Acessibilidade / Reportar erro

Estudo das habilidades de memória e raciocínio simbólico e não-simbólico de crianças e adolescentes surdas por meio da bateria padrão do Universal Nonverbal Intelligence Test

Study of memory and symbolic and non-symbolic reasoning skills of deaf children and adolescents using standard battery of Universal Nonverbal Intelligence Test

Resumos

Este estudo explorou as habilidades de memória e raciocínio simbólico e não simbólico de crianças e adolescentes com deficiência auditiva através das análises de desempenho da Bateria Padrão do Universal Nonverbal Intelligence Test (UNIT). Participaram deste estudo 55 crianças e adolescentes surdos. Os dados coletados foram analisados através de análises paramétricas. Os dados mostram que a memória simbólica, a capacidade de manipular e representar a informação simbólica memorizada está sendo melhorada por atividades escolares e/ou extracurriculares.

educação especial; inteligência; surdez; habilidades cognitivas


This study aimed to explore memory and symbolic and non symbolic reasoning skills of deaf children and adolescents using the analyses of performance of the standard battery of Universal Nonverbal Intelligence Test (UNIT). Fifty five participants took part in the study. The collected data were analyzed through parametric statistics. The data suggest that the capacity to manipulate and to represent memorized symbolic information may be enhanced by school and/or extracurricular activities.

Special Education; Intelligence; Deafness; Cognitive Abilities


RELATO DE PESQUISA

Estudo das habilidades de memória e raciocínio simbólico e não-simbólico de crianças e adolescentes surdas por meio da bateria padrão do Universal Nonverbal Intelligence Test1 1 Nós agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio financeiro recebido (Proc. SHA 1940/06)

Study of memory and symbolic and non-symbolic reasoning skills of deaf children and adolescents using standard battery of Universal Nonverbal Intelligence Test

Cláudia Furtado BorgesI; Renata Ferrarez Fernandes LopesII; Ederaldo José LopesIV

IMestranda em Psicologia pela UFU - MG. kksempsi@hotmail.com

IIProfessora Adjunta do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - MG. rfernandeslopes@fapsi.ufu.br

IIIProfessor Associado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal de Uberlândia - Uberlândia - MG. ederaldol@umuarama.ufu.br

RESUMO

Este estudo explorou as habilidades de memória e raciocínio simbólico e não simbólico de crianças e adolescentes com deficiência auditiva através das análises de desempenho da Bateria Padrão do Universal Nonverbal Intelligence Test (UNIT). Participaram deste estudo 55 crianças e adolescentes surdos. Os dados coletados foram analisados através de análises paramétricas. Os dados mostram que a memória simbólica, a capacidade de manipular e representar a informação simbólica memorizada está sendo melhorada por atividades escolares e/ou extracurriculares.

Palavras-chave: educação especial; inteligência; surdez; habilidades cognitivas.

ABSTRACT

This study aimed to explore memory and symbolic and non symbolic reasoning skills of deaf children and adolescents using the analyses of performance of the standard battery of Universal Nonverbal Intelligence Test (UNIT). Fifty five participants took part in the study. The collected data were analyzed through parametric statistics. The data suggest that the capacity to manipulate and to represent memorized symbolic information may be enhanced by school and/or extracurricular activities.

Keywords: Special Education; Intelligence; Deafness; Cognitive Abilities.

1 INTRODUÇÃO

A inteligência é um dos constructos mais controvertidos em Psicologia. A confusão reside em questões tais como: Devemos considerar a inteligência como culturalmente definida ou livre de cultura? A inteligência deve ser considerada como uma única aptidão ou como muitas? Ela está ligada à rapidez cognitiva? Como ela pode ser avaliada em termos neurológicos e psicológicos?

Para a maioria dos psicólogos a inteligência é a capacidade para o comportamento adaptável e orientado a um objetivo (MEYERS, 1998). Alguns pesquisadores argumentam que o comportamento inteligente traduz-se na habilidade de uma pessoa ser capaz de adaptar-se com sucesso às exigências da escola ou do trabalho. O comportamento inteligente parece, em alguns casos, relacionar-se à cultura, especialmente no que tange aos eventos-meta que exigem comportamento verbal. Por outro lado, outros pesquisadores insistem que a inteligência é a habilidade de resolver todos os tipos de problemas independentemente da cultura.

No que diz respeito às influências ambientais, muitos estudos comparam crianças que têm uma rica estimulação ambiental com crianças que têm uma pobre estimulação ambiental ou culturalmente diferentes, sugerindo que as experiências prévias influenciam sobremaneira o desempenho em testes de inteligência (COHEN, 1969).

No contexto da surdez, a dificuldade de comunicação é uma das manifestações mais evidentes da deficiência auditiva, desencadeando dificuldades do surdo para conviver e interagir numa sociedade oral. Muitas referências ligadas à pesquisa acerca da educação dos surdos apontam para os problemas de comunicação como um dos fatores que se relacionam com a crença de comprometimento intelectual e cognitivo. Estudos que investigam a relação destas variáveis são raros, tanto na literatura internacional quanto nacional. Também são raros instrumentos de avaliação psicológica e cognitiva adaptados para avaliar este tipo de população.

Os testes psicológicos são medidas padronizadas de comportamentos ligados às capacidades mentais ou de aspectos da personalidade. Todo instrumento de avaliação psicológica deve ser válido (o teste mede o que se propôs a medir) e fidedigno (a precisão do teste quanto ao constructo que pretende medir).

O Universal Nonverbal Intelligence Test (UNIT) (BRACKEN; McCALLUM, 1998) é um teste de inteligência que provê uma medida geral (fator g) da inteligência e de habilidades cognitivas e foi delineado para ser usado com crianças e adolescentes com idades variando de 5 a 17 anos.

O UNIT é o único teste multidimensional de QI que pode ser administrado de forma não verbal, embora o aplicador tenha a liberdade de manter o rapport com a criança ou com os adolescentes, desde que esta conversa não se refira aos subtestes do UNIT, garantindo, assim, a administração não verbal do teste. Isto favorece a população em geral e, especialmente, aqueles indivíduos que não poderiam ser avaliados (avaliação da inteligência) com testes verbais, em função das diferenças culturais e de natividade (crianças e adolescentes educados em sua língua natal como, por exemplo, comunidades de chineses, de hispânicos, de alemães), bem como crianças com problemas de linguagem.

Ao contrário de muitos testes não verbais, que são compostos principalmente por matrizes, o UNIT é estruturado por subtestes que estimulam o envolvimento da criança na tarefa, além de exigir do examinando diferentes tipos de respostas como: manipulações de fichas, utilização de papel e lápis e/ou até mesmo indicação de uma resposta. Todos os estímulos que compõem os subtestes são universais e multiculturais, e as tarefas são projetadas para serem envolventes para qualquer criança independente da raça, etnia e cultura (BRACKEN; McCALLUM, 1998).

O teste foi estruturado a partir do modelo hierárquico de inteligência com habilidades gerais, sendo composto por seis subtestes: memória simbólica, desenho do cubo, memória espacial, raciocínio analógico, memória para objetos e labirintos. Sua administração é flexível, uma vez que pode-se aplicar a bateria abreviada, com apenas 2 subtestes, a fim de se proceder a um screening da função intelectual; a bateria padrão, com 4 subtestes, para uma tomada de decisão diagnóstica e a bateria extensa, com todos os subtestes, para uma avaliação diagnóstica mais profunda.

É importante ressaltar que o UNIT possui uma estrutura em componentes de memória e raciocínio (escalas primárias) e simbólicas e não simbólicas (escalas secundárias). Nas escalas primárias, memória e raciocínio são construtos fundamentais na medida de inteligência. As tarefas de memória (habilidades associativas) são compostas por transformação e correlação com e entre o(s) estímulo(s) de entrada - input. As tarefas de raciocínio (habilidades cognitivas) exigem transformação do estímulo de entrada - input-, através de planejamento e/ou avaliação (BRACKEN; McCALLUM, 1998).

Lopes et al. (2006) salientaram que

[...] outros testes avaliam a memória de curto prazo através de tarefas mnemônicas de formato serial simples (por exemplo, memória para palavras, span de dígitos), bem como apresentam uma mediação verbal no que tange à aplicação dos itens e às respostas da criança, o UNIT toca em habilidades associativas mais amplas à medida que apresenta os estímulos de forma visual para o sujeito do teste (exigindo muitas vezes uma mediação simbólica envolvendo rotulação, organização e categorização) e exige respostas motoras (por exemplo, rearranjo físico de cartões de resposta), ampliando a sensibilidade de mensuração desta habilidade associativa. O raciocínio é considerado o "coração" da inteligência, pois requer do indivíduo habilidades de planejamento e avaliação baseados na dedução de relações.

Já as escalas secundárias do UNIT descrevem processos mentais subjacentes que facilitam o desempenho da criança na mediação simbólica (envolvendo representação, analogia e conceitualização) e na mediação não simbólica (envolvendo abstração e processamento não verbal), sendo estes processos mentais aspectos subordinados às escalas primárias (LOPES et al., 2006).

O teste também permite, através de linhas guias que se encontram no manual, estabelecer hipóteses interpretativas a partir da comparação entre a subescalas dos subtestes. Por exemplo, a comparação das escalas de raciocínio e de memória permite ao examinador investigar se o raciocínio não verbal é melhor desenvolvido do que a memória de curto prazo; se a habilidade de síntese, análise e reorganização do estímulo é melhor que a habilidade de compreender e reproduzir um estímulo; se a habilidade para se concentrar durante as atividades de solucionar um problema é melhor do que a habilidade para se atentar a detalhes visuais relevantes.

Assim, o UNIT parece ser um instrumento de avaliação psicológica que abrange um conjunto de características psicométricas que o tornam um instrumento interessante para avaliar crianças e adolescentes portadores de deficiência auditiva.

As características psicométricas estabelecidas pela equipe de pesquisadores por meio de análise fatorial em dados preliminares indicou a presença de 1 fator (Q -FSI- fator g) que explica 90, 01 % da variância total e coeficiente de fidedignidade alpha = 0,936. Em conjunto, os dados obtidos até o presente mostram a viabilidade de aplicação deste teste não verbal e revela um grande potencial para avaliar intelectualmente amostras brasileiras com diferentes características, se configurando numa alternativa para os testes intelectuais verbais conhecidos até o presente.

Para avaliar as habilidades e as competências de pessoas portadoras de deficiência auditiva, especialmente de crianças e jovens, muitas vezes é preciso transcender a simples aplicação de um instrumento de avaliação de uma lista de testes recomendados. Randy Kamphaus, em um de seus livros dirigido a psicólogos e psicopedagogos intitulado "Avaliação clínica da inteligência das crianças: Um manual para a prática profissional" apresentou a seguinte afirmação:

[...] O examinador que não tem familiaridade com crianças portadoras de deficiência auditiva ou com impedimento auditivo no geral pode ser capaz de obter escores de teste e eventualmente obter escores acurados. A questão central, entretanto, é a interpretação de escores de testes de inteligência e o planejamento do tratamento da criança. Um examinador expert ( porém sem impedimento auditivo) pode ter dificuldade em entender melhor a etiologia, o curso e os tratamentos do problema da criança, embora entenda muito bem de testagem psicológica . Esta é uma questão similar a visitar um psiquiatra para tratar de problemas cardiovasculares. Enquanto o psiquiatra pode obter escores de um eletrocardiograma e outros testes, eu pessoalmente me sentiria melhor nas mãos de um cardiologista (KAMPHAUS, 1993, p. 400).

Revisando 208 estudos sobre inteligência em portadores de surdez, Braden (1994) concluiu que o QI das pessoas surdas é substancialmente menor para testes de estruturação verbal ou para testes cujos procedimentos de aplicação são baseados na linguagem verbal.

Qualquer avaliação intelectual de pessoas com déficits auditivos deve ser realizada levando-se em consideração o significado mais amplo de processos comunicativos envolvendo conteúdo, método, atitude e emoções, qualidade, quantidade e eficácia da comunicação.

Dessa forma, o UNIT é um dos poucos testes inteiramente não verbal, tanto da perspectiva de sua estruturação (itens que compõem os subtestes) quanto de sua aplicação, permitindo, portanto, uma avaliação da inteligência surdos da forma mais ecológica, considerando os impedimentos relacionados a esta necessidade especial, uma vez que os testes tradicionais raramente trazem normatizações para este tipo de população especial.

Assim, o objetivo deste estudo foi fazer uma exploração das habilidades de memória e raciocínio simbólico e não-simbólico de crianças e adolescentes surdos em 4 subtestes do UNIT (memória simbólica, memória espacial, raciocínio analógico e desenho do cubo) que compõem a bateria padrão deste instrumento não-verbal de avaliação da inteligência. A análise destas habilidades cognitivas contribuiu para compreender melhor os componentes cognitivos relacionados à inteligência nesta amostra.

2 MÉTODO

2.1 PARTICIPANTES

A amostra foi constituída de 55 crianças e adolescentes surdos com idades entre 5 e 17 anos com diferentes graus de deficiência auditiva, sendo todas frequentadoras de instituições na cidade de Uberlândia e Patos de Minas. As instituições eram de ensino regular ou instituições que ofereciam atividades extraescolares (música, aula de Libras, suporte pedagógico, etc).

2.2 INSTRUMENTOS

Foi utilizado o Teste de Inteligência Não Verbal (UNIT) (BRACKEN; MCCALLUM, 1998). É um instrumento que avalia habilidade de raciocínio e memória simbólica e não simbólica. O seu o kit de aplicação contém: um dos livros-estímulo (livro 1) onde se encontram os quatro subtestes que permitem aferir habilidades cognitivas de interesse deste estudo: memória simbólica e espacial, desenho do cubo e raciocínio analógico, nove cubos bicolores (verde-branco), suporte para colocação (arranjo) dos cubos, oito fichas verdes e oito fichas pretas, papel cartonado contendo uma grade 3x3 e outra 4x4, dispostas uma de cada lado do papel cartonado para realização do subteste de memória espacial, dez fichas contendo material simbólico (fichas apresentando individualmente figuras da seguinte série de símbolos universais: bebê, garota, garoto, mulher e homem (cinco cor verde e cinco na cor preta) e cronômetro.

De acordo com Cunha (2000), é interessante num processo de avaliação a utilização de outras ferramentas complementares. Neste sentido, foi utilizado um questionário de perguntas fechadas, que foi enviado aos pais junto com o termo de consentimento, a fim de verificar informações referentes à etiologia, nível de perda auditiva, idade e escolaridade tanto da criança como dos pais.

2.3 PROCEDIMENTOS

Após a aprovação do Comitê de Ética e com a autorização da instituição, foi enviada uma correspondência aos pais (anmenese) com o objetivo de explicar a proposta do projeto e obter informações sobre alguns dados da criança e do seu meio social e familiar. O dia, o local e o horário de aplicação foram previamente acordados entre a instituição e os pesquisadores.

Cabe destacar que indivíduos que têm dificuldades na comunicação em função de problemas de aprendizagem ligadas à linguagem expressiva ou receptiva, como é o caso dos deficientes auditivos, apresentam desafios únicos para os pesquisadores (VERNON, 1965). Desta forma, só examinadores supertreinados tanto na aplicação do teste quanto no domínio de LIBRAS puderam aplicar o teste, a fim de estabelecer um bom rapport com o examinando.

2.3.1 APLICAÇÃO DO TESTE

A aplicação do teste foi feita individualmente numa sala diferente daquela em que o participante desenvolvia suas atividades de aprendizagem. Ela foi precedida por um rapport conduzido com os participantes, feito em LIBRAS ou numa linguagem acessível a eles, por pesquisadores treinados tanto na língua de sinais quanto na execução do teste. Após informar aos participantes sobre o objetivo da avaliação, toda a comunicação passou a ser realizada através dos sinais universais preconizadas no manual do UNIT. Um exemplo destes sinais universais pode ser observado na Figura 1.


O teste foi aplicado seguindo a ordem, como traz o manual (BRACKEN; McCALLUM, 1998): memória simbólica, memória espacial, desenho de cubo e memória simbólica. O tempo de aplicação do teste durou por volta de 30 a 40 minutos, com intervalos entre os subtestes se o participante achasse necessário. Ao final da aplicação, o participante era encaminhado novamente para sua sala de origem.

3 RESULTADOS

3.1 DESCRIÇÃO GERAL DA AMOSTRA

A análise preliminar dos dados foi realizada a partir do protocolo de 55 crianças e adolescentes com deficiência auditiva, nos mais variados níveis de comprometimento. Nas seções seguintes será apresentado um perfil da amostra estudada em função de algumas características que a literatura da área destaca e que podem interferir nas habilidades intelectuais e cognitivas deste tipo de população (MACEDO, 2005; MARCHESI, 1995; POKER, 1995; VERNON, 1965). Deve-se ressaltar que alguns dados são categorizados como "não responderam". Isto deve-se ao fato de que alguns pais ou responsáveis dos participantes que fizeram parte do nosso banco de dados não responderam a ficha de anamnese.

A amostra foi constituida de 20 participantes do sexo masculino (36,4%) e 35 participantes do sexo feminino (63,5%). A idade dos participantes variou de 7 a 17 anos, com média de 14,04 (DP = 2,64).

Em relação à escolaridade, a amostra variou entre a 1ª série do ensino fundamental e a 2ª série do ensino médio. Este tipo de subagrupamento (baseado na escolaridade) indicou que a minoria dos avaliados cursava a 3ª série do ensino fundamental (3,6%) e a maioria, com 18,2%, encontrava-se matriculada na 4ª série.

Foi investigado em qual ouvido o examinando possuía a deficiência e o nível de comprometimento da mesma. Observou-se que 54,5 % da amostra possuia deficiência auditiva nos dois ouvidos, sendo que 40,0% da amostra apresentavam comprometimento severo. Em relação ao tipo de comunicação do examinando, 1,8% da amostra utilizavam a oralização (método utilizado para ensinar o surdo a falar), leitura labial (técnica em que palavras emitidas pelo interlocutor são captadas pela interpretação dos movimentos dos lábios) e uma comunicação própria (denominada para o tipo de comunicação com gestos sem referência na Linguagem de Sinais). Além disso, 18,2% da amostra utilizavam a LIBRAS. Pode-se perceber também que 20% comunicavam-se razoavelmente com a LIBRAS; 18,2% dominavam a oralização; 20% possuiam uma leitura labial razoavelmente boa; contudo, 20% não dominavam a leitura labial.

Em relação ao exercício de atividade extra, 34,5% da amostra faziam algum tipo de atividade extraescolar como: aula de música, aula de reforço, libras, capoeira, etc. Foram avaliadas, em relação aos pais, as categorias presença ou ausência de deficiência auditiva. Observou-se que a maioria dos pais (56,4%) e das mães (60,0%) eram ouvinte.

Ao fazer uma análise descritiva da amostra, observou-se que, dependendo do tipo de agrupamento dos dados (variáveis idade e escolaridade), as amostras tornavam-se mais ou menos heterogêneas. Isto quer dizer que se a amostra fosse agrupada por escolaridade, seria criada uma condição de análise em que os subgrupos eram muito mais heterogêneos. Por exemplo, na 1ª série do ensino fundamental havia examinandos de 7 a 17 anos. Por outro lado, quando esses examinandos eram agrupados por idade, a heterogeneidade era menor.

Devido ao tamanho e, sobretudo, à heterogeneidade da amostra estudada, não é fácil tirar conclusões gerais dos modelos cognitivos propostos para os deficientes auditivos. Grande parte dos estudos sobre memória e raciocínio na população com essa deficiência parte do pressuposto de que os deficientes auditivos compõem um grupo relativamente homogêneo, semelhante à população ouvinte, o que uma análise preliminar dos dados não confirma. Com base nesta descrição da amostra citada acima, observa-se a existência de diferenças individuais dentro do grupo de surdos. Pode-se falar em subgrupos diferenciados a partir das seguintes variáveis: o nível de perda auditiva, a idade do início deficiência, sua etiologia e os fatores educacionais e comunicativos. Estas variáveis são as mesmas que influem na evolução cognitiva dos deficientes auditivos. Por essa razão, as variáveis nível de perda auditiva, fatores educacionais e comunicativos serão testadas numa próxima etapa do trabalho. De imediato, o que se pode concluir é que qualquer afirmação generalista sobre processos cognitivos envolvendo memória e raciocínio de surdos é contra-indicada.

3.2 ANÁLISES PARAMÉTRICAS

A utilização de análises paramétricas para os dados foi viável, a despeito do número de participantes da amostra, pois a análise de assimetria dos dados indicou valores de superiores a 0,24 (MILES; SHEVLIN, 2001).

3.2.3 ANÁLISES DE CORRELAÇÕES

Foram calculadas as médias aritméticas, os desvios padrão e os coeficientes de correlação entre as variáveis do estudo por meio da correlação de Pearson. Para a análise da matriz de correlação, considerou-se a seguinte classificação de magnitude dos coeficientes de correlação: 0,10 - 0,29: fraca; 0,30 - 0,49: moderada e 0,50 ou maior: forte.

Foram obtidas as seguintes correlações entre os subtestes de memória simbólica e idade (r = 0,332, p < 0,05); entre o subteste desenho de cubo e idade (r = 0,297, p < 0,05); e entre o subteste memória espacial e idade (r = 0,291, p < 0,05) (Tabela 1).

Já nas correlações entre escolaridade e os subtestes do UNIT (Tabela 2), observou-se uma única correlação significativa, que foi entre memória simbólica e escolaridade, tendo sua intensidade moderada (r = 0,368; p < 0,01).

3.2.4 ANÁLISE DE VARIÂNCIA

A fim de verificar se havia diferença entre os subgrupos que compõem a amostra, submeteram-se os escores obtidos nos subtestes do UNIT a uma ANOVA a um fator para a variável escolaridade e outra para a idade.

A ANOVA confirmou que os oito subgrupos testados ( 1ª, 2ª e 3ª séries; 4ª série; 5ª série; 6ª série;7ª série; 8ª série do ensino fundamental; 1º ano do ensino médio e 2º ano do ensino médio) diferem apenas no desempenho quanto à variável memória simbólica [F(7,47) = 2,13, p < 0,05]. Houve diferenças significativas no grupo da 4ª série p=0,033, 6ª série p=0,044, 7ª série p=0,033, 8ª série p=0,027 e 1º colegial p=0,021.

Entretanto, quando se submeteram os escores obtidos nos subtestes do UNIT a uma ANOVA com a variável idade, os resultados mostraram que houve diferença significativa entre os grupos quanto ao subteste desenho do cubo [F(6,48) = 3,08, p< 0,05]. Os dados mostram uma diferença estatisticamente significativa no grupo com 10 - 11 anos se comparada com os participantes do grupo de 15 anos.

4 DISCUSSÃO

A utilização do UNIT deu-se pelo fato desse teste atingir uma extensão mais ampla na avaliação de fatores relacionados às variáveis que envolvem o fator g como: planejamento, raciocínio espacial, solução de problemas, organização, dentre outros (LUBINSKI, 2004), além de ser um instrumento não verbal que pode anular ou neutralizar variáveis culturais e sociais, que muitas vezes são influenciáveis na interpretação.

Considerando os dados expostos e analisando-os em conjunto, percebe-se que eles apontam para a variável memória simbólica como tendo um papel preponderante na explicação dos resultados. Esta convergência parece indicar que a capacidade de manipular e representar a informação simbólica memorizada está sendo enfatizada no processo de estimulação acadêmica e/ou não-acadêmica nesta amostra.

Capovilla (2001) ressalta que a educação dos surdos vem de um enfoque na oralização, tornando o nível de escolarização do surdo muito inferior em relação aos ouvintes. Tal movimento começou a mudar a partir de 1980 quando a Libras ganhou força na sociedade ouvinte, pois se passou a reconhecer a importância de aprender a língua de sinais, de modo que sua inserção passou a ser obrigatória nos diversos contextos sociais: televisão, escolas, empresas dentre outras. Além disso, o processo de aprendizagem da língua de sinais requer memorização e correlação entre imagens de objetos, semântica, contextualização e sinais. No mesmo sentido, Marchesi (1995) aponta que o desenvolvimento cognitivo do surdo está diretamente relacionado ao processo de estimulação nos ambientes (escola, família, dentre outros) e na forma pela qual as tarefas são ensinadas aos surdos. Deve-se considerar a Libras não apenas como um meio de comunicação, mas como uma ferramenta de desenvolvimento para outros fatores como: 1) os códigos de memória; 2) os processos de leitura; 3) o elemento mediador e inclusivo nas relações interpessoais. Isto sugere que, possivelmente, a estimulação desta amostra leva em conta o treino de habilidades como atenção a detalhes, percepção de significado, mediação simbólica e verbal, memória visual, formação de conceitos e organização perceptual. Além disso, parece que o processo de escolarização tem enfatizado habilidades de memória verbal/simbólica mais do que habilidades de raciocínio, o que pode levar a considerações equivocadas sobre o nível intelectual de deficientes auditivos. Se a avaliação intelectual enfatizar aspectos do raciocínio, então o desempenho do avaliando será prejudicado, pelo menos é o que se observa na análise preliminar desses dados.

Outro fator relevante, é a opinião dos examinandos sobre o rapport, o teste e sua aplicação com a finalidade de verificar se houve alguma dificuldade encontrada, seja em relação à compreensão da tarefa ou em relação a sua execução. Todos eles afirmaram não ter encontrado dificuldade em compreender as tarefas ou mesmo em executá-las. Muitos inicialmente acreditavam que iriam responder perguntas ou fazer atividades "chatas". Relataram também que sentiam que estavam "jogando" ou "brincando" e que o instrumento mais interessante foi o subteste memória espacial.

5 CONCLUSÕES

Este trabalho possui algumas características pioneiras que vão ao encontro das propostas de estudos que envolvem a reestruturação de fatores psicométricos na avaliação de pessoas surdas. Nesse sentido, devem-se considerar os poucos estudos que se preocupam com uma avaliação mais qualitativa do que quantitativa, com o objetivo de minimizar variáveis que possam levar a interpretações errôneas e limitadoras do potencial cognitivo das pessoas com deficiência auditiva.

Embora os estudos sobre as propriedades psicométricas do UNIT para a população em geral sejam incipientes no Brasil, estudos preliminares como o de Lopes et al. (2006), assim como o relatado neste artigo, apontam para a riqueza de fatores ligados à memória e ao raciocínio que podem ser extraídos de análises qualitativas desse teste com pessoas surdas. Isto não minimiza a importância de novos estudos, com amostras maiores, a fim de se trabalhar com um instrumento válido e fidedigno para esse tipo de amostra.

Finalmente, os resultados deste estudo podem ser um norteador e estimulador para a compreensão das habilidades cognitivas das pessoas surdas. Pode ser prejudicial "discriminar" ou "minimizar" variáveis (etiologia da perda, nível de perda, escolarização) que podem estar diretamente correlacionadas com a constituição, o desenvolvimento e a operacionalização destas habilidades nos mais diversos contextos. Além disso, é preciso entender que muitas pessoas com deficiência auditiva podem estar impossibilitadas de exercitar suas habilidades por ter um ambiente que não oferece condições adaptativas para elas (p. ex., por falta de comunicação) ou estimulantes (p. ex., por falta de capacitação dos profissionais da educação) que atendam as suas necessidades e possam ampliar seu potencial de aprendizagem.

Recebido: 08/07/2009

Reformulado: 11/01/2010

Aprovado: 12/02/2010

  • BRACKEN, B. A.; McCALLUM, R. S. The Universal Nonverbal Intelligence Test. Chicago: Riverside Publishing Company, 1998.
  • BRADEN, J. P. Deafness, deprivation, and IQ. New York: Plenum, 1994.
  • CAPOVILLA, F. C. Dicionário enciclopédico ilustrado trilingue da língua de sinais brasileira São Paulo: EDUSP, 2001.
  • COHEN, A.R. Conceptual styles, culture conflict, and nonverbal test of intelligence. American Anthropologist, Arlington, v.71, n.5, p. 828-856, 1969.
  • CUNHA, JA. Psicodiagnóstico V. Porto Alegre: Artes Médicas, 2000.
  • KAMPHAUS, R. W. Clinical assessment of children's intelligence Needham Heights. MA: Allyn & Bacon, 1993.
  • LOPES, R, F. F., et al. Características psicométricas da bateria padrão do universal nonverbal intelligence test (UNIT): um estudo preliminar. Psicologia Escolar e Educacional, Campinas, v. 10, n. 2, p. 273-282, 2006.
  • LUBINSKI, D. Introduction to the special section on cognitive abilities: 100 Years After Spearman's (1904) 'General Intelligence', objectively determined and measured. Journal of Personality and Social Psychology, Washington, v. 86, n. 1, p. 96-111, 2004.
  • MACEDO, M.F. Educação escolar para pessoas com surdez: dos primórdios aos tempos atuais. São Paulo: Mimeo, 2005.
  • MARCHESI, Á. El desarollo cognitivo y lingüístico de los ninos sordos Madrid: Alianza Psicologia, 1995.
  • MEYERS, D. Introdução à psicologia geral. Rio de Janeiro: LTC, 1998.
  • MILES, J.; SHEVLIN, M. Applying regression & correlation: A guide for students and researchers. London: SAGE Publications, 2001.
  • POKER, R. B. Troca simbólica e desenvolvimento cognitivo em crianças surdas: uma proposta de intervenção educacional. 1995. Dissertação de Mestrado (Educação) - Faculdade de Filosofia e Ciências da UNESP, Marília, 1995.
  • VERNON, P. E. Ability factors and environmental influences. American Psychologist, Washington, v. 20, n. 9, p. 723-733, 1965.
  • 1
    Nós agradecemos à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG) pelo apoio financeiro recebido (Proc. SHA 1940/06)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      23 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Aceito
      12 Fev 2010
    • Revisado
      11 Jan 2010
    • Recebido
      08 Jul 2009
    Associação Brasileira de Pesquisadores em Educação Especial - ABPEE Av. Eng. Luiz Edmundo Carrijo Coube, 14-01 Vargem Limpa, CEP: 17033-360 - Bauru, SP, Tel.: 14 - 3402-1366 - Bauru - SP - Brazil
    E-mail: revista.rbee@gmail.com