livro Democracia e Educação, John Dewey (1979) destaca a importância da educação para o fortalecimento da sociedade democrática e a participação dos cidadãos e cidadãs na construção dos alicerces institucionais para a manutenção e correção dos arranjos sociais em prol da igualdade e do bem comum. “Os dois elementos de nosso critério se orientam para a democracia. O primeiro significa não só mais numerosos e variados pontos de participação do interesse comum, como também maior confiança no reconhecimento de serem os interesses recíprocos fatores da regulação e direção social. E o segundo não só significa uma cooperação mais livre entre os grupos sociais (dantes isolados tanto quanto voluntariamente o podiam ser) como também a mudança dos hábitos sociais - sua contínua readaptação para ajustar-se às novas situações criadas pelos vários intercâmbios. E estes dois traços são precisamente os que caracterizam a sociedade democraticamente constituída. Quanto ao aspecto educativo, observaremos primeiro que a realização de uma forma de vida social em que os interesses se interpenetram mutuamente e em que o progresso, ou readaptação, é de importante consideração, toma a comunhão democrática mais interessada que outras comunhões na educação deliberada e sistemática” (Dewey, 1979, p. 93). .

Acredito que concordariam com John Dewey que o progresso consiste em um movimento em direção a uma sociedade de indivíduos livres em que todos, com seu próprio trabalho, contribuiriam para a libertação e o enriquecimento da sociedade como um todo. Acredito que a revitalização de nosso sistema de valores é tanto necessária quanto possível (Potter, 2016POTTER, Van Rensselaer. Bioética: ponte para o futuro. São Paulo: Edições Loyola, 2016., p. 100).

Em sua análise da bioética potteriana, Ten Have (2018TEN HAVE, Henk Antonius Maria Johannes. O conceito de bioética de Potter. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos, (orgs). Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018. p. 75-98.) destaca a concepção de ciência e pesquisa científica em Potter como a compreensão de que nenhuma área de especialização conseguirá responder adequadamente aos problemas contemporâneos e complexos e que os atores sociais têm que trabalhar interdisciplinarmente para responderem assertivamente aos problemas globais. Da mesma forma, a pesquisa acadêmica deve restabelecer a conexão e o diálogo entre as áreas científicas e as humanidades.

Porque há sempre a possibilidade de erro, os cientistas não devem assumir que sua própria área de especialização fornecerá toda a resposta para um problema complexo. A fim de fazer recomendações para políticas públicas, os cientistas devem desenvolver uma compreensão realista dos dados relevantes, orientando um curso entre avaliações otimistas e pessimistas para que resulte na política mais viável. Eles também devem manter um senso de limitação dos dados e processos em mãos, buscando tanto a colaboração interdisciplinar quanto o teste empírico de ideias como medida corretiva (Ten Have, 2018TEN HAVE, Henk Antonius Maria Johannes. O conceito de bioética de Potter. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos, (orgs). Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018. p. 75-98., p. 77).

Ten Have (2018TEN HAVE, Henk Antonius Maria Johannes. O conceito de bioética de Potter. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos, (orgs). Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018. p. 75-98., p. 79) recorda a influência da antropóloga Margaret Mead na concepção bioética de Potter, uma vez que ela defende que as universidades sejam as “cátedras do futuro” e façam o diálogo entre as ciências e as humanidades2 2 Muzur e Rincic (2019, p. 40) relatam a influência de Margaret Mead sobre a perspectiva bioética de Potter ao comentarem a transformação espiritual pela qual passou o bioeticista e a proposta da antropóloga em resgatar a importância da utopia na sociedade moderna. Em seu artigo “Towards More Vivid Utopias”, M. Mead (1957) reconstrói o conceito de utopia/s como o/s paradigma/s de um período experienciado por uma comunidade e sua potencialidade universal de conduzir para a responsabilidade perante o desenvolvimento técnico-científico, assim como ela propõe o estabelecimento da “Chairs of the Future” (“Cátedra do Futuro”) como o reencontro entre as ciências, as artes e as humanidades. “Finalmente, parece-me, nesta época em que a própria sobrevivência da raça humana, e, possivelmente, de todas as criaturas vivas depende de termos uma visão do futuro para os outros, que exigirá nosso mais profundo compromisso, precisamos em nossas universidades, que devem mudar e crescer com o mundo, não apenas cadeiras de história e linguística comparada, de literatura e arte - que tratam do passado e às vezes do presente, mas também precisamos de Cátedras do Futuro, cadeiras para aqueles que se dedicarão, com toda a erudição e atenção necessárias, a desenvolver a ciência em todas as suas possibilidades para o futuro, e quem o fará devotam-se tão fielmente aos pequenos detalhes do que o homem pode muito bem ser - à luz de todo o nosso conhecimento - quanto qualquer classicista ou medievalista se dedica aos textos de Píndaro e Horácio ou ao pensamento de São Tomás de Aquino” (Mead, 1957, p. 961). . Como vimos, essa mesma ideia fez Potter propor que as universidades fossem os “Conselhos do Futuro”. De acordo com Ten Have:

O conselho deveria ser interdisciplinar e incluir especialistas das ciências naturais e sociais e das humanidades, e ser equilibrado por um fórum democrático, aberto “a pessoas de fora” e ao debate público sobre problemas sociais. Esses mecanismos, conforme afirma, poderiam contribuir para ligar as lacunas entre saber e fazer, entre valores e fatos (Ten Have, 2018TEN HAVE, Henk Antonius Maria Johannes. O conceito de bioética de Potter. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos, (orgs). Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018. p. 75-98., p. 79).

Na perspectiva de Potter, a universidade seria o espaço de excelência para a formação moral e política dos cidadãos e cidadãs, assim como o espaço aberto para a interação democrática e dialógica sobre a complexidade social. As discussões bioéticas podem revigorar a participação popular em uma sociedade democrática porque a bioética almeja que o processo de tomada de decisão ocorra por meio do consenso revigorado. Ao refletir sobre o contexto educacional estadunidense, Potter enfatizou a relevância da perspectiva bioética para superar as cisões sociais e integrar os grupos sociais para a cooperação social e o entendimento mútuo.

A questão apresentada pela discussão e prática da bioética em uma sociedade democrática pode fornecer uma base para um novo consenso que hoje está tristemente ausente nos Estados Unidos. Essas questões precisam ser apresentadas e discutidas em todos os níveis da nossa educação e do nosso sistema educacional (Potter, 2018bPOTTER, Van Rensselaer. Bioética. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos. Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018b. p. 45-48., p. 47).

Nesse contexto de pensar a bioética como a “ponte para o futuro” é que Potter demonstrou a sua preocupação com o futuro e a sobrevivência humana. Por isso, a bioética demonstra ser a inter-relação entre o saber científico em conformidade com a responsabilidade moral de seus/suas pesquisadores/as. A universidade deve se constituir como o espaço público para a garantia da espécie humana. Potter destaca a virtude da humildade perante a capacidade tecnocientífica e a capacidade humana de intervir na natureza. Em outras palavras, é necessário agir com responsabilidade perante a capacidade interventiva e tecnológica que possui a humanidade. Ele enfatiza a necessidade de critérios éticos para orientar a pesquisa científica e o exercício da capacidade crítica, reflexiva e transdisciplinar para pensar possíveis soluções aos problemas humanos globais.

Assim como nenhum indivíduo conhece os critérios mais apropriados para julgar as ações orientadas ao futuro, deve-se estar disposto a superar os limites das disciplinas, a exercitar a crítica, a desenvolver abordagens e soluções pluralistas, baseando-se em grupos interdisciplinares. Na prática, dentro desse contexto é que se situa a minha proposta de uma bioética como “ponte para o futuro” (Potter apud Spinsanti, 2018SPINSANTI, Sandro. Um encontro com Van Rensselaer Potter. In: PESSINI, Leo; SGANZERLA, Anor; ZANELLA, Diego Carlos. Van Rensselaer Potter: um bioeticista original. São Paulo: Loyola, 2018, p. 49-60., p. 53).

Quando Potter ocupava o cargo de presidente do Interdisciplinary Studies Committee on the Future of Man (Comitê de Estudos Interdisciplinares sobre o Futuro do Ser Humano) na Universidade de Wisconsin (Madison, EUA), ele e outros membros publicaram na Science Magazine o artigo “Purpose and Function of the University (“O propósito e a função da Universidade”). Esse artigo precedeu a obra que inaugura as reflexões de Potter sobre a bioética, Bioética: ponte para o futuro (2016), e expressa as indagações que perpassaram pelas obras subsequentes sobre a preocupação com o futuro da humanidade3 3 Em seu memorial ao professor Van Rensselaer Potter II, o colegiado da Universidade de Wisconsin-Madison recordaram a importância desse artigo e o pioneirismo dele em dar densidade normativa ao termo “bioética” e sua expressão como a “ponte para o futuro” (Bioethics: Bridge to the Future). “O artigo ‘Purpose and Function of the University’, um produto em coautoria do Interdisciplinary Studies Committee on the Future of Man na University of Wisconsin, do qual Van era o presidente, ilustrou seu compromisso com o futuro da humanidade e com o meio ambiente e as enormes responsabilidades que nós, como acadêmicos, temos na transmissão de conhecimento e valores bioéticos” (Pitot et al., 2002). , por exemplo, a obra Bioética Global (Potter 2018aPOTTER, Van Rensselaer. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Edições Loyola, 2018a.). De acordo com Potter (2018aPOTTER, Van Rensselaer. Bioética global: construindo a partir do legado de Leopold. São Paulo: Edições Loyola, 2018a., p. 66-67), foram três anos na referida atividade universitária e ele tinha o objetivo de analisar a responsabilidade da comunidade universitária em apresentar as ações possíveis para a sobrevivência humana e a garantia da qualidade de vida.

O paper sobre a universidade objetivou responder às quatro questões, realizadas pelo Board of Regents da Universidade de Wisconsin, sobre o propósito e as metas da educação superior (higher education). As questões referiam-se aos propósitos do ensino superior (i), às metas da universidade como entidade (ii), aos objetivos de cada segmento da universidade (iii) e ao envolvimento dos estudantes e das organizações estudantis na administração da universidade (iv). O artigo de Potter buscou dialogar com o Report of 1967 (Relatório de 1967) sobre a educação superior em uma época em que era vital o repensar as estruturas educacionais nos Estados Unidos da América. Potter avaliava a repercussão da formação universitária na vida social e política dos cidadãos e cidadãs estadunidenses. O texto é seminal em defender a preocupação com as questões do “presente”, as questões do “futuro” e a sobrevivência humana. O contexto educacional do paper era a efervescente reconstrução cultural e a imprescindibilidade da integração étnico-social. As decisões da Suprema Corte americana posteriores ao caso “Brown of Board of Education of Topeka” (1955)4 4 Essa importante decisão da Suprema Corte americana objetivou restabelecer a integração étnico-racial nas escolas estadunidenses e romper o lema “Iguais, mas separados” (1866) (Rodrigues, 1991). enfatizaram a urgência de integração racial, o fortalecimento da democracia e a efetivação dos direitos civis na sociedade estadunidense5 5 Algo semelhante à ideia de reeducação dos/as cidadãos e cidadãs estadunidenses e à defesa de medidas inclusivas pelo sistema educacional estadunidense foi analisado posteriormente por Richard Rorty: “Parece-me que a ideia reguladora que nós - liberais moles; nós, herdeiros do esclarecimento; nós, socráticos - mais frequentemente usamos para criticar a conduta de vários parceiros de conversação é a de que “é preciso educação, a fim de deixar para trás medos, ódios e superstições primitivos”. Esse é o conceito que os exércitos aliados vitoriosos usaram, quando trataram de reeducar os cidadãos da Alemanha e do Japão ocupados. É também aquele que foi utilizado pelos professores norte-americanos, que tinham lido Dewey e estavam interessados em pôr seus alunos para pensar, “cientificamente” e “racionalmente”, acerca de assuntos como a origem das espécies e o comportamento sexual (ou seja, fazê-los ler Darwin e Freud, sem nojo nem incredulidade). Trata-se de um conceito que eu e a maioria dos norte-americanos que ensinam humanidades ou ciências sociais em faculdades e universidades invocamos quando temos de arrumar as coisas de modo que os estudantes, que chegam preconceituosos, homofóbicos e religiosos fundamentalistas, saiam da faculdade com posições mais parecidas com as nossas” (Rorty, 2005, p. 119). .

O Interdisciplinary Studies Committee on the Future of Man, fundado em 1962 e presidido na década de 1970 por Potter, tinha a função de analisar o propósito e os objetivos da universidade em consideração com o futuro da humanidade. De acordo com Potter, a universidade teria a responsabilidade de indicar os meios para a sobrevivência humana, a função de oferecer as informações adequadas ao projetar as possibilidades de resolução de problemas e a tomada de decisão em situações de crise política, econômica e ambiental. Diante da ausência de planejamento entre os governos sobre as questões emergentes da sociedade, como a desigualdade social e o avanço tecnocientífico, a função da universidade não poderia ser reduzida à resolução dos problemas do presente imediato e à questão da utilidade pública. As instituições de ensino superior deveriam se preocupar com as futuras gerações.

SOBRE O PROPÓSITO DA UNIVERSIDADE NA ERA DIGITAL

A atuação da universidade, segundo Potter, caracteriza-se pela busca da verdade. O fomento à pesquisa deve elucidar as questões humanas em suas múltiplas atividades e discernir entre os problemas imediatos e os problemas futuros da humanidade. O propósito da universidade está em proporcionar o ambiente de descobertas, a realização de exame crítico e a formação em conhecimento e valores. As atividades universitárias devem se caracterizar pela pesquisa interdisciplinar e proporcionar os meios para se alcançar a qualidade de vida. “Nossa crença é que os problemas de sobrevivência e aprimoramento podem ser mais bem atendidos com uma abordagem aberta e pluralista, na qual o julgamento das prioridades está sob a constante vigilância e reexame” (Potter et al., 1970POTTER, Van Rensselaer; BAERREIS, D. A.; BRYSON, R. A; CURVIN, J. W; JOHANSEN, G; McLEOD, J; RANKIN, J.; SYMON, K. R. Purpose and Function of the University, Science, v. 167, n. 3925, p. 1590-1593, 1970., p. 1591).

A busca pela verdade na universidade deve orientar para o futuro para ao agir com responsabilidade. A universidade provê o conhecimento, as habilidades e os valores sociais. O governo e as outras entidades sociais, como as indústrias e as empresas privadas, teriam o objetivo de colaborar na resolução de problemas emergentes em sua cooperação e fomento às atividades da instituição universitária. Nas palavras de Potter:

Nós acreditamos que uma universidade orientada para o futuro encontraria as maneiras dos estudantes e docentes a se engajarem em esforços interdisciplinares que contribuiriam não apenas para o futuro, mas também para o presente (Potter et al., 1970POTTER, Van Rensselaer; BAERREIS, D. A.; BRYSON, R. A; CURVIN, J. W; JOHANSEN, G; McLEOD, J; RANKIN, J.; SYMON, K. R. Purpose and Function of the University, Science, v. 167, n. 3925, p. 1590-1593, 1970., p. 1591).

Essa proposta de pensar a universidade como o espaço de interação social e análise dos problemas sociais do presente e do futuro faz-nos refletir sobre o ambiente universitário como o espaço social caracterizado pela liberdade de investigação e a possibilidade de investigar por diversos caminhos. Assim, Potter enfatiza a necessidade de integração e pluralidade nas formas de pesquisa.

Nós afirmamos que os membros do corpo docente da universidade têm a obrigação de identificar a orientação de sua busca pela verdade em termos explícitos e significativos para a juventude de hoje, para a geração mais velha, e um para o outro. É possível ser explícito sobre a orientação no que diz respeito ao futuro, ao mesmo tempo em que tem uma mente aberta quanto aos meios ou à possibilidade de diferentes orientações individuais (Potter et al., 1970POTTER, Van Rensselaer; BAERREIS, D. A.; BRYSON, R. A; CURVIN, J. W; JOHANSEN, G; McLEOD, J; RANKIN, J.; SYMON, K. R. Purpose and Function of the University, Science, v. 167, n. 3925, p. 1590-1593, 1970., p. 1592).

Ele chama a atenção para a relevância da interdisciplinaridade no trabalho docente e propõe a organização de programas interdisciplinares de estudo e pesquisa. As recomendações de Potter para o desenvolvimento da pesquisa científica e docente salientam o aspecto de assumir a postura de humildade perante o futuro. Isso é fortemente enfatizado pela produção científica e bioética de Potter.

Acreditamos que a universidade tem a obrigação de examinar e preservar os julgamentos de valor que podem elevar a condição da sociedade da qual depende. Ela pode servir a essa função por uma busca pela verdade orientada para o futuro e que reconhece explicitamente a necessidade de transmitir não apenas conhecimento, mas também julgamentos de valor significativos para as gerações seguintes (Potter et al., 1970POTTER, Van Rensselaer; BAERREIS, D. A.; BRYSON, R. A; CURVIN, J. W; JOHANSEN, G; McLEOD, J; RANKIN, J.; SYMON, K. R. Purpose and Function of the University, Science, v. 167, n. 3925, p. 1590-1593, 1970., p. 1592).

A ideia de universidade em Potter faz-nos refletir sobre a imprescindibilidade de reconhecer que a adoção da perspectiva pluralista poderá propiciar a liberdade intelectual e acadêmica - a universidade como espaço público de interação e diálogos entre os indivíduos para a construção e o fortalecimento da sociedade democrática e a proteção da igualdade de oportunidades. O propósito da universidade deve ser orientado pelos problemas do futuro, a sobrevivência e o aprimoramento humano. Essa perspectiva poderá engendrar o desenvolvimento do senso de comunidade, como arguiu J. Dewey, e fortalecer as utopias e a significância do processo de ensino e aprendizagem, como recordou M. Mead.

A universidade na era digital tem vivenciado as transformações em sua autocompreensão como espaço de formação humana e redimensionado a sua atuação para o exercício da cidadania planetária. O ambiente universitário não se reduz à formação de força de trabalho qualificada, mas se propõe a formar cidadãos e cidadãs que tenham a preocupação com o futuro da humanidade e do planeta Terra (Morin, 2000MORIN, Edgar. Os sete saberes necessários à educação do futuro. São Paulo: Cortez, 2000.; Nelson e Wei, 2012NELSON Adam R.; WEI, Ian P. The global university. historical studies in education. New York: Palgrave Macmillan, 2012.; UNESCO, 2015UNESCO. Perspectives on emerging issues. Lausanne: UNESCO; 2015. Disponível em: Disponível em: https://en.unesco.org/sites/default/files/usr15_perspectives_on_emerging_issues.pdf . Acesso em: 01 fev. 2022.
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). As reflexões de Potter reforçam a defesa da interdisciplinaridade e a pluralidade de perspectivas e abordagens no ambiente universitário. Além disso, o fortalecimento da cidadania democrática e a interação entre os saberes desenvolvidos na universidade e em outros espaços de interação social e partilha de experiências deverão fundamentar a perspectiva da universidade global.

A relevância do processo de ensino-aprendizagem no século XXI será caracterizada pela capacidade dos docentes em interagir com os estudantes como coconstrutores dos saberes, corresponsáveis e atuantes na sociedade. O processo de ensino-aprendizagem deve ser relevante e significativo aos estudantes. Os docentes e estudantes devem se observar em processo contínuo de aprendizagem e formação. A marca da educação no século XXI será a ênfase no lifelong learning (“processo de aprendizagem contínuo”) como resultado do desenvolvimento e capacitação da autonomia e das escolhas dos sujeitos do conhecimento. Como afirmam Rita Barros et al. (2014BARROS, Rita Manuela Almeida; MONTEIRO, Angélica Maria Reis; MOREIRA, José António Marques. Aprender no ensino superior: relações com a predisposição dos estudantes para o envolvimento na aprendizagem ao longo da vida. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 95, n. 241, p. 544-566, set-dez. 2014, https://doi.org/10.1590/S2176-6681/305811495
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): “A Unesco sublinha a questão humanista do impacto educativo, sendo a aprendizagem ao longo da vida condição essencial para o bem-estar das pessoas e a educação uma responsabilidade coletiva” (Barros et al., 2014BARROS, Rita Manuela Almeida; MONTEIRO, Angélica Maria Reis; MOREIRA, José António Marques. Aprender no ensino superior: relações com a predisposição dos estudantes para o envolvimento na aprendizagem ao longo da vida. Revista Brasileira de Estudos Pedagógicos, Brasília, v. 95, n. 241, p. 544-566, set-dez. 2014, https://doi.org/10.1590/S2176-6681/305811495
https://doi.org/10.1590/S2176-6681/30581...
, p. 549). Essa perspectiva defendida pela Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura (Unesco) deve ser o referencial para a formação docente no século XXI. A formação universitária tem que considerar a formação humanista como relevante ao processo de aprendizagem; deve indicar os caminhos para a aprendizagem contínua e ser relevante às experiências de vida dos estudantes.

Essa perspectiva para a universidade na era digital como a “Cátedra do Futuro” - proposta por Potter - poderá ser mais bem compreendida da perspectiva da teoria social de Jürgen Habermas ao destacar a necessidade de diálogo entre os saberes e os problemas sociais, bem como o direcionamento para a emancipação social. Em Habermas, a universidade tem o intuito de formar para a autonomia e o esclarecimento dos cidadãos e cidadãs em sua interação entre o conhecimento científico e as relações sociais nos ambientes não institucionais. Da mesma forma, no artigo de Potter et al. (1970POTTER, Van Rensselaer; BAERREIS, D. A.; BRYSON, R. A; CURVIN, J. W; JOHANSEN, G; McLEOD, J; RANKIN, J.; SYMON, K. R. Purpose and Function of the University, Science, v. 167, n. 3925, p. 1590-1593, 1970.), o contexto da universidade alemã era de reconstrução de sua identidade e atuação na sociedade. Os contextos universitários estadunidense e alemão, junto com os seus respectivos teóricos sociais, estavam se reorientando para atender às necessidades sociais de inclusão e maior democratização das instituições políticas.

A IDEIA DE UNIVERSIDADE, CIÊNCIA E SOCIEDADE EM JÜRGEN HABERMAS

Por isso, as funções que a universidade desempenha em prol da sociedade têm que continuar unidas, de certa forma, a partir de dentro, com as metas, motivos e ações de seus membros, que cooperam no âmbito de uma divisão do trabalho (através do entrelaçado de intenções). Nesse sentido, a universidade deve incorporar institucionalmente - e ancorar nos motivos - uma forma de vida exemplar, compartilhada intersubjetivamente por seus membros (Habermas, 2005HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade - processos de aprendizagem. In: HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 71-104., p. 72).

Jürgen Habermas tem se destacado por sua proposta de reconstrução das esferas sociais com base na teoria do agir comunicativo e sua atuação na práxis social desde o período de estudante universitário e, posteriormente, como professor universitário. Ele é inspirado pelo ideal de emancipação social e crítica às formas sistêmicas de racionalidade instrumental/estratégica (Oliveira, 2002OLIVEIRA, Nythamar Hilário Fernandes de. Processos de aprendizagem, mundo da vida e sistema: a ideia de Universidade em Habermas. In: ROHDEN, Valerio (org.). Ideias de Universidade. Canoas: EDULBRA, 2002, p. 104-115.; Pinzani, 2009PINZANI, Alessandro. Habermas. Porto Alegre: ArtMed, 2009.; Brunkhorst et al, 2017BRUNKHORST, Hauke; KREIDE, Regina; LAFONT, Cristina. The Habermas handbook. New York: Columbia University Press, 2017.). A teoria do agir comunicativo tem o objetivo de resgatar o potencial emancipatório da capacidade de dialogar, a busca pelo entendimento mútuo, o exercício da argumentação e do pensamento intersubjetivo na esfera pública (Habermas, 2012HABERMAS, Jürgen. A teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.). A universidade constitui-se em um modelo de esfera pública por causa de sua pluralidade de perspectivas e orientações teórico-práticas. O processo de formação acadêmica universitária ocorre pela interlocução entre seus integrantes em sua busca pela compreensão dos fenômenos sociais e naturais.

Em “A ideia de universidade - processos de aprendizagem”, Jürgen Habermas (2005HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade - processos de aprendizagem. In: HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 71-104.) desenvolve a reflexão baseado no contexto de reconstrução educacional e cultural da Alemanha no período de pós-guerra (1945) e o resgate de seu sentido clássico proposto por Schelling, Humboldt e Schleiermacher. Segundo ele, havia a necessidade de renovação da “ideia de universidade” ou as instituições de ensino superior iriam se limitar à função de fornecimento de força de trabalho com qualificação técnico-cientifica. Essa renovação do significado da universidade fez reavivar a importância da formação humanística de seus integrantes. Os autores Humboldt (1997HUMBOLDT, Wilhelm von. Sobre a organização interna e externa das instituições científicas superiores em Berlim. Rio de Janeiro: Editora UERJ, 1997.) e Schleiermacher (1996SCHLEIERMACHER, Friedrich Daniel Ernst. Gelegentliche Gedanken Über Universitäten in Deutschen Sinn in Schriften. Frankfurt: Deutscher Klassiker Verlag, 1996.) fazem-nos pensar sobre a defesa da autonomia do ensino universitário e da ciência moderna em relação à religião e à interferência estatal (Leopoldo e Silva, 2001LEOPOLDO E SILVA, Franklin. Reflexões sobre o conceito e a função da Universidade pública. Estudos Avançados, v. 15, n. 42, p. 295-304, 2001. https://doi.org/10.1590/S0103-40142001000200015
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; Coves, 2008COVES, Faustino Oncina. La filosofía clásica alemana y su idea de la universidad: ¿un anacronismo viviente? In: COVES, Faustino Oncina. Filosofía para la universidad, filosofía contra la universidad (de Kant a Nietzsche). Madrid: Editorial Dykinson, 2008. p. 13-47.). Este parece ser o aspecto essencial para o desenvolvimento das atividades na universidade: a liberdade acadêmica e sua autonomia. O desenvolvimento das pesquisas científicas no ambiente universitário alemão demonstrou a sua capacidade de autonomia funcional. A universidade e seus integrantes têm a capacidade de se modificar e se inserir no desenvolvimento cultural e nas formas de interação social. Na perspectiva desses autores, o desenvolvimento dos saberes na universidade iria conduzir ao aprofundamento da bildung (formação cultural). A bildung compreende a formação cultural, acadêmica e pessoal; em outras palavras, refere-se à formação humana integral, a que os gregos antigos evocavam por meio do conceito de paideia (Jaerger, 2003JAEGER, Werner. Paideia: a formação do homem grego. São Paulo: Martins Fontes, 2003.; Alves, 2019ALVES, Alexandre. A tradição alemã do cultivo de si (Bildung) e sua significação histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 2, e83003, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2175-623683003
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).

A “ideia de universidade” denota a alma da instituição e seu propósito na sociedade. Esse propósito descreve os processos de cooperação entre os membros da comunidade científica. Por isso, Habermas dedicou-se a compreender os processos de aprendizagem organizados na universidade com base em seu processo de desenvolvimento histórico-social em resposta à restauração democrática alemã no pós-1945. Esse período foi marcado pela ampliação do acesso à educação formal e culminou com a crise econômica na década de 1970, a recessão no planejamento educacional e a revisão da política educacional, incluídas as tensões com o movimento estudantil universitário de 1967-69 (Santos, 1989SANTOS, Boaventura de Souza. Da ideia de Universidade à Universidade das ideias. Revista Crítica de Ciências sociais, n. 27/28, p. 11-62, jun. 1989.; Adorno, 1995ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995.). A crise econômica ocasionou a diminuição de ingressantes na universidade e dificuldades para que eles pudessem realizar a inserção no mercado de trabalho. A crise afetou também as finanças públicas e as fontes financiadoras da universidade. Nesse contexto de crises e questionamento do sistema educacional, foi preciso que a universidade alemã se reinventasse e resgatasse o sentido primordial de sua atuação na sociedade.

A universidade deve cumprir a sua função social como espaço de interação e socialização. Deve ser o ambiente para o compartilhamento cultural e a formação da opinião e da vontade política. Habermas enfatiza que o espaço universitário se caracteriza pelo nexo entre os processos de aprendizagem científicos e as formas de vida das sociedades modernas ou entre a universidade e mundo da vida. O mundo da vida caracteriza-se por ser o espaço de vivência de valores e cultura mediatizados pelo diálogo e o exercício da racionalidade comunicativa, por exemplo, no ambiente familiar e escolar. Distingue-se da racionalidade sistêmica (administração pública e economia) porque as relações sociais se efetivam pelo processo de autocompreensão entre os indivíduos e a formação humana (Mühl, 2016MÜHL, Eldon Henrique. Mundo da vida e educação: racionalidade e normatividade. Filosofia e Educação, Campinas, v. 8, n. 2, p. 97-120, 2016. https://doi.org/10.20396/rfe.v8i2.8646391
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). Por isso, a formação universitária deve transcender o aspecto técnico-científico e objetivar a formação humana e cultural.

O sistema científico diferenciado não deve se concentrar apenas na economia, na técnica e na administração, mas continua enraizado no mundo da vida mediante o enfeixamento tradicional de suas funções. E esse enfeixamento das funções deve ser explicado a partir da própria estrutura da ciência (Habermas, 2005HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade - processos de aprendizagem. In: HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 71-104., p. 90).

Habermas descreve o espaço universitário em sua unidade com o mundo da vida porque possibilita as formas de socialização e integração social mediante os processos de ensino-aprendizagem e pesquisa. O âmbito do ensino é a forma de apresentação de resultados e interação docente-estudantes. A pesquisa acontece pela construção coletiva dos saberes competências. O ensino e a pesquisa possibilitam o desenvolvimento cultural e a realização do ideal de sociedade aberta aos temas contemporâneos e ao processo de aufklärung (esclarecimento).

A aufklärung e sua discussão ocupam espaço destacado na análise filosófica sobre o desenvolvimento da emancipação social e a crítica às formas opressoras do conhecimento técnico-científico. A filosofia crítica de Immanuel Kant, em seu famigerado opúsculo sobre o esclarecimento, enfatiza o processo de crítica como a avaliação e julgamento realizados no espaço público. O processo de esclarecimento e o desenvolvimento das capacidades racionais, no indivíduo ou na sociedade, apresentam as condições para se observar como livre de qualquer submissão ou cerceamento da capacidade de pensar. De acordo com Kant, o processo de esclarecimento é assinalado pela liberdade que os indivíduos possuem para realizarem as críticas ao status quo das instituições políticas. Esse comportamento crítico é denotado pela liberdade de exposição pública do pensamento e da opinião. Esse processo de esclarecimento público proporcionaria o desenvolvimento social e científico como a expressão da liberdade crítica.

Um grau maior de liberdade civil parece vantajoso para a liberdade de espírito do povo e, no entanto, estabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo de expandir-se tanto quanto possa (Kant, 1985KANT, Immanuel. Resposta à pergunta: Que é “Esclarecimento” (Aufklärung)? In: KANT, Immanuel. Immanuel Kant: Textos seletos. Rio de Janeiro: Vozes, 1985. p. 100-116., p. 114).

Michel Foucault, no texto dedicado ao esclarecimento em Kant, caracteriza esse processo social como se referindo às questões da atualidade. A filosofia se desenvolveria na problematização da atualidade e objetivaria compreender o seu processo de racionalização social: “[...] a filosofia como problematização de uma atualidade e como interrogação para o filósofo dessa atualidade da qual faz parte e em relação à qual tem que se situar poderia caracterizar a filosofia como discurso da modernidade e sobre a modernidade” (Foucault, 1984FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?”. Magazine Littéraire, n. 207, p. 35-39, 1984., p. 3). De acordo com Foucault, a aufklärung é o processo cultural autorreflexivo que se situa entre o passado e o presente e age nas estruturas sociais do presente.

A Aufklärung é uma época, uma época que formula ela mesma seu lema, seu preceito e que diz o que se tem de fazer, tanto em relação à história geral do pensamento, quanto em relação a seu presente e às formas de conhecimento, de saber, de ignorância e de ilusão nas quais ela sabe reconhecer sua situação histórica (Foucault, 1984FOUCAULT, Michel. “Qu’est-ce que les Lumières?”. Magazine Littéraire, n. 207, p. 35-39, 1984., p. 3).

Habermas caracteriza a relação entre a ciência e o esclarecimento da sociedade como o processo de emancipação social e a garantia do desenvolvimento autônomo dos indivíduos. Essa relação entre a ciência e o esclarecimento social está na base filosófica reflexiva e pauta-se pela clareza intelectual e a liberdade de espírito. Nesse sentido, Habermas compreende que o desenvolvimento dos processos de ensino-aprendizagem no ambiente universitário garantiria a unidade entre o ensino e a pesquisa e entre as diferentes formas de expressão da pesquisa científica, a ciência e a formação geral e a ciência e o esclarecimento.

No contexto alemão, a universidade e a ciência estruturam-se pela a pesquisa e o ensino desenvolvidos em seus âmbitos de atuação. Por um lado, a ciência une-se ao objetivo de formação geral e garante a relação de complementaridade entre o processo de ensino e aprendizagem. Por outro lado, em unidade com o processo de esclarecimento da sociedade, poderá culminar com o ápice da cultura moral. Este é o sentido primordial da universidade alemã: a formação científica deve culminar na formação esclarecida e moral de seus integrantes. Os integrantes da universidade devem ter o compromisso moral com o bem da sociedade e sua garantia de liberdade crítica, como asseverou a filosofia kantiana. Habermas, sob a inspiração da filosofia de Karl Jaspers, advoga pela reflexão filosófica inserida na ciência como o processo de inclusão de pressupostos éticos e o cuidado do desenvolvimento científico na universidade. Esta não pode reduzir sua atividade ao aspecto funcional de formação de mão de obra qualificada; ela deve realizar a sua essência: a formação humana integral e sua ação na sociedade (Terra, 2014TERRA, Ricardo. A universidade entre a excelência administrada e o social-desenvolvimentismo. Novos Estudos CEBRAP, n. 100, p. 81-95, nov. 2014. https://doi.org/10.1590/S0101-33002014000300005
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).

[Jaspers] fala, inclusive, que as ciências necessitam da orientação filosófica, porque somente esta é capaz de garantir não somente o hábito de pensar cientificamente através da reflexão sobre os pressupostos, mas também a conscientização das ideias diretrizes da pesquisa, bem como o motivo da busca incondicional do saber. Destarte, compete à filosofia o papel de protetora da ideia de universidade - e com isso, o papel de marca-passo das reformas (Habermas, 2005HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade - processos de aprendizagem. In: HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 71-104., p. 91).

Esse ideal de interação entre a filosofia e a ciência pode ser observado no modelo estadunidense de universidade mediante o estudo da sociologia de Talcott Parsons (Parsons, Platt e Gerald, 1973PARSONS, Talcott; PLATT, Gerald M.; SMELSER, Neil Joseph. The American University. Cambridge: Harvard University Press, 1973.; Parsons, 1974PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974.) sobre as funções sociais da universidade. A análise social de Parsons observa o ambiente universitário como incentivador da pesquisa e da promoção de jovens pesquisadores com o objetivo de preparação acadêmica à profissão e à formação geral, a humanística. Neste caso, haveria o enfeixamento entre o processo de autoentendimento cultural e o esclarecimento intelectual. No contexto estadunidense, Parsons observa o processo de ampliação do sistema educacional no século XX como tendo o objetivo de garantir a igualdade de oportunidade e a cidadania para todas as pessoas perante as transformações sociais e econômicas. A modernização social conduziu ao processo de ampliação da democratização das instituições e sua forma colegiada de decisão.

Muitas organizações estereotipadas como burocracia sob muitos aspectos se tornaram “colegiados”. O governo moderno não predominantemente burocrático, não apenas porque foi “democratizado” pelo cargo eletivo e pela responsabilidade perante o público, mas também porque sua estrutura interna, sobretudo seu “ramo executivo”, é em grande parte um “colegiado” (Parsons, 1974PARSONS, Talcott. O sistema das sociedades modernas. São Paulo: Pioneira, 1974., p. 129).

Habermas compreende os processos de aprendizagem no ambiente universitário como as formas comunicativas de desenvolvimento da argumentação científica. A universidade poderia ser analisada metaforicamente como a “comunidade pública de comunicação de pesquisadores”. Ao citar Schleiermacher e a questão do conhecimento como processo de linguagem e comunicação, ressalta o ambiente universitário como propiciador da interação social. Essa perspectiva filosófica compreende as relações humanas como inseridas no processo comunicativo e nas interações sociais do processo de desenvolvimento cognitivo.

A primeira lei de toda a tendência voltada ao conhecimento é a seguinte: comunicação; e na impossibilidade de se produzir qualquer coisa para si mesmo sem a utilização da linguagem, a própria natureza expressou claramente essa lei (Schleiermacher apud Habermas, 2005HABERMAS, Jürgen. A ideia de universidade - processos de aprendizagem. In: HABERMAS, Jürgen. Diagnósticos do Tempo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2005, p. 71-104., p. 99).

No ambiente universitário estariam os resquícios do mundo da vida, por exemplo, a cooperação no processo de ensino-aprendizagem e a construção dos saberes desenvolvidos nela. A racionalidade comunicativa caracteriza-se por ser o exercício reflexivo e compreensivo das relações sociais entre os sujeitos. A relação intersubjetiva entre os atores comunicativos realiza-se pelo uso da linguagem (diálogo) com o intuito de se entender sobre as normas sociais. Esse agir orientado ao entendimento é por excelência reflexivo e preocupado com o Outro. Ele é direcionado para a superação de concepções individuais e subjetivas. O exercício da racionalidade comunicativa poderá fornecer a motivação para o agir ético e romper com o raciocínio estratégico-instrumental da sociedade contemporânea (Habermas, 2012HABERMAS, Jürgen. A teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes, 2012.). A racionalidade estratégico-instrumental caracteriza-se pela busca do êxito e a eficácia das decisões. Tem sido amplamente difundida e amplificada pela capacidade tecnológica e algorítmica da sociedade contemporânea. Por isso, o resgate da capacidade comunicativa dos sujeitos e o fortalecimento da universidade como esfera pública poderá ser o instrumento adequado para a formação de sujeitos morais e politicamente comprometidos com a sociedade.

A UNIVERSIDADE COMO ESPAÇO DE DIÁLOGO NA SOCIEDADE DIGITAL

O exercício da racionalidade comunicativa no ambiente universitário propicia a interação entre os membros com o telos (finalidade) da formação integral e humanística. Em uma sociedade em transformação tecnológica e digital, Harari (2018HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.) alerta para a necessidade de formação para o pensamento reflexivo diante do avanço da inteligência artificial e a algoritmização da sociedade. A educação na sociedade contemporânea deve estar fundamentada na capacidade de interação entre os sujeitos e sua valorização da busca de sentido para a existência humana.

Então, o que deveríamos estar ensinando? Muitos especialistas em pedagogia alegam que as escolas deveriam passar a ensinar “os quatro Cs” - pensamento crítico, comunicação, colaboração e criatividade. Num sentido mais amplo, as escolas deveriam minimizar habilidade técnicas e enfatizar habilidades para propósitos genéricos na vida. O mais importante de tudo será a habilidade para lidar com mudanças, aprender coisas novas e preservar seu equilíbrio mental em situações que não lhe são familiares (Harari, 2018HARARI, Yuval Noah. 21 Lições para o Século 21. São Paulo: Companhia das Letras, 2018., p. 279).

No ambiente empresarial é comum o uso da distinção entre as hard skills (competências técnicas) e as soft skills (competências relacionais). As primeiras representam as habilidades técnicas e produtivas e as segundas referem-se às habilidades comportamentais e relacionais. O processo de robotização e automação nas diversas esferas sociais tem provocado a substituição da mão de obra humana pelas máquinas inteligentes e robôs. O avanço da Inteligência artificial, e sua capacidade de simular o raciocínio humano, tem questionado a distinção entre hard skills e soft skills e nos faz pensar na proposta de formação em human skills (competências humanas). Estas representam a capacidade de entender e se sensibilizar com o Outro (Iorio, 2021aIORIO, Andrea. Nem hard, nem soft: precisamos falar sobre as human skills. MIT Technology Review. 2021a. Disponível em: Disponível em: https://mittechreview.com.br/nem-hard-nem-soft-precisamos-falar-sobre-as-human-skills/ . Acesso em: 10 fev. 2022.
https://mittechreview.com.br/nem-hard-ne...
; 2021bIORIO, Andrea. Como a empatia nos torna mais inovadores. MIT Technology Review. 2021b. Disponível em: Disponível em: https://mittechreview.com.br/como-a-empatia-nos-torna-mais-inovadores/ . Acesso em: 01 fev. 2022.
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). Em outras palavras, as competências comunicativas, o agir ético e empático e a sensibilidade humana são elementos essenciais para uma sociedade que caminha para a automação na produção, na prestação de serviços e atividades laborais. A universidade pode desempenhar a função de mediação e formação de saberes humanísticos para a sociedade digital em um espaço comunicativo de interação e compartilhamento de saberes e experiências de vida.

As mídias sociais ampliaram as possibilidades de interação e conexão entre os sujeitos. No entanto, elas mostraram-se avessas ao diálogo com o objetivo do entendimento mútuo e às questões essenciais e emergentes da sociedade contemporânea (UNESCO, 2019UNESCO. Preliminary study on a possible standard-setting instrument on the ethics of artificial intelligence. In: 40th GENERAL CONFERENCE; 2019. Paris: UNESCO. Disponível em: Disponível em: https://unesdoc.unesco.org/ark:/48223/pf0000369455 . Acesso em: 30 jan. 2022.
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). A universidade pode manter-se como espaço de diálogo não midiatizado ou sob controle do sistema econômico-financeiro e os interesses de mercado. Como espaço público, é o ambiente de resistência às formas coercitivas da racionalidade estratégico-instrumental. A atuação da universidade propicia o esclarecimento das pessoase a garantia de uma sociedade mais democrática e livre.

A ideia de universidade em Habermas conduz à reflexão sobre a relevância da autonomia e a liberdade universitária perante a influência dos interesses governamentais e o poder dos algoritmos. O agir comunicativo presente no ambiente universitário pode romper com a lógica dos sistemas sociais e propor maneiras interativas para o engajamento social dos membros da universidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A universidade na era digital, como ideia e projeto de instituição social, está conectada e reflete sobre sua identidade na sociedade contemporânea. Van Rensselaer Potter e Jürgen Habermas defendem um espaço universitário que seja aberto e plural para servir de base e fundamento às instituições políticas democráticas. Esse espaço deve expressar o espírito democrático e seu modo de ação entre seus integrantes. Na perspectiva de Potter, a universidade tem a missão de se constituir como uma “Cátedra do Futuro” para colaborar com a resolução dos problemas globais urgentes e emergentes, a saber, as questões relacionadas às desigualdades socioeconômicas, à proteção ao meio ambiente e à garantia de saúde global. A sobrevivência humana e seu futuro devem ser o cerne das questões a serem investigadas no ambiente universitário. Em Habermas, a ideia de universidade preserva as relações não sistêmicas e mediadas pela capacidade comunicativa de entendimento entre os atores sociais. O exercício reflexivo e formativo na interação entre os membros da universidade poderá engendrar a formação humana integral e o compromisso moral com as questões sociais e políticas.

As reflexões de Potter e Habermas, em contextos e tempos diferentes, complementam-se e fortalecem o ensejo de reconstruir a ideia de universidade do ponto de vista da revolução digital. Esta faz com que os atores sociais, em seus mais diversos âmbitos de atuação, reflitam sobre a essência do agir humano e o significado de sua existência e escolhas. As tecnologias cognitivas têm a capacidade de superar as habilidades produtivas e as técnicas humanas. Elas possuem maior precisão e eficácia na realização de raciocínio analítico e preditivo.

O referencial teórico de V. R. Potter e J. Habermas sobre a ideia da universidade nos ajuda a refletir sobre esse espaço de interação discursiva e de formação humana como o lugar para a construção dos alicerces da sociedade democrática. A universidade e seus agentes possuem a responsabilidade de esclarecer os cidadãos e as cidadãs sobre o valor do conhecimento científico e sua veracidade. O espaço universitário é dedicado à formação humana e cidadã no intuito de fazer resplandecer a sua capacidade de orientar a espécie humana para a sua sobrevivência e a garantia de melhores condições para as pessoas mais vulneráveis, como argumentou Potter. A universidade é o locus para a interação comunicativa aberta e livre, o fomento e a representação das ideias, dos pensamentos e das vivências da sociedade plural.

É preciso ir além das reflexões de Potter e Habermas e reconstruir a sociedade e suas instituições políticas para a formação de pessoas, com o intuito de proteger a dignidade da pessoa humana nas condições de vulnerabilidade. O projeto de emancipação social deve fazer com que os saberes produzidos, compartilhados e vivenciados na universidade atravessem suas fronteiras e cheguem às pessoas vulneráveis.

A ideia de universidade na sociedade digital deve estar conectada com a responsabilidade social de seus agentes e a prática de atividades para além dos espaços universitários. Essas atividades de interação são possíveis nos contextos digitais e/ou na presencialidade. A guinada digital favorece o encontro da pluralidade de saberes e práticas. Ela convida à contínua interação discursiva e ao engajamento social. Diante das possibilidades tecnológicas, a universidade reinventa-se ao repensar sua estrutura e encontrar na formação humana integral (paideia, humanitas, bildung, universitas etc.) a sua essência como espaço público de interação entre os sujeitos capazes de se autoentenderem sobre as normas sociais e planejarem uma sociedade mais democrática, livre e justa para todas as pessoas.

REFERÊNCIAS

  • ADORNO, Theodor Ludwig Wiesengrund. Educação e emancipação. São Paulo: Paz e Terra, 1995.
  • ALVES, Alexandre. A tradição alemã do cultivo de si (Bildung) e sua significação histórica. Educação & Realidade, Porto Alegre, v. 44, n. 2, e83003, 2019. Disponível em: https://doi.org/10.1590/2175-623683003
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  • 1
    Em seu livro Democracia e Educação, John Dewey (1979) destaca a importância da educação para o fortalecimento da sociedade democrática e a participação dos cidadãos e cidadãs na construção dos alicerces institucionais para a manutenção e correção dos arranjos sociais em prol da igualdade e do bem comum. “Os dois elementos de nosso critério se orientam para a democracia. O primeiro significa não só mais numerosos e variados pontos de participação do interesse comum, como também maior confiança no reconhecimento de serem os interesses recíprocos fatores da regulação e direção social. E o segundo não só significa uma cooperação mais livre entre os grupos sociais (dantes isolados tanto quanto voluntariamente o podiam ser) como também a mudança dos hábitos sociais - sua contínua readaptação para ajustar-se às novas situações criadas pelos vários intercâmbios. E estes dois traços são precisamente os que caracterizam a sociedade democraticamente constituída. Quanto ao aspecto educativo, observaremos primeiro que a realização de uma forma de vida social em que os interesses se interpenetram mutuamente e em que o progresso, ou readaptação, é de importante consideração, toma a comunhão democrática mais interessada que outras comunhões na educação deliberada e sistemática” (Dewey, 1979DEWEY, John. Democracia e educação. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1979., p. 93).
  • 2
    Muzur e Rincic (2019MUZUR, Amir; RINCIC, Iva. Van Rensselaer Potter and his place in the history of bioethics. Münster: LIT Verlag, 2019., p. 40) relatam a influência de Margaret Mead sobre a perspectiva bioética de Potter ao comentarem a transformação espiritual pela qual passou o bioeticista e a proposta da antropóloga em resgatar a importância da utopia na sociedade moderna. Em seu artigo “Towards More Vivid Utopias”, M. Mead (1957MEAD, Margaret. Towards More Vivid Utopias. Science, v. 126, n. 3280, p. 957-961, 1957.) reconstrói o conceito de utopia/s como o/s paradigma/s de um período experienciado por uma comunidade e sua potencialidade universal de conduzir para a responsabilidade perante o desenvolvimento técnico-científico, assim como ela propõe o estabelecimento da “Chairs of the Future” (“Cátedra do Futuro”) como o reencontro entre as ciências, as artes e as humanidades. “Finalmente, parece-me, nesta época em que a própria sobrevivência da raça humana, e, possivelmente, de todas as criaturas vivas depende de termos uma visão do futuro para os outros, que exigirá nosso mais profundo compromisso, precisamos em nossas universidades, que devem mudar e crescer com o mundo, não apenas cadeiras de história e linguística comparada, de literatura e arte - que tratam do passado e às vezes do presente, mas também precisamos de Cátedras do Futuro, cadeiras para aqueles que se dedicarão, com toda a erudição e atenção necessárias, a desenvolver a ciência em todas as suas possibilidades para o futuro, e quem o fará devotam-se tão fielmente aos pequenos detalhes do que o homem pode muito bem ser - à luz de todo o nosso conhecimento - quanto qualquer classicista ou medievalista se dedica aos textos de Píndaro e Horácio ou ao pensamento de São Tomás de Aquino” (Mead, 1957MEAD, Margaret. Towards More Vivid Utopias. Science, v. 126, n. 3280, p. 957-961, 1957., p. 961).
  • 3
    Em seu memorial ao professor Van Rensselaer Potter II, o colegiado da Universidade de Wisconsin-Madison recordaram a importância desse artigo e o pioneirismo dele em dar densidade normativa ao termo “bioética” e sua expressão como a “ponte para o futuro” (Bioethics: Bridge to the Future). “O artigo ‘Purpose and Function of the University’, um produto em coautoria do Interdisciplinary Studies Committee on the Future of Man na University of Wisconsin, do qual Van era o presidente, ilustrou seu compromisso com o futuro da humanidade e com o meio ambiente e as enormes responsabilidades que nós, como acadêmicos, temos na transmissão de conhecimento e valores bioéticos” (Pitot et al., 2002PITOT, Henry Clement; DRINKWATER, Norman R.; KASPER, Charles Boyer. Memorial Resolution of the Faculty of the University of Wisconsin-Madison on the Death of Professor Emeritus Van Rensselaer Potter II. Madison: Univerity of Wisconsin, 2002. Disponível em: Disponível em: https://kb.wisconsin.edu/images/group222/shared/2002-04-01FacultySenate/1628(mem_res).pdf . Acesso em: 01 fev. 2022.
    https://kb.wisconsin.edu/images/group222...
    ).
  • 4
    Essa importante decisão da Suprema Corte americana objetivou restabelecer a integração étnico-racial nas escolas estadunidenses e romper o lema “Iguais, mas separados” (1866) (Rodrigues, 1991RODRIGUES, Leda Boechat. A corte de Warren (1953-1969): revolução constitucional. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1991.).
  • 5
    Algo semelhante à ideia de reeducação dos/as cidadãos e cidadãs estadunidenses e à defesa de medidas inclusivas pelo sistema educacional estadunidense foi analisado posteriormente por Richard Rorty: “Parece-me que a ideia reguladora que nós - liberais moles; nós, herdeiros do esclarecimento; nós, socráticos - mais frequentemente usamos para criticar a conduta de vários parceiros de conversação é a de que “é preciso educação, a fim de deixar para trás medos, ódios e superstições primitivos”. Esse é o conceito que os exércitos aliados vitoriosos usaram, quando trataram de reeducar os cidadãos da Alemanha e do Japão ocupados. É também aquele que foi utilizado pelos professores norte-americanos, que tinham lido Dewey e estavam interessados em pôr seus alunos para pensar, “cientificamente” e “racionalmente”, acerca de assuntos como a origem das espécies e o comportamento sexual (ou seja, fazê-los ler Darwin e Freud, sem nojo nem incredulidade). Trata-se de um conceito que eu e a maioria dos norte-americanos que ensinam humanidades ou ciências sociais em faculdades e universidades invocamos quando temos de arrumar as coisas de modo que os estudantes, que chegam preconceituosos, homofóbicos e religiosos fundamentalistas, saiam da faculdade com posições mais parecidas com as nossas” (Rorty, 2005RORTY, Richard. Verdade, universalidade e política democrática (justificação, contexto, racionalidade e pragmatismo). In: SOUZA, José Crisóstomo (org.). Filosofia, racionalidade, democracia: os debates Rorty & Habermas. São Paulo: EDUNESP, 2005. p. 79-126., p. 119).
  • Como citar este artigo:

    PAULO NETO, Alberto. A ideia de universidade em Van Rensselaer Potter e Jürgen Habermas: novos olhares para a universidade na era digital. Revista Brasileira de Educação, v. 29, e290011, 2024. https://doi.org/10.1590/S1413-24782024290011
  • Financiamento:

    Fundação Araucária - Projeto de Pesquisa básica e Aplicada “Bioética, Inteligência Artificial e Direitos Humanos”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    22 Mar 2024
  • Data do Fascículo
    2024

Histórico

  • Recebido
    23 Fev 2022
  • Revisado
    19 Set 2022
  • Aceito
    13 Fev 2023
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