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Tratamento cirúrgico do pé equinovaro mielodisplásico Trabalho desenvolvido na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), São Paulo, SP, Brasil.

Resumos

Objetiuo:

Analisar os resultados entre 1984 e 2004 em nossa instituição do tratamento cirúrgico de 69 pés equinovaros em 43 pacientes portadores de mielodisplasia segundo os critérios clínico e radiográfico.

Métodos:

Estudo retrospectivo com análise de prontuário, radiografias e consulta com pacientes portadores de mielomeningocele que foram submetidos a correção cirúrgica de pés equinovaros. A técnica cirúrgica foi a liberação posteromediolateral (LPML) radical associada ou não a talectomia.

Resultados:

A média de idade na época da cirurgia foi de quatro anos e dois meses e o seguimento médio pós-operatório, de sete anos e dois meses. Foram encontrados resultados satisfatórios em 73,9% dos pés e insatisfatórios em 26,1% (p < 0,0001).

Conclusão:

A deformidade residual no pós-operatório imediato está relacionada com resultados insatisfatórios e a abertura do ângulo de Kite (talocalcaneano) nos pés submetidos somente a LPML, além do posicionamento adequado do calcâneo, nos casos em que foi feita a talectomia, é o parâmetro radiográfico relacionado aos resultados satisfatórios.

Mielomeningocele; Pé torto; Deformidades adquiridas do pé


Objective:

To analyze the results from surgical treatment of 69 cases of clubfoot in 43 patients with myelodysplasia according to clinical and radiographic criteria, at our institution between 1984 and 2004.

Methods:

This was a retrospective study involving analysis of medical files, radiographs and consultations relating to patients who underwent surgical correction of clubfoot. The surgical technique consisted of radical posteromedial and lateral release with or without associated talectomy.

Results:

The patients' mean age at the time of the surgery was four years and two months, and the mean length of postoperative follow-up was seven years and two months. Satisfactory results were achieved in 73.9% of the feet and unsatisfactory results in 26.1% (p < 0.0001).

Conclusion:

Residual deformity in the immediate postoperative period was associated with unsatisfactory results. Opening of the Kite (talocalcaneal) angle in feet that only underwent posteromedial and lateral release, along with appropriate positioning of the calcaneus in cases that underwent talectomy, was the radiographic parameter that correlated with satisfactory results.

Myelomeningocele; Clubfoot; Acquired deformities of the foot


Introdução

Existem diversas formas de apresentação dos defeitos de fechamento do tubo neural, como mielomeningocele, mielocele, meningocele e lipomeningocele. Essas afecções têm em comum o defeito na fusão dos elementos posteriores da coluna vertebral, associado à displasia medular.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.

A incidência mundial de mielomeningocele é de 1:1000 nascidos vivos, em média.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.

A displasia medular, ou mielodisplasia, pode ocorrer em diversos graus e comprometer vários órgãos e sistemas, como musculoesquelético, geniturinário, digestivo e neurológico, e cursar com hidrocefalia em 90% dos casos de mielomeningocele.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.,22. Mazur JM. Management of foot and ankle deformities in the ambulatory child with myelomeningocele. In: Sarwak JF, editor. Caring for the child with spina bifida. Oak Brook: American Academy of Orthopaedic Surgeon; 2002. p. 155–60.

A inervação dos membros inferiores é comprometida e gera paralisia motora e sensitiva, desequilíbrio muscular e deformidades.

O pé, nessa afecção, é sede frequente de deformidades.33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.66. Frischhut B, Stöckl B, Landauer F, Krismer M, Menardi G. Foot deformities in adolescents and young adults with spina bifida. J Pediatr Orthop B. 2000;9(3):161–9. Em estudo feito na Clínica de Mielomeningocele de nosso hospital, a deformidade mais prevalente foi o equinovaro, que totalizou 31% dos 480 pés avaliados aleatoriamente.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.

O pé equinovaro mielodisplásico é uma das alterações associadas mais frequentes, de difícil tratamento e com altas taxas de complicações.33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.55. Tachdjian MO. Mielomeningocele. In: Tachdjian MO, editor. Ortopedia pediátrica. Tradução Ana Paula Tedesco Gabrieli. São Paulo: Manole; 1995. p. 1953–5.

O tratamento conservador com gessos seriados pelo método de Ponseti em pés mielodisplásicos tem aumentado sua popularidade entre os ortopedistas pediátricos, porém ainda não existe evidência científica, até o momento, em relação à manutenção em longo prazo da correção obtida e, portanto, é o tratamento cirúrgico ainda usado.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.,77. Svartman C, Fucs PM, Kertzman PF, Nishi RK, Soni JF, Haguiara WJ. Talectomia no tratamento das deformidades rígidas dos pés na artrogripose e sequela de mielomeningocele. Rev Bras Ortop. 1993;28(4):453–7.99. Menelaus MB. Leg and foot deformities. In: Menelaus MB, editor. The orthopaedics management of spina bifida cystic. New York: Churchill-Livingstone; 1980. p. 92–104. Na literatura há relatos desde procedimentos que envolvem liberações de partes moles com alongamentos tendíneos até cirurgias ósseas mais agressivas, como a talectomia.33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.,1010. Cooper RR, Capello W. Talectomy. A long-term follow-up evaluation. Clin Orthop Relat Res. 1985;(201):32–5.1313. Dias LS, Stern LS. Talectomy in the treatment of resistant talipes equinovarus deformity in myelomeningocele and arthrogryposis. J Pediatr Orthop. 1987;7(1):39–41.

O objetivo do presente estudo foi avaliar os resultados do tratamento cirúrgico do pé equinovaro mielodisplásico na nossa instituição de outubro de 1984 a outubro de 2004 e relacionar as deformidades, a técnica cirúrgica e os resultados obtidos.

Material e método

Foi feito um estudo retrospectivo e foram analisados os prontuários dos pacientes portadores de pés tortos mielodisplásicos. A seguir, foram convocados para avaliação clínica os pacientes submetidos em nosso serviço ao tratamento cirúrgico de pés, de outubro de 1984 a outubro de 2004, de acordo com nosso banco de dados.

Não foi feita classificação no que diz respeito à gravidade das deformidades.

Os critérios de inclusão foram: 1) pacientes portadores de mielodisplasia com pés equinovaros desde o nascimento e sem tratamento cirúrgico prévio; 2) seguimento pós-operatório mínimo de dois anos.

Foram excluídos os pacientes com os quais não conseguimos contato, com dados insuficientes ou que não compareceram à avaliação clínica.

A técnica cirúrgica usada foi a liberação posteromediolateral (LPML) associada ou não a talectomia e em alguns pés também foi feito o encurtamento da coluna lateral. As incisões usadas foram a dupla via (uma posteromedial e outra lateral) e foi usada a via de Cincinatti nos pés que tinham equino ≤ 30° (24,6%). Foram efetuadas tenotomias com ressecção de cerca de 2 cm dos tendões calcâneo, flexor longo hálux, flexor comum dedos, tibiais posterior e anterior e abdutor do hálux. Fizeram-se então as capsulotomias posteromediolaterais da tibiotársica e do subtalar, incluindo os ligamentos interósseo, talonavicular, calcaneocuboídeo, naviculocuneiforme e cuneometatársico. Quando a redução da deformidade do retropé, após esses procedimentos, não foi possível ou quando o tálus estava muito deformado, optouse pela talectomia. Nos casos em que a deformidade em adução persistiu após os procedimentos, foi feito ainda o encurtamento da coluna lateral (36 pés). O local foi ao nível do cuboide em 33 casos e em três ao nível do calcaneocuboídeo. Foi feita a fixação com fios Kirschner após a correção da deformidade, com a colocação de um fio retrógrado no retropé (calcâneo-tálus-tíbia), um fio na coluna medial, para manter abertas as articulações mediais, e outro na coluna lateral, para fechar as articulações dessa coluna. Os fios foram rosqueados, pois ao fazer a liberação e as capsulotomias e reduzir a deformidade há necessidade de manter as articulações da região medial abertas.

No seguimento pós-operatório, os pacientes foram imobilizados por 12 semanas. Os fios foram retirados, ambulatorialmente, em seis semanas. Após esse período, foram prescritas órteses suropodálicas em polipropileno para uso diurno e noturno, por tempo indeterminado.

A análise dos casos foi feita por critério clinicorradiográfico. Segundo os critérios clínicos, dividimos os resultados em satisfatório ou insatisfatório, como vemos a seguir:

  • Resultado satisfatório – pés que apresentam os critérios abaixo relacionados:

    1. Pés plantígrados;

    2. Compatíveis com uso de órtese em posição neutra;

    3. Sem lesões de pele ou úlceras de pressão.

  • Resultado insatisfatório – no mínimo um dos seguintes critérios:

    1. Pés não plantígrados;

    2. Não compatíveis com uso de órtese em posição neutra;

    3. Com lesões cutâneas (úlceras) por pressão;

    4. Que necessitaram de procedimento cirúrgico posterior.

Os pacientes foram agrupados segundo ordem numérica, iniciais do nome, lado do corpo acometido, idade na época da cirurgia, técnica cirúrgica usada, resultado obtido e tempo de seguimento pós-operatório (tabela 1).

Tabela 1
Distribuição geral dos pacientes

Avaliamos as complicações imediatas (ocorridas no pós-operatório imediato ou até duas semanas após o procedimento cirúrgico) e tardias (após duas semanas da cirurgia), quanto à frequência e aos tipos.

Com relação à análise radiográfica, obtivemos documentação de 45 pés e desses avaliamos o ângulo talocalcaneano na incidência em anteroposterior (AP) ou o ângulo de Kite no pré-operatório. Também avaliamos o mesmo ângulo no pós-operatório dos pés que não foram submetidos a talectomia, pela impossibilidade de mensuração nessa última situação. Esse ângulo mede a abertura entre o tálus e o calcâneo e tem como valor de normalidade entre 20° e 40°. É bastante usado na literatura para avaliação do talipes equinovaro, que frequentemente se apresenta diminuído (< 20°) nessa deformidade.55. Tachdjian MO. Mielomeningocele. In: Tachdjian MO, editor. Ortopedia pediátrica. Tradução Ana Paula Tedesco Gabrieli. São Paulo: Manole; 1995. p. 1953–5. Analisamos ainda a posição do calcâneo nos pés submetidos a talectomia e consideramos resultado radiográfico adequado quando o calcâneo ficou posicionado abaixo da tíbia, em posição neutra e levemente posteriorizado em relação a ela, além de não identificar qualquer fragmento residual do tálus entre o calcâneo e a tíbia.

Nossa hipótese inicial é que se as deformidades não foram completamente corrigidas com o procedimento cirúrgico, isto é, se houve deformidade residual após a cirurgia, a chance de obter resultado insatisfatório é maior.

Para estudar se a deformidade residual estava relacionada com os resultados, usamos o teste exato de Fisher. Consideramos como discordância o resultado satisfatório com a presença de deformidade residual ou o resultado insatisfatório sem deformidade residual.

As análises radiográficas e seus valores estatísticos foram feitos com o teste de McNemar.

Em todos os casos, o nível de rejeição para a hipótese de nulidade foi fixado sempre em um valor ≤ 0,05 (5%).

Quando a estatística calculada apresentou significância, usamos um asterisco (*) para caracterizá-la. Caso contrário, isto é, não significante, usamos a sigla NS.

Resultados

Analisamos 90 prontuários e tentamos contato via telefone a fim de convocar para avaliação clínica e radiográfica final. Dos 90 pacientes, conseguimos dados e comparecimento de 43.

Incluímos no estudo 69 pés (43 pacientes). Logo, encontramos deformidade em ambos os pés em 26 pacientes (60,4%). Em relação ao género, houve discreta predominância do feminino, com 22 pacientes (51,1%).

A média de idade na época da cirurgia foi de quatro anos e dois meses. A idade mínima foi de um ano e a máxima, de 13.

O tempo de seguimento mínimo pós-operatório foi de dois anos e o máximo de 19 anos e três meses. A média foi de sete anos e dois meses.

Dos 69 pés avaliados, encontramos resultados satisfatórios em 51 (73,9%) e insatisfatórios em 18 (26,1%), segundo os critérios clínicos mencionados no método (p < 0,0001).

Em 31 pés (44,9%) foi feita liberação posteromediolateral associada a talectomia e em 38 (55,1%) foi feita a liberação posteromediolateral isolada.

Complicações imediatas (I) e tardias (T) foram observadas em 34 pés (49,2%). Foi mais frequente a deiscência de sutura (16 pés) e tardiamente a hipercorreção, que exibiu a deformidade em valgo (nove pés) (tabela 2).

Tabela 2
Frequência das complicações pós-operatórias

Recidiva parcial ou total ocorreu em 12 pés (17,4% dos casos). Reoperação foi realizada em 12 pés (17,4%).

Ao analisar os pés que tiveram deformidade residual, isto é, que apresentavam deformidade no pós-operatório imediato (nove), identificamos resultados insatisfatórios em oito (88,9%). Quando analisamos os pés sem deformidade residual (60), identificamos resultados satisfatórios em 50 (83,3%) e apenas 10 insatisfatórios (16,7%) (tabela 3).

Tabela 3
Relação dos resultados com a deformidade residual

Constatamos recidiva da deformidade em 12 pés. Oito (66,6%) tinham deformidade residual no pós-operatório imediato e quatro (33,3%) não a apresentavam.

Com relação à avaliação radiográfica, obtivemos documentação completa de 45 pés e desses identificamos no pré-operatório ângulo de Kite AP fechado (< 20°) em 41 (91,1%). Nos pés submetidos à LPML que tiveram resultados satisfatórios (22), o ângulo de Kite aumentou em 21 casos (95,4%), enquanto que nos pés com resultados insatisfatórios submetidos à LPML (seis), o ângulo de Kite aumentou em apenas um (16,6%) (tabela 4). Nos pés submetidos à LPML + talectomia que obtiveram resultados satisfatórios (15), 14 (93,3%) tiveram o calcâneo com adequado posicionamento e apenas um não. Enquanto que nos pés submetidos à LPML + talectomia e com resultados insatisfatórios (dois), um apresentou posicionamento adequado do calcâneo e um, posicionamento inadequado (tabela 5).

Tabela 4
Relação do ângulo de Kite no pós-operatório com o resultado final
Tabela 5
Relação da posição do calcâneo com o resultado final

Discussão

A deformidade em equinovaro dos pés na mielodisplasia é de difícil manejo, com altas taxas de complicações e recidivas, por causa das próprias características da patologia, que apresenta paralisia, desequilíbrio muscular, insensibilidade e rigidez.33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.55. Tachdjian MO. Mielomeningocele. In: Tachdjian MO, editor. Ortopedia pediátrica. Tradução Ana Paula Tedesco Gabrieli. São Paulo: Manole; 1995. p. 1953–5.,88. Menelaus MB. Talectomy for equinovarus deformity in arthrogryposis and spina bifida. J Bone Joint Surg Br. 1971;53(3):468–73.

0 tratamento preferencial dessa deformidade é historicamente cirúrgico. Assim, a técnica usada é importante, pois pode influenciar o resultado final.77. Svartman C, Fucs PM, Kertzman PF, Nishi RK, Soni JF, Haguiara WJ. Talectomia no tratamento das deformidades rígidas dos pés na artrogripose e sequela de mielomeningocele. Rev Bras Ortop. 1993;28(4):453–7.

Apesar de o tratamento conservador ser consagrado na literatura para os pés tortos idiopáticos, isso ainda não é completamente reprodutível e ainda sem estudos em longo prazo para os pés mielodisplásicos.

Atualmente, mais estudos e ensaios clínicos surgem com o uso de tratamento gessado, especialmente com os princípios do método de Ponseti para correção dessas deformidades, porém com taxas ainda elevadas de recidiva nos pés não idiopáticos.1414. Gerlach DJ, Gurnett CA, Limpaphayom N, Alaee F, Zhang Z, Porter K, et al. Early results of the Ponseti method for the treatment of clubfoot associated with myelomeningocele. J Bone Joint Surg Am. 2009;91(6):1350–9. E ao analisarmos a nossa casuística, principalmente no que se refere à idade na ocasião do tratamento, a opção pelo tratamento cirúrgico foi a mais viável.

A idade dos pacientes na ocasião da cirurgia foi um fator decisivo, já que encontramos como média quatro anos e dois meses. É uma idade já avançada para o tratamento dessa patologia, já que os pés apresentam maior rigidez, alteração no formato dos ossos e incongruência articular (figs. 1 e 2).

Figura 1
Paciente portador de mielodisplasia, com pés equinovaros, rígidos em pré-operatório de LPML + talectomia.
Figura 2
Paciente deambulador comunitário, portador de pé equinovaro mielodisplásico com lesão em pele dorsolateral (área de apoio desse pé).

As incisões usadas no tratamento cirúrgico do pé equinovaro variam amplamente. Turco descreveu uma incisão reta da base do primeiro metatarso até o tendão de Aquiles, sem dissecção subcutânea.1515. Turco VJ. Surgical correction of the resistant club foot. One-stage posteromedial release with internal fixation: a preliminary report. J Bone Joint Surg Am. 1971;53(3):477–97. Crawford et al. descreveram a incisão idealizada por Giannestras e conhecida como via de Cincinnati em homenagem ao local onde trabalharam.1616. Crawford AH, Marxen JL, Osterfeld DL. The Cincinnati incision: a comprehensive approach for surgical procedures of the foot and ankle in childhood. J Bone Joint Surg Am. 1982;64(9):1355–8. Nesse estudo foi feita a dupla via (uma posteromedial e a outra lateral) na grande maioria dos pacientes e foi usada a via de Cincinnati nos pés que apresentavam componente equino menor do que 30°; dessa forma, não houve dificuldade no fechamento da pele.

Alguns autores salientam a importância da técnica cirúrgica adequada, com o uso de ressecção tendinosa em detrimento do simples alongamento, e essa também foi nossa preferência.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.,44. Lindseth RE. Myelomeningocele. In: Wood W, Lovell RB, Winter RT, editors. Morrissy: Lovell and Winter's pediatric orthopaedics. 4th ed. Philadelphia: Lippincott Williams & Wilkins; 1996. p. 527–9.,1212. Carvalho Neto J, Dias LS, Gabrieli AP. Congenital talipes equinovarus in spina bifida: treatment and results. J Pediatr Orthop. 1996;16(6):782–5. Dessa forma reequilibramos as forças atuantes no pé e evitamos a recidiva.

A liberação posteromediolateral é feita no tratamento do pé equinovaro e são importantes as capsulotomias amplas, além da liberação tendinosa com ressecção, como já mencionado.22. Mazur JM. Management of foot and ankle deformities in the ambulatory child with myelomeningocele. In: Sarwak JF, editor. Caring for the child with spina bifida. Oak Brook: American Academy of Orthopaedic Surgeon; 2002. p. 155–60.,33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.

Outro ponto citado na literatura é a correção da rotação do tálus.1212. Carvalho Neto J, Dias LS, Gabrieli AP. Congenital talipes equinovarus in spina bifida: treatment and results. J Pediatr Orthop. 1996;16(6):782–5. Em nosso estudo houve incremento no ângulo de Kite em todos os pés documentados radiograficamente que evoluíram satisfatoriamente e que não sofreram talectomia, o que sugere a importância desse detalhe técnico.

A talectomia é um procedimento feito há muito tempo na prática ortopédica, com relatos desde 1608, com Fabricus.1010. Cooper RR, Capello W. Talectomy. A long-term follow-up evaluation. Clin Orthop Relat Res. 1985;(201):32–5. Diversos autores relatam bons resultados com a técnica no tratamento cirúrgico do pé equinovaro mielodisplásico.66. Frischhut B, Stöckl B, Landauer F, Krismer M, Menardi G. Foot deformities in adolescents and young adults with spina bifida. J Pediatr Orthop B. 2000;9(3):161–9.,77. Svartman C, Fucs PM, Kertzman PF, Nishi RK, Soni JF, Haguiara WJ. Talectomia no tratamento das deformidades rígidas dos pés na artrogripose e sequela de mielomeningocele. Rev Bras Ortop. 1993;28(4):453–7.,1010. Cooper RR, Capello W. Talectomy. A long-term follow-up evaluation. Clin Orthop Relat Res. 1985;(201):32–5.,1717. Sherk HH, Ames MD. Talectomy in the treatment of the myelomeningocele patient. Clin Orthop Relat Res. 1975;(110):218–22.,1818. Legaspi J, Li YH, Chow W, Leong JC. Talectomy in patients with recurrent deformity in club foot. A long-term follow-up study. J Bone Joint Surg Br. 2001;83(3):384–7.

Alguns autores salientam a importância do posicionamento adequado do calcâneo nos casos talectomizados. Também acreditamos que o calcâneo mal posicionado pode levar a resultado insatisfatório, apesar de não termos comprovado estatisticamente isso em nosso estudo, provavelmente pela pequena amostragem.1313. Dias LS, Stern LS. Talectomy in the treatment of resistant talipes equinovarus deformity in myelomeningocele and arthrogryposis. J Pediatr Orthop. 1987;7(1):39–41.,1919. Salomão O, Carvalho Junior AE, Fernandes TD, Marques J, Iamura M, Freitas RB. Astragalectomia no tratamento de pés equinovaros congênitos (PTC) inveterados e recidivados. Rev Bras Ortop. 1993;28(7):449–52.

Não foi usada a talectomia como único procedimento para correção das deformidades, pois corrige a deformidade do retropé, mas não atua sobre as alterações do médiopé e antepé. Logo, não proporciona correção total das deformidades e aumenta a possibilidade de recidiva.

Iniciou-se a correção cirúrgica das deformidades pelo retropé por meio das liberações tendinosas e capsulares (LPML). Quando essas não foram suficientes para a correção completa da deformidade do retropé, foi feita a talectomia. Com relação à deformidade em adução do antepé, foi corrigida por meio da liberação capsular e ligamentar. Quando esses procedimentos não foram suficientes para a correção total, foi usado o encurtamento da coluna lateral. Portanto, a avaliação intraoperatória e o conhecimento da anatomia patológica das deformidades são de extrema importância, pois os procedimentos cirúrgicos são feitos à medida que são necessários.2020. Sodré H, Mestriner LA, Pinto JA, Lourenço AF, Adames MK. Tratamento cirúrgico do pé torto equinovaro congênito idiopático. Avaliação pós-operatória de 164 pés. Rev Bras Ortop. 1997;32(1):21–6.

Foram efetuadas 31 liberações posteromediolaterais associadas à talectomia e 38 sem talectomia, com associação em 36 desses pés (52,1%) de encurtamento da coluna lateral. Encontramos taxa de resultados satisfatórios semelhante à da literatura com esses procedimentos.

As figuras 3 e 4 mostram casos ilustrativos das correcões obtidas após os procedimentos cirúrgicos.

Figura 3
Pós-operatório de pé equinovaro, rígido, que foi submetido a LPML e talectomia (pré-operatório foi mostrado na figura 1).
Figura 4
Paciente com pés mielodisplásicos submetido aos nove meses a correção cirúrgica por meio de LPML. Boa evolução, deambulador comunitário, pés plantigrados, compatíveis com órtese e sem escaras. Podemos ver o pré-operatório (pré-op), segundo e 17° ano pós-operatório.

Complicacões no tratamento dessa deformidade ocorrem com frequência, como já salientado por outros autores.11. Fernandes AC. Malformações do tubo neural. In: Hebert S, Xavier R, Pardini Júnior AG, Barros Filho TEP (org.). Ortopedia e traumatologia: príncipios e prática. 3rd ed. Porto Alegre: Artmed; 2003. p. 839–57.,33. Sharrard WJ, Grosfield I. The management of deformity and paralysis of the foot in myelomeningocele. J Bone Joint Surg Br. 1968;50(3):456–65.,55. Tachdjian MO. Mielomeningocele. In: Tachdjian MO, editor. Ortopedia pediátrica. Tradução Ana Paula Tedesco Gabrieli. São Paulo: Manole; 1995. p. 1953–5.,88. Menelaus MB. Talectomy for equinovarus deformity in arthrogryposis and spina bifida. J Bone Joint Surg Br. 1971;53(3):468–73. Durante o seguimento pós-operatório ocorreram complicacões em 49,2% dos casos, como pode ser visualizado no Quadro 2.

A deformidade em valgo foi uma das principais complicacões em longo prazo e atribuímos isso às amplas liberacões feitas, inclusive do ligamento interósseo subtalar. É controverso se a liberacão desse ligamento deve ser feita, mesmo que parcialmente.2121. Atar D, Lehman WB, Grant AD. Revision surgery in clubfeet. Clin Orthop Relat Res. 1982;(283):223–30.,2222. Sodré H, Adames MH, Tamanaga F. Hipercorreção pós-operatória no pé torto equinovaro congênito. Rev Bras Ortop. 1996;31(7):567–70.

Não foi nosso objetivo avaliar nível funcional, deformidades em outros seguimentos do corpo e prognóstico de marcha, apesar de haver na literatura estudo que correlaciona deformidade em flexão do joelho e correcão cirúrgica de pés equinovaros em pacientes com mielodisplasia e artrogripose.77. Svartman C, Fucs PM, Kertzman PF, Nishi RK, Soni JF, Haguiara WJ. Talectomia no tratamento das deformidades rígidas dos pés na artrogripose e sequela de mielomeningocele. Rev Bras Ortop. 1993;28(4):453–7.

Na tabela 3 verifica-se, pelo teste exato de Fisher, o valor da estatística calculada p = 0,0004* e que deformidades residuais presentes aparecem poucas vezes nos resultados satisfatórios. Logo, as deformidades residuais estão relacionadas com maior taxa de resultados insatisfatórios. Essa constatacão é de extrema importância, pois no fim do procedimento cirúrgico, se ainda restam deformidades a serem corrigidas, não devem ser negligenciadas, sob risco de maus resultados.

Nosso estudo apresenta várias limitacões, iniciando pelo desenho ser retrospectivo e série de casos.

Não foi possível usar classificacão de gravidade dos pés tratados por dados insuficientes em prontuário, porém pela alta taxa de talectomias feitas pode ser inferida a dificuldade encontrada na correcão desses pés.

Outra limitacão foi a não correlacão com o nível funcional desses pacientes, já que pacientes que apresentam marcha podem estar mais propensos a resultados insatisfatórios, pela maior probabilidade de lesões cutâneas com o peso do corpo sobre pé com deformidade residual, mesmo que essa seja leve.

Não usamos dados como a mobilidade articular e a dor e, portanto, não foi também usado método ou escala já existente na literatura para caracterizar os resultados, pois não conhecemos métodos específicos para essa análise em pés associados a doenças neuromusculares, como a mielomeningocele, com todas as características intrínsecas à patologia, como já mencionado anteriormente. Sabemos que em pés submetidos a liberações extensas e talectomia o arco de movimento diminui bastante e como a maioria dos pacientes com mielomeningocele necessita de órtese suropodálica para marcha, esse critério não foi levado em consideração.

Já salientamos a dificuldade técnica encontrada para a correção das deformidades nos pés desses pacientes com mielodisplasia e o procedimento cirúrgico é extenso. Durante a cirurgia, à medida que são necessários procedimentos como a talectomia e o encurtamento de coluna lateral, devem ser feitos no mesmo tempo cirúrgico, a fim de não deixar deformidades residuais e, assim, diminuir a possibilidade da recidiva.

Conclusão

0 tratamento cirúrgico instituído nesses pés mielodisplásicos de pacientes acompanhados em nossa instituição foi efetivo na correção das deformidades, com resultados semelhantes aos encontrados na literatura.

As complicações pós-operatórias são frequentes.

A deformidade residual após o procedimento cirúrgico é um fator que contribui para o insucesso no tratamento desses pés e, portanto, devemos evitá-la.

Quando feita liberação posteromediolateral sem talectomia, parece ser importante a abertura do ângulo talocalcaneano.

  • Trabalho desenvolvido na Associação de Assistência à Criança Deficiente (AACD), São Paulo, SP, Brasil.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Nov-Dec 2014

Histórico

  • Recebido
    19 Jul 2013
  • Aceito
    29 Out 2013
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