Acessibilidade / Reportar erro

Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República

NOTAS DE LEITURA

Clarice Nunes

Pesquisadora Associada no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFF. Professora no Mestrado em Educação da Universidade Estácio de Sá

FARIA FILHO, Luciano Mendes de. Dos pardieiros aos palácios: cultura escolar e urbana em Belo Horizonte na Primeira República. Passo Fundo: UPF, 2000.

O livro de Luciano Mendes de Faria Filho tem como objeto a educação pública primária na cidade de Belo Horizonte durante as duas primeiras décadas do século XX. É fruto de dois itinerários que se cruzam na vida do próprio autor: o do menino do interior que descobre, aos treze anos, a cidade "grande" e, dentro dela, a escola com toda a materialidade que seus aguçados sentidos de adolescente apreendiam de forma festiva e/ou dolorosa, e o do pesquisador da história da educação mineira, com diversos trabalhos já divulgados.

O olhar do pesquisador sobre os documentos do Arquivo Público resgatou a vivacidade daquele olhar da meninice, ao focalizar, sobretudo, os sujeitos, suas ações no interior da escola e suas representações sobre ela. Luciano Mendes de Faria Filho encontrou, na farta documentação dos relatórios dos diretores e inspetores escolares, nas cartas, ofícios, circulares e despachos, indícios das discussões e práticas pedagógicas travadas pelos profissionais da escola pública primária mineira nos primeiros anos do regime republicano. Nos relatórios de diretores e inspetores dessa escola tornavam-se visíveis as instituições isoladas e os grupos escolares, as formas de sua organização e de intervenção, toda uma reflexão sobre o trabalho realizado. Produzia-se nesse ambiente, como salienta o autor, um modo muito peculiar de tornar inteligível a educação escolarizada. Forjava-se, simultaneamente, à aferição do cumprimento dos dispositivos legais que faziam exigências às escolas, uma prática de irradiação e de imposição de representações, o que por certo não se fazia sem disputa.

Uma das categorias centrais com as quais o autor trabalhou é a forma escolar, distinta de outras formas institucionais e de que ele se apropria de um dos representantes da nova sociologia escolar francesa, Guy Vincent. O grupo escolar está no alvo da sua análise como "forma autorizada" ou símbolo pleno do "moderno", em oposição às "arcaicas" escolas isoladas, sinal de uma ruptura em termos da educação escolarizada e, diga-se de passagem, não só em Minas Gerais. Como exemplo de racionalização e urbanização da sociedade, o grupo escolar não está, porém, conforme adverte o autor, subsumido a esse momento histórico. Ele tem uma lógica própria que se expressa no ordenamento espacial e temporal, na constituição das subjetividades, nas suas regras, enfim, em tudo o que constitui uma atmosfera própria que não fica presa nas malhas dos processos sociais e econômicos.

Dá gosto ler os cinco capítulos do livro de Luciano Mendes de Faria Filho. Essa leitura vai revelando o movimento da escola no movimento da cidade mineira. Esse dinamismo vem de um ritmo de ordenação na qual são reelaboradas as identidades dos sujeitos da educação e suas práticas novas e diversificadas de apropriação, tanto das tradições e das inovações do campo educativo escolar, quanto dos recursos de linguagem e práticas de outra procedência, sobretudo, do campo religioso, médico, higienista e jurídico.

O autor tem o cuidado de perspectivar, na sua análise dos sujeitos em ação, a condição de gênero, o que matiza de uma forma instigante e esclarecedora a disputa por certos lugares escolares e a produção e reelaboração das identidades pessoais e profissionais. Gradativamente, vai evidenciando-se todo o processo de racionalização das práticas pedagógicas escolares e a crescente afirmação dos ritmos e necessidades específicas dos estudantes. Vão ganhando sentido a aprendizagem das formas escolarizadas de leitura e escrita.

Enfim, esse é um trabalho da nova história da educação brasileira, realizado com competência e fôlego, atento à complexidade da instituição escolar, liberto da idéia da "determinação em última instância", que tanto marcou os trabalhos da história da educação na década de 1980 e cujo efeito pernicioso foi a naturalização da escola ou sua desistoricização.

Encontramos, neste livro, uma escola viva, que expressa material e simbolicamente as características do lugar que a abriga: palácio, no centro da cidade, pardieiro no subúrbio, situação que o título da publicação retoma e sintetiza. Destinado aos cursos de formação de professores e a todos os interessados no tema da modernidade pedagógica, originalmente tese de doutoramento, esse livro torna-se leitura obrigatória para todos os que buscam compreender os múltiplos sentidos da escola, termômetro da sociedade, invenção humana hoje em crise, mas ainda mais do que nunca necessária em nossa sociedade.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    12 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Dez 2002
ANPEd - Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Educação Rua Visconde de Santa Isabel, 20 - Conjunto 206-208 Vila Isabel - 20560-120, Rio de Janeiro RJ - Brasil, Tel.: (21) 2576 1447, (21) 2265 5521, Fax: (21) 3879 5511 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: rbe@anped.org.br