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Marxismo e a crítica ao Direito moderno: os limites da judicialização da política

Marxism and the critique of modern law: the limits of the judicialization of politics

Resumo

O presente artigo visa resgatar a contribuição do pensamento marxista sobre a problemática do Direito moderno, cuja expressão teórica encontra-se na perspectiva liberal, e, consequentemente, apontar os limites dessa perspectiva no que concerne ao avanço e afirmação dos direitos, a exemplo do fenômeno contemporâneo da judicialização. Se o liberalismo trata o direito de um ponto de vista neutro, e o associa com o conceito de justiça, o marxismo define o direito pela violência estatal. Veremos, portanto, que a análise marxista se situa num campo realista sobre o fenômeno da judicialização em oposição à perspectiva normativa liberal que entende positivamente o direito enquanto uma forma racional oposta à violência.

Palavras-chaves:
Judicialização; Poulantzas; Pachukanis; Eldeman

Abstract

This article aims at recovering the contribution of Marxist thought to the problematic of modern law, whose theoretical expression lies in the liberal perspective, and, consequently, to point out the limits of this perspective with regard to the advancement and affirmation of rights, such as the phenomenon contemporary of the judicializing. If liberalism treats law from a neutral point of view, and associates it with the concept of justice, marxism defines the right for state violence. We will see, therefore, that marxist analysis lies in a realistic field on the phenomenon of judicializing as opposed to the liberal normative perspective that positively understands law as a rational form opposed to violence.

Keywords:
Judicializing; Poulantzas; Pachukanis; Eldeman

Introdução

O presente artigo visa resgatar a contribuição do pensamento marxista sobre a problemática do Direito moderno, cuja expressão teórica encontra-se na perspectiva liberal, e, consequentemente, apontar os limites dessa perspectiva no que concerne ao avanço e afirmação dos direitos, a exemplo do fenômeno contemporâneo da judicialização. Se o liberalismo, em suas diferentes vertentes, trata o direito de um ponto de vista neutro, e o associa ao conceito de justiça, o marxismo - a despeito de suas distinções internas - define o direito pelo seu aspecto coativo de força ou violência estatal para a manutenção da ordem. Veremos, portanto, que a análise marxista se situa num campo realista sobre o fenômeno da judicialização em oposição à perspectiva normativa liberal que entende positivamente o direito enquanto uma forma racional oposta à violência. Para além de Marx e Engels que já teciam críticas ao direito moderno (burguês), empregarei as contribuições de Pachukanis, Althusser, Edelmann, Negri e Poulantzas.

1) A judicialização como fenômeno sociopolítico

A partir dos anos 1990 a agenda das Ciências Sociais apresentou um tema que vem sacudindo desde então os estudiosos da Sociologia do Direito e da Ciência Política. O tema em tela é o fenômeno da judicialização política e social, no qual se pôs em evidência as estruturas e práticas jurídicas por intermédio de seus atores institucionais, sobretudo pelos magistrados e procuradores da República, alcançando até então uma projeção inédita no cenário político.

O fato é que desde a década de 1990 ampliou-se no Brasil o interesse pela leitura de pensadores da filosofia do direito contemporâneo como John Rawls, Ronald Dworkin, Bruce Ackermann, Michael Walzer, além dos já conhecidos Jürgen Habermas e Norberto Bobbio. Por outro lado, cresceu também a demanda por pesquisadores das Ciências Sociais que tratavam do direito a partir de temas como acesso à justiça, cidadania e judicialização a exemplo de Mauro Cappelletti, C. Neal Tate, Torbjon Vallinder, Boaventura de Sousa Santos, Niklas Luhmann.

O efeito dessa onda dos temas da justiça, do direito e dos aparelhos de justiça teve um grande impacto no campo das Ciências Sociais no Brasil, especialmente na área da sociologia e da ciência política. A ponta de lança dessa produção se fez presente nos trabalhos de Werneck Vianna e Maria Tereza Sadek sobre o papel da magistratura e do Ministério Público, respectivamente. Seguindo essa direção aberta por Werneck Vianna e Sadek temos as pesquisas de Rogério Arantes, Cátia Aída Silva, Andrei Koerner, Fabiano Engelmann, Vanessa Oliveira, Debora Maciel, Luciana Tatagiba e Marcelo Pereira de Mello entre outros. Os objetos de análise acabam transcendendo as instituições e atores inicialmente analisados – juízes e procuradores – ao englobar o fenômeno da judicialização o Tribunal de Contas da União, as políticas públicas sobre saúde e educação infantil, o processo civil, a Defensoria Pública, etc. Um dos resultados bibliográficos desse conjunto de pesquisas pode ser visto no livro organizado por Luiz Eduardo Motta e Maurício Mota publicado em 2011______________; MOTA, Maurício (org.) O Estado Democrático de Direito em questão: teorias críticas da judicialização. São Paulo: Campus, 2011., O Estado Democrático de Direito em questão: teorias críticas da judicialização.

Essas pesquisas indicadas acima, no geral tinham uma leitura positiva sobre o fenômeno da judicialização e do crescimento da atuação no cenário político por parte das representações funcionais dos aparelhos judiciários. Uma das raras exceções é a pesquisa de Rogério Arantes (2000)ARANTES, Rogério. Ministério Público e política no Brasil. São Paulo: USP/tese, 2000. sobre Ministério Público, indicando os limites da soberania da democracia popular com o crescimento da ação dos promotores no campo político. Mas a percepção positiva diante as ações do MP e do judiciário - estava embalada pelo sucesso de várias operações de combate à corrupção na virada do século, e nas quais o objeto de investigação era composto por vários segmentos representativos do poder político e econômico como magistrados, procuradores, empresários, delegados agentes policiais, políticos e banqueiros. Podemos citar como exemplo dessas operações que tiveram grande repercussão midiática as Marka/FonteCindam, Anaconda, Vampiro, Satiagraha, Sanguessugas, etc.

Essas ações deram embasamento teórico e empírico - visto que essas ações defendiam os interesses republicanos - ao conceito de Estado de Direito cujo sentido define o direito como um médium entre o Estado e a sociedade civil. Ademais isso veio a fortalecer a concepção de que preponderava a neutralidade axiológica nas instituições de justiça moderna, guiadas pelos princípios republicanos neutros com relação aos conflitos de classes. As mudanças e avanços se dariam apoiadas nesses espaços institucionais neutros, e que além de garantirem o equilíbrio da sociedade, também atuam na manutenção e criação dos direitos.

O fato é que com a crise do legislativo nas décadas seguintes ao pós-II Guerra, os aparelhos de justiça do Estado tiveram um enorme crescimento em termos de demanda e de intervenção no campo político, o que veio a ser classificado como a judicialização da política, ou a politização do judiciário.

Um texto exemplar sobre esse fenômeno da judicialização é o de Ferejohn publicado em 2003 Judicializing politics, politicizing law (Judicializando a política, politizando o Direito). Esse artigo de Ferejohn é paradigmático no tocante a sintetizar os principais aspectos desse fenômeno político. Como ele percebe, desde o fim da II Guerra cada vez mais houve um deslocamento do poder legal originário do poder Legislativo para os tribunais e outras instituições jurídicas. Isso pode ser percebido no caso da Operações Mãos Limpas na Itália, no julgamento da junta militar argentina e na decisão da Corte Suprema dos EUA na eleição de Gore x Bush. O mesmo aqui no Brasil em relação à Operação Lava Jato entre outras operações envolvendo o governo PT. Ferejohn indica ao longo do artigo a linha tênue entre os poderes republicanos – questão já abordada no livro XI do Espírito das Leis de Montesquieu e na contribuição do pensamento marxista sobre o Estado -, e aponta a intensa fragmentação do poder entre as instituições políticas, o que vem a limitar a capacidade de cada uma tem em legislar. Para Ferejohn isso resultaria em um movimento pelo qual as pessoas, buscando soluções para o conflito, gravitariam para instituições que sejam capazes de produzir soluções (Ferejohn, 2003FAREJOHN, John. “Judicializing politics, politicizing law”. Hoover Digest, nº 1, 2003.: 41- 43).

Com o descenso do legislativo (problemática cuja ciência política europeia já apontava nos anos 1970, [vide Poulantzas (1978)___________________. L’Etat, le Pouvoir et le socialisme. Paris: Press Universitaires de France, 1978.], aconteceu uma migração do poder legislativo para as agências e tribunais, o que significa que eles, sobretudo os tribunais, tomarão decisões politicamente importantes e muitas vezes definitivas.

Há certamente uma crença de Ferejohn na neutralidade institucional e de seus atores envolvidos como fica perceptível nessa passagem

o requisito de uma supermaioria para a confirmação de indicações significa que novos juízes terão de contar com uma aceitação mais ampla, para além de divisões partidárias e ideológicas, o que desencorajaria a indicação de juízes com convicções ideológicas extremas e, a longo prazo, resultaria em tribunais ocupados por magistrados moderados. (IDEM,p. 66).

A concepção liberal do direito e da judicialização expressada por Ferejohn, acaba obscurecendo a quem de fato os agentes políticos do legislativo, executivo e do judiciário representam socialmente e politicamente nos aparatos estatais. O lugar que ocupam e atuam, e que reproduzem em suas práticas, não é devido a meros princípios abstratos e formais, mas sim a conflitos sociais inerentes à sociedade capitalista contemporânea. Uma questão ambiental ou trabalhista que envolve setores opostos às grandes empresas, seja no Legislativo, Executivo ou Judiciário fará evidenciar qual a posição que o agente estatal tomará diante da direção política e ideológica na qual ocupe em sua função.

Essa crença de que as instituições por si mesmas fomentam a mudança, e defendem os direitos, está presente em Habermas para quem o conflito social – pelo menos no tocante as lutas de classes - inexiste mediante a sua utopia de uma ação comunicativa na qual os agentes conseguem obter um consenso mediante alguma disputa. Isso significa afirmar que há uma perfeita isonomia entre os agentes interlocutores e transparência em seu diálogo, não havendo ocultamento nas ações, ou distinções de posição social: todos partem de um mesmo ponto, não havendo benefício a priori daqueles que detenham o maior capital econômico, político e cultural.

E Habermas, desde que adotou o liberalismo como modelo político e intelectual quando abandonou o marxismo presente em seus trabalhos iniciais, tornou-se um dos intelectuais que mais veio a defender o projeto da modernidade burguesa, em especial as instituições políticas que emergiram na modernidade a exemplo do Estado de Direito, pelo menos se comparado ao Estado Totalitário. Ainda que o mundo vida esteja cerceado pelos sistemas político, jurídico e econômico, no sistema liberal a esfera pública ainda é o espaço por excelência de resistência e de constituição da diversidade de opiniões dos diversos segmentos da sociedade civil1 1 “O nexo estreito entre cidadania autônoma e esfera privada intacta revela-se claramente, quando a comparamos com as sociedades totalitárias onde existe o socialismo de Estado. Nelas, um panóptico controla diretamente a base privada dessa esfera pública. Intervenções administrativas e supervisão constante desintegram a estrutura comunicativa do dia-a-dia na família, na escola, na comuna e na vizinhança. A destruição de condições vitais solidárias e a quebra da iniciativa e da independência em domínios que se caracterizam pela super-regulação e pela insegurança jurídica, implicam aniquilamento de grupos sociais, de associação e de redes, a dissolução de identidades sociais através de doutrinação, bem como o sufoco da comunicação pública espontânea, de entendimento, como nos privados. E quanto mais se prejudica a força socializadora do agir comunicativo, sufocando a fagulha da liberdade de comunicação nos domínios da vida privada, tanto mais fácil se torna formar uma massa de atores isolados e alienados entre si, fiscalizáveis e mobilizáveis plebiscitariamente (HABERMAS, 1997, Vol II: 101-102)”. Mais adiante, embora Habermas aponte os limites do liberalismo, percebe nele vantagens se comparado ao modelo totalitário: “(...) é preciso lembrar que, na esfera pública, ao menos na esfera pública liberal, os atores não podem exercer poder político, apenas influência. E a influência de uma opinião pública, mais ou menos discursiva, produzida através de controvérsias públicas, constitui certamente uma grandeza empírica, capaz de mover algo. Porém, essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transforma-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões políticas. Ora,a soberania do povo, diluída comunicativamente, não pode impor-se apenas através do poder dos discursos públicos informais – mesmo que eles tenham se originado de esferas públicas autônomas. Para gerar um poder político, sua influência tem que abranger também as deliberações de instituições democráticas da formação de opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada (Idem: 105)”. .

Como ele mesmo observa:

o poder do Estado só adquire uma figura institucional fixa na organização das funções das administrações públicas. Peso e abrangência do aparelho do Estado dependem da medida em que a sociedade se serve do medium do direito para influir conscientemente em seus processos de reprodução. (...) O poder público só pode desenvolver-se através de um código jurídico institucionalizado na forma de direitos fundamentais (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vols. I/II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997.: p. 171).

O Direito moderno para Habermas é o elemento central na fundação do poder do Estado. Não é a forma do direito que legitima o exercício do poder político, mas sim a ligação com o direito legitimamente estatuído. Daí se percebe o quanto a normatividade do Direito atravessa o Estado moderno como um tecido. Não se pode pensar na legitimidade do poder do Estado moderno sem que haja a normatividade do Direito que legitime esse poder.

Segundo Habermas,

Somente na modernidade o poder político pode desenvolver-se como poder legal, em formas do direito positivo. (...) O direito não se objeta simplesmente em normas de comportamento, pois serve à organização e à orientação do poder do Estado (IDEM, p. 182-183).

O liberalismo de Habermas fica nítido em sua definição sobre o Estado de Direito moderno. Ele segue a máxima liberal de que o Estado de Direito é a antítese do Estado autoritário, e o direito, ao fundamentar as ações do Estado, impede que este ultrapasse os seus limites e assim garante com uma “redoma”, as garantias de liberdade dos indivíduos. O direito moderno seria para Habermas (convergindo com Hannah Arendt) 2 2 Vide o texto de Habermas (1980)“O Conceito de poder de Hannah Arendt”. a renúncia à violência, e nesse aspecto o poder comunicativo cumpriria um papel central na modernidade.

De acordo com Habermas,

na linha da teoria do discurso, o princípio da soberania do povo significa que todo o poder político é deduzido do poder comunicativo dos cidadãos. O exercício do poder político orienta-se e se legitima pelas leis que os cidadãos criam para si mesmos numa formação da opinião e da vontade estruturada discursivamente (IDEM, p. 213).

Para Habermas, cada individuo é portador da soberania que se materializa a partir da prática discursiva, e, assim, forma com essa intersubjetividade a vontade soberana na qual o Estado de Direito incorpora para si, e desse modo legitima o poder político.

No Brasil, Werneck Vianna com certeza é a expressão intelectual que mais se debruçou sobre o tema da judicialização, e foi quem mais fez uma defesa elaborada do que ele denomina de “democracia jurisdicional”, que tem na magistratura a sua principal representação do alargamento democrático. Para Werneck Vianna, a emergência do “Terceiro Gigante”, o judiciário, deve-se ao constitucionalismo democrático que conduziu a uma crescente expansão do âmbito de intervenção do Poder Judiciário sobre as decisões dos demais poderes, pondo em evidência o novo papel desse Poder na vida coletiva, o que justificaria o “uso do da expressão ‘democracia jurisdicional’ como designação política do Ocidente desenvolvido” (VIANNA, 1997: p.30).

Werneck Vianna define a judicialização da política como o processo no qual se indica a capacidade do Poder Judiciário de garantir os direitos fundamentais, mas isso aconteceu pelo fato de que a judicialização da política estaria sendo favorecida por um conjunto de variáveis contextuais, cuja presença variaria, em alcance e em intensidade, segundo as características histórico-sociais de cada país, mas que tendencialmente deveriam encontrar expressão homogênea nisso que se pode qualificar como Ocidente político. Tais variáveis poderiam ser agrupadas com base em dimensões institucionais, em aspectos referidos à prática social e em situações conjunturais, a exemplo da institucionalização de uma ordem democrática, já que os defensores do fenômeno da judicialização apontam a inexistência desse fenômeno nos países de regimes autoritários, a despeito de alguns - como Garapon (1999)GARAPON, Antoine. O juiz e a democracia. Rio de Janeiro: Ed. Revan, 1999. – apontarem uma ameaça à soberania popular; além disso, deve haver a necessidade da separação dos Poderes e da independência do Judiciário; e, por fim, a existência de uma Constituição que explique direitos e valores, os quais possam ser invocados em defesa dos indivíduos e grupos que se sintam prejudicados pela vontade da maioria (IDEM, cf. p. 31).

Numa leitura otimista quanto à inserção política da magistratura como garantidor da ordem democrática, e da materialização da justiça, Vianna afirma que

o Judiciário, quer como ator coletivo, quer por meio da ação heroica e compadecida do juiz individual, abandona seu canto neutro e se identifica com a preservação dos valores universais em uma sociedade que cada vez menos se reconhece no seu Estado, em seus partidos e no seu sistema de representação (IDEM, p. 39).

Convergindo com Ferejohn, Werneck Vianna também pontua que essa mudança no Judiciário ocorre depois do fim da II Guerra, mas sobretudo se acentua a partir da crise do Welfare State que se inicia em meados dos anos 1970, e à medida em que essa crise se acentua nos anos subsequentes, cada vez mais aumentou a demanda ao Judiciário na resolução dos conflitos devido às perdas sociais que vão aumentando com a emergência do modelo neoliberal. Como ele afirma numa passagem de seu livro A judicialização da política e das relações sociais no Brasil “o Poder Judiciário surge como uma alternativa para a resolução de conflitos coletivos, para a agregação do tecido social e mesmo para a adjudicação de cidadania, tema dominante na pauta da facilitação do acesso à Justiça” (VIANNA, 1999VIANNA, Luiz Werneck; BURGOS, Marcelo Baumann. A judicialização da política e das relações sociais no Brasil. Rio de Janeiro: Revan, 1999. , p.22). O Poder Judiciário torna-se uma nova arena pública externa ao circuito clássico “sociedade civil – partidos – representação – formação da vontade majoritária, consistindo num novo problema para a teoria clássica da soberania popular. Como ele observa

nessa nova arena, os procedimentos políticos de mediação cedem lugar aos judiciais, expondo o Poder Judiciário a uma interpelação direta de indivíduos, de grupos sociais e até de partidos (...), em um tipo de comunicação em que prevalece a lógica dos princípios, do direito material, deixando-se para trás as antigas fronteiras que separavam o tempo passado, de onde a lei geral e abstrata hauria o seu fundamento, do tempo futuro, aberto à infiltração do imaginário, do ético e do justo (IDEM, p. 23).

Contudo, nos últimos anos a atuação da magistratura e do Ministério Público tem sofrido sérias críticas devido a certo grau de parcialidade em suas operações contra a corrupção, a exemplo da denominada Operação Lava-Jato, com seus diversos setores, incluindo operadores do direito como procuradores da República e de Justiça, e mesmo magistrados. Esses operadores da justiça estatal são criticados pela aplicabilidade de uma justiça seletiva na qual punem lideranças do campo da esquerda, ou envolvidas nos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), e omitem as representações políticas dos partidos de direita, ou que estejam vinculadas ao Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB). Ademais o Ministério Público tem se destacado em perseguir a atuação de agentes públicos vinculados a partidos políticos de esquerda, militantes sindicais e de movimentos sociais, ou de juízes que negam direitos a presos políticos que sofreram torturas durante o período da ditadura militar, e usa como recurso judicial argumentos ultraconservadores de teor anticomunista e religiosos. Além disso, esses operadores do Direito estatal representam a mais alta camada da burocracia do Estado capitalista ao receberem salários de alto valor, e muitas vezes ultrapassando o teto dos limites do salário público, formando assim uma “casta” privilegiada de forte conotação corporativa.

Isso nada soa estranho à perspectiva marxista que define o Direito a partir da questão da dominação de classes. Se para o liberalismo o Direito possui uma neutralidade e constitui um elemento de garantia aos cidadãos contra a violência estatal, para o marxismo o Direito é o elemento central na justificação e legitimidade do poder de Estado no emprego de sua força contra os elementos classificados como rebeldes ou “subversivos”.

Marx desde os seus trabalhos na fase de sua juventude, especificamente desde 1843 nas obras Crítica da Filosofia do Direito de Hegel, e A Questão Judaica (esta em 1844), já se mostrava reticente quanto à universalidade do Direito, especialmente dos chamados direitos humanos. Contudo, à medida que a sua obra foi se desenvolvendo e formando um corpo científico ao desenvolver o conceito de modo de produção capitalista, Marx destaca a importância do Direito no campo da superestrutura no seu texto conhecido como Prefácio de 1859. E na sua obra máxima - O capital -, Marx aponta a função determinante do Direito na acumulação de capital e no desenvolvimento do modo de produção capitalista ao ser empregado como recurso ao uso da força da burguesia industrial sobre a classe trabalhadora, estivesse esta ou não empregada. Essa hostilidade legal à classe trabalhadora, de acordo com Marx, já tinha se iniciado desde os primórdios do capitalismo com o Estatuto dos Trabalhadores de Eduardo III em 1349, e viria a se manter e se aprimorar no decorrer dos anos, a exemplo do estatuto de 1360 no qual agravou as penas e até mesmo autorizava o patrão a recorrer à coação física para extorquir trabalho pela tarifa legal de salário. A coalizão de trabalhadores foi considerada crime grave, desde o século XIV até 1825, ano da abolição das leis anticoalizão. Como o próprio Marx observa nessa passagem “o Espírito do Estatuto dos Trabalhadores de 1349 e de seus descendentes se revela claramente no fato de que um salário máximo e ditado pelo Estado, mas de forma alguma o mínimo” (MARX, 1984MARX, Karl. O capital, Vol.1 Tomo 2. São Paulo: Abril Cultural, 1984.: p. 278).

A lei não efetiva a justiça, e tampouco uma suposta universalidade de seus princípios a todos os indivíduos, mas sim a garantia da reprodução das relações de poder econômico, político e ideológico, em suma, a reprodução das relações de produção. Essa é uma clara demarcação de descontinuidade de Marx (e do marxismo) com o projeto iluminista burguês. A racionalidade do Direito moderno garante e defende certos indivíduos, ou seja, determinadas classes sociais centradas na propriedade e na exploração sobre uma larga parcela de contingentes dominados pelo capital, a classe trabalhadora3 3 Negri faz uma observação bem precisa em seu livro O poder constituinte quando afirma que Marx em O capital demonstra ao longo de sua exposição no capítulo XXIII como foi fundamental o par direito-violência na constituição da acumulação capitalista. De acordo com Negri “o poder constituinte moderno é estudado, por Marx em O capital. Nesta obra, Marx enfrenta o enigma da violência imaginária que constitui a ordem social e política – um duplo problema, aberto, à identificação da violência fundadora e, de outro, à sua função ordenadora” (NEGRI, 2002: p. 356). .

A despeito das leis contra as coalizões terem sido findadas em 1825, Marx observa que caíram apenas em parte, pois certos resíduos dos velhos estatutos desapareceram somente em 1859. Em 29 de junho de 1871

o ato do Parlamento pretendeu eliminar os últimos vestígios dessa legislação de classe, por meio do reconhecimento legal das Trades Unions. Mas um ato do Parlamento, da mesma data, restabeleceu, de fato, a situação anterior sob nova forma. Por essa escamoteação parlamentar, os meios de que os trabalhadores podem se servir em uma greve ou lock out (greve dos fabricantes coligados mediante fechamento simultâneo de suas fábricas) foram subtraídas ao direito comum e colocados sob uma legislação penal de exceção, cuja interpretação coube aos próprios fabricantes em suas qualidades de juízes de paz (IDEM, p. 279).

Marx, com efeito, não desenvolveu uma teoria sistemática sobre o Direito, embora deixe clarividente a posição fundamental do Direito na acumulação capitalista e o seu papel central da legitimação do uso da força pelo Estado. Mas Engels também deu a sua contribuição à problemática do Direito na teoria marxista. Em colaboração com Kautsky escreveu o texto Socialismo jurídico em 1887. Nesse pequeno texto Engels já apontava o deslocamento do Direito teológico/sagrado pelo Direito burguês de teor racional/formal (antecipando-se a Weber e a Poulantzas quanto a essa questão). E esse deslocamento legitimou racionalmente e de forma impessoal, por meio do Estado, as relações econômicas e sociais que até então estavam fundamentadas pelo Direito teológico.

O Direito, como observa Engels, tem um efeito ilusório quanto a sua universalidade ser estendida à classe trabalhadora. Numa passagem desse texto, ela aponta esse limite do Direito moderno

A classe trabalhadora (...) não pode exprimir plenamente a própria condição de vida na ilusão jurídica da burguesia. Só pode conhecer plenamente essa mesma condição de vida se enxergar a realidade das coisas, sem as coloridas lentes jurídicas. A concepção materialista da história de Marx ajuda a classe trabalhadora a compreender essa condição de vida, demonstrando que todas as representações dos homens – jurídicas, políticas, filosóficas, religiosas, etc. – derivam em última instância, das condições de vida do próprio homem e do modo de produzir e trocar os produtos. Está posta com ela a concepção de mundo decorrente das condições de vida e luta do proletariado; da privação da propriedade só podia decorrer a ausência de ilusões na mente dos trabalhadores (ENGELS; KAUTSKY, 1995ENGELS, Friedrich; KAUTSKY, Karl. O socialismo jurídico. São Paulo: 1995.: p. 27).

Essa relação entre Estado, Direito e violência legal no modo de produção capitalista será de fato sistematizada pela primeira vez por Pachukanis4 4 Tem sido notável o interesse da obra de Pachukanis em anos recentes no Brasil, graças a um conjunto de pesquisadores que vêm desenvolvendo pesquisas sobre a sua obra a exemplo de Márcio Bilharinho Naves, Alysson Mascaro, Celso Naoto Kashiura Jr., Silvia Alapanian entre outros. no seu livro clássico A teoria geral do direito e o marxismo de 1924. Partindo dos pressupostos já esboçados por Marx e Engels, Pachukanis aprofunda em sua exposição a relação do Estado capitalista com o Direito moderno e o exercício da violência legal para a reprodução do capital. O Direito moderno tem como base as formas mercantis, i.e., as categorias econômicas de Marx são aplicáveis às categorias jurídicas. Em sua universalidade aparente, dissimulada pelo discurso jurídico, elas exprimem um aspecto determinado da existência de um sujeito histórico determinado: a produção mercantil da sociedade burguesa.

Antecipando-se a Poulantzas, Pachukanis afirma o papel fundamental do Direito no conjunto das relações de produção: o Direito regulamenta as relações sociais. E daí a importância do Estado nesse cenário do modo de produção capitalista, haja vista que o Estado como dominação política de classe, surge pelas relações de produção e de propriedade determinadas. As relações de produção e a sua expressão jurídica formam a sociedade civil, na acepção que Marx lhe dá no Prefácio de 1859, definida como o terreno onde se dá o relacionamento dos possuidores de mercadorias, as relações materiais de vida, e também inclui as relações jurídicas e o Estado burguês para além das relações de produção econômica.

Nessa passagem de oposição à dogmática em jurídica formal de Kelsen, para quem o Estado é reduzido às normas jurídicas, Pachukanis afirma que

O caminho da relação de produção para a relação jurídica ou relação para a relação de propriedade, é mais curto do que imagina a assim chamada jurisprudência positivista, que não pode passar sem o elo intermediário: o poder de Estado e suas normas. O homem que produz em sociedade: eis a premissa de que provém a teoria econômica. Dessa mesma premissa fundamental deveria provir a teoria geral do direito, uma vez que ela lida com definições fundamentais. Assim, a relação econômica de troca, por exemplo, deve estar presente para que surja a relação jurídica do contrato de compra e venda. O poder político pode com auxílio da lei regular, substituir, condicionar e concretizar, dos modos mais diversos, a forma e o conteúdo desse negócio jurídico, com a ajuda das leis. A lei pode, de modo mais detalhado, definir o que pode ser comprado e vendido, como, em que condições e por quem (PACHUKANIS, 2017PACHUKANIS, Eugeni. A teoria geral do direito e marxismo e ensaios escolhidos 1921-1929. São Paulo Sundermann/Idéias Baratas, 2017. p. 119-120).

Em oposição à perspectiva liberal que vê o Direito como o dique de contenção à força/violência, Pachukanis (e nesse aspecto converge com Kelsen) afirma peremptoriamente que a despeito do Direito e o arbítrio serem conceitos aparentemente opostos, na realidade são estreitamente vinculados entre si. O Direito torna-se a base de legitimação por meio das leis da ação arbitrária o Estado sobre as classes dominadas. O Direito racionaliza as ações do Estado, inclusive fornecendo o princípio da razão do Estado. O discurso dogmático positivista, contudo, busca mostrar que o Estado paira acima dos indivíduos, das classes sociais, dos conflitos sociais. E isso significa afirmar que existe uma neutralidade axiológica dos agentes estatais. Como ele observa, ao lado da dominação de classe direta e imediata constitui-se uma dominação mediata, refletida sob a forma do poder oficial do Estado enquanto poder particular destacado da sociedade. O Estado não estaria situado fora dos conflitos sociais, e nem estaria situado acima das classes já que o aparelho de Estado foi criado pela classe dominante, em suma, o Estado é o resultado da vitória de uma das classes5 5 Como observa Márcio Bilharinho Naves em seu estudo sobre Pachukanis “se o Estado é a esfera de existência exclusiva da política – lugar de representação dos interesses gerais -, e se a sociedade civil é o lugar onde habitam os interesses particulares, o acesso à esfera do Estado só pode ser franqueado pelos indivíduos despojados de sua condição de classe – posto que a condição de pertencer a uma classe social não pode ser reconhecida pelo Estado -, e qualificados por uma determinação jurídica: o acesso ao Estado só é permitido aos indivíduos na condição de cidadãos” (NAVES, 2008: p. 82). .

Assim sendo, a dominação de classe não aparece de forma imediata já que se esconde na aparência de uma forma institucional “neutra”, formal, impessoal e racional. E essa é a função da ideologia jurídica. De acordo com Pachukanis

Se quisermos esclarecer as raízes de uma ideologia, devemos buscar as relações reais que ela reflete; nesse ponto, aliás, deparamo-nos com a distinção radical que existe entre a interpretação teológica e a interpretação jurídica do poder de Estado. Na mesma medida em que, no primeiro caso – a deificação do poder -, lidamos com um fetichismo em estado puro e, consequentemente, nas representações e conceitos correspondentes não conseguiremos revelar nada além de uma duplicação ideológica da realidade, ou seja, das relações factuais de dominação e de servidão, a concepção jurídica é apenas uma concepção unilateral, e suas abstrações expressam um dos aspectos do sujeito realmente existente, ou seja, da sociedade produtora de mercadorias (IDEM, p.171).

O Direito no Estado capitalista então cumpriria uma função de manutenção da ordem pública e social ao garantir, por meio das leis, a defesa da propriedade e o controle das classes dominadas. Desse modo, a expansão da judicialização, ainda que incorpore pontualmente algum direito de setores marginalizados e dominados, em última instância a sua função precípua é a reprodução das relações sociais de produção, e os operadores do Direito estatal, ainda que haja em forma individual pessoas comprometidas com a transformação social, a maioria desse contingente ainda estaria a serviço dos interesses e da manutenção dessas relações de poder, formando, desse modo, uma camada burocrática de poder e de privilégios dentro do aparelho de Estado.

Vejamos na seção seguinte o desenvolvimento das teses marxistas do Direito no pós II Guerra em sua crítica à perspectiva liberal e neoinstitucionalista do direito e do Estado.

2) A contribuição marxista no pós II Guerra: para além dos limites do liberalismo

Como vimos na seção anterior, o marxismo marca uma descontinuidade com relação à perspectiva liberal, no que concerne à crença destes de que o Direito seria uma “redoma” de defesa do corpo e do pensamento dos indivíduos em relação ao poder arbitrário, na ampliação dos direitos e da cidadania, e essas mudanças e garantias teriam nas instituições modernas (Legislativo, Executivo e, mais recentemente, no Judiciário), o espaço por excelência da garantia e da formação dos novos direitos. Como vimos em Marx, Engels e Pachukanis, o Direito se apresenta numa universalidade abstrata, mas em sua materialidade tem como função a garantia da ordem com os segmentos rebeldes oriundos das classes e grupos dominados, na legitimidade no uso da força pelo Estado para garantir os direitos das classes dominantes, na reprodução das relações de produção, e na constituição do processo de acumulação de capital. Ademais, o Direito moderno tem como base o processo de produção que cria as categorias jurídicas, mas que é ocultada no momento da circulação quando essas categorias assumem a forma do Direito. Por isso, nada mais ilusório do que a afirmativa de que a judicialização seria uma nova expressão da democracia moderna, e de que os operadores do Direito estatal estariam representando os interesses republicanos e populares.

A partir do Pós II Guerra, e especialmente depois do XX Congresso do PCUS, o debate teórico marxista ganhou novos rumos e fôlego, a exemplo da intervenção de Sartre com a sua obra Crítica à razão dialética, com a redescoberta de Gramsci, e com o surgimento da escola althusseriana. Althusser, com efeito, sacudiu o debate teórico marxista com a apresentação de novas questões no marxismo (como a ruptura epistemológica na obra de Marx em 1845), da aliança teórica com o chamado “estruturalismo francês” (a oposição ao humanismo teórico), pela introdução do pensamento Mao Tsé-Tung (com o conceito da pluralidade contraditória) e da psicanálise (sobredeterminação, sujeito, imaginário, relação especular), e da inovação de conceitos marxistas como a ideologia.6 6 Vide Por Marx e Ler o Capital de 1965, Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado de 1970 e Sobre a Reprodução publicado postumamente em 1995.

Embora Althusser não tenha escrito nenhum estudo sistemático ao conceito de Direito, ele deu uma contribuição direta a essa problemática em dois capítulos do seu manuscrito Sobre a reprodução de 1969, cujo artigo Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado foi extraído, mas infelizmente não continha a sua análise sobre a ideologia jurídica quando fora publicado. De qualquer forma, a sua teoria estava presente nas contribuições de Bernard Edelmann, Michel Mialle, Nicole Edith Tevénin e Nicos Poulantzas sobre a problemática do Direito. Em Poulantzas, por exemplo, é notável a sua influência sobre o conceito de ideologia jurídica no tocante a autonomia relativa, e das práticas da instância jurídica do modo de produção capitalista em seu livro Poder político e classes sociais de 1968.

Em Sobre a reprodução, Althusser define a especificidade da ideologia jurídica e de seu aparelho de Estado específico. O Direito formaria um sistema que tenderia à não contradição e à saturação internas. Isso se deve à formalidade do Direito que lhe proporciona e faculta a sua sistematicidade. A formalidade e a sistematicidade do Direito moderno constituem a sua universalidade formal: o Direito é válido, e pode ser invocado, por toda pessoa juridicamente definida e reconhecida como pessoa jurídica. E certamente em Althusser o Direito ocupa um papel relevante no conjunto das relações de produção no capitalismo. E o Direito embora exprima as relações de produção não há em seu sistema qualquer menção às relações de produção; pelo contrário, as escamoteia.

Também indo na contramão do pensamento liberal, o Direito é definido pelo seu aspecto repressor, e no sentido de que não poderia existir sem um sistema correlativo de sanções. Para haver um Código Civil é necessário a existência de um Código Penal. E para isso é preciso a existência de um aparelho especializado na prática repressiva. Como diz Althusser

quem diz obrigação diz sanção; quem diz sanção diz repressão, portanto, necessariamente aparelho de repressão. Esse aparelho existe no Aparelho repressor de Estado no sentido estrito da expressão. Chama-se: corpo de polícia, tribunais, multas e prisões. É por esse motivo que o direito faz corpo com o Estado” (ALTHUSSER, 1999ALTHUSSER, Louis. Sobre a reprodução. Rio de Janeiro: Vozes, 1999.: p. 91).

Se há um aparelho específico, necessário também haver uma ideologia do Direito burguês. Essa ideologia específica do Direito moderno é a ideologia jurídica e a ideologia moral. De acordo com Althusser, a ideologia jurídica é exigida pela prática do Direito, mas não se confunde com o Direito.

O Direito, por expressar a coerção por meio do Código Penal, atua diretamente no ARE a exemplo da polícia, tribunais, multas e prisões. Contudo, o Direito, enquanto coação não se confunde com a ideologia jurídica. A ideologia jurídica retoma realmente as noções de liberdade, igualdade e obrigações, e inscreve-as fora do Direito, i.e., fora do sistema de regras do Direito e de seus limites, em um discurso ideológico que é estruturado por noções completamente diferentes. Enquanto o Direito diz: os indivíduos são pessoas jurídicas juridicamente livres, iguais e com obrigações como pessoas jurídicas, a ideologia jurídica faz um discurso aparentemente semelhante, mas de fato completamente diferente. Ela diz: os homens são livres e iguais por natureza. Na ideologia jurídica é, portanto, a “natureza” e não o Direito que “fundamenta” a liberdade e igualdade dos “homens” (e não das pessoas jurídicas).

Como observa Althusser

A ideologia jurídica não diz que os homens têm obrigações por “natureza”: nesse ponto, ela tem necessidade de um pequeno suplemento, muito precisamente de um pequeno suplemento moral, o que significa que a ideologia jurídica só se mantém de pé apoiando-se na ideologia moral da “Consciência” e do “Dever”. (...) O direito é um sistema formal sistematizado, não contraditório e saturado (tendencialmente), que não tem existência própria. Ele se apoia, por um lado, em uma parte do Aparelho repressor de Estado e, por outro, na ideologia jurídica em um pequeno suplemento de ideologia moral (IDEM, p.94).

Althusser segue o terreno aberto por Pachukanis (não obstante este não seja citado no texto) quando afirma que o Direito burguês é universal no sistema capitalista em razão do jogo das relações de produção ser o jogo de um direito mercantil efetivamente universal, já que, em regime capitalista, todos os indivíduos são sujeitos de Direito e que tudo é mercadoria. Ademais, por meio do aparelho repressor de Estado (códigos, polícia, tribunais, prisões), o Direito intervém de forma direta não somente na reprodução das relações de produção, mas no próprio funcionamento das relações de produção, uma vez que sanciona e reprime as infrações jurídicas que aí se verifiquem.

Essa combinação de elementos ideológicos com repressores define o “Direito” como um aparelho ideológico de Estado, para Althusser, já que todo aparelho comporta tanto elementos ideológicos como repressivos, e isso faz com que o “Direito” tenha uma função específica nas formações sociais capitalistas. Segundo Althusser:

sua função específica dominante seria garantir não a reprodução das relações de produção capitalistas para a qual contribui igualmente (embora de maneira subordinada), mas assegurar diretamente o funcionamento das relações de produção capitalista. (...) o papel decisivo desempenhado nas formações sociais capitalistas pela ideologia jurídico-moral e as realização, ou seja, o Aparelho ideológico de Estado jurídico, que é o aparelho específico que articula a superestrutura a partir e na infra-estrutura (IDEM, p.192).

Essa análise de Althusser sobre a ideologia e os aparelhos ideológicos de Estado estará presente, juntamente com as teses de Pachukanis, e dessa vez explicitadas, na obra de Bernard Edelman.

Edelman segue a tese althusseriana de a ideologia constituir o sujeito sujeitado. Como ele mesmo afirma “a pessoa humana é juridicamente constituída em sujeito de direito, em ‘sempre – já sujeito’ independentemente da sua própria vontade” (EDELMAN, 1976EDELMAN, Bernard. O direito captado pela fotografia. Coimbra: Centelha, 1976: p. 28).

Isso significa dizer, seguindo a tese de Althusser, que toda ideologia, seja qual for, constitui discursivamente (por meio de sua prática ideológica, i.e, o discurso materializa a ideologia) os indivíduos em sujeitos que se reconhecem num Sujeito maior de forma especular. Significa dizer que se reconhece nesse Sujeito (Deus, Justiça, Democracia, Socialismo etc.) e nos outros sujeitos que se reconhecem nesse mesmo Sujeito.

Nessa passagem de seu livro O direito captado pela fotografia de 1973 ele delimita claramente essa questão da transformação em sujeito pelo discurso jurídico:

A sujeição do sujeito ao Sujeito permite-lhe simultaneamente legitimar o seu poder fora de si, e operar o regresso ao poder. Esta dupla “estrutura especular da ideologia” isto é, esta estrutura de espelho duplo, assegura o funcionamento da ideologia jurídica de um lado, o sujeito de direito existe em nome do direito, isto é, o Direito dá-lhe o seu poder; ainda melhor: ele dá ao direito o poder de lhe dar um poder; por outro lado, o poder que ele deu ao direito regressa a ele: o poder do direito não é senão o poder dos sujeitos de direito: o Sujeito reconhece-se a si próprio nos sujeitos. O poder (a propriedade) no poder (o Estado). O Estado ocupa, ideologicamente, este lugar, atribuído na Idade Média à Igreja. A Constituição de um Estado sujeito de direito assegura o funcionamento da ideologia jurídica (IDEM, p. 34-35).

Seguindo o terreno aberto por Marx de opor à perspectiva liberal uma concepção realista do Direito e do Estado, Edelman reafirma nesse livro o aspecto coativo do Direito no Estado capitalista. Como ele mesmo observa, todas as categorias que fundamentavam a noção de “sociedade civil” – propriedade privada, sujeito, vontade, liberdade, igualdade, - são “especificadas” pela ideologia jurídica. O sujeito é especificado em sujeito de direito; a produção do sujeito em produção do sujeito de direito; a liberdade e a igualdade em liberdade e igualdade de todo o sujeito de direito. Mas, no mesmo momento, esta especificação é coativa. O que quer dizer que, se a ideologia jurídica mais não faz do que especificar “juridicamente” a ideologia burguesa, no mesmo movimento esta especificação é realizada concretamente pela coação do caparelho de Estado. Portanto, o aparelho de Estado impondo o “jurídico” – enquanto manifestação real da ideologia jurídica – coativamente impõe a ideologia jurídica, e que a ideologia jurídica, em retorno, justifica a coação. Desse modo, a função do Direito se

manifesta realmente/ideologicamente, pela coação do aparelho de Estado, as determinações do valor de troca (propriedade/liberdade-igualdade). A manifestação real, nós chamamos o jurídico, à manifestação ideológica, a ideologia jurídica, o conjunto do processo ao Direito (IDEM, p. 142).

O Direito, portanto, tem uma função determinante no modo de produção capitalista no tocante à reprodução das relações de produção. O seu efeito ideológico é uma representação imaginária das relações reais de existência dos sujeitos que “vivenciam” esse imaginário. Alessandra Devulsky, numa das raras pesquisas sobre esse pensador francês, expõe esse papel reprodutor do direito:

É da “reprodução” e para a “reprodução” que o direito nasce. Junto dele, a sua instituição repressora maior – os tribunais; noutro lado, as casas legislativas que lhe forneceram sua base de trabalho. O conceito de reprodução é importante para a compreensão do direito em um sentido fundamental: o direito existente é o direito burguês, tendo por finalidade única, manter a divisão de classes em um ponto de equilíbrio que não cause mudanças dos titulares das propriedades e dos meios de produção, dando vazão, assim, ao seu caráter reprodutivo das relações de produção. Sem maiores contornos, nem os direitos “sociais”, tampouco as “garantias” fundamentais encontradas nas leis, são capazes de mudar a tônica de classe que estas têm. O direito não muda de lado; ele faz concessões para manter o fosso social necessário a fim de que haja lados (DEVULSKY, 2011DEVULSKY, Alessandra. Edelman: althusserianismo, direito e política. São Paulo: Alfa - Omega, 2011.: p. 86).

Em sua obra, A legalização da classe operária, de 1978, Edelman radicaliza mais essa sua crítica ao Direito moderno. O Direito burguês está longe de incorporar as reivindicações do operariado. Na verdade o Direito produz efeito disciplinador e controlador dos setores subalternos da sociedade. As vantagens obtidas pela classe trabalhadora estão dentro e circunscritas aos limites do Direito burguês. As vitórias da classe trabalhadoras estão a priori legitimadas no próprio Direito burguês, na sua expressão formal dos códigos, garantindo assim a impossibilidade de uma ruptura com as relações de produção. Há, assim, uma dominação das frações burguesas com os setores da classe operária engajados nas lutas sindicais, mas que se restringem ao campo do formalismo jurídico na obtenção de seus direitos. Isso significa afirmar que a greve só atinge a legalidade em certas condições, e essas condições são as mesmas que permitem a reprodução do capital.

Desse modo como o Direito moderno funciona dentro do modo de produção capitalista, a classe operária “não tem o direito” de usar seu poder fora dos limites da legalidade burguesa, que é, evidentemente, a expressão do poder de classe da burguesia. Não se trata, como Edelman afirma, de um conflito de direito. Trata-se de luta de classes: de um lado, o direito, inclusive o direito de greve; de outro, o “fato” das massas, isto é, a greve; de um lado o poder legal; de outro, um poder bruto, elementar, não organizado. Portanto, tudo que não é jurídico é perigoso, porque pertence ao domínio do “inominável”, do obscuro, do não dito, do desclassificado.

Destarte, a burguesia “apropriou-se” da classe operária; impôs seu terreno, seu ponto de vista, seu Direito, sua organização de trabalho, sua gestão. O sindicato ainda que seja um espaço de reprodução, e de limitação pela regulação do Direito moderno, não significa que esteja ausente resistência e conflitos internos. Segundo Edelman

As massas não “obedecem” aos sindicatos da mesma maneira como os funcionários obedecem a seus superiores, ou os militantes à linha de seu partido. Sim, porque a burguesia contaminou a organização operária; intimou-se a transformar-se em burocracia, funcionando segundo o modelo do poder burguês; intimou-a a “representar” a classe operária segundo o esquema burguês da representação. (...) a burguesia tentou – e, de certo modo conseguiu - negar às massas qualquer existência fora da legalidade. (...) a classe operária não é “representável”: não constitui um corpo – como a nação ou o povo -, é uma classe que conduz a luta de classes. Sua existência de classe e “extralegal”, “inapreensível”. Ela não pertence a “ninguém”, senão a ela mesma ou a sua própria liberdade. É por isso que sua organização é, por essência, contraditória. De um lado, o sindicato funciona como um aparelho ideológico de Estado; de outro, o que nele se produz o destrói como aparelho (EDELMAN, 2016_________________. A legalização da classe operária. São Paulo: Boitempo, 2016., p. 111-112).

Edelman faz uma precisa articulação da teoria de Althusser com a pioneira análise de Pachukanis sobre o Direito e o Estado capitalista. Retomando A CONTRIBUIÇÃO de Marx exposta em sua Crítica ao programa de Gotha, e avançando, reconhecem que o Direito estaria presente na fase da transição da Ditadura do Proletariado, haja vista que as lutas de classes não desapareceriam, e tampouco a desigualdade. Mas com o fim do Estado, o Direito não teria sentido. Haveria direitos, mas o Direito na sua forma secular que inclusive antecede ao Estado moderno: o Direito como o discurso e prática reprodutora e coativa. Isso demarca radicalmente com a perspectiva liberal que define uma permanência constante do Direito (para os liberais menos num modelo político “autoritário”), pois não há por parte dessas perspectivas uma defesa do fim do Estado. Para o marxismo, soaria contraditório numa sociedade comunista com o fim do Estado a permanência do Direito. Há, assim, uma convergência da perspectiva da escola althusseriana com a de Pachukanis nesse aspecto, por meio da obra de Edelman.

Antonio Negri também vai ao encontro do marxismo em sua crítica ao Direito na perspectiva liberal. E em muitos aspectos converge com a escola althusseriana da qual ele teve aproximação desde os anos 1970. Em seu Poder constituinte de 1992, no capítulo “O desejo comunista e a dialética restaurada”, Negri disseca, partindo das análises de Marx n’O capital, o papel do Direito – e do emprego da violência – na acumulação do capital. Isso demarca claramente uma oposição à concepção liberal do Direito moderno como antitético à coerção. Distintamente dessa máxima liberal, o Direito é a própria violência estatal das classes dominantes sobre as classes dominadas na obtenção da maximação do lucro e da manutenção da ordem burguesa.

Conforme observa Negri, com a violência, o capital foi conquistando as condições de desenvolvimento “capitalista”, através da polarização do mercado entre dois tipos de mercadoria: de um lado, o trabalhador “livre”; do outro, as condições de realização do trabalho. A violência é, portanto, o dado constante do processo, violência que se determina no estabelecimento e na manutenção da “alienação” do trabalhador. A violência é o dado constituinte, dado e continuidade, fato e organização, efetividade e validade. Ela começa a assumir formas jurídicas no mesmo momento em que é exercida com maior intensidade – revestindo-se ou despindo-se de “rótulos jurídicos”. E “quando consumada a expropriação, a acumulação é então experimentada como primeira ‘organização’ do capital no novo modo de produção, a lei – expressão direta da violência revolucionária da burguesia – assume um papel proeminente” (NEGRI, 2003: p. 358).

A violência constitui, assim, a mediação entre a acumulação e o Direito, e não se furta de assumir formas jurídicas, i.e, a fazer do Direito um elemento auxiliar da acumulação. Para Negri, Marx define o Direito como superestrutura imediata da violência, como processo de refinamento desta violência. A violência fabrica o Direito, mas o direito – enquanto violência fabricada – recobre o real. Desse modo, o Direito capitalista não aparece como ele é de fato no real: é um simulacro. E nesse ponto a divisão entre o marxismo e o liberalismo é total. O Direito encobre os seus aspectos de violência ao ser reproduzido discursivamente como o “outro” da violência, não obstante contenha dentro de si todos os dispositivos da violência burguesa formalizada em códigos, e de uma suposta neutralidade axiológica.

Negri explicita bem essa problemática nessa seguinte passagem

A violência que fabrica o direito apresenta-se, então, como força real e estrutural, isto é, como força constitutiva. Longe de se restringir a forma do processo, ela se expande e frutifica na relação real que os homens mantêm entre si na produção. Ela produz os próprios produtores. (...) A violência imediata da exploração e a superestrutura jurídica tornam-se violência mediata e ordem interna do processo de produção. A lei, isto é, a forma da violência, torna-se máquina, ou melhor, procedimento permanente de sua ordenação, sua renovação constante e sua disciplina rígida (IDEM, p.362).

Em uma obra posterior a O poder constituinte, intitulada O trabalho de Dioniso: para uma crítica ao Estado pós-moderno, de 1994 (em parceria com Michael Hardt), Negri apresenta uma intensa e sistemática crítica ao pensamento liberal contemporâneo (especialmente a John Rawls), mas também ao Estado neoliberal. Com feito, Negri implode a doxa neoliberal do “Estado mínimo”: no neoliberalismo o Estado não enfraquece, pelo contrário, ele se fortalece especialmente no aspecto repressor. Como ele observa nessa passagem

O projeto neoliberal comporta um incremento substancial da intervenção estatal, tanto em termos de dimensão quanto de poder. O desenvolvimento do estado neoliberal não conduziu a uma forma “enxuta” de domínio que tende ao progressivo esvaziamento do Estado como personagem social. Pelo contrário: o Estado se tornou um sujeito mais forte. A “liberalização” não incluiu a descentralização do poder nem uma redução do Estado: o que aconteceu foi a reafirmação cada vez mais decidida, dos poderes essenciais do Estado (NEGRI e HARDT, 2004______________; HARDT, Michael. O trabalho de Dionisio. Rio de Janeiro/Juiz de Fora: Pazulin/UFJF, 2004.: p. 85-86).

Negri destaca que o projeto político neoliberal ia ao encontro da teoria liberal pós-moderna (Rawls, Rorty, Vattimo) no sentido de excluir a categoria de trabalho na constituição e, consequentemente, deslocar o contrato social do Estado do bem-estar social do seu centro de mediação e negociação. Enquanto essa operação leva a teoria liberal a propor uma concepção de Estado exíguo e de sujeito fraco7 7 “Na teoria liberal pós-moderna, o poder do Estado não é exercido segundo um paradigma disciplinar – para citar Foucault. (...) O poder do Estado aqui não se confronta com os sujeitos sociais, ou seja, não assume o dever de enfrentar, mediar e organizar as forças em conflito dentro dos limites da ordem. O Estado enxuto evita esses ônus; a sua vocação para evitá-los caracteriza a política ‘liberal’. Essa é a linha de raciocínio que estende a concepção enxuta do Estado até transformá-la em uma concepção enxuta da política. A política, em outras palavras, não pressupõe a mediação dos conflitos sociais e das diferenças, mas consiste simplesmente na tentativa de evitá-los” (IDEM, p.78). , a prática neoliberal, ao contrário, move-se na direção oposta: reforçar e expandir o Estado como sujeito forte e autônomo que domina o espaço social no âmbito dos gastos públicos, mas também na atividade jurídica e policial.

A despeito do discurso liberal clássico, os gastos do Estado, e a intervenção do Estado na atividade de mercado efetivamente cresceram. O neoliberalismo não pôde responder à crise econômica com a dispersão e a descentralização do poder estatal, mas teve de promover, pelo contrário, uma concentração e um reforço de autoridade sobre as instâncias econômicas e sociais. Enquanto os cortes na área social eram reduzidos ao mínimo, a expansão dos gastos estatais nas novas áreas era enorme, em particular no que concerne aos gastos militares. Houve, assim, uma reestruturação dos gastos. O neoliberalismo estadunidense manteve as estruturas e os poderes econômicos criados em cinquenta anos de políticas de bem estar social, limitando-se a desviá-las para outros fins.

Essas mudanças também vão afetar o poder judiciário nos EUA na era Reagan, de acordo com Negri. Com uma série de nomeações na Corte Suprema, Departamento de Justiça e Cortes Federais. Promoveram, desse modo, um novo paradigma de interpretação constitucional tendenciosa e de ativismo social: o ativismo liberal (no sentido progressista estadunidense) foi substituído pelo ativismo conservador. Os efeitos mais graves desse ativismo se deram na esfera da mulher, no que diz respeito à reprodução, desde a lei que obriga os médicos a darem informações sobre o aborto até o próprio direito de abortar. Portanto, exatamente da mesma maneira como os gastos públicos foram mantidos e reconvertidos, também o poder judiciário foi mantido e redirecionado para novos fins, a despeito da retórica do Estado enxuto e não-ideológico (IDEM. cf. p.87).

O Estado neoliberal nos EUA cristalizou, como visto acima, o crescimento da tendência conservadora nas instâncias jurídicas, e uma dessas consequências foi o desprezo pelo princípio estabelecido pela quarta emenda constitucional que proíbe o Estado de efetuar inspeções e detenções “irracionais”, o que foi drasticamente limitado, enquanto os poderes de polícia foram ampliados. O suspeito é definido quase exclusivamente com base em parâmetros raciais e culturais. Esse ataque à quarta emenda, segundo Negri e Hardt, coincide até certo ponto com uma nova institucionalização do racismo nos Estados Unidos. Desse modo, esse declínio da Declaração de Direitos iniciada na era Reagan deu densidade ao tradicional projeto federal de reforço dos poderes do Estado contra o perigo de “desordem social”. Para Negri e Hardt o crescente militarismo, tanto no terreno nacional quanto no exterior, e o crescente recurso a uma política de alarmismo social, medo e racismo mostram a emergência de alguns elementos fascistas do Estado e a tendência à instituição de um Estado de polícia (IDEM, cf. 88).

Nesse aspecto, a atual conjuntura política brasileira, - sobretudo desde 2013 – tem sido marcada pela ascensão da ideologia conservadora em diversos segmentos sociais, particularmente na chamada classe média, e isso tem sido cada vez mais expresso pelas ações de juízes e de procuradores de justiça em relação aos políticos e organizações políticas de esquerda, e das ações repressoras da polícia sobre os movimentos sociais dos trabalhadores rurais e sem teto, e no controle e na repressão nas áreas de moradia da classe trabalhadora, principalmente sobre a população negra e mestiça.

Em meio a esse debate sobre as ações arbitrárias do Estado capitalista por meio de ações judiciais, e do protagonismo conservador de juízes e membros do Ministério Público, e que tem sido classificado como a materialização do Estado de Exceção de acordo com definição de Agambem (2013), Poulantzas já tinha contribuído com esse tema em 1978 em sua derradeira obra O Estado, o poder, o socialismo com o conceito de estatismo autoritário. Além desse conceito, Poulantzas sistematiza nessa obra a relação do par violência/direito indo de encontro não somente à perspectiva liberal clássica, mas também à corrente eurocomunista que defendia o jogo das regras políticas da democracia liberal moderna e do Estado de Direito, além das análises de Foucault que dissipava o aspecto coativo físico do Direito – e enfatizava mais o aspecto disciplinar – do Estado capitalista.

A problemática do Direito sempre esteve presente na obra de Poulantzas desde a sua fase inicial com o livro Natureza das coisas e do direito ainda influenciado pela filosofia sartreana. Ao se aproximar da escola althusseriana, e expressa essa influência em seu livro Poder político e classes sociais, a problemática do Direito é bem destacada como um elemento determinante na articulação do Estado capitalista numa formação social concreta. Poulantzas enfatiza o efeito de isolamento da ideologia-juridica que constitui o individuo-cidadão em detrimento das classes sociais. O trabalhador não se vê como membro de uma classe, mas sim como um indivíduo portador de direitos formais.

Mas a relação do Direito com a violência, ou da função coativa do direito, será de fato tratada com mais rigor teórico na sua última obra. Poulantzas retoma a posição clássica do marxismo de associação do Direito com a violência estatal. Poulantzas converge inclusive com autores não marxistas como Kelsen e Schmitt no que diz repeito à concepção de que todo Estado é estruturado pelo Direito. O Estado de Direito não é o oposto do Estado autoritário (ou “totalitário”), de acordo com a posição de liberais como Bobbio e Berlin. A cisão entre o Direito e o Estado para Poulantzas é completamente falsa, sobretudo no Estado moderno cujo tipo de Estado, ao contrário dos Estados pré-capitalistas, detém o monopólio do uso da força, e principalmente o monopólio da guerra.

A lei é parte integrante da ordem repressiva e da organização da violência exercida por todo o Estado. Como diz Poulantzas “o Estado edita a regra, pronuncia a lei, e por aí instaura um primeiro campo de injunções, de interditos, de censura, assim criando o terreno para a aplicação e o objeto da violência” (POULANTZAS, 1978___________________. L’Etat, le Pouvoir et le socialisme. Paris: Press Universitaires de France, 1978.: p.84). A lei, portanto, é o código da violência pública organizada.

Segundo Poulantzas é uma completa ilusão as perspectivas que o poder moderno não se baseia mais na violência física8 8 É o exemplo de Foucault criticado por Poulantzas nesse livro, a despeito de reconhecer méritos na “analítica de poder” do filósofo francês. Como destaca Poulantzas, “Há em Foucault a subestimação do papel da lei, ao menos no exercício do poder no seio das sociedades modernas, e também a subestimação do papel do Estado, acompanhada de desconhecimento do lugar, no Estado moderno, dos aparelhos repressivos (exército, polícia, justiça etc.) enquanto dispositivos do exercício da violência física. São considerados somente como peças do dispositivo disciplinar que molda a interiorização da repressão pela normalização” (IDEM, 85). . Para Poulantzas, mesmo que essa violência não transpareça no exercício cotidiano no poder, como no passado, ela é mais do que nunca determinante. Sua monopolização pelo Estado induz as formas de domínio nas quais os múltiplos procedimentos de criação do consentimento desempenham o papel principal. E essa afirmativa de Poulantzas cada vez se fez mais presente com o nível de controle que se alcançou na atual conjuntura de tecnologia de informação, a exemplo da internet e câmaras de vigilância usadas pelos aparatos repressivos de Estado.

Poulantzas implode as ilusões liberais para quem a lei cumpre um papel sobretudo de caráter protetivo, constituída por princípios racionais a partir de um consenso de indivíduos, conforme o pensamento contratualista moderno. Contrariamente a essa perspectiva, Poulantzas define a lei como um conglomerado de interditos e de censura. Além do aspecto negativo da lei, Poulantzas afirma que a lei também emite injunções positivas (desde os primórdios do mundo greco-romano), na qual proíbe ou deixa fazer de acordo com a máxima de que é permitido; o que não é proibido pela lei. Por outro lado a lei também faz fazer, força a ações positivas em vista do poder, e obriga também a discursos dirigidos ao poder. A lei impõe o silêncio ou deixa dizer, é ela que frequentemente obriga a dizer. Para Poulantzas é falsa a dicotomia ente lei puramente negativa e lei puramente positiva, pois a lei organiza o campo repressivo como repressão daquilo que não se faz quando a lei obriga que se faça. Assim, a lei detém um papel importante (positivo e negativo) na organização da repressão ao qual não se limita; é igualmente eficaz nos dispositivos de criação do consentimento.

Antes de Agamben9 9 Para Agamben o Estado de Exceção é composto por uma “ilegalidade” legitimada legalmente: “o estado de exceção, enquanto figura da necessidade apresenta-se pois – ao lado da revolução e da instauração de fato de um ordenamento constitucional – como uma medida ‘ilegal’, mas perfeitamente ‘jurídica e constitucional’, que se concretiza na criação de novas normas (ou de uma nova ordem jurídica)” (AGAMBEN, 2011:p. 44). , Poulantzas já afirmava que todo sistema jurídico inclui a ilegalidade assim como comporta, como parte integrante de seu discurso, vazios e brancos, “lacunas da lei”:

Todo Estado é organizado em sua ossatura institucional de modo a funcionar (e de modo a que as classes dominantes funcionem) segundo a lei e contra a lei. Inúmeras leis não teriam existido em sua forma precisa se, com o apoio do conjunto de dispositivos estatais, uma taxa de violação das classes dominantes se houvesse sido descontada, isto é, inscrita nos dispositivos do Estado. A ilegalidade é frequentemente parte da lei, e mesmo quando ilegalidade e legalidade são distintas, não englobam duas organizações separadas, espécie de Estado paralelo (ilegalidade) e de Estado de direito (legalidade), e menos ainda uma distinção entre Estado caótico, um não-Estado (ilegalidade) e um Estado (legalidade). Ilegalidade e legalidade fazem parte de uma única e mesma estrutura institucional (IDEM, p.93).

Esse papel coativo e controlador da lei moderna é um dos elementos que compõem o estatismo autoritário que é central nessa obra derradeira de Poulantzas. O Direito é um dos principais elementos da materialidade institucional do Estado capitalista (os demais são a individualização, a nação, o monopólio do saber); além disso, Poulantzas demarca ao longo desse livro que o Estado capitalista é uma condensação material de relações de forças, não é um sujeito, e tampouco um instrumento de classe: é uma arena de lutas entre as classes e grupos dominantes contra as classes e grupos dominados, e é atravessado por múltiplas contradições; isso significa afirmar que as contradições da sociedade também se fazem presentes dentro dos aparelhos de Estado.

Apesar do livro O Estado, o poder, o socialismo ter sido condenado por segmentos marxistas-leninistas como “eurocomunista”10 10 Esse equívoco em classificar Poulantzas de “eurocomunista” e de “retomar as suas influências de Gramsci” está presente em Carlos Nelson Coutinho (1987) e reproduzido recentemente por Bras (2011). Ambos mostram um profundo desconhecimento sobre a obra de Poulantzas, e ignoram (ou omitem) a influência de Rosa Luxemburgo (e não Togliatti como afirma Coutinho) na crítica de Poulantzas aos desvios autoritários da Revolução Russa, e na articulação da democracia direita e autogestionária com a democracia indireta e pluralidade partidária. , “reformista”, social-democrata, etc., o conceito de estatismo autoritário constituído na quarta parte desse livro implode essas (des)classificações, pois com esse conceito Poulantzas rechaça qualquer crença pelas mudanças institucionais das quais o eurocomunismo de Berlinguer e Carrillo afirmavam nos anos 197011 11 Nada mais soaria estranho ao eurocomunismo de Berlinguer e de Carrillo a seguinte afirmação de Poulantzas em seu debate com Henri Weber: “a ruptura pode cruzar o interior do Estado e penso que atualmente as coisas devem acontecer assim. Heverá enfrentamento, ruptura, mas isso atravessará o Estado. A função dos organismos populares paralelos será a de polarizar uma larga fração dos aparelhos do Estado pelo movimento popular, e estes em aliança enfrentarão os setores reacionários, contra-revolucionários do aparelho de Estado apoiados pelas classes dominantes (POULANTZAS, 2008: p. 341). . E bem antes de Agamben abordar o conceito de Estado de Exceção, esse conceito de estatismo autoritário de Poulantzas já explorava os limites do Estado capitalista no tocante ao controle e repressão aos movimentos de contestação da segunda metade nos anos 1970 na Europa. O estatismo autoritário remete assim às modificações estruturais que especificam essa fase nas relações de produção, nos processos e na divisão social do trabalho ao mesmo tempo no plano mundial e no plano nacional.

O estatismo autoritário não se confundiria com os “totalitarismos” de corte fascista, tampouco com as ditaduras militares que afloravam em várias formações sociais nos anos 1970, que para Poulantzas expressariam o Estado de Exceção12 12 Um dos raros estudos comparativos do estado de Exceção de Agamben e do estatismo autoritário é o de Christos Boukalas (2016). Em sua análise comparativa, Boukalas aponta as vantagens conceituais do estatismo autoritário de Poulantzas sobre o Estado de Exceção de Agamben. O Estado de Exceção de Agamben estaria imerso num essencialismo cujo poder é essencialmente o mesmo, de uma natureza eterna, e isso expressaria o traço marcadamente abstrato da análise de Agamben. Já o estatismo autoritário de Poulantzas trata de distinguir as formas de poder em suas temporalidades respectivas das quais indicam os tipos, formas e fases do Estado. Poulantzas não abandonaria os aspectos históricos do Estado, e tampouco o antagonismo social em sua análise sobre a condensação material das relações de força no Estado, o que demarca o seu caráter relacional. Assim, enquanto para Boukalas o Estado de Exceção de Agamben pecaria pelo alto nível de abstração, enquanto a perspectiva relacional do estatismo autoritário de Poulantzas nos convida a explorar o espaço entre a abstração elevada e a particularidade. . De acordo com Poulantzas, o modelo do Estado Democrático Liberal teria dentro de si todos os componentes que formam o estatismo autoritário. Como ele mesmo observa,

Este Estado não nem a forma nova de um verdadeiro Estado de exceção, nem, propriamente a forma transitória para um tal Estado: ele representa a nova forma “democrática” da república burguesa na fase atual. (...) Enfim, mesmo para os países onde essa forma de Estado se conjuga a uma crise do Estado, não se trata no momento de um processo ou de uma crise de fascistização. (...) Indo de encontro desta vez àqueles que defendem uma diferença de essência entre as diversas formas democráticas (ou “Estado liberal”) e os totalitarismos, todos os dois apresentam, sob seu aspecto capitalista, certos traços comuns. Esses traços, além da eventual dependência desses Estados a uma mesma fase do capitalismo (fortalecimento do executivo no “New Deal” rooseveltiano e o Estado fascista de então), contêm as raízes do totalitarismo. Toda a forma democrática de Estado capitalista comporta tendências totalitárias (IDEM, p. 232).

O estatismo autoritário, além de conter os dispositivos jurídicos coativos e de controle sobre as massas, aponta também para os seguintes elementos: declínio do legislativo e crescimento do executivo na formulação de leis13 13 Para Kalyvas (2002) a atual conjuntura com a emergência do poder Judiciário seria caracterizada não pelo estatismo autoritário, mas sim pelo legalismo liberal autoritário. O legalismo liberal autoritário caracteriza-se pela gradual transferência de poder do executivo e do legislativo para o judiciário e concentração de poder por este último, particularmente as tomadas de decisão dos juízes em tribunais de instância superior. Isso significa para Kalyvas a formação de uma tendência contramajoritária, que caminha em direção a despolitização e a neutralização da legitimidade democrática e a privação da soberania popular de sua responsabilidade. Para um maior aprofundamento das teses de Kalyvas veja Motta (2012). ; decadência dos partidos políticos tornando-se correias de transmissão no legislativo dos governos eleitos; fortalecimento da tecnocracia e da administração pública e distanciamento das bases populares; “desideologização” dos partidos políticos e emprego constante do marketing político.

O estatismo autoritário, como afirma Poulantzas, reside igualmente no estabelecimento do todo um dispositivo institucional preventivo, diante do crescimento das lutas populares e dos perigos que ela representa para a hegemonia. Este verdadeiro arsenal que não é simplesmente de ordem jurídico-constitucional não aparece sempre em primeira linha no exercício do poder: ele se manifesta sobretudo, pelo menos para a grande massa da população (excetuando os “marginalizados”), por manobras que parecem falhas em seu funcionamento. Mas esse arsenal, dissimulado, continua como reserva da república, apto a ser posto em funcionamento num movimento de fascistização. Para Poulantzas

esse Estado, pela primeira vez provavelmente na existência e na história dos Estados democráticos, não apenas contém elementos esparsos e difusos de totalitarismo, mas cristaliza o seu agenciamento orgânico como dispositivo permanente e paralelo ao Estado oficial (IDEM, p. 233).

Conclusão

Vimos no decorrer desse artigo o crescente interesse por parte dos pesquisadores do campo do Direito ao fenômeno da judicialização e do Estado de Direito. Para a perspectiva liberal a judicialização política significou um novo elemento da democracia contemporânea, e uma afirmação e ampliação dos direitos mediante o declínio do Welfare State e do poder Legislativo. O Estado de Direito moderno também se constituiu como o oposto ao Estado autoritário já que a racionalidade, formalidade, impessoalidade são seus elementos constitutivos. Isso fica bem nítido na defesa da judicialização e do Estado de Direito na perspectiva de Ferejohn, Habermas e Vianna.

O pensamento marxista, por outro lado, desde Marx até Poulantzas, e passando por Engels, Pachukanis, Althusser, Edelman e Negri, opõem-se à posição liberal pois apontam o ocultamento do Direito moderno em sua forma ideológica das relações de poder entre as classes sociais e de seus aspectos repressores. Se Poulantzas ainda destaca que o Direito moderno abre pequenas margens para conquistas pontuais da classe trabalhadora, para Edelman nem isso ocorre devido aos limites que o Direito moderno impõe à classe trabalhadora. Contudo, apesar de pequenas diferenças, o pensamento marxista destaca que o Direito é fundamental não somente para a reprodução das relações de produção, mas também atua nas mesmas. Isso leva a concluir que o crescimento da ação dos operadores do direito estatal a partir da judicialização não oferece uma alternativa de mudança devido aos próprios limites inerentes do Direito do Estado capitalista, sobretudo na atual conjuntura na qual o estatismo autoritário (ou de forma semelhante o Estado de Exceção de Agamben) se faz presente diante o controle e repressão aos movimentos organizados de resistência ao bloco-no-poder que expressa os interesses do grande capital.

  • 1
    “O nexo estreito entre cidadania autônoma e esfera privada intacta revela-se claramente, quando a comparamos com as sociedades totalitárias onde existe o socialismo de Estado. Nelas, um panóptico controla diretamente a base privada dessa esfera pública. Intervenções administrativas e supervisão constante desintegram a estrutura comunicativa do dia-a-dia na família, na escola, na comuna e na vizinhança. A destruição de condições vitais solidárias e a quebra da iniciativa e da independência em domínios que se caracterizam pela super-regulação e pela insegurança jurídica, implicam aniquilamento de grupos sociais, de associação e de redes, a dissolução de identidades sociais através de doutrinação, bem como o sufoco da comunicação pública espontânea, de entendimento, como nos privados. E quanto mais se prejudica a força socializadora do agir comunicativo, sufocando a fagulha da liberdade de comunicação nos domínios da vida privada, tanto mais fácil se torna formar uma massa de atores isolados e alienados entre si, fiscalizáveis e mobilizáveis plebiscitariamente (HABERMAS, 1997HABERMAS, Jurgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, vols. I/II. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1997., Vol II: 101-102)”. Mais adiante, embora Habermas aponte os limites do liberalismo, percebe nele vantagens se comparado ao modelo totalitário: “(...) é preciso lembrar que, na esfera pública, ao menos na esfera pública liberal, os atores não podem exercer poder político, apenas influência. E a influência de uma opinião pública, mais ou menos discursiva, produzida através de controvérsias públicas, constitui certamente uma grandeza empírica, capaz de mover algo. Porém, essa influência pública e política tem que passar antes pelo filtro dos processos institucionalizados da formação democrática da opinião e da vontade, transforma-se em poder comunicativo e infiltrar-se numa legislação legítima, antes que a opinião pública, concretamente generalizada, possa se transformar numa convicção testada sob o ponto de vista da generalização de interesses e capaz de legitimar decisões políticas. Ora,a soberania do povo, diluída comunicativamente, não pode impor-se apenas através do poder dos discursos públicos informais – mesmo que eles tenham se originado de esferas públicas autônomas. Para gerar um poder político, sua influência tem que abranger também as deliberações de instituições democráticas da formação de opinião e da vontade, assumindo uma forma autorizada (Idem: 105)”.
  • 2
    Vide o texto de Habermas (1980)________________. “O conceito de poder de Hannah Arendt” in FREITAG, Bárbara; ROUANET, Sergio Paulo Habermas Col. Grandes Cientistas Sociais. São Paulo: Ática, 1980.O Conceito de poder de Hannah Arendt”.
  • 3
    Negri faz uma observação bem precisa em seu livro O poder constituinte quando afirma que Marx em O capital demonstra ao longo de sua exposição no capítulo XXIII como foi fundamental o par direito-violência na constituição da acumulação capitalista. De acordo com Negri “o poder constituinte moderno é estudado, por Marx em O capital. Nesta obra, Marx enfrenta o enigma da violência imaginária que constitui a ordem social e política – um duplo problema, aberto, à identificação da violência fundadora e, de outro, à sua função ordenadora” (NEGRI, 2002NEGRI, Antonio. O poder constituinte. Rio de Janeiro: DP&A editora, 2002.: p. 356).
  • 4
    Tem sido notável o interesse da obra de Pachukanis em anos recentes no Brasil, graças a um conjunto de pesquisadores que vêm desenvolvendo pesquisas sobre a sua obra a exemplo de Márcio Bilharinho Naves, Alysson Mascaro, Celso Naoto Kashiura Jr., Silvia Alapanian entre outros.
  • 5
    Como observa Márcio Bilharinho Naves em seu estudo sobre Pachukanis “se o Estado é a esfera de existência exclusiva da política – lugar de representação dos interesses gerais -, e se a sociedade civil é o lugar onde habitam os interesses particulares, o acesso à esfera do Estado só pode ser franqueado pelos indivíduos despojados de sua condição de classe – posto que a condição de pertencer a uma classe social não pode ser reconhecida pelo Estado -, e qualificados por uma determinação jurídica: o acesso ao Estado só é permitido aos indivíduos na condição de cidadãos” (NAVES, 2008NAVES, Márcio Bilharinho. Marxismo e direito: um estudo sobre Pachukanis. São Paulo: Boitempo, 2008.: p. 82).
  • 6
    Vide Por Marx e Ler o Capital de 1965, Ideologia e Aparelhos ideológicos de Estado de 1970 e Sobre a Reprodução publicado postumamente em 1995.
  • 7
    “Na teoria liberal pós-moderna, o poder do Estado não é exercido segundo um paradigma disciplinar – para citar Foucault. (...) O poder do Estado aqui não se confronta com os sujeitos sociais, ou seja, não assume o dever de enfrentar, mediar e organizar as forças em conflito dentro dos limites da ordem. O Estado enxuto evita esses ônus; a sua vocação para evitá-los caracteriza a política ‘liberal’. Essa é a linha de raciocínio que estende a concepção enxuta do Estado até transformá-la em uma concepção enxuta da política. A política, em outras palavras, não pressupõe a mediação dos conflitos sociais e das diferenças, mas consiste simplesmente na tentativa de evitá-los” (IDEM, p.78).
  • 8
    É o exemplo de Foucault criticado por Poulantzas nesse livro, a despeito de reconhecer méritos na “analítica de poder” do filósofo francês. Como destaca Poulantzas, “Há em Foucault a subestimação do papel da lei, ao menos no exercício do poder no seio das sociedades modernas, e também a subestimação do papel do Estado, acompanhada de desconhecimento do lugar, no Estado moderno, dos aparelhos repressivos (exército, polícia, justiça etc.) enquanto dispositivos do exercício da violência física. São considerados somente como peças do dispositivo disciplinar que molda a interiorização da repressão pela normalização” (IDEM, 85).
  • 9
    Para Agamben o Estado de Exceção é composto por uma “ilegalidade” legitimada legalmente: “o estado de exceção, enquanto figura da necessidade apresenta-se pois – ao lado da revolução e da instauração de fato de um ordenamento constitucional – como uma medida ‘ilegal’, mas perfeitamente ‘jurídica e constitucional’, que se concretiza na criação de novas normas (ou de uma nova ordem jurídica)” (AGAMBEN, 2011AGAMBEN, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2011.:p. 44).
  • 10
    Esse equívoco em classificar Poulantzas de “eurocomunista” e de “retomar as suas influências de Gramsci” está presente em Carlos Nelson Coutinho (1987)COUTINHO, Carlos Nelson. A dualidade de poderes. São Paulo: Brasiliense, 1987. e reproduzido recentemente por Bras (2011)BRAS, Marcelo. Partido e revolução 1848-1989. São Paulo: Expressão Popular, 2011.. Ambos mostram um profundo desconhecimento sobre a obra de Poulantzas, e ignoram (ou omitem) a influência de Rosa Luxemburgo (e não Togliatti como afirma Coutinho) na crítica de Poulantzas aos desvios autoritários da Revolução Russa, e na articulação da democracia direita e autogestionária com a democracia indireta e pluralidade partidária.
  • 11
    Nada mais soaria estranho ao eurocomunismo de Berlinguer e de Carrillo a seguinte afirmação de Poulantzas em seu debate com Henri Weber: “a ruptura pode cruzar o interior do Estado e penso que atualmente as coisas devem acontecer assim. Heverá enfrentamento, ruptura, mas isso atravessará o Estado. A função dos organismos populares paralelos será a de polarizar uma larga fração dos aparelhos do Estado pelo movimento popular, e estes em aliança enfrentarão os setores reacionários, contra-revolucionários do aparelho de Estado apoiados pelas classes dominantes (POULANTZAS, 2008______________________; WEBER, Henri. “The state and the transition to socialism” in MARTIN, James (org.) The Poulantzas reader. Nova York: Verso, 2008.: p. 341).
  • 12
    Um dos raros estudos comparativos do estado de Exceção de Agamben e do estatismo autoritário é o de Christos Boukalas (2016)BOUKALAS, Christos “État d’exception ou étatisme autoritaire: Agamben, Poulantzas et la critique de l’antiterrorisme” in Revueperiode.net., 2014. Disponível em http://revueperiode.net/etat-dexception-ou-etatisme-autoritaire-agamben-poulantzas-et-la-critique-de-lantiterrorisme/
    http://revueperiode.net/etat-dexception-...
    . Em sua análise comparativa, Boukalas aponta as vantagens conceituais do estatismo autoritário de Poulantzas sobre o Estado de Exceção de Agamben. O Estado de Exceção de Agamben estaria imerso num essencialismo cujo poder é essencialmente o mesmo, de uma natureza eterna, e isso expressaria o traço marcadamente abstrato da análise de Agamben. Já o estatismo autoritário de Poulantzas trata de distinguir as formas de poder em suas temporalidades respectivas das quais indicam os tipos, formas e fases do Estado. Poulantzas não abandonaria os aspectos históricos do Estado, e tampouco o antagonismo social em sua análise sobre a condensação material das relações de força no Estado, o que demarca o seu caráter relacional. Assim, enquanto para Boukalas o Estado de Exceção de Agamben pecaria pelo alto nível de abstração, enquanto a perspectiva relacional do estatismo autoritário de Poulantzas nos convida a explorar o espaço entre a abstração elevada e a particularidade.
  • 13
    Para Kalyvas (2002)KALYVAS,Andreas. « The stateless theory: Poulantza’s challenge to postmodernism ». In Aronowitz, S. e Bratsis, P. (org.). Paradigm lost: State theory reconsidered. Minnesota: University of Minnesota Press, 2002. a atual conjuntura com a emergência do poder Judiciário seria caracterizada não pelo estatismo autoritário, mas sim pelo legalismo liberal autoritário. O legalismo liberal autoritário caracteriza-se pela gradual transferência de poder do executivo e do legislativo para o judiciário e concentração de poder por este último, particularmente as tomadas de decisão dos juízes em tribunais de instância superior. Isso significa para Kalyvas a formação de uma tendência contramajoritária, que caminha em direção a despolitização e a neutralização da legitimidade democrática e a privação da soberania popular de sua responsabilidade. Para um maior aprofundamento das teses de Kalyvas veja Motta (2012)MOTTA, Luiz Eduardo. « Judicialização da política e representação funcional no Brasil contemporâneo: uma ameaça à soberania popular? » in Confluências, Vol. 12, n. 1. Niterói: PPGSD-UFF, outubro de 2012. Disponível em http://www.confluencias.uff.br/index.php/confluencias/article/viewFile/90/113
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2019
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 2019

Histórico

  • Recebido
    26 Jul 2017
  • Aceito
    06 Fev 2018
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