Hesitação vacinal e os desafios para enfrentamento da pandemia de COVID-19 em idosos no Brasil

Histórias distópicas que apresentam uma grande crise econômica, política e social iniciadas por um vírus que se alastra rapidamente são frequentes na literatura e no cinema. Não é difícil associá-las a experiências pandêmicas anteriores documentadas na história mundial e a ações de prospecção a novos surtos. Um elemento comum que se destaca nessas narrativas, guardadas suas especificidades, é a evidente desigualdade com que diferentes grupos populacionais são afetados em relação à disponibilidade e ao acesso a medidas de prevenção e tratamento das doenças.

Para parte da comunidade científica, o que ocorreu no ano de 2020 não foi completamente inesperado, mas abalou profundamente o mundo. Vivenciar uma nova realidade em razão da pandemia de COVID-19 e o aprofundamento das desigualdades foi impactante, mas não surpreendente.

Representando 53% dos óbitos por COVID-19 no Brasil em 2020, os idosos (≥60 anos) se tornaram um dos grupos mais vulneráveis na pandemia. A maior prevalência de doenças crônicas e maior fragilidade imunológica frente à COVID-19, eleva substancialmente o risco de morrer para esse grupo se comparado às outras faixas etárias¹. Pensando em formas de reduzir a mortalidade e na necessidade de dar visibilidade às particularidades do cuidado aos idosos, a vacinação contra a COVID-19 tem sido viabilizada e priorizada para esse grupo etário em vários países. A vacinação tem sido, portanto, entendida em todo o mundo como uma estratégia fundamental de promoção e proteção da saúde dos idosos.

O Brasil é o país que, provavelmente, tem um dos programas nacionais de imunização mais completos e capilarizados do mundo. O Programa Nacional de Imunização (PNI) ao longo das suas quatro décadas de existência, acumula experiências bem-sucedidas em campanhas de âmbito nacional e com reconhecimento internacional, mas nos últimos anos a confiança e a cobertura vacinal diminuíram para algumas doenças². A entrada de novas vacinas, em especial as de COVID-19, sem uma campanha de esclarecimento da população, pode contribuir para o aumento da resistência e recusa vacinal por parte da população. Tal resistência é conceituada como “hesitação vacinal”, que significa o processo de recusa ou o atraso na aceitação de vacinas, apesar da disponibilidade nos sistemas de saúde. É afetada pelas variáveis de confiança, complacência e conveniência, e surge no contexto histórico da vacinação³.

A confiança envolve questões como eficácia e segurança da vacina, assim como confiabilidade e competência dos profissionais de saúde, do sistema de saúde e dos legisladores que decidem quando e quais são as vacinas necessárias. Já a complacência ocorre quando os riscos percebidos de doenças evitáveis pela vacinação são baixos e a vacinação não é considerada importante. Quanto à conveniência, ela afeta a decisão da vacinação na medida em que varia a praticidade e a facilidade na obtenção da vacina, e envolve questões como horários de funcionamento dos postos de vacinação, disponibilidade das doses e recursos humanos³.

Indivíduos hesitantes compõem um grupo heterogêneo que detém diferentes graus de indecisão sobre vacinas específicas ou vacinação em geral. Eles podem aceitar todas as vacinas, mas continuam preocupados com as mesmas; alguns chegam a recusar ou atrasar algumas vacinas, mas aceitam outras; outros indivíduos são propícios a recusarem todas as vacinas⁴.

Compreende-se que as vacinas são excelentes instrumentos na prevenção de doenças infecciosas, especialmente para o enfrentamento de uma pandemia, mas sabemos que também há uma série de questões indefinidas, tanto em relação ao comportamento do vírus e suas variantes espalhadas globalmente, quanto em relação aos dados de eficácia e segurança em algumas faixas etárias. No que tange ao potencial de imunização, as vacinas funcionam de várias maneiras diferentes, proporcionando benefícios para o indivíduo e para a comunidade. A vacinação é, portanto, uma estratégia de controle de doenças pensada e implementada para ter alcance populacional. Um benefício individual de fácil compreensão é a prevenção da infecção na pessoa que é vacinada. No caso de não impedirem a infecção, podem reduzir a reprodução do vírus, desencadeando um adoecimento mais leve e potencialmente reduzindo a capacidade do indivíduo de transmitir a doença.

O até então inédito desenvolvimento de vacinas em menos de um ano, como realizado para o enfrentamento da COVID-19, o desconhecimento de boa parte da população sobre os trâmites e protocolos técnico-científicos na produção dos imunizantes e o aprofundamento dos sentimentos de medo e insegurança provocados pelo contexto pandêmico, propiciaram o surgimento e fortalecimento de dúvidas e contestações sobre a vacina. Tomemos como exemplo os dados de eficácia. Divulgou-se em diferentes veículos da mídia nacional a eficácia de uma das vacinas aprovadas no Brasil, a CoronaVac, produzida pelo Instituto Butantan, na ordem de 50%. A interpretação usual da população em geral é que a cada 100 vacinados, somente 50 estão protegidos. Entretanto, os dados de eficácia estão relacionados à redução da incidência da doença, ou seja: com uma eficácia de 50%, a vacinação reduzirá em 50% a incidência da doença se compararmos com a incidência que ocorreria na ausência da vacina. Em outras palavras, a eficácia da vacina informa para cada 100 pessoas não vacinadas que adoeceram, quantas não teriam adoecido se tivessem sido vacinadas. Assim, a apropriação de termos da epidemiologia de maneira equivocada, bem como, a disseminação de informações falsas ou incorretas nas redes sociais, podem gerar muitos ruídos na comunicação e comprometer a compreensão sobre a vacinação.

O estabelecimento de grupos prioritários para a vacinação é uma estratégia importante, baseada em indicadores epidemiológicos e na caracterização da vulnerabilidade dos grupos. Mesmo neste momento em que há indisponibilidade de doses para toda a população e disputas sobre quem será priorizado, a preocupação com a hesitação vacinal deve ser levada em consideração, para garantir que a falta de informação correta não impacte no direito de acesso à vacina. Essa situação agrava-se pela falta de um incentivo e ação coordenada clara, por parte do governo federal, que auxilie a população com informações confiáveis e com esclarecimento sistemático da importância e segurança da vacina através de uma campanha publicitária nacional.

Desse modo, a avaliação contínua da hesitação pode, em conjunto com o acompanhamento da cobertura vacinal, auxiliar tanto no enfrentamento da pandemia de COVID-19 quanto na prevenção de novas epidemias. Nesse sentido, as próximas fases da vacinação exigirão que os governos federal, estadual e municipal trabalhem de maneira articulada para que a população seja vacinada.

Constatamos que, para além de uma pauta estritamente sanitária, a vacina torna-se um assunto permeado por interesses geopolíticos e econômicos de diferentes nações, indústrias e grupos de interesse. Diante deste contexto, é importante que a proteção da pessoa idosa seja garantida pelo atendimento à saúde humanizada e de qualidade em todos os níveis de atenção: primário, secundário e terciário⁵. No sistema público, como no suplementar, é necessário que esses cidadãos possuam plena garantia de acesso e que se obtenha uma efetiva adesão à vacinação e às demais estratégias de cuidado e atenção à sua saúde diante da pandemia e para além dela.

REFERENCES

• ¹
  Brasil. Ministério da Saúde, Secretaria de Vigilância em Saúde. Boletim Epidemiológico Especial: doença pelo Coronavírus Covid-19 [Internet]. Brasília, DF; 2020 [acesso em 07 fev 2021]. Boletim: nº 43. Disponível em: https://coronavirus.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos
  » https://coronavirus.saude.gov.br/boletins-epidemiologicos
• ²
  Macdonald NE. Vaccine hesitancy: definition, scope and determinants, Vaccine. 2015;33(34):4161-4. Disponível em: https://doi.org/10.1016/j.vaccine.2015.04.036 .
• ³
  Batista SR, Souza ASS, Nogueira J, de Andrade FB, Thumé E, Teixeira DSC, et al. Comportamentos de proteção contra COVID-19 entre adultos e idosos brasileiros que vivem com multimorbidade: iniciativa ELSI-COVID-19. Cad Saúde Pública. 2020;36(15):e00196120.
• ⁴
  Domingues CMAS . Desafios para a realização da campanha de vacinação contra a COVID-19 no Brasil. Cad Saúde Pública.2020;37(1):e00344620. Disponível em: http://dx.doi.org/10.1590/0102-311X00344620 .
• ⁵
  Figueiredo A, Simas C, Karafillakis E, Paterson P, Larson HJ. Mapping global trends in vaccine confidence and investigating barriers to vaccine uptake: a large-scale retrospective temporal modelling study. Lancet. 2020;396(10255):898-908, Disponível em: https://doi.org/10.1016/S0140-6736(20)31558-0 .

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  16 Abr 2021
• Data do Fascículo
  2020