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A RESSIGNIFICAÇÃO DO LUGAR E DO NÃO-LUGAR: CONSIDERAÇÕES SOBRE AS DIMENSÕES DAS OCUPAÇÕES DOS LUGARES EM UM PERÍODO DE PANDEMIA NO BRASIL

RESUMO

O artigo tem como objetivo central discutir a ressignificação de lugar e não-lugar no contexto da pandemia da COVID-19 nos espaços urbanos brasileiros. A pergunta norteadora é: como pensar a ressignificação dos lugares e não-lugares durante a pandemia do novo coronavírus no Brasil? A hipótese direciona para a concepção de que o lugar antropológico e o não-lugar são estabelecidos por uma relação de alteridade. Usa-se predominantemente a abordagem epistêmica analítica e o modo de raciocínio dedutivo, sendo que procedimentalmente a pesquisa é bibliográfica. O artigo está divido em duas sessões, a primeira aborda mais densamente lugar e não-lugar em um período de restrição das ocupações e sociabilidades, enquanto o segundo ocupa-se da análise do não-lugar e das restrições espaciais em cidades brasileiras devido à pandemia. Os conceitos lugar e não-lugar alicerçaram formulações para a análise, pois a conclusão apontou para a ressignificação destes espaços no momento histórico da pandemia no Brasil, onde o medo e os conflitos de poder geraram desalento e dispersão em relação às medidas de distanciamento social para controle da pandemia nas cidades brasileiras e, que a relação de alteridade na ocupação de lugares e não-lugares durante uma pandemia nos desperta o cuidado com o Outro.

Palavras-Chave:
Alteridade; Direitos Humanos; Lugar; Não-Lugar; Pandemia

ABSTRACT

The main purpose of this article is to discuss the resignification of place and non-place in the context of the COVID-19 pandemic in Brazilian urban spaces. The guiding question is: how to think about the resignification of places and non-places during the pandemic of the new coronavirus in Brazil? The hypothesis leads to the conception that the anthropological place and the non-place are established by a relationship of otherness. The analytical epistemic approach and the deductive reasoning method are predominantly used, and the research is procedurally bibliographic. The article is divided into two sections, the first deals more densely with place and non-place in a period of restricted occupations and sociability, while the second deals with the analysis of non-place and spatial restrictions in Brazilian cities due to the pandemic. The concepts of place and non-place underpinned formulations for analysis, as the conclusion pointed to the resignification of these spaces in the historical moment of the pandemic in Brazil, where fear and conflicts of power generated discouragement and dispersion in relation to measures of social distance to control the pandemic in Brazilian cities and that the relationship of alterity in the occupation of places and non-places during a pandemic awakens our care for the Other.

Keywords:
Alterity; Human rights; Non-Place; Place; Pandemic

1 INTRODUÇÃO

A pandemia1 1 Conforme definição do dicionário de saúde, pandemia é “epidemia que se estende a quase todos os habitantes de uma região e que pode compreender uma zona geográfica muito vasta” (PAIM, ALONSO, 2020). da COVID-19, em pleno século XXI, levantou questões totalmente novas e desafiadoras para a vivência nas cidades2 2 Em 11 de março de 2020 o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus - SARS-CoV-2, passou a ser caracterizada como uma pandemia (OPAS, 2020, n.p.). . A convivência nas cidades brasileiras mudou completamente seus arranjos; os espaços privados são os principais lugares de convivência, em oposição aos espaços públicos, que foram esvaziados. Esses novos arranjos espaciais colocaram-nos, num primeiro momento, em um lugar de isolamento. E, num segundo momento, em um não-lugar, pois os lugares passaram a se integrar muito mais de forma virtual do que de física. Os lugares, tanto os antropológicos, quanto os não-lugares, passaram a ter uma relação direta e integradora. As pessoas interagem nessas dimensões de forma virtual, pois o isolamento é apenas físico para a maior parte da população, a qual permaneceu integrada nas redes de comunicações.

Os novos arranjos espaciais nos colocaram num outro lugar, ou seja, começamos a nos questionar sobre a importância de velhos hábitos de contatos com os lugares físicos, se precisamos, realmente, estarmos presentes para os conhecermos. As novas concepções nos mostram que podemos visitar museus, galerias, cidades, e, inclusive, lojas, de forma virtual. Um conjunto de atividades que normalmente eram praticadas presencialmente, in loco, e que agora não precisam mais, o que, de certa forma, agilizou a rotina. Isso demonstra que muitas atividades prazerosas que podem ser realizadas nas cidades tornaram-se acessíveis à uma parte significativa da população. Isto é, não precisamos nos deslocar até um museu para conhecer uma exposição da arte, podemos acessá-la de nossa casa, a qualquer hora do dia e, em muitos casos, sem custos. Esta virada de acesso a atividades culturais, por exemplo, significou uma nova forma de democratização dos lugares, um acesso garantido para toda a população3 3 Evidentemente, torna-se importante delimitar as assimetrias sociais e de renda existentes no Brasil. Assim como o momento histórico representado pela COVID-19 pode significar uma possível democratização de espaços muitas vezes acessados apenas pela elite - como os espaços culturais, a exemplo de shows e teatros, também escancarou o problema da desigualdade social. Muitos foram os relatos de crianças, adolescentes e adultos que não possuíam internet de qualidade, ou tecnologia compatível com a participação destes lugares. Em alguns casos, o mais básico acesso à educação básica ficou prejudicado pela falta de tecnologia, internet ou renda para custeá-los (ONU, 2020; FOLHA DE SÃO PAULO, 2020). .

Para pensarmos a questão do lugar e do não-lugar nas cidades durante a pandemia, trabalhamos com uma concepção formulada por Marc Augé em sua clássica obra “Não-lugares: introdução a uma antropologia da supermodernidade”, na qual o autor faz uma reflexão sobre os conceitos de lugar antropológico e não-lugar, com formulações que são diferentes em suas peculiaridades e, ao mesmo tempo, complementares. Entendemos a importância de trabalharmos com conceitos e categorias que dão respaldo às nossas reflexões, num sentido interdisciplinar, que procura fazer a conexão entre pressupostos teóricos e práticas sociais efetivas. Sendo assim, todo o trabalho de reflexão, pressupõe um embasamento teórico consistente, pois demonstra que mesmo os conceitos mais clássicos precisam de um desdobramento, de aplicabilidade em diferentes contextos históricos.

Para a organização e ordenação mais efetiva, o artigo está dividido em duas partes, que possuem singularidades, mas são complementares, pois remete à mesma teoria de base. A primeira sessão denominada como “O lugar e o não-lugar em um período de restrição das ocupações e sociabilidades”, num primeiro instante conceitual, é uma perspectiva de abordagem de um problema, que foi desdobrado em pequenas articulações com o contexto de pertencimento da pandemia no Brasil. São esclarecidos alguns conceitos e categorias de compreensão em Marc Augé e, posteriormente, procura-se significá-los de forma explicativa e ilustrativa. Dado as peculiaridades do contexto de produção teórico-brasileiro é fundamental, nesse momento, a procura de concepções de teóricas de diferentes perspectivas para o entendimento das múltiplas realidades, especialmente, em um período pandêmico, e em um país que apresenta tantos contrastes.

Na segunda sessão do artigo, denominada como “O não-lugar e as restrições espaciais em cidades brasileiras: os espaços de sociabilidades afetados por causa da pandemia”, procura-se fazer um exercício de diálogo e complementaridades entre as concepções de Marc Augé com pressupostos de vivências e práticas sociais nos espaços urbanos. Entende-se ser fundamental estabelecer concepções teóricas que possibilitam desvendar questões presentes no cotidiano de vivência de cada sujeito, pois, todas as dimensões desse cotidiano foram afetadas no período da pandemia. No Brasil e no mundo foram incorporadas práticas nas cidades brasileiras, tais como questões de distanciamento social e hábitos sanitários4 4 As intervenções não farmacológicas (INF) são medidas de saúde pública com alcance individual, ambiental e comunitário. As medidas individuais incluem a lavagem das mãos, a etiqueta respiratória e o distanciamento social. O distanciamento social, por sua vez, abrange o isolamento de casos, a quarentena aplicada a contatos, e a prática voluntária de não frequentar locais com aglomerações de pessoas. (GARCIA; DUARTE, 2020). Igualmente, conforme orientação da OMS, o uso de máscaras faz parte de um pacote completo de medidas de prevenção e controle para frear a propagação da COVID-19. O uso de máscaras isoladamente não é suficiente para proporcionar um nível adequado de proteção ou controle da fonte, e outras medidas nos âmbitos individuais e comunitários também devem ser adotadas para conter a transmissão de vírus respiratórios. Além do uso de máscaras, a adesão a medidas de higienização das mãos, distanciamento físico e outras medidas de prevenção e controle de infecções (PCI) é crucial para prevenir a transmissão inter-humanos da COVID-19 (OPAS, 2020b, p. 7). . Sendo assim, Augé destaca que todas as cidades possuem suas especificidades e, ao mesmo tempo, são influenciadas por outras cidades do mundo.

O artigo procura fazer uma problematização teórica e metodológica a partir de alguns pressupostos definidores para o objeto de pesquisa. Parte-se do pressuposto que é fundamental estabelecermos uma problemática e confrontá-la com uma perspectiva teórica para buscarmos uma solução ou respostas mais adequadas. Sendo assim, num primeiro momento, discute-se a conjuntura do lugar e do não-lugar nas cidades brasileiras no período da pandemia da COVID-19, e as paradoxalidades nas relações sociais tanto de lugares como de não-lugares. Num segundo momento, apresenta-se suporte teórico de um autor clássico para dar parâmetros de entendimento à questão proposta. Deste modo, o autor dá suporte teórico para pensar em uma problemática atual, vivenciada no tempo presente.

2 O LUGAR E O NÃO-LUGAR EM UM PERÍODO DE RESTRIÇÃO DAS OCUPAÇÕES E SOCIABILIDADES

Ao pensarmos a questão do lugar e do não-lugar num período de pandemia, mais especificamente, no caso do espaço brasileiro, que é um território de grandes dimensões, tanto físicas quanto sociais, acentuam-se as multiplicidades de realidades. A complexidade da ocupação do espaço no Brasil, segundo Schwarcz (2015SCHWARCZ. Lilia Moritz. Brasil uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 22), nos revela uma demografia construída desde o processo de colonização, a partir do século XVI. As ocupações territoriais sofreram um grande impacto com a colonização, anterior a esse processo, a população nativa do que hoje entendemos por território brasileiro vivia de forma irregular e nômade. Com o início do processo de colonização pelos portugueses, a densidade populacional se intensifica próximo ao litoral brasileiro, local de chegada das navegações. Na medida em que se intensificam a colonização e as atividades econômicas, também passam a ser mais ocupados os espaços territoriais fora do litoral. Observa-se que, ainda no século XXI, alguns lugares continuam com uma população com baixa densidade, caso mais especifico na Região Norte do Brasil.

Decorrente do processo histórico de ocupação espacial no Brasil, nas observações de Schwarcz (2015SCHWARCZ. Lilia Moritz. Brasil uma biografia. São Paulo: Companhia das Letras, 2015., p. 29), a população tende a concentrar-se em lugares onde as atividades produtivas conseguem gerar um conjunto de oportunidades de trabalho e produção de riquezas. Sendo assim, a ocupação dos espaços foi se alterando ao longo dos séculos. Nos períodos em que as atividades produtivas eram mais acentuadas em certas regiões, sua ocupação era mais densa. Quando as atividades produtivas mudavam de lugar, a população tendia a migrar para os lugares que passavam a ser mais produtivos. Existem várias discussões para incentivar as populações a manterem-se em seus lugares de pertencimento, e desenvolver as atividades econômicas de uma forma mais sustentável, mas estes projetos são restritos a determinadas regiões. Devido a dificuldade de oferta de oportunidades, dentre outros, o processo de êxodo para os lugares mais produtivos economicamente permanece ocorrendo no Brasil.

A dinâmica dos lugares no Brasil é um processo recorrente e constante para as atividades produtivas. Existe um pensamento econômico ligado ao desenvolvimento que repercute nos deslocamentos populacionais, o que dá um significado muito específico aos lugares, onde alguns se tornam extremamente dinâmicos, e outros se tornam lugares perenes, como lembranças históricas de vivências5 5 Tuan (2005) destaca que certas paisagens, principalmente as urbanas, transmitem uma sensação de alívio, prazer, mas outras causam nostalgia, aflição, angústias. . Nada mais ilustrativo que este processo é o exemplo de um migrante nordestino que mora em São Paulo e refere-se a seu lugar de origem com um conjunto de simbolismos. Este exemplo reflete o quanto os lugares são essencialmente simbólicos, conforme Michel de Certeau (1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. ), que trabalha com as dimensões e construções simbólicas ligadas aos espaços.

Toda a população brasileira tem um lugar de pertencimento, como chama Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994., p. 73), um lugar identitário, relacional e histórico6 6 Também é o sentido apresentado por Hannah Arendt (2000), isto é, o que nos torna humanos é a relação entre indivíduos, não podemos nos atomizar, a acepção humanista mais pura, que se preocupa acima de tudo com a condição humana. . O autor correlaciona as dimensões identitárias, relacionais e históricas como complementares para o entendimento da apropriação do lugar, seja individualmente ou coletivamente. A observação da dimensão histórica proposta por Augé (1994)AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. remete ao que se viu nos últimos cinco séculos, a uma construção social, econômica e cultural do espaço brasileiro. Desde a fundação das pequenas vilas até a consolidação das cidades no Brasil esteve muito relacionada com as atividades produtivas, as cidades brasileiras desde suas remotas origens ainda no século XVII, já nasciam sob a ótica da segregação espacial. Espaços destinados à ocupação de determinados grupos sociais segundo suas posses, e as periferias das cidades com ocupações irregulares pelos conhecidos como pobres das cidades, conforme denomina Sandra Pesavento (1994PESAVENTO, Sandra Jatahy. Os pobres da cidade. Porto Alegre: UFRGS, 1994.). No Brasil, as cidades já nasceram dicotômicas e com segregação espacial, herança que permanece simbolizada ainda hoje nos lugares. A ocupação espacial é um fenômeno essencialmente histórico, e decorrente desta vinculação com o tempo histórico, também se modifica com o passar dos anos. Assim, é possível afirmar que cada cidade, no Brasil e no mundo, está ligada a uma dimensão histórica, que cria simbolismos no tempo presente.

Retomando as afirmações de Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994., p. 73), o lugar é identitário e relacional, ou seja, são criadas identidades dos lugares ao longo de seu processo de ocupação e permanências relacionais das pessoas e comunidades. Este laço é tão forte que permanece no imaginário, tanto individual, quanto coletivo, fazendo com que o sentimento de pertencimento ultrapasse as fronteiras físicas e imaginárias. As identidades ligadas aos lugares tendem, inclusive, a transformar os lugares em lugares de memórias, como afirma Pierre Nora (1993NORA, Pierre. Entre memória e história: a problemática dos lugares. Revista Projeto História, n. 10. PUC-SP. São Paulo, 1993. pp. 7-28). São memórias individuais e coletivas representadas e simbolizadas nos lugares de pertencimento, fazendo com que as pessoas e comunidades sintam-se perfeitamente identificadas tanto com o lugar antropológico, quanto o lugar essencialmente simbólico. Inicia-se, então, uma dicotomia implantada entre a concepção do lugar e do não-lugar, segundo a concepção de Augé (1994)AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.. As pessoas e os grupos estão sempre relacionados com os lugares, sejam eles de pertencimento ou dos lugares em transição.

A partir destas breves considerações de Augé, podemo-nos deter nas diferenças conceituais apresentadas pelo autor para definição do lugar e do não-lugar. Segundo Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994., p. 73), o lugar pode ser definido como identitário, relacional e histórico. O autor segue sua linha de raciocínio no sentido de que se um mesmo lugar não pode ser definido como identitário, nem como relacional, e, muito menos como histórico, este deve ser definido como um não-lugar. Com essas afirmações o autor apresenta verdadeira dicotomia entre lugar e não-lugar. De antemão, é possível pensarmos nos lugares provisórios que ocupamos diariamente, que não estabelecemos como históricos, identitários e relacionais. Talvez o primeiro paradoxo implantado seja a constatação que no dia a dia ocupamos lugares e não-lugares, que as cidades são exemplos típicos da paradoxal dicotomia dos lugares. Mas, por outro lado, podemos imaginar que essas duas concepções são complementares, pois fazem parte de um determinado arranjo dos espaços.

Todavia, Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994., p. 74) chama atenção à dialética opositória e essencial entre as distintas concepções ao afirmar que existem evidencias do não-lugar com um lugar, ou seja, que o não-lugar nunca existe de uma forma pura, que outros lugares se recompõem nele, que as relações se constituem nele em toda a sua dinâmica. Isso nos mostra que mesmo o que o autor considera como não-lugar, pode ser considerado por um tempo como um lugar, evidenciando que podem se reproduzirem relações nesse lugar, concretizando ocupações, mesmo que casuais. Dessa forma, mesmo o não-lugar pode constituir-se como um lugar, ainda que não seja considerado identitário e histórico. Dessa forma, pode-se conceitualmente tomar o não-lugar como um lugar de instantes, de momentos, de ocupações transitórias, de modo que qualquer pessoa ou grupo possa ocupá-lo por certa fração de tempo, seja ele mais curto, ou mais prolongado.

Para estabelecer uma definição mais precisa sobre o não-lugar, Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994., p. 79) faz uma alusão a Michel de Certeau (1998CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. ), que defende a existência de uma espécie de qualidade negativa do não-lugar, afirmando que o mesmo é uma ausência do lugar em si mesmo. Certeau (1998)CERTEAU, Michel de. A invenção do cotidiano: artes de fazer. Petrópolis: Vozes, 1998. refere-se à qualidade negativa como ausência do estabelecimento de uma identidade com esse não-lugar, talvez por ser considerado transitório torne-se mais difícil seu reconhecimento como um lugar de pertencimento. Considerando as devidas conceituações entre lugar e não-lugar na obra de Augé (1994)AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. é importante conhecermos os leitores e comentaristas de sua obra, na tentativa de estabelecermos algumas aplicabilidades de sua teoria no caso brasileiro, especificamente, na problemática dos lugares num período de pandemia no Brasil, pois entendemos que o lugar relacional mudou de configuração no Brasil durante a pandemia da COVID-19.

Nas observações da comentarista Teresa de Sá (2012, p. 211), Marc Augé analisa essencialmente a relação existente entre o lugar antropológico e o não-lugar na sociedade contemporânea. Augé (1994)AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. transportou para o espaço a questão da alteridade7 7 O filósofo Emmanuel Lévinas, na obra Totalidade e Infinito, apregoa o cuidado do Eu para o Outro como um elemento constitutivo da humanidade. Neste sentido é possível traçar um paralelo com a experiência do tempo presente, em que os cuidados até então comprovados para o combate ao novo coronavírus dependem de adesão coletiva. No pensamento levinasiano é possível associar a realização do ser humano à questão da alteridade, isto é, do reconhecimento de um Outro que, por definição, não pode ser reduzido a um mesmo. O Outro, na alteridade, é um rosto que se apresenta diante do Eu, em uma relação face à face, e que exige do Eu um comportamento ético que o permita ser, isto é, existir outramente (LÉVINAS, 1980). . Considera-se como uma posição fundamental, em um momento pandêmico, pensar a questão da alteridade do espaço, pois, o momento histórico nos impõe novas confrontações. No Brasil e no mundo, a pandemia atingiu os espaços sociais, as pessoas precisaram permanecer confinadas nos espaços privados e, fundamentalmente, terem os espaços segregados numa situação de isolamento. A relação de alteridade, quando pensada na dimensão de lugar e espaço, é uma prática social que permite o respeito ao espaço do Outro8 8 Linguagem proveniente das classificações de Emmanuel Lévinas. "O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum" (LÉVINAS, 1980, p. 26). . Durante a pandemia do novo coronavírus essa relação tem se mostrado desafiadora, pois, conforme orientação da Organização Mundial de Saúde (OMS), não basta o isolamento de apenas pessoas pertencentes ao chamado grupo de risco aderir a um isolamento social total, todos precisam manter, minimamente, um distanciamento social para inibir a circulação do vírus (OPAS, 2020bOPAS. Organização Pan-americana de Saúde. Orientação sobre o uso de máscaras no contexto da COVID-19: Orientação provisória 5 de junho de 2020. 05 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52254/OPASWBRACOVID-1920071_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 22 set. 2020b.
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).

Ainda, na linha de raciocínio de Sá (2012, p.212), Marc Augé sempre partiu de uma concepção de espaço em que as bases são encontradas no pensamento de Georges Simmel (2013SIMMEL, Georg. Sociologia do espaço. Estudos Avançados, v. 27, n. 79, p. 75-112, 1 jan. 2013. Disponível em: Disponível em: http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/68704 . Acesso em: 29 set. 2020.
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), o qual acentua que o espaço físico e o espaço social estão juntos, um não existe sem a presença do outro. Existem dicotomias e, ao mesmo tempo, aproximações necessárias que são totalmente complementares. O espaço é construído e ocupado socialmente, caso contrário seria apenas um espaço físico geográfico, mas, como estamos tratando especificamente de espaços sociais, no caso específico da pandemia, as aproximações e complementações são fundamentais e necessárias para entendermos como as relações sociais são praticadas nas cidades9 9 O desencontro com o Outro dificulta a ligação do sujeito com o lugar, sem que haja uma ligação com os espaços, aumentando a sensação já promovida pela sociedade individualista, acentuando paisagens do medo e de não-lugares, visíveis para o homem em diferentes formas, seja uma rua, uma praça ou uma loja, todos podem representar um ambiente que causa aversão, pois a pessoa não se reconhece ali e não percebe a vida socialmente compartilhada (TUAN, 2005). . Em um contexto de pandemia os espaços tornaram-se cada vez mais complementares e, ao mesmo tempo, isolados. Há uma complementação social de integração que as redes de comunicação nos possibilitam, nos permitindo a interligação de espaços virtuais de forma dinâmica, facilitando a comunicação e a integração. O lugar tornou-se cada vez mais social.

Um dos pontos fundamentais para o entendimento dos não-lugares é o entendimento de algumas dimensões que os caracterizam e os dimensionam nas sociedades contemporâneas. São muitos, presentes e interligados, os exemplos nas cidades, com a vida das pessoas e das comunidades. Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.) faz algumas considerações acerca destas definições espaciais, um exemplo de não-lugar, nas cidades, são os grandes centros comerciais, pois estão presentes em todas as cidades, mas, são transitórios, ocupados ocasionalmente durante algumas horas do dia ou da noite. Entretanto, são essencialmente transitórios. Portanto, considerados como não-lugares. Outros exemplos de não-lugares elencados por Augé (1994)AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994. são as estradas, rodovias, passeios públicos e demais espaços ocupados ocasionalmente.

Direcionando a reflexão para aplicá-la ao objeto de pesquisa deste artigo, pode-se pensar a ocupação destes não-lugares em diferentes períodos durante a pandemia da COVID-19. Em muitos momentos, motivados pelas restrições de circulação, recomendações de órgãos de saúde locais, etc., não-lugares como estradas e calçadas, permaneceram isolados. Alguns destes foram, inclusive, fechados, a exemplo de shoppings centers, que tiveram o acesso proibido para o público em praticamente todas as cidades do Brasil, durante diversas semanas. Em algumas cidades do mundo e do Brasil foi decretado fechamento e isolamento total de algumas ruas, de modo que momentaneamente, o não-lugar deixou de ter uma relação importante com o lugar social da população, que necessita de cuidados e medidas protetivas numa pandemia. As relações do lugar e não-lugar são importantes para entendermos as complementações e, também as dicotomias existentes. Mesmo que essas dicotomias sejam imaginarias elas estão presentes nas relações sociais. O caso das práticas de isolamento social, especificamente no Brasil, gerou uma série de discussões e problemas, pois as sociabilidades foram totalmente comprometidas10 10 Ainda que existam discrepantes assimetrias no extrato social brasileiro, com diferenças econômicas, educacionais e habitacionais, além de não ter uma adesão igualitária para atender as medidas de combate à pandemia, pode-se afirmar que houve um comprometimento das sociabilidades nas mais variadas realidades brasileiras (GOES, RAMOS, FERREIRA, 2020). .

Como na concepção de Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.), o não-lugar não é identitário, ou seja, pessoas e grupos não têm um comportamento relacional e identitário, podendo em certos casos serem considerados lugares negativos. Acerca do aspecto relacional, a pandemia impôs, também, uma nova rotina a pacientes internados em hospitais. Diferentemente de outros momentos, além do distanciamento social, a internação não permitia visitações, exigindo um total isolamento social das famílias e amigos (LEMOS, 2020LEMOS, Vinicius. 'A solidão dos idosos não muda, essa é a pior parte': o desabafo de enfermeira que cuida de casos de coronavírus. BBC News Brasil. 01 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52116270 . Acesso em: 29 set. 2020.
https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52...
; OLIVEIRA, 2020OLIVEIRA, Joana. Abraços virtuais para quebrar a solidão dos ‘covidários’. El país. São Paulo. 02 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06-02/abracos-virtuais-para-quebrar-a-solidao-dos-covidarios.html . Acesso em: 28 set. 2020.
https://brasil.elpais.com/brasil/2020-06...
). Muitos relatos no Brasil reafirmaram que as pessoas hospitalizadas tinham um sentimento de total solidão, pois o isolamento não permitia estabelecer laços identitários com o lugar em que permaneceram internadas; até mesmo o rosto dos profissionais que os atendiam ficava a todo momento oculto atrás da paramentação. É um não-lugar que ninguém deseja estar, mas, constitui-se como um lugar temporário e de transição, as pessoas permanecem por determinado período. No caso específico da pandemia esse não-lugar, passou a ser quase uma ameaça, um medo latente de precisar permanecer nesse lugar, pois o isolamento causa certo pavor nas pessoas.

Neste sentido, o lugar é o palco da existência, é a forma como o ser humano experimenta o espaço com todos os sentidos que possui, tornando o lugar um referencial emotivo-espacial, que se transforma em um “arquivo de lembranças, de realizações que inspiram o presente” (TUAN, 1983TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1983. , p. 171). Isto é, os lugares representam os laços de pertencimento e afetividade do sujeito com o ambiente, que pode ser descrito como um sentimento de topofília11 11 Segundo Tuan (1983), o mundo é desenhado na paisagem, construindo-se aí, gradativamente, laços de pertencimento, afetividade do sujeito com o ambiente, que pode ser descrito como um sentimento de topofília. (TUAN, 1983TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1983. ). Evidentemente, ao estabelecer a relação do lugar às percepções próprias sobre o Outro e a vida se percebe que alguns lugares transmitem lembranças, de um passado que conforta e transmite tranquilidade e estabilidade psíquica, por outro lado, também se percebe - exacerbado no contexto pandêmico - que algumas representações de lugares causam medo, angústias e sensação de vazio.

Esta percepção de vazio perante lugares se torna mais latente quando o próprio lugar está desabitado, trata-se de um vazio em si e também simbólico. A redução dos contatos do sujeito com o Outro, promovem sensação de medo, aversão do sujeito com o lugar, a exemplo de pacientes que ficam isolados dos familiares e amigos quando necessitam de cuidados hospitalares. Também, a proibição de lugares que outrora representavam encontros, alegrias, como parques, salões de eventos e praças ressignificam o sentimento sobre o lugar e o espaço vazio promove sensação de medo, de topofobia12 12 Deriva e decorre o sentido de topocídio, ou seja, a morte, aniquilamento deliberado de lugares (TUAN, 1983). . Igualmente, além da notória modificação dos lugares e não-lugares os discursos acerca da doença moldaram a paisagem dos espaços urbanos, em especial, como uma paisagem do medo.

Augé (1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.) faz uma completa discussão sobre o papel das cidades no mundo contemporâneo, afirmando que toda a cidade é um mundo, sendo assim, significa que contém, simultaneamente, um espaço simbolizado e utilizado pelos indivíduos e outro que reflete os traços do mundo atual. Essa afirmação é de extrema importância no momento de uma pandemia, pois se impôs ao mundo todo e, aqui no Brasil, a repercussão foi avassaladora com um número de óbitos extremamente significativo para a população brasileira. Diante das dificuldades apresentadas pela pandemia, veio à tona a fragilidade em que se encontra a pesquisa cientifica, com poucos recursos, sendo limitada para enfrentar um problema de saúde pública nas cidades. Como o autor afirma que o lugar antropológico e o não-lugar são estabelecidos por uma relação de alteridade (AUGÉ, 1994AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus, 1994.; LEVINAS, 1980LEVINAS, Emmanuel. Totalidade e infinito.Tradução de José Pinto Ribeiro. Lisboa: Edições 70, 1980. ), precisamos compreender e respeitar o lugar do Outro13 13 De acordo com Emmanuel Lévinas, a ética da alteridade defende a concepção de que somos responsáveis uns pelos outros, que a relação com o Outro, com sua segurança, seu bem estar é de nossa responsabilidade. Ou, dito de outro modo, nossa responsabilidade com a vivência do outro é total, indeclinável e intransferível, não pautada em uma ética contratualista ou principiológica, mas em uma ética que se dá de forma gratuita e espontânea. Na medida em que somos negligentes e imprudentes no cuidado ao Outro, estamos falhando eticamente, em falta com a nossa posição de responsabilidade e boa vivência em relação ao Outro. Por conseguinte, no pensamento levinasiano, a humanidade existe a partir da ética, a relação interpessoal pressupõe uma dimensão ética a partir da compreensão de que o outro é nossa responsabilidade, e isso nos humaniza. Levando em consideração o momento de crise sanitária causada e evidenciada pela pandemia do novo coronavírus, os atos de descaso para com a saúde e o bem-estar do outro para priorizar o mercado, fazem com que a noção de ética levinasiana e de alteridade sejam ultrajadas, pois, ao negar os cuidados necessários para com o outro, nega-se a responsabilidade com aquela vivência, banaliza-se a existência da outridade. Por outro lado, o momento exige nosso cuidado com o outro e comigo, e ao atender as medidas de proteção, se reacende a relação de alteridade da vivência ética. . Essa necessidade é constante, porque muitas pessoas não conseguem estabelecer esta relação de alteridade para respeitar o lugar dos que perderam amigos e familiares nas cidades.

3 O NÃO-LUGAR E AS RESTRIÇÕES ESPACIAIS EM CIDADES BRASILEIRAS: OS ESPAÇOS DE SOCIABILIDADES AFETADOS POR CAUSA DA PANDEMIA

A cidade é o lugar do viver coletivo, no qual inúmeras e múltiplas trajetórias intercruzam-se no desenrolar da vida dos seus citadinos. É o lugar cerimonial, preenchido de símbolos e significados que permeiam a subjetividade humana. Ao mesmo tempo, é o lugar do encontro, das vivencias, ainda que o poeta Vinícius de Moraes (2020)MORAES, Vinícius de. Samba da Benção. Álbum Vinícius, 1967. Disponível em: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Vinicius_(1967) . Acesso em: 27 set 2020.
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tenha alertado que “[...] A vida é a arte do encontro, embora haja tanto desencontro pela vida.”

Enquanto lugar do encontro e do desencontro, da coexistência e da convivência, da realização de múltiplas trajetórias individuais num mesmo território, a cidade, a partir do ano de 2020, viu-se esvaziar, desacelerar, silenciar diante da ameaça real e concreta de um parasita intracelular obrigatório14 14 O que “significa que são completamente dependentes de outras células para se reproduzir. Não possuem metabolismo próprio independente do hospedeiro. Sua estrutura básica é composta de dois componentes apenas: algum tipo de ácido nucléico e um envoltório feito de proteínas, chamado de capsídeo. Ao conjunto dos ácidos nucleicos com o capsídeo chamamos de nucleocapsídeo. Alguns vírus, no entanto, principalmente os que infectam animais, possuem além do nucleocapsídeo um envoltório mais externo de natureza fosfolipídica chamado de envelope (UFGRS, 2020). , denominado vírus Sars-coV-2. A disseminação acelerada deste vírus pelo mundo, afetando praticamente todas as cidades do globo, teve seu início no continente asiático no final do ano de 2019, sendo que no início do ano de 2020 a contaminação estendeu-se aos demais continentes, assim, chegando ao Brasil no mês de fevereiro.

Em razão da velocidade de disseminação e facilidade de contágio entre os humanos, a OMS mudou a classificação da doença, inicialmente entendida como uma epidemia, para ser considerada uma pandemia, obrigando os Estados a adotarem protocolos de segurança sanitários (distanciamento controlado e isolamento), em especial nos lugares de grande adensamento humano. Ou seja, a cidade em sua cotidianidade foi fortemente afetada pelas medidas sanitárias que visavam conter a velocidade de disseminação do vírus e, deste modo, tentar evitar a sobrecarga dos sistemas de saúde para o atendimento de pacientes com complicações graves da doença. Contudo, passados mais de um ano em situação de pandemia, a sobrecarga e o esgotamento do sistema de saúde brasileiro colapsa, o país chega a triste marca de mais de 290 mil óbitos decorrente da doença pandêmica, com uma média diária de óbitos de 2.73015 15 Segundo informações do Jornal Folha de São Paulo, em 20/03/2021. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/brasil-tem-2730-mortes-por-covid-em-24-h-e-media-movel-de-obitos-bate-novo-recorde.shtml. pessoas vitimadas. Ondas de medo e de tristeza espalham-se pelas cidades brasileiras, mas também, ondas de indignação e revolta aparecem na paisagem urbana.

De um instante para outro, a cidade enquanto lugar (de múltiplos sentidos, fluxos, formas, etc.) transformou-se em um não-lugar. De tal modo, a reflexão sobre o lugar parece ter atingido a todos, sem pedir licença e, até mesmo, de maneira inconsciente trouxe modificações significativas na forma dos sujeitos perceberem, olhar e viverem suas subjetividades, interferindo na sua própria identidade. A partir do momento em que os lugares públicos precisam ser esvaziados para conter a disseminação do vírus o lugar privado, a casa, tornou-se ainda mais fundamental, pois passou a ser o lugar de proteção16 16 Faz-se a ressalva de que durante a pandemia da COVID-19 houve aumento da violência doméstica, não apenas no Brasil, mas como fenômeno mundial, conforme informou o jornal G1, em 23/11/2020. Ver: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/23/com-restricoes-da-pandemia-aumento-da-violencia-contra-a-mulher-e-fenomeno-mundial.ghtml. Isto é, a casa em nem todos os casos foi um local de segurança, e mulheres e crianças precisaram enfrentar concomitantemente a pandemia e a violência. , de trabalho, de laser, de estudos, etc. A COVID - 19 não foi apenas uma crise de saúde que esvaziou as cidades e encheu as casas, a COVID-19 reconfigurou nossa compreensão do lar (ALCALÁ, 2020ALCALÁ, Felipe Gaytán. Conjurar el miedo: El concepto Hogar - Mundo derivado de la pandemia COVID- 19. Relais. v. 3. n. 1. 2020, p. 22-26. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.lasalle.mx/bitstream/handle/lasalle/1457/2635-Documento%20principal-15114-2-10-20200506.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 25 mar. 2021.
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).

Esse período de distanciamento controlado ou isolamento social, recomendado pelas autoridades sanitárias internacionais vinculadas à Organização Mundial da Saúde - OMS e nacionais, recomendadas pelos centros de pesquisa de doenças e epidemiologias, foi atendido por algumas autoridades públicas do nosso país. No caso brasileiro, as medidas de controle e distanciamento físico e social, indicadas e comprovadas como medida necessária e eficaz para o controle e redução da circulação do inimigo comum invisível não partiram do Chefe do Poder Executivo Nacional, mas sim, por meio de decretos das autoridades políticas administrativas locais - os prefeitos municipais - e, também pelos governadores dos estados membros da nação17 17 Em relação ao Poder Executivo Federal - a União -, a postura do Presidente da República foi sempre contra as medidas de distanciamento controlado e isolamento social, adotando uma postura negacionista, com forte crítica aos decretos dos prefeitos e governadores que adotam tais medidas para proteção da população e desaceleração dos índices de contágio. . O medo de contágio e o risco de morte decorrente de complicações da doença para os chamados grupos de risco18 18 O grupo de risco é formado basicamente por pessoas idosas, pessoas portadoras de doenças graves ou de doenças cardíacas, doenças pulmonares, entre outros. No entanto, com a disseminação em massa do contágio, em uma segunda e terceira onda da doença, crianças, jovens e adultos sem morbidades, também, passaram a ser vítimas do vírus da Sars-coV-2 em suas variantes. tornaram-se uma forte razão para o isolamento (não apenas físico, mas também psíquico e social) dos sujeitos.

Porém, as dissintonias entre as medidas de controle e restrição adotadas por prefeitos e governadores de estados não encontraram correspondência nas atitudes do executivo federal que, a todo custo, tentava negar a gravidade da doença adotando como discurso a necessidade de manutenção das atividades econômicas, acima de tudo. Neste sentido, os não-lugares, que também são espaços ou territórios em disputa por vários setores públicos e privados ficaram sob disputa, havendo invisibilização ou silêncio de parte do poder público, de seus discursos sobre as restrições ou relaxamento das medidas adotadas na pandemia.

Cabe demarcar a assimetria dos impactos gerados (GOES; RAMOS, FERREIRA, 2020GOES, Emanuelle Freitas; RAMOS, Dandara de oliveira; FERREIRA, Andrea Jaqueline Fortes. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, educação e saúde. Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020. Disponível em: Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/635/816 . Acesso em: 22 set. 2020.
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), os momentos de crise evidenciam as desigualdades já existentes na sociedade moderna, pobreza, falta de saneamento básico, acesso à água potável, moradia adequada, alimentação nutritiva, dentre outros. Também, escancara a descartabilidade da vida, especialmente de grupos mais vulneráveis19 19 Diversos autores abordam a questão da descartabilidade de algumas vidas. Michel Foucault preconizou a passagem do “fazer morrer e deixar viver” para o “deixar morrer e fazer viver”, Giorgio Agambem teorizou sobre o Homo Saccer, também, Judith Butler aborda as vidas precárias de grupos vulneráveis, e mais recentemente, Achille Mbembe desenvolveu o conceito de necropolítica. Todas estas terminologias versam sobre um olhar utilitarista sobre a vida, onde uns são mais iguais que outros, nas palavras de George Orwel. . Debater as relações sociais e espaciais diante de uma pandemia, em um país tão desigual como o Brasil, é falar de medos muito dissonantes, da incerteza de ter um tratamento médico, perda de renda, e da convivência com outras mazelas, como violência, a depender da cor da pele, do credo e do endereço. Assim, embora a COVID-19 nos atinja de modo coletivo, que gere um sentimento de medo coletivo, na individualidade é muito diverso. Grupos populacionais vulneráveis são atingidos duas vezes, uma pelo vírus, e outra pelos discrepantes contrastes de uma sociedade desigual20 20 Navarro (2020) argumenta que um dos aspectos mais marcantes das respostas à crise COVID-19 é o grau de securitização e militarização das políticas de saúde pública em nível global que acompanha, tomando como guia o discurso da OMS e a figura do estado de exceção, onde interroga o rearranjo moral e biopolítico do espaço público que deriva desse processo, levando em consideração a diferenciação de seus efeitos em termos de exposição ao risco e violência dependendo de variáveis raciais, de gênero e classe, em diferentes contextos geográficos e políticos, e que podem se estender após a pandemia, salvo se for recuperado o espaço de protesto. . É um momento que clama pela ressignificação de muitos dos nossos valores e, em especial, uma reabilitação do referencial ético de nossas sociedades (LIPOVETSKY, 2004LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2004., p. 34).

A cidade, que traz consigo uma complexidade de lugares, nos quais os sujeitos compartilham referências sociais que são incorporadas à sua identidade, torna-se cenário ideal e perverso para a propagação de um inimigo invisível, imperceptível através dos sentidos, perceptível apenas por meio das lentes de aparelhos laboratoriais ultramodernos, acentuando medos, gerando inseguranças e silenciando o lugar comum. Reduzindo a quase zero as relações sociais no espaço público21 21 Conforme entrevista com Francisco Sierra (Del Valle; Bedenes; Noreña, 2020), a pandemia põe em quarentena a própria ideia de espaço público, especialmente a função informativa, com o que os autores qualificam como midiatização e dialética de saque e saúde pública que tem lugar normalmente em tempos de crise extremae aguda instabilidade social. . E, a diferença de posturas dos prefeitos e governados para o combate à pandemia - pois estão mais diretamente conectados a população que sofre as consequências da contaminação da COVID-19, em relação a quase ausência de medidas por parte do executivo federal, demonstrou que a pandemia foi alçada à questões de cunho político-ideológico, evidenciando o campo de disputas entre os interesses públicos e os interesses privados ultraliberais. E, nesse jogo de interesses e ideologias a população ficou desamparada, foi sendo acometida e consumida pela doença.

Ironicamente, este cenário suscitou várias indagações e reflexões, dentre elas a questão do não-lugar desenvolvido por Marc Augé (2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.). Segundo o autor, o não-lugar é um espaço construído que possibilita a aceleração do tempo, no qual se estabelecem relações de solidão, associadas à ideia de contratualidade solitária, ao contrário do praticado no seu oposto - os lugares antropológicos22 22 O lugar antropológico é definido como um espaço identitário, relacional r histórico. O não lugar é o seu oposto, ou seja, é o espaço não identitário, não relacional e não histórico. Não há, necessariamente, uma relação territorial de um estrato social específico ou grupo associado ao não-lugar (AUGÉ, 2012). -, que são as relações de sociabilidade (AUGÉ, 2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.). Nesse sentido, com as medidas de distanciamento controlado decretadas pelos governadores dos Estados e pelos prefeitos municipais, necessárias para frear a velocidade de contágio e expansão do vírus, formaram relações de solidão, desorientação e medo.

Originalmente, o desenvolvimento da ideia de não lugar está associada à circulação e ao consumo, ao uso econômico do local, não-político e social. Isto porque, no não-lugar percebe-se certa uniformização, despersonalização crescente por meio da solidão, do anonimato, da redução do estado de agente de ligação, na medida em que a identidade é definida pelo trajeto.

Os ‘não lugares’ são espaços multifuncionais, cujo objetivo é possibilitar a cada um fazer cada vez coisas em um mesmo espaço. São espaços para consumir, e para criar “novas necessidades” (publicidade e informação). São eles que caracterizam a sobremodernidade (SÁ, 2014SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social: revista de sociologia da USP. v. 26, n.2., 2014. pp. 209-229., p. 214).

Entretanto, a noção de não-lugar traz em si uma ambiguidade, não sendo algo rígido e rigoroso sob o aspecto científico; “mais interessante sob o ponto de vista da análise social é encontrar uma imagem do todo que não é a recomposição minuciosa das partes. Corresponde empiricamente a um conjunto de construções com características muito diferentes” (SÁ, 2014SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social: revista de sociologia da USP. v. 26, n.2., 2014. pp. 209-229., p. 209). Dentre esses espaços construídos a que se refere Augé (2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.) estão os aeroportos, shopping centers, cadeias de hotéis, hipermercados, autoestradas, entre outros. Assim como, o ônibus e a sala de cinema, nos quais o sujeito pode transitar sem ser percebido, sem interagir, necessariamente, com outro, sem trocas. Aliás, o outro sequer chega a ser considerado.

A realidade social não pode ser reduzida ou simplificada. Isso significa que “o não lugar como espaço empírico pode ser do ponto de vista social simultaneamente um ‘lugar antropológico’ (e vice-versa)” (SÁ, 2014SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social: revista de sociologia da USP. v. 26, n.2., 2014. pp. 209-229., p. 213). Para Augé (2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.) o não lugar deve ser identificável não de maneira empírica, mas como um espaço criado pelo olhar que o toma como objeto; assim, o não-lugar de uns pode ser o lugar de outros e, cita como exemplo os passageiros em trânsito num aeroporto (para os quais o local é um não-lugar) e as pessoas que trabalham nesse aeroporto (para as quais o local é um lugar antropológico). Dessa forma, o transporte público, ofertado em nossas cidades, de maneira reduzida nesse longo período de pandemina, é o não-lugar para uns e, pode ser para outros, o lugar do medo por conta da possibilidade de contágio pelo vírus.

Na perspectiva de Augé (2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.) o não-lugar permite uma grande circulação de pessoas, coisas e imagens em um único espaço ao mesmo tempo em que transforma o mundo em um espetáculo com o qual os sujeitos mantêm relações a partir de imagens, como espectadores de um lugar intensamente codificado do qual ninguém faz verdadeiramente parte. O pensamento do autor parece permeado pela busca “em saber como os não lugares podem provocar uma perda de nós mesmos como grupo e sociedade, prevalecendo agora apenas o indivíduo ‘solitário’” (SÁ, 2014SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social: revista de sociologia da USP. v. 26, n.2., 2014. pp. 209-229., p. 211). Pois, o não-lugar é o espaço constituído em espetáculo, um espaço dos outros sem a presença dos outros. De forma ambivalente, o lar que poderia ter se intensificado como o lugar nesse longo período de restrições de circulação e compartilhamento com o outro, tornou-se, para muitos, em não lugar, na medida em que provocou a perda de nós mesmos como grupo e sociedade.

Todavia, os estratos sociais com condições econômicas mais estáveis e privilegiadas, que permaneceram conectados ao mundo virtual, mantiveram suas atividades laborais na modalidade à distância e síncrona. Muitos desses sujeitos, enganados pelo desejo de fazer tudo, absolutamente, tudo, num período de tempo cada vez mais curto, parecem não perder nada do que se passa em sua volta, bem como, no mundo. Contra factualmente, isso os impede de viver o espaço físico que ocupam.

Os espaços físicos transformam-se em meios que possibilitam a interação no espaço virtual: nunca estamos onde estamos fisicamente - contatos, informações, publicidade (celulares, computadores, cartazes, monitores, alto-falantes) -, tudo isso nos transporta para outras realidades, problemas, alegrias, desejos, nos fazer sonhar sem sonho (SÁ, 2014SÁ, Teresa. Lugares e não lugares em Marc Augé. Tempo Social: revista de sociologia da USP. v. 26, n.2., 2014. pp. 209-229., p. 212).

O não-lugar de Augé (2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.) se caracteriza, em outras palavras, pela diminuição de relações sociais no espaço público, pela passividade do cidadão e pelo ritmo das mudanças que ultrapassa o ritmo da própria vida. O sujeito prescinde a presença física do outro, reduzindo assim, as relações de sociabilidade, que caracterizam a vida na cidade.

A pandemia da COVID-19 balançou e transformou todas essas composições de lugar e não-lugar. Na medida em que o sujeito foi retirado da rua, dos espaços públicos, nos quais as interações sociais costumavam acontecer, mesmo que transitoriamente e contra sua vontade (pois as autoridades político-administrativas das cidades, personificadas na pessoa do prefeito municipal, foram as responsáveis pelos decretos que determinavam as regras da quarentena, do isolamento ou distanciamento social, bem como do lockdown 23 23 Expressão que traduzida para a língua portuguesa significa bloqueio total ou confinamento; é um protocolo de isolamento que geralmente impede que pessoas ou cargas de animais e objetos deixem uma área. Esse protocolo de isolamento, no caso brasileiro, somente pode ser iniciado pela autoridade político-administrativa local (o prefeito municipal). ), as subjetividades foram modificando-se e a confusão entre lugares e não-lugares adquirindo novos contornos.

O espaço do lar tornou-se o local do isolamento, da solidão, do trabalho (para o extrato social que conseguiu manter suas atividades em home office), das incertezas e, também, do medo em novas dimensões e configurações. Esse mesmo espaço - o do lar, pode ter sido percebido, por alguns outros sujeitos, de outras formas vinculadas à ideia de segurança, aconchego, proteção e afetos. Conforme Giglia (2020GIGLIA, Angela. Repensar las ciudades des del encierro domestico. UNAM. Abr.2020. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/43024004/REPENSAR_LAS_CIUDADES_DESDE_EL_ENCIERRO_DOMESTICO . Acesso em: 24 mar. 2021.
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) a partir do momento em que o espaço público não pode mais ser utilizado para reuniões, tanto sociais quanto de trabalho, esta função é feita por meio de conexões online de casa, em um ambiente que deve simultaneamente possibilitar um conjunto de outras atividades, como a escola das crianças, trabalho adulto, descanso e recreação, todos os quais caem repentinamente na casa que habitamos. Isto é, de um dia para o outro a casa se tornou um lugar altamente multifuncional, necessitando de adaptações para as novas necessidades. Por outro lado, acentuou-se a lógica do “diz-me onde vives que te direi quem és”, para “diz-me onde vives e te direi qual o risco de contágio” (GIGLIA, 2020GIGLIA, Angela. Repensar las ciudades des del encierro domestico. UNAM. Abr.2020. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/43024004/REPENSAR_LAS_CIUDADES_DESDE_EL_ENCIERRO_DOMESTICO . Acesso em: 24 mar. 2021.
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).

Neste sentido, numa ótica individualista, preocupações com o bem comum e com o outro em sua dimensão ética são substituídas por uma gramática que visa apenas o Eu, o Ego, o consumo, o imediatismo, com posturas apáticas ao sofrimento da outridade (LÉVINAS, 1980), exacerbadamente hedonistas e narcisistas. Há também a retórica que defende o bem-estar alcançado pelo mérito, cada um faz por merecer, o culto do “cada um por si”, do “se estou aqui é porque mereci”, do sucesso pessoal por qualquer meio (LIPOVETSKY, 2004LIPOVETSKY, Gilles. Metamorfoses da cultura liberal: ética, mídia e empresa. Trad. Juremir Machado da Silva. Porto Alegre: Sulina, 2004.) por meio de um processo de individualização e atomização das relações sociais (ARENDT, 2000ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000.), em detrimento da alteridade, da solidariedade, da fraternidade e de projetos coletivos.

É neste contexto de desaparecimento do cuidado com o Outro diante da individualização exacerbada, que nega o bem comum, a coletividade ou preocupações para além daquelas inerentes ao próprio desempenho, à produtividade, à competitividade, e ao consumo, que surge a discussão sobre como a morte do Outro é vista por mim, especialmente durante a pandemia do novo coronavírus. Dentro deste espectro há a relativização da morte, a descartabilidade da vida, da vida do Outro, o negacionismo que recusa a gravidade da crise vivida no atual momento24 24 São fartos os discursos ou postagens de agentes políticos importantes, como Donald Trump, nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro, no Brasil, minimizando os efeitos da pandemia da COVID-19, os quais são exaustivamente repetidos, de modo a ir tomando corpo, negando a gravidade da doença, das descobertas científicas, politizando a economia, a saúde, e a própria vida (SANCHES; MAGENTA, 2020). .

As atividades humanas de sociabilidade nas cidades foram suspensas ou impedidas de funcionar, em razão do risco de disseminação do vírus que se mostrou voraz na sua dispersão entre os sujeitos - bares, restaurantes, parques e praças públicas, escolas e universidades foram fechados ao público. Também, os locais entendidos como não-lugares, por alguns25 25 Por exemplo, no caso do shopping center o local pode ser percebido com um não-lugar para um adulto de meia idade que percorre seus corredores e,o mesmo tempo, pode ser percebido como um lugar de sociabilidade (de memória, de história, de afeto) para um adolescente que nele encontra seus amigos, sem foco nas relações de consumo para as quais se destina. , como por exemplo, os centros comerciais e shopping centers, não puderam funcionar por meses na maioria das cidades brasileiras - contrariando a natureza para a qual foram projetados e construídos. O mundo atual da globalização tem como “princípios fundantes” a mobilidade e o consumo. E, estes fundamentos do capital globalizado foram atingidos em cheio pela pandemia. A mobilidade foi restringida, o consumo em grande escala limitou-se a gêneros de primeira necessidade, como alimentação, produtos de higiene e medicamentos. Por outro lado, o comércio ofertado por meio de plataformas digitais, denominado de e-commerce, com os sistemas de entregas pelos correios, por empresas transportadoras e tele-entrega por mototaxistas cresceu exponencialmente. Isto porque, na modalidade física-presencial, somente os serviços essenciais26 26 Estabelecimentos como supermercados, farmácias, hospitais, funerárias, etc. foram autorizados a funcionar, mas com capacidade reduzida, exceto os serviços médico-hospitalares de enfrentamento ao vírus e outras doenças graves que trabalharam com uma sobrecarga em relação as suas capacidades.

Definitivamente, a nova realidade trazida pela pandemia que se mostrava e, ainda mostra-se, às cidades e seus citadinos em nada lembra o período anterior de “normalidade”27 27 Ver a reportagem: Coronavírus: as ruas antes e depois do início da pandemia, do canal G1, que traz imagens de lugares da cidade de São Paulo, mostrando o antes e o depois das medidas de isolamento em razão da quarenta. https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/20/coronavirus-as-ruas-antes-e-depois-do-inicio-da-pandemia-fotos.ghtml. . Uma espécie de vácuo se formou na sociedade urbana. Os sujeitos precisavam desacelerar suas trajetórias individuais para tentar compreender a nova realidade que descortinava, na qual a solidão, o isolamento, o anonimato não estavam relacionados ao não-lugar de outrora, que simbolizava liberdade, mas fruto de uma coerção circunstancial sanitária.

Os espaços de sociabilidades foram diretamente afetados pela situação pandêmica que se instalou. As cidades brasileiras silenciaram. O mundo virtual tornou-se o lugar do encontro entre os sujeitos, um encontro que não é físico, mas que traz alento na medida em que possibilita, através de uma conexão “wi-fi”, ver e falar com aqueles “Outros” que estão longe, mas que de alguma forma se deseja que estivessem perto fisicamente. Contudo, nem todos os moradores da cidade tiveram ou têm acesso a essa conexão wi-fi, pois seu acesso é condicionado ao pagamento e dentre as consequências trágicas que a pandemia trouxe, estão o aumento do desemprego, o fechamento ou suspensão de milhares de postos e contratos de trabalho, entre outros.

Frente a esse quadro, o governo federal viu-se pressionado a disponibilizar uma verba assistencial denominada de “auxílio emergencial28 28 O auxílio emergencial é um benefício financeiro destinado a trabalhadores informais, micro empreendedores individuais, trabalhadores autônomos e desempregado sem parcelas mensais, até o final do ano de 2020, condicionado a aprovação de cadastro do requente junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus - COVID-19. ”, que beneficiou milhões de brasileiros e trouxe alento a economia e mercados locais. Mas, em uma segunda onda de contágio e continuidade da pandemia esse auxílio precisa ser reeditado. A necessidade de reinvenção das condições de sobrevivência nos lugares de densa aglomeração e restrição espacial, como as vilas e favelas existentes em nossas cidades, contou com a capacidade de organização de entidades não governamentais da sociedade civil organizada. Estabelecendo novas e diferentes formas de solidariedade.

Por outro lado, as manifestações de solidariedade de alguns grupos empresariais, em campanhas de auxilio material às populações em condições adversas e vulnerabilidade social do espaço urbano, também se mostraram importantes para a superação da crise desencadeada pela COVID-19. Embora, tais doações tenham diminuído significativamente neste segundo ano de pandemia, elas ainda são o único alento para milhões de brasileiros. Também, observou-se milhares de gestos de solidariedade humana, por parte da população que não integra o chamado grupo de risco. Tais fatos fizeram reflorescer a esperança a respeito de uma nova sociabilidade.

Os conflitos de poder político ideológico estabelecidos entre a esfera federal de um lado e as esferas estaduais e municipais de outro, trouxe e continua a trazer grandes prejuízos as nossas cidades, pois a população não consegue visualizar uma saída às crises sanitária e econômica que lhe acomete. E, diante dessa falta de perspectiva a curto, médio e longo prazo, sente-se desalentada e refém do medo.

De outra banda, é preciso lembrar que os espaços das cidades no Brasil são também irregulares e assimétricos, pois nem todos têm planejamento suficiente, saneamento básico para toda a população, acesso a unidades de saúde equipadas, etc. Com a pandemia isso mostrou-se como mais um problema sócio espacial, pois uma grande quantidade da população urbana, vive nesses espaços assimétricos, com uma carência de recursos e ausência de infraestrutura urbana básica que interferem na sua condição de vida. Um dos grandes problemas no Brasil, foi exatamente manter a população isolada no espaço da casa, muitas vezes, sem condições adequadas de manter suas atividades e relações com os familiares e amigos. As relações identitárias com o lugar antropológico se refletem na dificuldade que muitos enfrentam em permanecer confinados em pequenos espaços, privados de suas relações com os demais lugares29 29 A pandemia nos obriga a repensar a relação dos seres humanos com o espaço, e o relação de humanos uns com os outros, no espaço urbano. Para isso, Giglia (2020) argumenta que teremos que mudar não só a forma de estar no espaço, mas também imaginar novos espaços, de outro tipo e de outro tamanho, que respondam mais adequadamente a necessidade de distanciamento físico, permitindo que continuem morando na cidade, curtindo a presença de outras pessoas, mas evitando a experiência de imersão no multidão. Pensar que a qualidade de vida urbana central pode se estender a todo o território urbanizado é invocar uma utopia inviável se não forem realizadas mudanças profundas na governança urbana, que afetam sobretudo no mercado imobiliário, em busca de uma cidade menos desigual. Em suma, diante de um espaço público vazio, esvaziado de sentido, é imperativo colocar no centro da reflexão os problemas da conexão, dentre outros, da habitabilidade da habitação. .

Uma saída possível dessa situação é a vacinação em massa da população. Porém, a vacinação vem seguindo num ritmo lento. Por enquanto, nossos hospitais seguem congestionados, não conseguindo atender a grande demanda de sujeitos doentes. E, mesmo diante de do alto risco de contágio e do elevado número de óbitos diários decorrentes da doença pandêmica, há em muitas cidades brasileiras pessoas que saem às ruas sem máscara de proteção, aglomeram-se em festas clandestinas e orlas marítimas, obrigado as autoridades locais a adotarem medidas cada vez mais restritivas. Há uma divisão bem nítida entre a população, de um lado estão aqueles que se cuidam, observam as medidas de restrição impostas pelas autoridades locais e regionais em respeito à vida e ao interesse comum, pois temem não apenas ser contaminadas e virem a óbito, como também, temem contaminar outrem; do outro lado estão aqueles que ainda acreditam que é apenas uma gripezinha, algo sem importância, um fricote, que não justifica as perdas econômicas. A complexidade das situações sanitárias, sociais e econômicas tendem a acentuar-se em nossas cidades, para as quais as saídas individuais são insuficientes.

Todavia, é interessante observar que, nessa situação de restrição de mobilidade urbana e de distanciamento social, novas percepções foram surgindo. O ônibus e o trem urbanos percebidos pelos seus usuários, no geral, como não-lugar de outrora, torna-se o lugar do encontro com o Outro, mediado pelo medo de uma ameaça invisível (o vírus Sars-coV-2), mas que funciona, paradoxalmente, como uma espécie de certeza, de confirmação de que não se está sozinho ou morto. A percepção do outro, bem como o resgate da alteridade, da ética da responsabilidade e do cuidado com o outro, respeitando sua morada, pois a alteridade do Outro “só é possível se o Outro é realmente o outro” (LÉVINAS, 1980, p. 24), parece florescer neste tempo pandêmico, suscita sentimentos antagônicos, paradoxais, de temor e de coragem para seguir em frente. Talvez, agora, com trajetórias mais sociáveis, menos isoladas, pois, afinal, a cidade é o local do viver coletivo e nela precisa-se estar preparado para atender as demandas decorrentes desse período tão diferente e dominado pelo medo.

4 CONCLUSÃO

Pensar a configuração das cidades num período tão atípico como de uma pandemia exige uma reflexão para muito além dos parâmetros teóricos e metodológicos, requer dos pesquisadores uma abordagem que contemple questões de um cunho científico e, ao mesmo tempo, de práticas sociais elaboradas pelas pessoas que as habitam. As práticas sociais são as mais diversas possíveis e imaginárias, pois as pessoas agem de forma diferenciada por uma série de motivos e influências. O que podemos constatar de imediato é que a noção de lugar nas cidades se alterou de forma significativa nesse emblemático cenário, no Brasil e no mundo, a ameaça veio de um vírus com alto poder destrutivo. Supostamente, construímos um imaginário que nos distanciava da ameaça de um vírus potencialmente tão letal. Prevíamos perigos com armas nucleares, mas o poder destrutivo de um vírus ameaçou o mundo todo no tempo presente, fez com que as experiências com pestes, endemias e pandemias que estavam na memória social precisassem emergir. As formas de reações e cuidados foram semelhantes, com medidas sanitárias e prática de distanciamento social, ressignificando a noção de lugar.

As cidades no Brasil e no mundo são os principais lócus de vivência das pessoas, ou seja, os espaços urbanos são os mais habitados em contraposição aos espaços rurais. As cidades precisaram se reinventar, os lugares foram consagrados para as sociabilidades, foram ressignificados, quase que transformados em não-lugares, fazendo alusão ao teórico Marc Augé, que nos leciona que não-lugares são desprovidos de elementos identitários. Para pessoas urbanas precisar abandonar, ou manter distância, ainda que momentaneamente, destes lugares, para se recolocar cotidianamente nos espaços privados, afeta a concepção do lugar identitário e relacional. Para a maioria da população o distanciamento dos lugares públicos gerou uma sensação de isolamento, uma forma de viver mais circunscrita ao espaço privado, que é a casa, todos os espaços relacionais precisaram ser conectados virtualmente com a casa. Os espaços públicos das cidades foram abandonados e, alguns inclusive interditados, como medida de segurança sanitária.

Todas as medidas tomadas nas cidades nesse tempo de pandemia reforçaram a perspectiva do não-lugar, ou seja, quase como um lócus, de onde não deveríamos estar, uma proibição, certo medo de ocupar estes lugares. Mesmo os lugares que considerávamos como importantes e identitários. Contudo, o medo, os conflitos de poder com seus discursos político-ideológicos geraram desalento e certa dispersão de parte da população em relação às medidas de distanciamento controlado para controle da pandemia nas cidades brasileiras.

O medo faz parte de todos os casos de pestes e pandemias, faz com que as pessoas tentem se preservar em determinados lugares, considerados mais protegidos. Esse medo é histórico, é um sentimento e também uma representação, pois a morte é algo temeroso tanto no Ocidente, quanto no Oriente. Esse medo foi ressignificado e tomado novas formas nas cidades, principalmente por terem o maior número de pessoas nos espaços sociais construídos. Precisamos considerar que as cidades, no caso específico do Brasil, apresentam diversas formas de organizações, tanto de um espaço mais planejado urbano, como de um espaço irregular suburbano.

Pode-se constatar que perspectivas teóricas e metodológicas são sempre plausíveis de aplicabilidades em diferentes contextos históricos, pois nos proporcionam bases para pensarmos os problemas cotidianos vivenciados pela população. O exercício reflexivo que propomos no presente artigo é de entendermos com clareza as dimensões do lugar antropológico com o não-lugar, pois dessa relação dicotômica e, ao mesmo tempo, complementar, é onde se estabelecem as práticas sociais da vida cotidiana. Por isso, os lugares foram ressignificados com a intenção de entendermos como um determinado problema social e de saúde pública como uma pandemia, nos coloca em conflito com um constructo de vida que estabelecemos no mundo social. As cidades foram também ressignificadas, os lugares foram relativizados, muitas vezes o próprio espaço virtual tomou uma dimensão até então não experimentada pela população.

Para finalizar, retoma-se uma das ideias centrais de Marc Augé, que coloca a relação dos lugares como essencialmente portadores de relações de alteridade, nos provocando a pensar o nosso lugar e, também, o lugar do Outro. No contexto da pandemia no Brasil, os significados de não-lugar, especialmente, foram ressignificados para os habitantes. Mas, no que tange aos lugares, percebeu-se uma assimetria nestas ressignificações, pois para os extratos sociais mais carentes ou já invizibilizados antes da pandemia apenas acentuaram-se as necessidades geo-político-sociais, além de escancarar a discrepancia de realidades brasileiras, onde uns têm todo o conforto, espaço e possibilidades de desenvolver suas atividades em casa e outros sequer têm garantia a um lugar digno.

Por fim, pode-se deixar em aberto o questionamento da paradoxal relação entre a democratização de determinados lugares - como museus, teatros e cinemas - que antes da pandemia eram acessados quase que exclusivamente pela elite e que durante a pandemia abrem as portas virtuais ao público, e, por outro lado, acerca das práticas de apropriação pelos habitantes surgidas neste contexto pandêmico. Isto é, cabe refletirmos que com o esvaziamento dos espaços públicos também se esvazia o lugar de protesto (NAVARRO, 2020NAVARRO, Pablo Pérez. Pandemia y orden público: el espacio de la protesta. Voluntas - Revista Internacional de Filosofia. v. 11. n. 4. 2020, p. 1-8. Disponível em: Disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90546/1/Pandemia%20y%20orden%20p%C3%BAblico%20el%20espacio%20de%20la%20protesta.pdf . Acesso em: 23 mar. 2021.
https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90546/1...
), onde direitos podem ser reivindicados, pois só se pode gozar com tranquilidade exclusivamente de lugares privados - sem depender dos lugares públicos - aqueles que os detêm. Portanto, a pandemia escancarou a necessidade de ressignificação tanto de lugares e não-lugares públicos, como privados. Ainda sim, nota-se a necessidade de respeitarmos, ocuparmos e afirmarmos o lugar antropológico de cada um e o lugar do outro. A relação de alteridade na ocupação de lugares e não-lugares durante uma pandemia nos desperta o cuidado com o Eu e com o Outro.

REFERÊNCIAS

  • 1
    Conforme definição do dicionário de saúde, pandemia é “epidemia que se estende a quase todos os habitantes de uma região e que pode compreender uma zona geográfica muito vasta” (PAIM, ALONSO, 2020PAIM, Cynthia Schuck. ALONSO, Wladimir J. Pandemias: saúde global e escolhas pessoais. Alfenas: Cria editora, 2020.).
  • 2
    Em 11 de março de 2020 o diretor-geral da Organização Mundial da Saúde (OMS), Tedros Adhanom Ghebreyesus, declarou que a COVID-19, doença causada pelo novo coronavírus - SARS-CoV-2, passou a ser caracterizada como uma pandemia (OPAS, 2020OPAS. Organização Pan-americana de Saúde. OMS afirma que COVID-19 é agora caracterizada como pandemia. 11 mar. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6120:oms-afirma-que-covid-19-e-agora-caracterizada-como-pandemia&Itemid=812 . Acesso em: 22 jul. 2020.
    https://www.paho.org/bra/index.php?optio...
    , n.p.).
  • 3
    Evidentemente, torna-se importante delimitar as assimetrias sociais e de renda existentes no Brasil. Assim como o momento histórico representado pela COVID-19 pode significar uma possível democratização de espaços muitas vezes acessados apenas pela elite - como os espaços culturais, a exemplo de shows e teatros, também escancarou o problema da desigualdade social. Muitos foram os relatos de crianças, adolescentes e adultos que não possuíam internet de qualidade, ou tecnologia compatível com a participação destes lugares. Em alguns casos, o mais básico acesso à educação básica ficou prejudicado pela falta de tecnologia, internet ou renda para custeá-los (ONU, 2020ONU. Organização das Nações Unidas. Falta de acesso à internet causa crise profunda na educação global, diz Unicef. 06 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://news.un.org/pt/story/2020/06/1715942 . Acesso em: 29 set. 2020.
    https://news.un.org/pt/story/2020/06/171...
    ; FOLHA DE SÃO PAULO, 2020FOLHA DE SÃO PAULO. 70 milhões de brasileiros têm acesso precário à internet na pandemia. 16 maio 2020. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/cerca-de-70-milhoes-no-brasil-tem-acesso-precario-a-internet-na-pandemia.shtml . Acesso em: 29 set.2020.
    https://www1.folha.uol.com.br/mercado/20...
    ).
  • 4
    As intervenções não farmacológicas (INF) são medidas de saúde pública com alcance individual, ambiental e comunitário. As medidas individuais incluem a lavagem das mãos, a etiqueta respiratória e o distanciamento social. O distanciamento social, por sua vez, abrange o isolamento de casos, a quarentena aplicada a contatos, e a prática voluntária de não frequentar locais com aglomerações de pessoas. (GARCIA; DUARTE, 2020GARCIA, Leila Posenato; DUARTE, Elisete. Intervenções não farmacológicas para o enfrentamento à epidemia da COVID-19 no Brasil. Epidemiologia e Serviços de Saúde. v. 29. n. 2. Brasília, 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S2237-96222020000200100&script=sci_arttext#B5 . Acesso em: 22 jul. 2020.
    https://www.scielo.br/scielo.php?pid=S22...
    ). Igualmente, conforme orientação da OMS, o uso de máscaras faz parte de um pacote completo de medidas de prevenção e controle para frear a propagação da COVID-19. O uso de máscaras isoladamente não é suficiente para proporcionar um nível adequado de proteção ou controle da fonte, e outras medidas nos âmbitos individuais e comunitários também devem ser adotadas para conter a transmissão de vírus respiratórios. Além do uso de máscaras, a adesão a medidas de higienização das mãos, distanciamento físico e outras medidas de prevenção e controle de infecções (PCI) é crucial para prevenir a transmissão inter-humanos da COVID-19 (OPAS, 2020bOPAS. Organização Pan-americana de Saúde. Orientação sobre o uso de máscaras no contexto da COVID-19: Orientação provisória 5 de junho de 2020. 05 jun. 2020. Disponível em: Disponível em: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/52254/OPASWBRACOVID-1920071_por.pdf?sequence=1&isAllowed=y . Acesso em: 22 set. 2020b.
    https://iris.paho.org/bitstream/handle/1...
    , p. 7).
  • 5
    Tuan (2005)TUAN, Yi-fu. Medo da Cidade. TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira . São Paulo: EdUNESP, 2005, p.231-275. destaca que certas paisagens, principalmente as urbanas, transmitem uma sensação de alívio, prazer, mas outras causam nostalgia, aflição, angústias.
  • 6
    Também é o sentido apresentado por Hannah Arendt (2000)ARENDT, Hannah. A Condição Humana. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2000., isto é, o que nos torna humanos é a relação entre indivíduos, não podemos nos atomizar, a acepção humanista mais pura, que se preocupa acima de tudo com a condição humana.
  • 7
    O filósofo Emmanuel Lévinas, na obra Totalidade e Infinito, apregoa o cuidado do Eu para o Outro como um elemento constitutivo da humanidade. Neste sentido é possível traçar um paralelo com a experiência do tempo presente, em que os cuidados até então comprovados para o combate ao novo coronavírus dependem de adesão coletiva. No pensamento levinasiano é possível associar a realização do ser humano à questão da alteridade, isto é, do reconhecimento de um Outro que, por definição, não pode ser reduzido a um mesmo. O Outro, na alteridade, é um rosto que se apresenta diante do Eu, em uma relação face à face, e que exige do Eu um comportamento ético que o permita ser, isto é, existir outramente (LÉVINAS, 1980).
  • 8
    Linguagem proveniente das classificações de Emmanuel Lévinas. "O Outro metafísico é outro de uma alteridade que não é formal, de uma alteridade que não é um simples inverso da identidade, nem de uma alteridade feita de resistência ao Mesmo, mas de uma alteridade anterior a toda a iniciativa, a todo o imperialismo do Mesmo; outro de uma alteridade que não limita o Mesmo, porque nesse caso o Outro não seria rigorosamente Outro: pela comunidade da fronteira, seria, dentro do sistema, ainda o Mesmo. O absolutamente Outro é Outrem; não faz número comigo. A coletividade em que eu digo ‘tu’ ou ‘nós’ não é um plural de ‘eu’. Eu, tu, não são indivíduos de um conceito comum" (LÉVINAS, 1980, p. 26).
  • 9
    O desencontro com o Outro dificulta a ligação do sujeito com o lugar, sem que haja uma ligação com os espaços, aumentando a sensação já promovida pela sociedade individualista, acentuando paisagens do medo e de não-lugares, visíveis para o homem em diferentes formas, seja uma rua, uma praça ou uma loja, todos podem representar um ambiente que causa aversão, pois a pessoa não se reconhece ali e não percebe a vida socialmente compartilhada (TUAN, 2005TUAN, Yi-fu. Medo da Cidade. TUAN, Yi-fu. Paisagens do medo. Tradução de Lívia de Oliveira . São Paulo: EdUNESP, 2005, p.231-275.).
  • 10
    Ainda que existam discrepantes assimetrias no extrato social brasileiro, com diferenças econômicas, educacionais e habitacionais, além de não ter uma adesão igualitária para atender as medidas de combate à pandemia, pode-se afirmar que houve um comprometimento das sociabilidades nas mais variadas realidades brasileiras (GOES, RAMOS, FERREIRA, 2020GOES, Emanuelle Freitas; RAMOS, Dandara de oliveira; FERREIRA, Andrea Jaqueline Fortes. Desigualdades raciais em saúde e a pandemia da Covid-19. Trabalho, educação e saúde. Rio de Janeiro, v. 18, n. 3, 2020. Disponível em: Disponível em: https://preprints.scielo.org/index.php/scielo/preprint/view/635/816 . Acesso em: 22 set. 2020.
    https://preprints.scielo.org/index.php/s...
    ).
  • 11
    Segundo Tuan (1983)TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1983. , o mundo é desenhado na paisagem, construindo-se aí, gradativamente, laços de pertencimento, afetividade do sujeito com o ambiente, que pode ser descrito como um sentimento de topofília.
  • 12
    Deriva e decorre o sentido de topocídio, ou seja, a morte, aniquilamento deliberado de lugares (TUAN, 1983TUAN, Yi-fu. Espaço e lugar: a perspectiva da experiência. Tradução de Lívia de Oliveira. Rio de Janeiro: Difel, 1983. ).
  • 13
    De acordo com Emmanuel Lévinas, a ética da alteridade defende a concepção de que somos responsáveis uns pelos outros, que a relação com o Outro, com sua segurança, seu bem estar é de nossa responsabilidade. Ou, dito de outro modo, nossa responsabilidade com a vivência do outro é total, indeclinável e intransferível, não pautada em uma ética contratualista ou principiológica, mas em uma ética que se dá de forma gratuita e espontânea. Na medida em que somos negligentes e imprudentes no cuidado ao Outro, estamos falhando eticamente, em falta com a nossa posição de responsabilidade e boa vivência em relação ao Outro. Por conseguinte, no pensamento levinasiano, a humanidade existe a partir da ética, a relação interpessoal pressupõe uma dimensão ética a partir da compreensão de que o outro é nossa responsabilidade, e isso nos humaniza. Levando em consideração o momento de crise sanitária causada e evidenciada pela pandemia do novo coronavírus, os atos de descaso para com a saúde e o bem-estar do outro para priorizar o mercado, fazem com que a noção de ética levinasiana e de alteridade sejam ultrajadas, pois, ao negar os cuidados necessários para com o outro, nega-se a responsabilidade com aquela vivência, banaliza-se a existência da outridade. Por outro lado, o momento exige nosso cuidado com o outro e comigo, e ao atender as medidas de proteção, se reacende a relação de alteridade da vivência ética.
  • 14
    O que “significa que são completamente dependentes de outras células para se reproduzir. Não possuem metabolismo próprio independente do hospedeiro. Sua estrutura básica é composta de dois componentes apenas: algum tipo de ácido nucléico e um envoltório feito de proteínas, chamado de capsídeo. Ao conjunto dos ácidos nucleicos com o capsídeo chamamos de nucleocapsídeo. Alguns vírus, no entanto, principalmente os que infectam animais, possuem além do nucleocapsídeo um envoltório mais externo de natureza fosfolipídica chamado de envelope (UFGRS, 2020).
  • 15
    Segundo informações do Jornal Folha de São PauloFOLHA DE SÃO PAULO. Brasil tem 2.730 mortes por Covid em 24 h, e média móvel de óbitos bate novo recorde. Disponível em: Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/brasil-tem-2730-mortes-por-covid-em-24-h-e-media-movel-de-obitos-bate-novo-recorde.shtml . Acesso em: 20 mar.2021.
    https://www1.folha.uol.com.br/equilibrio...
    , em 20/03/2021. Ver: https://www1.folha.uol.com.br/equilibrioesaude/2021/03/brasil-tem-2730-mortes-por-covid-em-24-h-e-media-movel-de-obitos-bate-novo-recorde.shtml.
  • 16
    Faz-se a ressalva de que durante a pandemia da COVID-19 houve aumento da violência doméstica, não apenas no Brasil, mas como fenômeno mundial, conforme informou o jornal G1G1. Com restrições da pandemia, aumento da violência contra a mulher é fenômeno mundial. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/23/com-restricoes-da-pandemia-aumento-da-violencia-contra-a-mulher-e-fenomeno-mundial.ghtml . Acesso em: 24 mar. 2021.
    https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/...
    , em 23/11/2020. Ver: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/11/23/com-restricoes-da-pandemia-aumento-da-violencia-contra-a-mulher-e-fenomeno-mundial.ghtml. Isto é, a casa em nem todos os casos foi um local de segurança, e mulheres e crianças precisaram enfrentar concomitantemente a pandemia e a violência.
  • 17
    Em relação ao Poder Executivo Federal - a União -, a postura do Presidente da República foi sempre contra as medidas de distanciamento controlado e isolamento social, adotando uma postura negacionista, com forte crítica aos decretos dos prefeitos e governadores que adotam tais medidas para proteção da população e desaceleração dos índices de contágio.
  • 18
    O grupo de risco é formado basicamente por pessoas idosas, pessoas portadoras de doenças graves ou de doenças cardíacas, doenças pulmonares, entre outros. No entanto, com a disseminação em massa do contágio, em uma segunda e terceira onda da doença, crianças, jovens e adultos sem morbidades, também, passaram a ser vítimas do vírus da Sars-coV-2 em suas variantes.
  • 19
    Diversos autores abordam a questão da descartabilidade de algumas vidas. Michel Foucault preconizou a passagem do “fazer morrer e deixar viver” para o “deixar morrer e fazer viver”, Giorgio Agambem teorizou sobre o Homo Saccer, também, Judith Butler aborda as vidas precárias de grupos vulneráveis, e mais recentemente, Achille Mbembe desenvolveu o conceito de necropolítica. Todas estas terminologias versam sobre um olhar utilitarista sobre a vida, onde uns são mais iguais que outros, nas palavras de George Orwel.
  • 20
    Navarro (2020)NAVARRO, Pablo Pérez. Pandemia y orden público: el espacio de la protesta. Voluntas - Revista Internacional de Filosofia. v. 11. n. 4. 2020, p. 1-8. Disponível em: Disponível em: https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90546/1/Pandemia%20y%20orden%20p%C3%BAblico%20el%20espacio%20de%20la%20protesta.pdf . Acesso em: 23 mar. 2021.
    https://eg.uc.pt/bitstream/10316/90546/1...
    argumenta que um dos aspectos mais marcantes das respostas à crise COVID-19 é o grau de securitização e militarização das políticas de saúde pública em nível global que acompanha, tomando como guia o discurso da OMS e a figura do estado de exceção, onde interroga o rearranjo moral e biopolítico do espaço público que deriva desse processo, levando em consideração a diferenciação de seus efeitos em termos de exposição ao risco e violência dependendo de variáveis raciais, de gênero e classe, em diferentes contextos geográficos e políticos, e que podem se estender após a pandemia, salvo se for recuperado o espaço de protesto.
  • 21
    Conforme entrevista com Francisco Sierra (Del Valle; Bedenes; Noreña, 2020DEL VALLE, Calos. BENEDES, Daniel. NOREÑA, María Isabel. La pandemia pone en cuarentena la propia idea clásica de espacio público - entrevista a Francisco Sierra. Revista Latinoamericana de ciencias de la comunicacion. v. 19. n. 33, 2020, p. 230-240. Disponível em: Disponível em: http://revista.pubalaic.org/index.php/alaic/article/view/1717 . Acesso em: 22 mar. 2021.
    http://revista.pubalaic.org/index.php/al...
    ), a pandemia põe em quarentena a própria ideia de espaço público, especialmente a função informativa, com o que os autores qualificam como midiatização e dialética de saque e saúde pública que tem lugar normalmente em tempos de crise extremae aguda instabilidade social.
  • 22
    O lugar antropológico é definido como um espaço identitário, relacional r histórico. O não lugar é o seu oposto, ou seja, é o espaço não identitário, não relacional e não histórico. Não há, necessariamente, uma relação territorial de um estrato social específico ou grupo associado ao não-lugar (AUGÉ, 2012AUGÉ, Marc. Não-lugares: introdução a uma antropologia da sobremodernidade. Campinas, SP: Papirus Editora, 2012.).
  • 23
    Expressão que traduzida para a língua portuguesa significa bloqueio total ou confinamento; é um protocolo de isolamento que geralmente impede que pessoas ou cargas de animais e objetos deixem uma área. Esse protocolo de isolamento, no caso brasileiro, somente pode ser iniciado pela autoridade político-administrativa local (o prefeito municipal).
  • 24
    São fartos os discursos ou postagens de agentes políticos importantes, como Donald Trump, nos Estados Unidos e Jair Bolsonaro, no Brasil, minimizando os efeitos da pandemia da COVID-19, os quais são exaustivamente repetidos, de modo a ir tomando corpo, negando a gravidade da doença, das descobertas científicas, politizando a economia, a saúde, e a própria vida (SANCHES; MAGENTA, 2020SANCHES, Mariana. MAGENTA, Matheus. Bolsonaro e Trump radicalizam: as semelhanças entre os líderes na pandemia de coronavírus. BBC News Brasil. Washington; Londres. 20 abr. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52361730 . Acesso em: 20 set. 2020.
    https://www.bbc.com/portuguese/brasil-52...
    ).
  • 25
    Por exemplo, no caso do shopping center o local pode ser percebido com um não-lugar para um adulto de meia idade que percorre seus corredores e,o mesmo tempo, pode ser percebido como um lugar de sociabilidade (de memória, de história, de afeto) para um adolescente que nele encontra seus amigos, sem foco nas relações de consumo para as quais se destina.
  • 26
    Estabelecimentos como supermercados, farmácias, hospitais, funerárias, etc.
  • 27
    Ver a reportagem: Coronavírus: as ruas antes e depois do início da pandemia, do canal G1G1. Coronavírus: as ruas antes e depois do início da pandemia. Disponível em: Disponível em: https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/20/coronavirus-as-ruas-antes-e-depois-do-inicio-da-pandemia-fotos.ghtml . Acesso em 27 set. 2020.
    https://g1.globo.com/bemestar/coronaviru...
    , que traz imagens de lugares da cidade de São Paulo, mostrando o antes e o depois das medidas de isolamento em razão da quarenta. https://g1.globo.com/bemestar/coronavirus/noticia/2020/03/20/coronavirus-as-ruas-antes-e-depois-do-inicio-da-pandemia-fotos.ghtml.
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    O auxílio emergencial é um benefício financeiro destinado a trabalhadores informais, micro empreendedores individuais, trabalhadores autônomos e desempregado sem parcelas mensais, até o final do ano de 2020, condicionado a aprovação de cadastro do requente junto ao Instituto Nacional de Seguridade Social - INSS e tem por objetivo fornecer proteção emergencial no período de enfrentamento à crise causada pela pandemia do Coronavírus - COVID-19.
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    A pandemia nos obriga a repensar a relação dos seres humanos com o espaço, e o relação de humanos uns com os outros, no espaço urbano. Para isso, Giglia (2020)GIGLIA, Angela. Repensar las ciudades des del encierro domestico. UNAM. Abr.2020. Disponível em: Disponível em: https://www.academia.edu/43024004/REPENSAR_LAS_CIUDADES_DESDE_EL_ENCIERRO_DOMESTICO . Acesso em: 24 mar. 2021.
    https://www.academia.edu/43024004/REPENS...
    argumenta que teremos que mudar não só a forma de estar no espaço, mas também imaginar novos espaços, de outro tipo e de outro tamanho, que respondam mais adequadamente a necessidade de distanciamento físico, permitindo que continuem morando na cidade, curtindo a presença de outras pessoas, mas evitando a experiência de imersão no multidão. Pensar que a qualidade de vida urbana central pode se estender a todo o território urbanizado é invocar uma utopia inviável se não forem realizadas mudanças profundas na governança urbana, que afetam sobretudo no mercado imobiliário, em busca de uma cidade menos desigual. Em suma, diante de um espaço público vazio, esvaziado de sentido, é imperativo colocar no centro da reflexão os problemas da conexão, dentre outros, da habitabilidade da habitação.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    05 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2022

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2020
  • Aceito
    26 Mar 2021
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