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Espaços de educar: biografias femininas e ensino de história da educação

Places to teach: female biographies and teaching history of education

Espacios de educar: biografías femeninas y enseñanza de historia de la educación

Resumo:

O objetivo deste artigo é socializar uma experiência do uso de biografias de educadoras no ensino de história da educação em um Programa de Pós-graduação em Educação. O estudo também problematiza, a partir de uma pesquisa bibliográfica, o predomínio masculino nos dicionários e nas obras clássicas de história da educação editadas nos séculos XX e XXI. Conclui-se que, ao se proporcionar aos estudantes o acesso a histórias plurais, também se deu visibilidade às trajetórias femininas na história da educação. Os enfrentamentos ideológicos, políticos e sociais, vividos pelas educadoras, impulsionaram outras perspectivas a respeito do magistério na história da educação brasileira.

Palavras-chave:
mulheres educadoras; biografias; ensino de história da educação

Abstract:

In this text, we aimed to socialize an experience in the use of biographies of women educators in teaching history of education in a Graduate Program in Education. The text also problematizes, from a bibliographical research, the male predominance in the dictionaries and classic works of history of education edited in the 19th and 20th centuries. It is concluded that, by providing students with access to plural histories, women trajectories in history of education were also given visibility. The ideological, political, and social confrontations boosted other perspectives regarding the teaching profession in the history of Brazilian education.

Keywords:
women educators; biographies; teaching history of education.

Resumen:

El objetivo de este artículo es socializar una experiencia del uso de biografías de educadoras en la enseñanza de historia de la educación en un Programa de Postgrado en Educación. El estudio también problematiza, a partir de una investigación bibliográfica, el predominio masculino en los diccionarios y en las obras clásicas de historia de la educación editadas en los siglos XX y XXI. Se concluye que, cuando fue proporcionado a los estudiantes el acceso a historias plurales, también se volvieron visibles las trayectorias femeninas en la historia de la educación. Los enfrentamientos ideológicos, políticos y sociales, vividos por las educadoras, fomentaron otras perspectivas respecto al magisterio en la historia de la educación brasileña.

Palabras clave:
mujeres educadoras; biografías; enseñanza de historia de la educación

Introdução

A influência do lar se completava com os exemplos concretos da virilidade romana. Nenhum outro povo usou tão eficazmente as personalidades de importância de sua própria história para formação de caráter da juventude de cada geração. Sua literatura primitiva consistia em lendas e narrativas heroicas dos primeiros romanos. Suas canções não eram nada mais que a glorificação desses mesmos feitos […]. Os heróis romanos, possuíam virtudes e praticavam atos heroicos que podiam ser imitados por todo menino romano. (Monroe, 1979Monroe, P. (1979). História da educação romana. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional., p. 28).

Em sua obra História da educação romana (1979Monroe, P. (1979). História da educação romana. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional.), Monroe discorre sobre a prática de se recorrer a histórias individuais heroicas para se educar as jovens gerações, exercício que não se restringiu ao período da Antiguidade, como mostram sua própria obra e outras que apresentaremos neste texto. Ensinar história por meio de exemplos gloriosos e viris se estende pela cronologia sem apresentar sinal de exaustão; modificam-se os formatos, mas a história do panteão masculino permanece no topo contemporâneo, ocupando lugares privilegiados em obras da história da educação.

A despeito de a Antiguidade já exercer a escrita de histórias de vidas privadas, o termo biografia se constitui no século XVIII, opondo-se a formas de se escrever histórias e discursos que idealizavam e louvavam sujeitos e histórias em formato laudatório e enaltecedor. A escrita da história individual, ou biográfica, durante muito tempo se constituiu como a própria história, tratando de sujeitos idealizados, sob formato de prócer, que, aparentemente, agiam na história de forma individual, conquistando louros e garantindo lugar de reconhecimento. A tradição romana de exaltar ações individuais, guiada pela aspiração gloriosa, reforçada no período medieval, influenciou a escrita de narrativas individuais na história. No entanto, a inserção de escritas de homens ordinários não é recente, como afirmou Loriga (2011Loriga, S. (2011). O pequeno X: da biografia à História. Belo Horizonte, MG: Autêntica., p. 19): “Ao longo do século XVIII, a reflexão biográfica se desenvolveu sobre dois eixos essenciais: além da vida dos santos e dos reis, interessou-se cada vez mais pela de poetas, soldados ou criminosos; e adota um tom mais intimista”.

Apesar de o período setecentista iniciar esse movimento, na história da educação, prevalece o privilégio de histórias de homens movidos pelo caráter missionário da educação, revestidos de posturas de abnegações, beneméritas e salvacionistas. Eles são apresentados por meio de adjetivos que os diferenciavam de outros, tais como ilustres, notáveis, distintos, louváveis, além de outros que os caracterizam de forma redentora. Esse tipo de produção biográfica apresenta dados que privilegiam, de forma quase que exclusiva, a memória em detrimento da história, pois os préstimos desses sujeitos para a instrução configuram o sentido de um passado único e coerente.

Motivadas pela compreensão de que as biografias apresentam potencial importante para o ensino de história da educação, desafiamo-nos a apresentar nossa experiência com o seu uso na disciplina de educação brasileira do Programa de Pós-graduação em Educação, da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Goiás. Para isso, foram utilizados estudos de biografias, destacando o uso de verbetes de mulheres mencionadas no Dicionário de educadores do Brasil: da Colônia aos dias atuais, organizado por Fávero & Brito (2008Fávero, M. L. A., & Britto, J. M. (Org.). (2008). Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ., 2012Fávero, M. L. A., & Britto, J. M. (Org.). (2012). Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ.). O artigo também problematiza, a partir de uma pesquisa bibliográfica, o predomínio masculino nos dicionários e nas obras clássicas de história da educação, editadas nos séculos XX e XXI.

A reflexão foi realizada da em duas partes. Na primeira, analisamos como as biografias se apresentam nos dicionários e nas obras clássicas de história da educação, bem como o debate sobre o predomínio masculino nessas publicações. Na segunda, socializamos a metodologia do uso de biografias em sala de aula com a análise de alguns resultados para somar à discussão sobre o ensino em história da educação.

Histórias individuais sob o formato de verbetes: dicionários de gente

Tomados como materiais não confiáveis, os dicionários ou compilações que reúnem verbetes humanos foram, se não recusados por um tempo, criticados por apresentar histórias únicas e inquestionáveis. No entanto, as biografias compiladas sob essa perspectiva têm sido reconsideradas, sobretudo a partir dos anos 1990, por serem elaboradas por especialistas da academia. O número de material dessa natureza é amplo, e, ao investigarmos páginas de sites de editoras, grandes livrarias, sebos reunidos, notamos que a produção de dicionários de pessoas, com verbetes limitados ou extensos, tomou uma proporção considerável.

São obras que tratam de verbetes científicos por área (filosofia, literatura, psicologia, história, ciências naturais, música etc.), verbetes regionais (nomes por Estado, cidade, família e outros); verbetes específicos (nomes da imprensa, personagens de obras/períodos da literatura, esportistas, militares, presidentes etc.), dentre outros. Até meados dos anos 70 do século XX, os dicionários são configurados em formato amplo, com títulos no gênero masculino, adjetivados como grandes, célebres, ilustres, destacáveis, nobres, honráveis.

Um exemplo é o dicionário organizado por Martins (1971Martins, T. N. (1971). Súmulas biográficas de cidadãos prestantes. São Paulo, SP: Ensil. , p. 2), intitulado de Súmulas biográficas de cidadãos prestantes, que apresenta na chamada:

A história está repleta de exemplos de heróis do progresso, que se levantam com redobrada energia após os fracassos, as derrotas de seus cometimentos, e seguem em frente. Quais Fênix voluntariosas, renascem das cinzas, crescem, avultam-se, atingem os píncaros onde são louvados como seres preeminentes, indivíduos prestantes que deixaram atrás de si a marca de sua personalidade forte, o timbre de seus nomes inscrito nas galerias dos homens ilustres de todos os tempos. Este livro enfrenta vitoriosamente a tarefa respeitável de consignar em livro as vidas daqueles que desde os primórdios da história nacional estiveram presentes para ajudá-la a ser escrita.

Observamos que somente os seres preeminentes e presentes na escrita da história, geralmente oriundos da elite, compõem essa obra. A escrita dos verbetes acompanha a apresentação feita pela autora da obra.

Na área da história da educação brasileira, ainda que seja caracterizada pela pluralidade de títulos, ainda confronta com questões ainda não resolvidas, como privilegiar regiões do país (Sudeste e Sul), tempos históricos (século XX em detrimento de tempos anteriores) e a questão de gênero. Este último tema chama a atenção em função de se tratar de dicionários biográficos recentes que, a despeito dos debates, seguem privilegiando o gênero masculino. Parece que, na história do mundo científico, literário e artístico, enfim, em tempos distantes e próximos, não existem mulheres ‘prestantes’ para ocupar lugares nas páginas dos ilustres na história da educação.

Homens perfeitos aos olhos do mundo: biografias nas obras de história da educação

O historiador, autor de Os grandes pedagogistas (1978), obra que faz parte da coleção ‘Atualidades pedagógicas’ Château, reúne histórias de 15 nomes - entre eles, uma mulher, Maria Montessori -, que se ocuparam da educação no Ocidente em distintos contextos. A respeito do recorte de tempo - Antiguidade ao século XX -, o autor alerta que não existe sociedade em que a função educativa não tenha sido exercida e, ao eleger os consagrados, denomina-os de honnête-homme, justificando que

[…] temos sempre mantido em francês a expressão honnête-homme, a qual continua a parecer-nos de tradução difícil, quiçá impossível, em toda riqueza de sentido, de ‘homem perfeito aos olhos do mundo, homem de boa companhia’ (Château, 1978Château, J. (1978). Os grandes pedagogistas. São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional. , p. 15, grifo do autor).

Ao revisitarmos algumas obras clássicas de história da educação, utilizadas amplamente nos séculos XX e XXI e adotadas de forma extensiva até os dias atuais, encontramos pistas para pensarmos o tema da biografia no ensino de história da educação. Foram eleitas quatro obras de autoria internacional e duas obras de autoria nacional, tendo como critério a circulação e citação delas em trabalhos científicos da área nos dois últimos congressos da Sociedade Brasileira de História da Educação (2015, 2017). A metodologia para averiguar o ensino por meio de biografias foi a consulta aos índices das obras de nomes registrados de forma isolada, como, por exemplo, Locke, Cícero, Pestallozzi, Paulo Freire e Anísio Teixeira, observando na página indicada como o individual era tratado na história.

Sobre a materialidade desses livros, também denominados de compêndios ou manuais, notamos as seguintes características: 1. abrangem conhecimentos básicos, súmulas, breves explanações, sínteses generalistas sobre as complexas especificidades da história da educação; 2. são organizados de forma cronológica, seguindo o formato tradicional da história, estabelecendo períodos e fases que partem da Antiguidade (em geral privilegiando Grécia e Roma); 3. privilegiam a história do Ocidente, sendo que, das obras consultadas, uma apresenta aspectos da educação no Oriente, elegendo aspectos da educação da China e Índia como prioridade.

A análise aligeirada tem a intenção de abordar o aspecto metodológico do uso de histórias individuais, no entanto vale registrar que as obras revisitadas podem oferecer inúmeros aspectos relevantes para a compressão do ensino de história da educação, sobretudo, as permanências dos recortes de temas, períodos, sujeitos, lugares e outros que definem o ensino e aprendizagem na área, pois trata de

[…] manuais de profissionalização que visam fundar práticas profissionais em consonância com um modelo, de forma prescritiva e útil. Por terem essas características e objetivos, os manuais impressos são amplamente utilizados como documentos históricos e fontes de pesquisa (Martineli & Moreira, 2016Martineli, A. P.,& Moreira, J. A. S. (2016). A concepção de história e de educação em Lorenzo Luzuriaga e sua repercussão no Brasil. Educação Unisinos, 20(2), 166-175., p. 167)

De autoria do educador espanhol Lourenzo Luzuriaga, História da educação e da pedagogia (1978Luzuriaga, L. (1978). História da educação e da pedagogia.São Paulo, SP: Companhia Editora Nacional. ), editada pela primeira vez nos anos 1950, é amplamente consultada e citada em distintas pesquisas. O autor dedica um capítulo para a educação oriental, sem ressaltar nomes individuais, e no restante dos capítulos trata da história da educação ocidental, listando biografias que acompanham o recorte de tempo e espaço: filósofos gregos e romanos, educadores cristãos, reformistas, iluministas e outros que são destacados individualmente por seus feitos educacionais.

Publicado nos anos 1960, a obra do norte-americano Frederick Mayer, História do pensamento educacional (1976Mayer, F. (1976). História do pensamento educacional. Rio de Janeiro, RJ: Zahar Editores. ), inclui estudos, ainda que em menor proporção, sobre a educação no Oriente e inicia sua escrita por meio de biografias (que ocupam grande extensão da obra) de educadores filósofos de religiões indianas e chinesas. Além de investir nas particularidades de filósofos gregos, romanos, religiosos cristãos, pensadores medievais, renascentistas, humanistas, reformistas e outros, garante espaços para homens que Mayer atribui pertencerem à filosofia católica, à nova ciência, aos idealistas, aos agnósticos etc. O autor inova ao apresentar biografias de educadores russos e pioneiros americanos. E ainda, de forma descritiva, destaca os indivíduos, caracterizando-os de homens que trabalharam pela educação desde tempos remotos.

De uma geração mais recente, História da pedagogia (1999Cambi, F. (1999). História da Pedagogia. São Paulo, SP: Editora Unesp.), do italiano Franco Cambi, em suas mais de 700 páginas, segue o padrão cronológico do recorte no Ocidente e, ainda que de forma menos intensa, investe na escrita da história da educação por meio de relatos individuais dos homens a quem denomina percursores da educação. Além dos sujeitos dos tempos indicados anteriormente, como os filósofos da Antiguidade, santos medievais, nomes da pedagogia moderna e modelos pedagógicos, Cambi aposta em relatos pessoais de homens do saber contemporâneo.

Atendendo a uma especificidade da história, o historiador francês Henri Marrou, especialista em história da Antiguidade e história da educação, publicou nos anos 1940 História da educação na antiguidade (1971Marrou, H. I. (1971). História da educação na antiguidade. São Paulo, SP: Herder. ). Na obra, considerada um exemplo clássico de sua produção, o autor prioriza a história da educação na Grécia e em Roma a partir de temas genéricos. Ele mantém, de forma pontual, biografias de filósofos gregos e romanos que identifica como educadores nobres do período, reconhecidos pela atuação intelectual1 1 Para se ter uma ideia de quem são considerados homens da instrução nessas obras, registramos aqui em ordem cronológica, conforme encontramos nas quatro obras: Sócrates, Platão, Isócrates, Aristóteles, Quintiliano, Santo Agostinho; Lutero, Calvin, Ratke, Comenius, Locke, Fénelon, Condillac, Diderot, Rousseau, Basedow, Condorcet, Kant, Hegel, Goethe, Pestalozzi, Froebel, Herbart, Spencer e outros. .

No Brasil, tomamos duas obras, a primeira de Maria Lúcia de Arruda Aranha, História da Educação (1996Aranha, M. L. A. (1996). História da educação. São Paulo, SP: Moderna.),editada pela primeira vez em 1989. Com um título abrangente, Aranha não prioriza somente a história da educação brasileira como também apresenta um percurso cronológico que inclui a educação das sociedades ‘tribais’, traços da Antiguidade oriental até a contemporaneidade. A autora segue os precedentes das obras internacionais, anteriormente apresentadas, e investe em nomes reconhecidos pela atuação intelectual na educação, identificando-os em seus períodos2 2 Platão, Homero, Sócrates, Isócrates, Aristóteles; Cícero, Quintiliano, Clemente, Santo Agostinho; Vives Erasmo, Rabelais, Montaigne, Comênius, Locke, Fénelon, Rousseau, Kant, Pombal, Pestalozzi, Froebel, Herbart, Durkhein, Dewey, Montessori, Decroly, Freinet, Vygotsky. . Quanto à educação brasileira, organizada em tempos históricos tradicionais como Colônia (1500-1822), Império (1822-1889) e República (1889-), o destaque que a diferencia é a biografia da argentina Emília Ferreiro e do brasileiro Paulo Freire.

Em História das ideias pedagógicas no Brasil (2008Saviani, D. (2008). História das ideias pedagógicas no Brasil. Campinas, SP: Autores Associados. ), o professor Demerval Saviani organizou, igualmente, o livro de forma cronológica, distribuindo temas e histórias individuais nos mesmos períodos da obra de Aranha. Ele não ressalta nomes do período jesuítico, mas dois portugueses e um brasileiro do período pombalino, que marca o final do processo colonizador europeu. Na fase imperial, o autor destaca um português e um brasileiro, para, em seguida, centrar em quase uma dezena de histórias biográficas de homens que atuaram na primeira metade do século XX, fosse no período escolanovista ou educação popular3 3 Em ordem sequencial: Verney, Ribeiro Sanches, Azeredo Coutinho, Silvério Pinheiro Ferreira, Barão de Macahubas (Abílio Cesar Borges); Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Alceu Amoroso Lima, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Clemente Mariano, Lauro de Oliveira Lima e Paulo Freire. .

Diante da rápida consulta, é possível percebermos que o uso de biografias no ensino de história da educação se faz presente em tempos e lugares diferentes. A forma com que as biografias são apresentadas e disponibilizadas nas páginas das obras citadas se difere a partir de alguns conceitos da própria apresentação que se confrontam. Adjetivos de qualidade que enaltecem a nobreza, ilustração, elevação, brilhantismo de homens merecedores são substituídos por mestres, professores e educadores reconhecidos pela atuação intelectual, percursores da educação, que trabalharam pela educação e por seus feitos educacionais.

Outra questão que não se difere do material biográfico em formato de dicionários que foram analisados anteriormente é a de gênero. Todas as obras seguem a perspectiva de priorizar o gênero masculino em detrimento do feminino, e cerca de 97% das biografias apresentadas nessas obras, além de repetirem os nomes dos educadores, são homens, independentemente do tempo e do espaço da narrativa histórica ou tempo de publicação.

Biografias no ensino de história da educação brasileira: matizes de pensamentos

Há uma década, o programa da disciplina educação brasileira contempla biografias, recorrendo aos verbetes do Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais. Essa obra teve duas edições, a primeira do ano de 1999, com 74 verbetes, e a segunda, em 2002, ampliada para 144. O fato de a segunda edição alcançar quase o dobro da primeira edição, um acréscimo considerável, indica a boa circulação e aceitação desse material:

A concepção deste Dicionário nasceu das dificuldades vivenciadas ao longo de nossa experiência como professores e pesquisadores, ante a falta de informações precisas sobre as matrizes do pensamento em nossa área de trabalho. Considerando que a preservação e revalorização da memória educacional e cultural brasileira é tarefa que está a desafiar permanentemente a intervenção diligente da iniciativa pública e privada, lançamo-nos a esta iniciativa com dois objetivos: primeiro oferecer informações básicas para aqueles que trabalham em Educação e áreas a fins e se preocupam em conhecer o pensamento educacional brasileiro, em termos de ideias, planos e propostas em diferentes fases de sua história; segundo, servir de referências para estudos mais aprofundados. Trata-se de tarefa e processo, sempre inacabada, com inevitáveis omissões a serem identificadas e trabalhadas em edições ulteriores (Fávero & Britto, 2002Fávero, M. L. A.,& Britto, J. M. (Org.). (2002). Dicionário de educadores no Brasil:da Colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ. , p. 15).

Ter em mãos este dicionário com verbetes biográficos de educadores para utilizar nas aulas facilitou enormemente o acesso a informações diversas em uma mesma publicação. A respeito desse tipo de dicionário, Catani (2003Catani, D. B. (2003). Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais.Revista Brasileira de Educação, (22), 176-177. , p. 176) registrou que

Cabe reconhecer que, no domínio educacional, não tem sido muito frequente a elaboração de obras básicas resultantes de pesquisas instrumentais que, sem fornecer construções e elaborações teóricas, circunscrevem sua ambição a paciente e generoso trabalho de ordenação de informações e sistematizações de análises fundamentais para auxiliar os estudos de outros investigadores. Decerto, nos últimos anos, e após a primeira edição do Dicionário, iniciativas congêneres, como as de edições de guias de fontes e catálogos de legislação, também puderam ser saudadas como contributos à pesquisa educacional.

Reconhecemos a pluralidade dos nomes contidos no dicionário, contudo identificamos também a disparidade de nomes masculinos em detrimento dos femininos. Na primeira edição, dos 74 verbetes, 69 são de homens e cinco de mulheres4 4 São as educadoras: Armanda Álvares Alberto; Helena Antipoff; Heloísa Marinho; Nísia Floresta Brasileira Augusta; Noêmia Saraiva de Mattos Cruz. . Na segunda edição, de 144 verbetes, 121 verbetes são biografias de homens para 23 de mulheres. O número reduzido de educadoras, sobretudo no século XX, identificado como o século de feminilização do magistério, leva-nos a crer que essa diminuta presença pode ser a continuidade da tradição encontrada na revisão dos clássicos citados neste trabalho. A respeito disso, Catani (2003Catani, D. B. (2003). Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais.Revista Brasileira de Educação, (22), 176-177. , p. 177) ressaltou que

Poderíamos indagar sobre o fato de serem poucas mulheres diante do número total de educadores inclusos no Dicionário, ou poderíamos considerar o número razoável pelo fato das mulheres terem tido pouca visibilidade nos quadros mais legítimos do campo educacional ou poderíamos ainda, como o tom e as palavras dos organizadores parecem permitir entender, sentirmo-nos desafiados - enquanto estudiosos de história da educação - a colaborar na superação desses limites, certamente provisórios das presenças e ausências dos educadores e educadoras na obra.

A observação de Catani procede, foi dada a largada de registro de histórias micros que se tornam macros, de gente que nos ajuda a pensar a história da educação brasileira. A proposição feita pelo Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais desencadeou, tanto nas aulas, como em outros lugares, outros olhares a respeito da história de pessoas que atuaram na educação em tempos e lugares próprios. Como exemplo, podemos citar o Dicionário de educadores e educadoras em Goiás: Séculos XVIII/XXI, organizado por Valdez (2017Valdez, D. (Org.). (2017). Dicionário de educadores e educadoras em Goiás: séculos XVIII/XXI. Goiânia, GO: Editora da UFG. , p. 15).

Enfatizando o conteúdo, o Dicionário disponibiliza cento e quatro verbetes arranjados em ordem alfabética. Os verbetes biográficos se aproximam e se afastam no tempo (mais de três séculos) lugares (cidades, campos, vilas), espaços (escola, biblioteca, movimentos sociais, sindicatos) e práticas (métodos, olhares, movimentos). Tudo isso está dentro de duas capas, distribuídos em páginas plenas de letras de histórias vivas e distintas que tem em comum modos de ensinar.

De acordo com a organizadora desse dicionário regional, ainda que houvesse no projeto inicial a distribuição dos verbetes, no tempo, em cidades e por gênero, isso não foi contemplado. Numericamente, foram 59 verbetes masculinos e 45 femininos. Os verbetes foram utilizados na mesma disciplina no ano de 2018, no entanto eles não serão analisados neste artigo. O Dicionário de educadores e educadoras em Goiás: séculos XVIII/XXI é um material precioso que ocupa o lugar de informar as prioridades que a história conta, ou seja, além das riquezas dos verbetes, serve para pesquisas a respeito dos recortes de tempos, lugares, gêneros. Anotamos a seguir os nomes trabalhados na referida disciplina no Quadro 1.

1 - Biografias trabalhadas na disciplina educação brasileira (2009-2016).

Quadro 1
Biografias trabalhadas na disciplina educação brasileira (2009-2016).

Fonte: As autoras.

*No ano de 2014, a disciplina de educação brasileira foi oferecida no seguinte formato: educação brasileira I: colonização portuguesa e império e educação brasileira II: república.

A disciplina utilizou as biografias de acordo com as edições de 2009 e 2012. Seguindo a demanda registrada, privilegiaram-se educadores homens, em especial, os que fizeram parte do movimento escolanovista a partir dos anos 20 do século XX. Não é objetivo deste artigo fazer um estudo sobre essas biografias, mas socializar uma experiência didática sobre o uso de biografias femininas. Entretanto, vale ressaltar que o Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais, a despeito da diversidade já anunciada, segundo Fávero e Britto (2012Fávero, M. L. A., & Britto, J. M. (Org.). (2012). Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais. Rio de Janeiro, RJ: Editora UFRJ., p. 18), concentra-se em nomes de educadores “[…] Compulsando-se o Manifesto dos Pioneiros, a educação nova, privilegiando os que deixaram suas marcas desde o período colonial, com ênfase na plêiade que atuou dos anos trinta aos dias atuais”.

A disciplina acatou o formato disponibilizado pelo Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais, priorizando homens do século XX. Os verbetes de educadoras foram inclusos timidamente no debate das aulas, a partir de 2014, com a biografia de Nísia Floresta. Quanto à metodologia, recorremos ao sorteio para distribuirmos as biografias e, a despeito de a opção de trabalharmos com essas narrativas ter se dado pelo formato acadêmico dos verbetes do Dicionário, as biografias foram ampliadas com outros estudos a partir dos verbetes distribuídos. Vale registrar o interesse dos estudantes por biografias de sujeitos mais divulgados, como Paulo Freire, Florestan Fernandes, Anísio Teixeira.

Os estudantes, mesmo partindo de um lugar prévio, movidos pela admiração, ao trabalharem com as biografias, extrapolaram os diversos lugares por que esses educadores se movimentaram. Os lugares de enfrentamento à ditadura militar, as viagens internacionais, o reconhecimento no exterior, os inúmeros lugares na educação pública, a ausência de diplomas específicos da educação, os enfrentamentos entre pertencentes de um mesmo grupo e outros dados foram postos, ressaltando que a história de um indivíduo não é única e ausente de conflitos.

As contradições da história foram verificadas nos verbetes, sobretudo de personagens reais que já morreram e não estão aqui para confrontar os dados. O presente ainda serviu de parâmetro para questões como a de pessoas, às vezes com formação considerada limitada sob um olhar anacrônico, que se movimentavam em tantas frentes na educação. Homens do século XVI ao século XIX compuseram o quadro, e as histórias dos jesuítas tomaram um tempo de dúvidas sob julgamentos.

Nos primeiros anos de adoção de biografias femininas, destacamos um total desconhecimento das mulheres estudadas que se confrontou com interesses diversos de conhecermos mais as ilustres desconhecidas. A história de Nísia Floresta, a única mulher do século XIX, juntamente com a de Armanda Álvares Alberto, Helena Antipoff, Heloísa Marinho e Noêmia Saraiva de Mattos Cruz, deu largada ao que denominamos de investir nas mulheres que educaram em seus tempos e espaços. Até então, a russa Helena Antipoff foi a única a ser fragilmente identificada por nomear uma escola especial no Estado de Goiás. As outras foram desveladas a partir do Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais com variadas disponibilidades, fosse por fontes como fotografias, livros publicados, discursos que não estavam no Dicionário.

Diante da recepção e repercussão das biografias de mulheres, o ano de 2017 foi reservado, exclusivamente, para a apresentação de biografias femininas. A metodologia seguiu com o sorteio, e as apresentações foram individuais para alcançarmos o maior número de mulheres possíveis. A justificativa de trazê-las para a disciplina em bloco se deu por tudo que foi anotado, os homens já eram conhecidos, enquanto que elas permaneciam no porão da história. Tomando essa referência, partimos da seguinte questão: como as mulheres biografadas são colocadas em seus percursos educacionais e como as/os discentes da pós-graduação (mestrado e doutorado) as apresentariam ao grupo?

Tínhamos 28 verbetes para 20 pessoas5 5 Não foram sorteadas as educadoras: Ana Maria Poppovic (1928-1983); Antonia Ribeiro de C. Lopes (1874-1971); Juracy Silveira (1898/1991); Maria Claro Machado (1921-2001); Noemy da Silveira Rudolfer (1902-1980). , o critério foi o sorteio, pois teríamos dificuldade em eleger quais histórias seriam mais ‘relevantes’ em detrimento de outras, até porque acreditamos que a ordem da relevância é um recorte autoritário, por isso foram colocados os nomes de todas para o sorteio, data e ordem de apresentação, com entre 20 e 30 min. para cada biografia no início ou final da aula. Orientamos acerca da consulta prioritária no Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais, com o argumento de que os verbetes foram escritos por especialistas da área, outros dados poderiam ser complementados (iconografia, vídeos curtos, fragmentos de escritas etc.). O Quadro 2 apresenta todos os nomes das educadoras com uma síntese do recorte temporal, espaços onde elas viveram/circularam e os campos de atuação:

Quadro 2
Educadoras sorteadas e contempladas para exercício de apresentação.

Fonte: As autoras.

Antes da apresentação dos 20 nomes de educadoras disponibilizadas para o sorteio com uma breve identificação, conforme vemos no Quadro 2, perguntamos quais mulheres o grupo identificava na história da educação brasileira, e o retorno foi tímido, pois o grupo se lembrava mais de nomes masculinos. Após a projeção dos nomes que iriam para o sorteio, algumas poucas estudantes identificaram a escritora Cecília Meirelles, a autora do livro História da educação no Brasil (1978), Otaíza Romanelli e, novamente, o nome de Helena Antipoff, associado à Escola Especial (APAE).

Algumas orientações básicas nortearam o trabalho com as agentes da educação, como integrar a biografada no tempo histórico diante dos textos que a disciplina propunha, compreender a biografia em seu tempo e lugar, ou seja, não julgar e cobrar práticas que não pertenciam ao tempo vivido, evitando olhar anacrônico; evitar o olhar romântico, algo comum quando se fala de uma biografia; não se ater à vida pessoal como maior referência; observar as práticas educacionais nos tempos e nos espaços e, sobretudo, os lugares ocupados pelas mulheres.

Inventário de pluralidades: as biografias e as percepções anotadas

Na turma dos discentes que cursaram a disciplina educação brasileira, boa parte delas/deles são professores/as da escola pública que fazem mestrado e doutorado, e a adoção das biografias das educadoras gerou uma série de debates, surpresas, dúvidas, fascinação, críticas e outros movimentos próprios da história. Nas anotações feitas em cada apresentação, listamos categorias diversas possíveis de análises em um texto científico, no entanto, diante do espaço, recortamos alguns temas para essa tarefa. Como registrou Malcolm (1995Malcolm, J. (1995). A mulher calada: Silvia Plath, Ted Hughes e os limites da biografia. São Paulo, SP: Companhia das Letras. ), a biografia é uma forma de a vida de alguém ser da conta de todo mundo, mas o aparato acadêmico dado às biografias parece escapar do puro voyerismo, pois, como ressaltou Schmidt (2018, p. 4, grifo do autor), para quem escreve o/a historiador/a biógrafo/a

[…] não há, como sabemos, fatos importantes em si, que precisam ser revelados ‘doa a quem doer’, mas sim fatos que se tornam históricos se nos ajudam a responder os nossos problemas de pesquisa. Assim, desde o ponto de vista da pesquisa histórica acadêmica, as práticas sexuais de determinado personagem não são em si material a ser incluído em uma biografia, apenas se estivermos perguntando, por exemplo, sobre os padrões morais dos grupos dos quais ele participava.

Feita essa ressalva em sala, é válido destacar a primeira questão que nos tomou nesta tarefa docente: o desconhecimento do gênero biográfico na história. As justificativas variaram desde falta de oportunidade, desinteresse, superficialidade até a asseveração de que a história individual não serve para a história.

Como bem ressaltou Loriga (2011Loriga, S. (2011). O pequeno X: da biografia à História. Belo Horizonte, MG: Autêntica.), uma biografia acadêmica não se limita a denunciar ou exaltar atos individuais, tampouco atribuir autoridade aos antecessores, em contrapartida não se deve negligenciar a importância de suas ações na história, afinal, a ação individual pode e deve ser integrada ao movimento geral da história, que é extensa e larga, com suas fronteiras instáveis e fluidas.

As histórias biográficas contempladas foram assumidas pelo grupo como uma tarefa desafiadora diante dos critérios postos para a sua apresentação. Todavia, vale destacar que boa parte das apresentações exaltaram o lugar familiar em detrimento do profissional e,ainda que os verbetes situem as educadoras no contexto familiar, eles privilegiam os espaços circulados longe do ambiente da casa. Sabemos que a biografia é um elemento privilegiado por dar conta de apreender o sistema político, social e dados particulares próprios de um tempo; conforme registrou Lena Júnior (2012Lena Júnior, H. (2012). Gregório Bezerra: o ser camponês e tornar-se comunista. In A. S. Avelar & B. B. Schimdt. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (p. 207-226). São Paulo, SP: Letra e Voz. , p. 209), trata-se de uma “[…] maneira de revelar como os indivíduos universalizam através de suas vidas e de suas ações a época histórica em que vivem”.

Certamente, a classe social, a etnia e os lugares ocupados na vida privada das educadoras favoreceram para que muitas delas ocupassem espaços públicos, estudassem e se diferenciassem. No entanto, cabe ressaltar que, a despeito da origem social, muitas mulheres, com atitudes, por vezes silenciosas, enfrentaram o patriarcado da época por meio de ações no mundo do trabalho e na família, o que, para Lena Júnior (2012Lena Júnior, H. (2012). Gregório Bezerra: o ser camponês e tornar-se comunista. In A. S. Avelar & B. B. Schimdt. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (p. 207-226). São Paulo, SP: Letra e Voz. , p. 210), faz a integração da noção de tempo e espaço como condição para se reconstituir o cenário da trama biográfico: “[…] não basta apenas os dados do biografado, mas é indispensável a inclusão do lugar social”. Nas biografias, a narrativa linear perde espaço, porém uma vida, por mais que seja considerada relevante, está inserida no interior das tensões e conflitos de um contexto político e social.

Isso é caracterizado nas histórias educacionais das mulheres com as nomeações, perseguições, demissões e, sobretudo, nas disputas de espaços ocupados por homens. Um dado que causou debate foi o fato de muitas biografadas não se casarem e viverem sozinhas em tempos pouco favoráveis para essa escolha. Certamente, esse aspecto não pode ser interpretado somente por análises definitivas e portadoras de verdade, como a solteirice escolhida. As biografias, ainda que algumas sejam formatadas em espaços conceituais, apresentam vidas plurais e, mesmo também em espaços privados, podem ajudar a compreender o espaço público. Na medida em que não há caminhos únicos, há outras possibilidades que, olhando atentamente, ajudam a desconstruir afirmações quanto à suposta homogeneização do mundo feminino na história. Como, por exemplo, ver o não casamento como uma forma de resistência ao patriarcado, pois, como registrou Dosse (2010Dosse, F. (2010). O desafio biográfico: escrever uma vida. São Paulo, SP: Editora da Universidade de São Paulo. , p. 67), “A narração biográfica não é, pois, como salienta Madelénat, homogênea. É bem ao contrário, uma estrutura inelutavelmente compósita, uma convergência de relatos diversos enredados uns nos outros”.

Sobre a escrita de histórias individuais, percebemos a busca por informações que pudessem tornar a história mais ‘verdadeira’, marcando a desconfiança de fontes pessoais como cartas, diários, livros e outros pertencentes às educadoras. Evidenciou-se o interesse em ampliarmos a biografia encontrada no Dicionário de educadores no Brasil: da Colônia aos dias atuais em consonância com outras fontes como fotografia das educadoras, livros e materiais publicados, cartas e entrevistas com parentes, como foi o caso da irmã de Luísa e a mãe de Romannelli. Anotamos os confrontos com os dados do Dicionário e as outras informações que as fontes apontavam, mostrando que a história não é linear e as ‘verdades’ são construídas, como registrou Borges (2012Borges, V. P. (2012). Nas pegadas de um leão: notas de pesquisa sobre a vida de Ruy Guerra. In A. S. Avelar & B. B. Schimdt. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (p. 83-104). São Paulo, SP: Letra e Voz., p. 90):

Busco o equilíbrio através da prática estrita do ofício do historiador, com sua pesquisa de provas documentais as mais variadas possíveis e, sobretudo, pelo questionamento […]. Os procedimentos para uma biografia são semelhantes a qualquer pesquisa histórica […]. Não persigo uma Verdade com maiúscula. Procuro olhar para meu personagem da mesma forma pela qual tento olhar os outros em minha vida, ou seja, a partir de como sabemos que somos - fragmentados, contraditórios, mudando ao longo do tempo, mas permanecendo os mesmos e, em momentos sucessivos, apresentando diferentes imagens tanto para nós mesmos quanto para os outros.

As contradições nas diversas imagens das educadoras foram discutidas a cada apresentação, levando em conta que não buscávamos modelos de coerência e racionalidades nas biografias, afinal, as tensões entre o vivido e o conjecturado são próprias da história. À guisa de exemplo, citamos a entrada que consideramos precoce no magistério, muitas vezes com 14-15 anos, e esse foi outro dado que surpreendeu os estudantes. A reflexão em sala de aula destacou que as condições históricas dadas determinavam o ingresso na educação, ainda que, aos parâmetros atuais, tal fato possa parecer prematuro. Isso possibilitou o debate sobre a legislação educacional e trabalhista.

Os lugares de circulação das educadoras nos seus tempos históricos indicaram que a experiência valia mais, ou era igual, à formação acadêmica, assim como o ecletismo, uma característica que parecia não impedir as mulheres de circularem, de forma profissional, para além da sala de aula. Havia outros perfis na complexidade da educação, como a não exigência de concursos, o tempo de produção de teses (atualíssimas) em consonância com as perspectivas teóricas e metodológicas da educação. Sem abrir mão de problematizar os dados como recurso metodológico, as pesquisas da história da educação nos permitiram acessar as constituições das identidades na escrita historiográfica para compreendermos essa complexidade.

Os movimentos das mulheres na educação pública e privada, em tempos diferentes, e as posições ocupadas no interior de suas redes sociais e disputas políticas nos ajudaram a perceber formas do individual atravessarem e se articularem com o social. Atuações na criação dos grupos escolares, nos debates e nas escritas sobre o escolanovismo (divulgado como espaço absolutamente masculino), a preocupação com o ensino de crianças, de pessoas com deficiências, a alfabetização de adultos, escolas para meninas e mulheres pobres, a formação para o magistério, a educação rural, a educação literária, teatral, o ensino de ginástica, os ensinos secundário, superior e outros apontam para o que Souza (2012Souza, A. B. (2012). Francisco de Lima e Silva na Confederação do Equador: biografia e escrita da História. In: A. S. Avelar & B. B. Schimdt. Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (p. 125-149). São Paulo, SP: Letra e Voz. , p. 146-147) registrou sobre as pesquisas com recorte biográfico.

[…] um ótimo espaço para pensar o social e as relações de poder que lhes são intrínsecas. Elas evitam a construção de imagens monolíticas do passado. Em vez de enfatizar as formas de homogeneidade que, em toda sociedade, prevalece quando se trata de recursos materiais ou simbólicos.

Há outras questões que merecem análises resultantes dessa experiência pedagógica, como os debates sobre a laicidade, religião, imigração, relações internacionais, produções de obras científicas, literárias etc. Para nós, o grande desafio deste trabalho, com os louros e fragilidades, foi o de apresentar as pesquisas biográficas com o cuidado, alertado por Avelar (2012Avelar, A. S. (2012). Escrita biográfica, escrita da história: das possibilidades de sentido. In A. S. Avelar & B. B. Schimdt.Grafia da vida: reflexões e experiências com a escrita biográfica (p. 63-82).São Paulo, SP: Letra e Voz., p. 75): “A narrativa biográfica supõe uma modalidade de escrita da história profundamente imbricada nas subjetividades, nos afetos, nos modos de ver, perceber e sentir o outro”. Seguimos usando biografias nas aulas e, certamente, será possível contemplarmos o que não foi possível debater e acrescentarmos o que surgiu de novo.

Considerações finais

O movimento recente, que colocou a biografia no centro das produções científicas na área da história, está pautado pelo rigor do método científico que não objetiva enaltecer sujeitos, ao contrário, almeja apresentá-los no contexto histórico, problematizando-o nos meios social e político. Assim, não priorizamos sujeitos ilustres do gênero masculino, no contexto histórico-social apreendemos histórias plurais de homens e mulheres que viveram em tempos e lugares distintos.

Trata-se de histórias múltiplas, complexas e plurais, com enfrentamentos ideológicos diversos que se distanciam da perspectiva de silenciamento, austeridade, severidade e sisudez. Confrontam-se ainda com as imagens romantizadas de uma tarefa baseada na dedicação, sacerdotismo, consagração, oferecimento, doação, devoção, destinação, sacrifício, invocação, renúncia, amor e outros adjetivos limitados que ressaltam a inclinação natural ao magistério.

Visibilizam mulheres pioneiras, abolicionistas, sufragistas, feministas, militantes, cientistas e escritoras que lutavam contra o patriarcalismo e pelo direito aos espaços na ciência. Algumas pertencentes a partidos políticos que defendiam a democracia durante os períodos de ditaduras (civil e militar), com atuações distintas e relevantes. Mulheres que, nas suas grandezas, abriram espaços para que nós pudéssemos atuar com mais liberdade e protagonismo.

O formato de trabalhar com histórias individuais na disciplina de educação brasileira trouxe importantes reflexões a respeito da história de vidas de homens e mulheres de seus tempos. Notamos que, a despeito das críticas, esse movimento se mantém no interior das especificidades metodológicas de se ensinar a história, seja na graduação ou na pós-graduação. Pela própria complexidade que não se limita a aprovar ou não o uso do trabalho com as biografias, pois, como averiguamos na revisão dos clássicos, estas continuam presentes na história da educação. A partir da escrita que trata de uma experiência, podemos pensar em fazer análises dos formatos em que se apresentam histórias individuais nos clássicos de história da educação, confrontando os autores e obras a partir de suas concepções teóricas e metodológicas.

Por fim, o trabalho com as biografias permitiu-nos o conhecimento das histórias plurais das educadoras brasileiras, compreendendo suas trajetórias e enfrentamentos ideológicos, políticos e sociais. Conhecê-las impulsionou outras perspectivas sobre o magistério na história da educação brasileira.

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  • Valdez, D. (Org.). (2017). Dicionário de educadores e educadoras em Goiás: séculos XVIII/XXI Goiânia, GO: Editora da UFG.
  • 1
    Para se ter uma ideia de quem são considerados homens da instrução nessas obras, registramos aqui em ordem cronológica, conforme encontramos nas quatro obras: Sócrates, Platão, Isócrates, Aristóteles, Quintiliano, Santo Agostinho; Lutero, Calvin, Ratke, Comenius, Locke, Fénelon, Condillac, Diderot, Rousseau, Basedow, Condorcet, Kant, Hegel, Goethe, Pestalozzi, Froebel, Herbart, Spencer e outros.
  • 2
    Platão, Homero, Sócrates, Isócrates, Aristóteles; Cícero, Quintiliano, Clemente, Santo Agostinho; Vives Erasmo, Rabelais, Montaigne, Comênius, Locke, Fénelon, Rousseau, Kant, Pombal, Pestalozzi, Froebel, Herbart, Durkhein, Dewey, Montessori, Decroly, Freinet, Vygotsky.
  • 3
    Em ordem sequencial: Verney, Ribeiro Sanches, Azeredo Coutinho, Silvério Pinheiro Ferreira, Barão de Macahubas (Abílio Cesar Borges); Lourenço Filho, Fernando de Azevedo, Anísio Teixeira, Alceu Amoroso Lima, Francisco Campos, Gustavo Capanema, Clemente Mariano, Lauro de Oliveira Lima e Paulo Freire.
  • 4
    São as educadoras: Armanda Álvares Alberto; Helena Antipoff; Heloísa Marinho; Nísia Floresta Brasileira Augusta; Noêmia Saraiva de Mattos Cruz.
  • 5
    Não foram sorteadas as educadoras: Ana Maria Poppovic (1928-1983); Antonia Ribeiro de C. Lopes (1874-1971); Juracy Silveira (1898/1991); Maria Claro Machado (1921-2001); Noemy da Silveira Rudolfer (1902-1980).
  • 8
    Como citar este artigo: Valdez, D., & Alves, M. F.Espaços de educar: biografias femininas e ensino de história da educação.(2019). Revista Brasileira de História da Educação, 19. DOI: http://dx.doi.org/10.4025/rbhe.v19.2019.e082
  • 9
    Este artigo é publicado na modalidade Acesso Aberto sob a licença Creative Commons Atribuição 4.0 (CC-BY 4).

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    14 Nov 2019
  • Data do Fascículo
    2019

Histórico

  • Recebido
    28 Mar 2019
  • Aceito
    03 Ago 2019
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