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Tempo da Constituição e Ponte para o Futuro: uma análise a partir da teoria crítica da aceleração social

Constitution time and Bridge for the Future: an analysis from the critical theory of social acceleration

Resumo

O problema que orienta essa investigação pode ser formulado da seguinte maneira: em que medida a crise constitucional, evidenciada nas reformas recentes contra o núcleo inclusivo da Constituição brasileira que compõem o programa “Uma Ponte para o Futuro”, seria também uma crise temporal? A partir de um estudo teórico-conceitual embasado em pesquisa bibliográfica e análise documental, a hipótese defendida aqui é a de que o pano de fundo dessa crise está relacionado com um discurso que instrumentaliza o “tempo histórico” e o “futuro” em si para gerar adesão social a partir da defesa aberta da aceleração, a defesa de um futuro que deve chegar mais rápido. Tal categoria é analisada a partir de uma leitura específica que esse artigo propõe da obra de Hartmut Rosa, no quadro de uma crítica à aceleração que submete os comprometimentos públicos de longa duração da Constituição à tutela da acumulação da riqueza privada e à velocidade do tempo do mercado e da competitividade.

Palavras-chave:
Constituição; Tempo; Aceleração Social

Abstract

The problem that guides the investigation can be formulated as follows: to what extent is the constitutional crisis, evidenced in the recent reforms against the inclusive nucleus of the Brazilian Constitution that make up the program “A Bridge to the Future”, would be also a temporal crisis? Based on a theoretical-conceptual study based on bibliographic research and documentary analysis, the hypothesis defended here is that the background of this crisis is related to a discourse that instrumentalizes “historical time” and “future” itself for to generate social adhesion from the open defense of acceleration, the defense of a future that must come faster. This category is analyzed based on a specific reading that this article proposes from the work of Hartmut Rosa, within the framework of a criticism to the acceleration that submits the long-term public commitments of the Constitution to the tutelage of the accumulation of private wealth and the speed of market and. Competitiveness time.

Keywords:
Constitution; Time; Social acceleration

1. Introdução: Crise e Constituição

Ao menos no Brasil, a palavra crise é uma daquelas utilizadas de forma corrente por figuras públicas e pela impressa para traduzir um estado de turbulências e de instabilidade, por vezes corriqueiros, no cenário vigente. Concebido dessa forma, o termo já perdeu muito de seu componente de excepcionalidade: a gradativa normalização do conceito - fala-se a todo o momento em crise política, crise econômica, crise de valores, crise da civilização - tem duas consequências: uma espécie de banalização da ideia de crise e uma certa opacidade do conceito (PAIXÃO, 2018PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição. 03/05/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018 Acesso em 20 de maio 2018.
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).

Considerando seu significado mais preciso ou pelo menos mais restrito, aquele proveniente dos dicionários de língua portuguesa1 1 Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/crises> , tem-se que crise indica “mudança súbita ou agravamento que sobrevém no curso de uma doença aguda” ou “conjuntura ou momento perigoso” ou mesmo “desacordo que obriga instituição ou organismo a recompor-se ou a demitir-se”. Remete, portanto, a uma anormalidade que conduz à ideia de um momento de transição ou ruptura.

Significado semelhante foi atribuído por Koselleck (1999KOSELLECK, Reinhart. Crítica e crise: uma contribuição a patogênese do mundo burguês. Contraponto, 1999., p. 145) que, remetendo a Rousseau, afirma que, no sentido político, crise consistiria num desdobramento do sentido médico a partir da metáfora do Estado enquanto corpo político. A partir daí, poderia se chegar a, pelo menos três sentidos, segundo ele, da palavra crise: transformação no curso de uma doença, ponto decisivo no tempo e situação alarmante (KOSELLECK, 2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006., p. p. 357-400). Ela representaria um processo crítico que não acarreta apenas um período de insegurança cujo fim seria imprevisível, mas um momento de transição que demanda decisão e escolhas. No mesmo sentido e em leitura de suas reflexões, Ricoeur confirmaria esse significado do termo: “en pénétrant dans la sphère politique, la crise dramatise la critique; elle apporte avec elle sa connotation médicale: son pouvoir révélateur à l'égard d'un mal profond et surtout son effet de décision entre l'aggravation ou l'amélioration” (RICOEUR, 1988RICOEUR, Paul. La crise: um phénomène spécifiquement moderne? Revue de Théoogie et de Philosophie. n.120 (1988), P. 1-19, p.4).

Partindo dessa noção tecnicamente mais afinada do termo, há razões para enxergar, mesmo sob uma aparente normalidade institucional, traços de uma verdadeira “crise constitucional” na conjuntura político-jurídica brasileira de nossos tempos, exposta pelo menos desde o “impeachment” da Ex Presidente Dilma Rousseff, sem correr o risco de uma banalização ou instrumentalização ideológica do termo. Trata-se de uma “crise”, primeiramente, porque coloca em evidência a excepcionalidade e o rompimento como chave de resolução dos problemas. Ela é “constitucional”, porque é a Constituição de 1988 que está colocada à prova, sua função está em risco e “os procedimentos ordinariamente disponíveis para o enfrentamento de impasses e discordâncias não são suficientes para resolver o impasse político” (PAIXÃO, 2018PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição. 03/05/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018 Acesso em 20 de maio 2018.
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).

Desde pelo menos 2016, ações adotadas pela coalizão política que se formou para viabilizar o processo de impeachment colocaram em evidência a crise constitucional em que o Brasil está submetido (PAIXAO, 2018PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição. 03/05/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018 Acesso em 20 de maio 2018.
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), sustentadas especialmente por meio das contrarreformas iniciadas no governo Temer e que ainda estão em curso. Há um núcleo comum distintivo da crise: ela é propriamente uma crise desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Breves considerações iniciais sobre a PEC n. 241 (“Novo Regime Fiscal”): o estado de exceção econômico e a subversão da Constituição democrática de 1988. 2016. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/breves-consideracoes-iniciais-sobre-a-pec-n-241-novo-regime-fiscal-o-estado-de-excecao-economico-e-a-subversao-da-constituicao-democratica-de-1988-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira . Acesso em: 9 nov. 2017.
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, STRECK, 2016STRECK, Lenio Luiz. Do AI-5 à PEC 55: receita para destruir uma Constituição e um país. Carta Maior. 12/12/2016. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Do-AI-5-a-PEC-55-receita-para-destruir-uma-Constituicao-e-um-pais/4/37432> Acesso em: 20-dez-2017.
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, PAIXÃO, 2018). As contrarreformas convergem-se num ataque aberto ao sentido performativo da Constituição de 1988, delineado pelo compromisso intersubjetivo de reconhecimento recíproco dos direitos fundamentais, por meio do esvaziamento gradual do seu núcleo inclusivo.

A promulgação da Emenda n. 95 que impõe o teto de gastos públicos, em áreas prioritárias como saúde e educação, é um dos exemplos concretos desse esfacelamento dos direitos fundamentais por meio do recuo das políticas públicas ao longo de vinte anos, o que implica submeter à Constituição de forma nem tão lenta - e gradativamente -, a um estado de obsolescência2 2 Posição distinta daquela assumida no presente artigo é a de Henrique Meirelles (2016), na época Ministro da Fazenda e do Planejamento, segundo a qual a reforma busca estabelecer “regras que contenham a pressão por expansão do gasto além da capacidade de pagamento do governo” e “recobrar o equilíbrio fiscal com visão de longo prazo”. Para ele (2016), “solucionar a crise e voltar a crescer é a mais importante política social que precisamos colocar em prática para recuperar emprego e renda”. Argumentos como esse são reforçados em Veloso (2016), Pessoa (2017) e Mendes (2016) que insistem, como se buscará aqui demonstrar, a submeter a Constituição a uma variável puramente econômica (como a taxa de inflação), impondo uma política permanente de redução e precarização do gasto público (e social). . A implicação imediata é de abandono progressivo das promessas não cumpridas da modernidade reafirmadas contrafactualmente no projeto constituinte por meio de sua inversão: enquanto a Constituição estabelece um modelo de Estado Democrático de Direito comprometido normativamente com a erradicação da pobreza e da marginalização e com a redução das desigualdades sociais e regionais, como enunciado dentre os objetivos da República (art. 3 CR88), a Emenda n. 95 é seu reflexo antagônico, porque coloca empecilhos concretos para a realização de políticas públicas que coloquem em marcha o que foi pactuado em 1988. O movimento desconstituinte delineado no teto de gastos está justamente em excepcionalizar os direitos fundamentais, de ordem vinculante, por 20 anos e, portanto, fazer com que a Constituição de 1988 só valha naquilo que não contraria a Emenda. Toda a política do Estado brasileiro passa a vincular-se à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada (STRECK, 2016STRECK, Lenio Luiz. Do AI-5 à PEC 55: receita para destruir uma Constituição e um país. Carta Maior. 12/12/2016. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Do-AI-5-a-PEC-55-receita-para-destruir-uma-Constituicao-e-um-pais/4/37432> Acesso em: 20-dez-2017.
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).

Esse desfecho, porém, não é inevitável e ainda não se configurou por completo (PAIXÃO, 2018PAIXÃO, Cristiano. 30 anos: crise e futuro da Constituição. 03/05/2018. Disponível em: https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/30-anos-crise-e-futuro-da-constituicao-de-1988-03052018 Acesso em 20 de maio 2018.
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). Uma compreensão mais apurada da crise faz-se necessária para que se possa justamente contrapor uma resistência aos seus impulsos desconstituintes, sob um “movimento reconstituinte” (PAIXAO, 2018). A proposta do presente texto, fruto de pesquisa em sede de investigação de pós-doutoramento, é de oferecer, sob uma perspectiva nova, um diagnóstico mais profundo das bases de tal crise a fim de oferecer elementos para superá-la. A tese defendida aqui é a de que a atual crise constitucional se expressa numa crise de consciência histórica que tem sido vivenciada no Brasil desde as jornadas de junho de 2013 e que se configura por meio de uma nova relação entre tempo e Constituição que ali se configurou. Em outros termos, a crise constitucional (PAIXÃO, 2018), além de ser uma crise desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Breves considerações iniciais sobre a PEC n. 241 (“Novo Regime Fiscal”): o estado de exceção econômico e a subversão da Constituição democrática de 1988. 2016. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/breves-consideracoes-iniciais-sobre-a-pec-n-241-novo-regime-fiscal-o-estado-de-excecao-economico-e-a-subversao-da-constituicao-democratica-de-1988-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira . Acesso em: 9 nov. 2017.
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), é também uma crise temporal. Isso, por sua vez, significa que há uma racionalidade por trás desse movimento desconstituinte que pode ser compreendida a partir de um discurso que instrumentaliza o “tempo histórico” e o “futuro” em si para gerar adesão social a partir da defesa aberta da aceleração, a defesa de um futuro que deve chegar mais rápido, de modo a sobrepor a razão do mercado sobre a do Estado3 3 O economicismo é uma das ideologias contra a qual a hipótese da pesquisa em questão se coloca. Por economicismo, entende-se, no mesmo sentido de Kwak (2017) ou de Souza (2013), a invocação do discurso econômico como chave de explicação de todos os fenômenos sociais, numa espécie de determinismo que ignora distintos olhares e fatores da sociedade e reduz a realidade a simples modelos abstratos. “É uma visão empobrecida e amesquinhada da realidade, como se fosse ‘toda’ a realidade social” (SOUZA, 2013, p. p.132). De certo modo, não se confunde com a ciência econômica cuja importância é irrefutável, trata-se, na verdade, de uma forma de ver o mundo dominante, reproduzida, de forma irrefletida, pela grande mídia e por políticos (e até mesmo por acadêmicos) que contribui para a dominação da política pela riqueza privada, ao construir uma arquitetura interpretativa que justifica as políticas elitistas e a desigualdade por elas geradas, por meio da distorção da visão de mundo, que passa a ser pautada em uma caricatura do conhecimento econômico. (KWAK, 2017, p. 187). . Tal categoria será analisada a partir de uma leitura específica que proponho da obra de Hartmut Rosa da Universidade de Iena (Universität Jena), a fim de construir uma análise do pano de fundo do quadro político-constitucional brasileiro.

Num primeiro momento, buscar-se-á então traçar as origens dessa crise da consciência histórica no Brasil a partir de uma breve análise da síndrome da urgência no discurso constitucional como legado das jornadas de junho. Em seguida, essa categoria da síndrome da urgência será aprofundada, a partir de sua aproximação a outra categoria, a aceleração social, desenvolvendo-a através das contribuições de Hartmut Rosa. Na sequência, será examinado, de modo exemplificativo, o programa “Uma ponte para o futuro”, apresentado pelo ex-presidente Michel Temer como base de seu projeto de contrarreforma a partir da análise do próprio documento lançado pelo PMDB juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães (FUG) a fim de se depurar suas intenções e ideias à luz da teoria crítica da aceleração social. Por fim, buscar-se-á mostrar as consequências da Emenda Constitucional 95, como um projeto de aceleração social, para o tempo do Direito e da Constituição.

Cabe ainda destacar, em termos metodológicos, que a pesquisa em questão não se trata de estudo de caso do programa “Uma Ponte para o futuro”, mas sim um estudo teórico-conceitual, de perfil exploratório e de análise bibliográfica e documental que toma esse programa como exemplo. A proposta é, pois, demonstrar que “Uma ponte para o futuro” é parte integrante de um projeto (contra) normativo maior de desestruturação da Constituição que tem se operado a partir de uma aceleração social em face do núcleo inclusivo da Constituição. Uma das mais importantes contribuições desse artigo é oferecer aporte teórico para examinar esse fenômeno com sua devida complexidade e suas consequências, hoje, para o discurso constitucional.

2. A crise da consciência histórica e os legados das Jornadas de Junho

Embora a crise constitucional se expresse de forma mais evidente com o processo de impeachment da ex Presidente Dilma Rousseff em 2016, há indícios suficientes para afirmar que ela não se instaurou ali, havendo desde já um pano de fundo intersubjetivamente compartilhado, que se tornou visível no contexto dos protestos que tomaram as ruas das principais cidades brasileiras em 2013. O objetivo desse momento é retomar aqui análises e conclusões da pesquisa de doutoramento de um dos autores (COSTA JUNIOR, 2017COSTA JUNIOR, Ernane Salles da. Constitucionalismo do Atraso. Belo Horizonte, MG: Editora D’Plácido, 2017.), ainda que de modo breve, pois há, naqueles estudos, conclusões em aberto que apontam para compreensões ainda por vir. Se naquele momento, a proposta era desvelar alguns dos sentidos possíveis das jornadas de junho, o interesse agora é apresentar o modo como esses sentidos apontam rastros e fragmentos de uma normatividade ainda presente como pano de fundo para se compreender a relação, no Brasil, entre tempo e Constituição4 4 A primeira tentativa de aproximação entre tempo e Constituição para um dos autores ocorreu em sua dissertação de mestrado (ver Costa Junior, 2011). Algumas das conclusões tiradas ali foram posteriormente publicadas no artigo “Constituição, tempo e narrativa” (ver Costa Junior, 2013). .

Há, nos movimentos de junho, uma pluralidade interna e uma impossibilidade da apropriação unívoca de seu sentido. Naquele contexto, as ruas revelaram-se como um grande palco de manifestações que tornaram explícitas a heterogeneidade e as disputas políticas de sentidos, por setores progressistas e conservadores, em meio a uma pluralidade de pautas, de narrativas e de lutas por reconhecimento e distribuição. Além disso, o movimento sofreu transformações no seu curso, o que evidencia as diversas possibilidades de interpretá-lo. Propriamente, nessa análise, o enfoque se dirigirá ao modo como a crise de representatividade e os discursos contrários à corrupção delimitaram ali as bases do discurso constitucional que emergiu desde aquelas revoltas sociais.

Especificamente no dia 21 de junho de 2013, momento em que as revoltas de junho atingiam sua maior adesão e ganhava contornos reacionários em meio a uma disputa sobre as várias pautas e bandeiras divergentes que a orientavam, o senador Cristovam Buarque, trilhando um caminho demasiado perigoso proferiu um discurso no Senado Federal, defendendo a extinção dos partidos políticos e a convocação de uma Assembleia Constituinte no país como única solução para atender as reivindicações dos manifestantes. Nas suas palavras:

Talvez eu radicalize agora, mas acho que para atender o que eles querem nós precisaríamos de uma lei com 32 letras: estão abolidos os partidos, estão abolidos todos os partidos. Isso sensibilizaria a população lá fora. Hoje, nada unifica mais todos os militantes e manifestantes do que a ojeriza, a desconfiança, a crítica aos partidos políticos. Talvez seja a hora de dizermos estão abolidos todos os partidos se vamos trabalhar para saber o que é que a gente põe no lugar, se a gente põe no lugar outros partidos ou outra coisa. [...] Algo tem que mudar na maneira de fazermos o diálogo com o povo. Que não basta mais dialogar uma vez a cada quatro anos. É preciso dialogar a cada quatro minutos (FOLHA, 21/06/2013).

A constatação da crise política e do esgotamento da democracia representativa fez com que Cristovam Buarque vislumbrasse apenas uma solução fora dos procedimentos previstos na Constituição em vigor para criar uma nova maneira de fazer política: “nossos partidos não refletem mais o que o povo precisa com seus representantes, nem do ponto de vista do conteúdo, nem do ponto de vista da forma” (FOLHA, 21/06/2013). Conclui o senador em direção a uma defesa aberta da realização de uma Assembleia Constituinte exclusiva para discutir a reforma política, dentro do prazo de um ano: “creio que essa é uma proposta que poderia levar à revolução. Não há manifestações de um milhão de pessoas em um dia que não exija a revolução” (FOLHA, 21/06/2013). O que, talvez, o senador possa ter esquecido é de que número similar de manifestantes também tomou as ruas nas marchas em 1964 e o mesmo nome revolução foi atribuído aos acontecimentos da época como modo de justificar, democraticamente, a ruptura constitucional. No ato institucional n.1, por exemplo, chegou-se a afirmar:

A revolução se distingue de outros movimentos armados pelo fato de que nela se traduz, não o interesse e a vontade de um grupo, mas o interesse e a vontade da Nação. A revolução vitoriosa se investe no exercício do Poder Constituinte. [...] Esta é a forma mais expressiva e mais radical do Poder Constituinte. Assim, a revolução vitoriosa como Poder Constituinte, se legitima por si mesma (BRASIL, A.I. n.1, 1964).

Defenderam também, no dia 21 de junho de 2013, a proposta da convocação de uma Assembleia Constituinte para discutir a reforma política, os senadores Pedro Taques (do PDT - MT) e Pedro Simon (PMDB - RS), entendendo-a como a principal reivindicação dos manifestantes:

Quando o senador Cristovam fala em convocar uma Assembleia Nacional Constituinte, eu entendo o porquê. É porque ele, como toda a sociedade, não acredita no Congresso Nacional, duvida que nós façamos alguma emenda positiva a favor do povo brasileiro” (SIMON, GAZETA DO POVO, 21/06/2013).

Nesse ambiente de desconfiança das instituições políticas e do devido processo legislativo, em especial, na capacidade do atual Parlamento instituído constitucionalmente como representante do povo de conduzir uma reforma política que sepulte, de uma vez por todas, a corrupção política, a proposta de uma constituinte exclusiva é reforçada também pela Chefe do Poder Executivo.

Como resposta estatal à “voz das ruas” que “reivindica um combate sistemático à corrupção e ao desvio de recursos públicos” (ROUSSEFF, BBC, 21/06/2013), a Presidente Dilma Rousseff fez um pronunciamento público e propôs, no dia 24 de junho de 2013, “cinco pactos em favor do Brasil”, dentre os quais se encontrava um pela ampla e profunda reforma política. A proposta seria a convocação de um plebiscito popular que autorizasse o funcionamento de um processo constituinte específico para fazer a reforma política. Trata-se de uma constituinte originária, pois é soberana, ou seja, não se limita, na ordem jurídica vigente, nem pelo Congresso, nem pelo Judiciário, nem tampouco, pelo Executivo; exclusiva, pois eleita estritamente para cumprir essa tarefa e depois se dissolve; e temática, pois se limita a fazer a reforma política apenas (MAGALHÃES, 2014MAGALHÃES, José Luiz Quadros. Entenda como funciona uma Constituinte exclusiva para a reforma política. Entrevista por Marcelo Hailer. Revista Forum. set., 2014.a). A proposta não é nova5 5 “Entre as propostas de atribuição de poderes de revisão específicos ao Congresso Nacional, destacou-se a PEC 554/1997, apresentada pelo dep. Miro Teixeira (PDTRJ), permitindo alterações por maioria absoluta nos artigos 14, 16, 17, 21 a 24, 30, 145 a 162 e conexos da Constituição Federal. Essa proposição foi posteriormente apensada à PEC 157/2003, apresentada pelo dep. Luiz Carlos Santos (PFL/SP), e à PEC 447/2005, apresentada pelo dep. Alberto Goldman (PSDB/SP), ambas voltadas a implementar uma ampla revisão constitucional pelos próprios parlamentares, o que mostra a persistência desse posicionamento político, cabendo destacar que todas essas propostas de revisão ampla foram apresentadas por deputados de oposição, o que contraria a ideia vigente de que o interesse nesse tipo de estratégia é sempre da base governista. Também na linha das propostas voltadas a promover uma revisão constitucional pelo Congresso foi a PEC 193/2007, do dep. Flávio Dino (PCdoB/MA), que se diferenciou ao propor que essa revisão deveria ser autorizada por meio de plebiscito e que deveria cingir-se a temas de Organização dos Poderes e de Tributação e Orçamento. Já a PEC 384/2009, apresentada pelo dep. Marco Maia (PT/RS), concretizava uma proposta que foi publicamente sustentada por seu partido em 2007, quando do Terceiro Encontro Nacional do PT e indicou que “a reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos dos seus integrantes” e, por isso, o “Partido dos Trabalhadores defende que a reforma política deve ser feita por uma Constituinte exclusiva, livre, soberana e democrática” (COSTA; ARAÚJO, 2015, p.214). , mas reflete bem o sentimento de junho de 2013 e a tentativa de uma resposta estatal para responder à crise de representatividade e ao mal-estar generalizado contra a política nacional.

Em torno da necessidade de se alterar o sistema político tal como regulado hoje pela Constituição de 1988 somado a um discurso majoritário de combate à corrupção, a instauração de uma Constituinte Exclusiva é apresentada como solução fatídica e necessária de ruptura.

Ainda que não seja nossa intenção aqui elaborar uma crítica pormenorizada desse projeto como foi realizada em outro momento (COSTA JUNIOR, 2017COSTA JUNIOR, Ernane Salles da. Constitucionalismo do Atraso. Belo Horizonte, MG: Editora D’Plácido, 2017.), cabe destacar como uma resposta de exceção configurou-se ali como a suposta solução da crise política e como nela mesma já se encontram elementos importantes de uma crise constitucional. A proposta de uma Assembleia Constituinte alternativa e soberana como solução dos problemas inscritos no âmago da tradição política brasileira (vista sempre na ótica patrimonialista de uma história de fracassos) traduz a ideia de rompimento com as formas de dominação política do passado e do presente e abertura, sem mediação com as regras da Constituição vigente, a um futuro sem precedentes. A reforma política capaz de combater a corrupção endêmica e a própria lógica privatista em que operam políticos e partidos - o que deturpa o cerne da representação -, só seria factível a partir de uma solução salvacionista fora do procedimento constitucional em vigor: apenas uma nova Assembleia, investida de soberania popular, poderia, em uma certa leitura fatalista, “emprestar legitimidade ao carcomido Estado brasileiro” (SARMENTO, 2009SARMENTO, Daniel. 21 anos da Constituição de 1988: a Assembleia Constituinte de 1987/1988 e a Experiência Constitucional Brasileira sobre a Carta de 1988. DPU, n. 30, p. 07-41, nov./dez., 2009), fundando sobre novas bases o poder político.

A velha narrativa do fracasso constitucional e do atraso brasileiro como única leitura das experiências políticas e jurídicas em jogo se articula com uma espécie de patologia da projeção do futuro, o que conduz à necessidade de um “salto alhures” (RICOEUR, 1994RICOEUR, Paul. A crise da consciência histórica e a Europa. Lua Nova : Revista de Cultura e Política, São Paulo, n.33 , p.87-95, maio 1994.) da realização de todos os sonhos aqui e agora numa perspectiva que se traduz em forma de uma “satisfação imediata do desejo” (CHAUI, 2013CHAUI, Marilena. As manifestações de junho de 2013 na cidade de São Paulo. Teoria & Debate, n. 113, 2013.). Nessa situação, o devido processo a ser seguido para as mudanças normativas é percebido apenas como excessiva demora ou garantia de conservação do status quo de modo que deveria ser “acelerado”. É nesse futuro percebido como demasiado próximo que atravessa de dentro uma “síndrome da urgência”, pois se o futuro é amanhã, quando não hoje mesmo, nenhum projeto de médio ou longo prazo pode ser pensado, e todos os obstáculos que, como uma Constituição, se põem a mudanças bruscas e imediatas são vistos meramente como paredes a serem derrubadas - nunca como muros de proteção (GOMES, 2018GOMES, David F. L. Ernane Salles e o Constitucionalismo do Atraso. 2018. Revista Direito e Práxis. v.9, n.3, Rio de Janeiro, Jul/Set. 2018; COSTA JUNIOR, 2017COSTA JUNIOR, Ernane Salles da. Constitucionalismo do Atraso. Belo Horizonte, MG: Editora D’Plácido, 2017.).

Ora, o “contra tudo isso que está aí” converte-se, assim, em urgência; a sede de mudar as estruturas políticas do Brasil recai num surto de pressa que ameaça conquistas e avanços em termos normativos. A Constituinte exclusiva parece, pois, refletir bem os sentimentos de junho e a crise constitucional que se despontou daí: a síndrome da urgência que tomou o país desde então; como se todo procedimento se tornasse uma insuportável espera e todo caminho definido pela Constituição um retardamento incontornável apto a impedir o curso do tempo social das transformações. Junho parece ter despertado uma onda conservadora e moralista que tem pressa. Nessa vontade tenaz de se lançar diretamente ao futuro, rompendo com a letargia das instituições que causam o atraso nacional, nossas regras instituídas e nosso espaço de experiência são concebidos como lugares que nada têm a dizer.

Ora, se a proposta da assembleia constituinte reflete algo que é diferente dela e mais profundo do que ela - uma síndrome da urgência -, esse mesmo algo pode refletir-se, igualmente em outros casos nos quais uma solução imediata sem nenhum apego às garantias do Estado Democrático de Direito ofereça-se como a mais conveniente alternativa para a suposta ruptura quase mágica com uma história trazida à memória somente em termos patológicos (GOMES, 2018GOMES, David F. L. Ernane Salles e o Constitucionalismo do Atraso. 2018. Revista Direito e Práxis. v.9, n.3, Rio de Janeiro, Jul/Set. 2018): em todos esses casos, que se tornaram por vezes corriqueiros, é possível verificar claramente que narrativa do atraso e síndrome da urgência, mais uma vez, são articulados e mobilizados contra o discurso constitucional. É esse processo que reivindica a aceleração em face do tempo do Direito frente à ideia de uma satisfação imediata do desejo que será desenvolvido de forma específica na sequência.

3. Elementos de uma teoria crítica da aceleração social

Ao enfatizar que uma nova consciência histórica tem sido desenvolvida desde junho de 2013 em torno da recepção do passado - de uma história mesma contada predominantemente sob a perspectiva unilateral do fracasso constitucional - e da projeção do futuro - reivindicado violentamente no presente como aceleração do tempo do Direito - se pretendeu mostrar até aqui a perspectiva localizada de um fenômeno que, no entanto, não se circunscreve na esfera nacional. Ainda que adquira aqui cores específicas, a síndrome da urgência é um fenômeno social mais amplo, que vai muito além do campo jurídico, sendo intrínseco ao modo como o tempo é percebido hodiernamente nas sociedades ocidentais. As estruturas temporais conectam os níveis micro e macro da sociedade; por exemplo, nossas ações e orientações se coordenam e se fazem compatíveis com os “imperativos sistêmicos” das modernas sociedades capitalistas (ainda que perifericamente modernas) através de normas, prazos e regulamentos temporais (ROSA, 2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p.9). Uma análise que agregue, pois, a perspectiva temporal do contemporâneo tem especial relevância, na medida em que não existe um tempo social independente da estrutura social, da cultura, do Direito, da política. Se essa hipótese estiver certa, a aceleração está entrelaçada com as “dimensões materiais da sociedade e não pode ser claramente separada delas em termos fenomenológicos” (ROSA, 2011, p.12), o que, por sua vez, exige uma teoria crítica que dê conta de seu funcionamento e do que é capaz de produzir em termos de “mal-estar” numa tensão entre local e global.

Segundo David Harvey, um dos traços mais importantes das últimas décadas é a noção da compressão do tempo e do espaço. A dinâmica nascente no contexto da globalização é a da superação das distâncias, no sentido de que as transformações técnicas e tecnológicas foram capazes de acelerar os fenômenos sociais e os níveis de produção econômica e integração política. Essa observação de Harvey não está isolada. Tal percepção de aceleração já presente, de algum modo, no discurso científico - inclusive em outros autores de abordagens tão distintas como Koselleck, Ricoeur, Marramao e Rosa - entrelaça-se com o discurso do senso comum, vislumbrado numa percepção geral de que os processos sociais se aceleram, de que a vida, a política, o trabalho, a comunicação se desenrolam de forma cada vez mais veloz. Porém, ainda que exista um evidente aumento do discurso sobre a aceleração e a escassez de tempo nos últimos anos, a sensação de que a história, a cultura e as instituições e o próprio tempo se aceleram não é exatamente nova, na medida em que parece ser o traço constitutivo da modernidade como tal (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p.11).

Como foi demonstrado por Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006.), a percepção de uma aceleração tem acompanhado a sociedade moderna ao menos desde o século XVIII. Isso, de certo modo, está atrelado a três temas que se relacionam internamente na modernidade: a crença, primeiro, que a época presente abre sobre o futuro a perspectiva de uma novidade sem precedentes históricos; em seguida, a crença de que essa mudança para melhor se acelera de modo que o intervalo que nos conduzirá a tempos melhores está se encurtando; e, por fim, a crença de que o homem é capaz de fazer sua própria história, de que pode acelerar seu rumo e lutar contra o que atrasa. Nos termos de Koselleck, há uma temporalização da história. Tempos novos, aceleração do progresso e disponibilidade da história, ao se retroalimentarem reciprocamente, contribuíram para o desdobramento de um novo horizonte de expectativa na modernidade (RICOEUR, 1997RICOEUR, Paul. Tempo e narrativa. Campinas (SP): Papirus, 1997- v. 3, p. 363). De fato, a história da modernidade parece estar caracterizada por uma aceleração de grande alcance e repercussão de formas diferentes que passam por processos tecnológicos, econômicos, sociais, jurídicos e culturais e por um esforço por alcançar o ritmo geral de vida (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p.11).

Todavia, não há uma única pauta universal de aceleração, segundo Hartmut Rosa (2017ROSA, Hartmut. Modernidade dessincronizada: aceleração social, destemporalização e alienação: Uma entrevista com Hartmut Rosa realizada por João Lucas Faco Tziminadis. Estudos de sociologia. Araraquara v.22 n.43 p.365-383 jul.-dez. 2017, p.371). Nem tudo está em constante aceleração. Existem coisas que simplesmente não se pode acelerar, como alguns processos corporais, por exemplo - como a gravidez ou certas doenças - e ainda outras que sofreram uma desaceleração como o tráfego nas grandes cidades. Mas o que é importante, num sentido mais sistemático, é que, conforme Rosa: “o processo de modernização, enquanto uma dinamização do mundo conduz a uma forma de equilíbrio social baseado no fenômeno da estabilização dinâmica” (2017, p. 372). A razão de ser das sociedades modernas encontra-se na sua maneira contraditória de estabilização através do movimento. Isso aponta, em sua perspectiva, que a sociedade moderna pode manter sua própria estrutura apenas através da aceleração, crescimento e inovação, o que significa que o mundo como um todo, em sua materialidade, é posto sob pressão para dinamizar-se: pessoas, dinheiro, bens e matérias primas são postos em movimento. Basicamente, é possível, para Rosa, separar esse fenômeno em três categorias analíticas e empiricamente distintas.

A primeira e mais aparente forma de aceleração é a tecnológica, que pode ser definida em relação aos processos intencionais e dirigidos a um objetivo, o que pode ser visto nas transformações que passaram o transporte, a comunicação e a produção. Na idade da globalização e da “utopicalidade” da internet, cada vez mais se concebe o tempo como capaz de comprimir ou mesmo aniquilar o espaço: o espaço se contrai virtualmente em razão da velocidade do transporte e da comunicação (ROSA, 2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p.23). Em muitos aspectos, hoje, o espaço perde seu significado no que se refere à orientação no mundo.

A segunda categoria refere-se à aceleração da própria sociedade. Tanto as atitudes e os valores como a moda, as instituições e os estilos de vida, as relações sociais e as obrigações, assim como os grupos ou classes, as linguagens sociais e também as práticas e os hábitos mudam a um ritmo cada vez maior6 6 Diferentemente do que ocorre com as taxas de aceleração tecnológicas, as taxas de mudança social são difíceis de se medir empiricamente. Segundo Rosa (2011), há pouco consenso na sociologia a respeito de quais são os indicadores relevantes de mudança e quando as alterações ou variações realmente constituem uma mudança social significativa ou pouco relevante. Aqui a sociologia precisaria complementar-se com as contribuições da filosofia social. (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 16). Segundo Hermann Lubbe (2009), as sociedades ocidentais experimentam uma constante contração do presente como consequência da velocidade acelerada das inovações culturais e sociais. A sociedade moderna seria, nesse contexto, uma sociedade marcada por processos dinâmicos em que haveria uma perda da capacidade de se transmitir o conhecimento teórico e prático do passado, a perda da experiência como noção apta a orientar as ações no presente. Essa “contração do presente” encontra apoio na noção de presente tal como concebida por Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006.) que se articula num jogo de tensões que só se realiza no presente entre duas categorias meta-históricas - e, portanto formais - que são o “espaço de experiência”, entendido como um conjunto de heranças e o modo como percebemos, consciente ou inconscientemente, as vivências e como organizamos, narrativamente, as visões do passado, e o “horizonte de expectativa”, aquele sobre o qual se projetam as previsões, as antecipações, os temores e a esperança, até mesmo as utopias que dão o conteúdo ao futuro histórico.

Na formulação de Rosa (2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p. 26), somente dentro desses espaços temporais de relativa estabilidade, pode-se aproveitar as experiências passadas para orientar nossas ações e inferir conclusões a partir do passado com olhos postos no futuro. É nesse sentido que se pode extrair, de fato, orientação, avaliação e expectativa. Em suas palavras, a aceleração estaria definida por uma perda da confiança nas experiências e nas expectativas e pela contração dos lapsos de tempo definíveis como “o presente” (ROSA, 2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p. 26). Há uma espécie de encolhimento do espaço de experiência e o presente passa a ser sentido como um declive escorregadio em constante transformação. Como notou Marramao, “el tempo se escinde en una incessante proyeccion hacia el futuro y em uma incesante atrofia y museificación del pasado, que sustrae progresivamente al presente el espacio de su existencia” (MARRAMAO, 2008MARRAMAO, Giacomo. Kairós: apología del tiempo oportuno. Barcelona: Gedisa, 2008., p. 86). É desse modo que se pode aplicar essa categoria às instituições sociais e culturais e as práticas normativas de todo tipo: o presente se contrai nas dimensões políticas e ocupacionais, tecnológicas e estéticas, normativas e científicas, isto é, em aspectos tanto culturais como estruturais7 7 Para demonstrar essa aceleração, Rosa afirma: “Por el momento quiero sugerir que el cambio en esos dos ámbitos -trabajo y familia- se há acelerado de un ritmo intergeneracional en la sociedad moderna temprana a um ritmo generacional en la ‘modernidad clásica’ y a un ritmo intrageneracional en la modernidad tardía. Por eso, la típica estructura familiar ideal de las sociedades agrarias tendió a permanecer estable a lo largo de los siglos, con una renovación generacional, dejando las estructuras básicas intactas. En la modernidad clásica, esta estructura se construyó para durar por sólo una generación: se organizaba em torno a una pareja y tendía a desaparecer con la muerte de la pareja. En la modernidad tardía existe uma tendencia creciente de los ciclos de vida familiar a durarmenos que la duración de la vida de un individuo: tasas crecientes de divorcio y segundos matrimonios son la prueba más obvia de esto” (ROSA, 2011, p.17). (ROSA, 2016, p. 26). Submetido a uma pressão temporal de se tomar decisões rápidas em consonância com as mudanças sociais, as instituições de hoje estariam marcadas por uma perda progressiva do aprendizado social extraído das experiências vividas, na medida em que todo o discurso sobre contingência e pós-modernidade (ou também modernidade tardia - para Rosa - ou hipermodernidade para Marramao) depende da ideia segundo a qual a estabilidade dessas instituições, como o Direito e a Política, encontra-se em declive. Esse ponto será retomado num momento posterior para pensar o problema específico da Constituição submetida a esse processo aceleratório.

O terceiro e último tipo de aceleração tem, por assim dizer, uma relação paradoxal com a aceleração tecnológica: trata-se da aceleração do ritmo de vida. Se, por um lado, a aceleração tecnológica expõe a diminuição do tempo necessário para levar a cabo processos e ações cotidianas de produção e reprodução, comunicação e transporte, esta deveria levar um aumento do tempo livre, o qual poderia frear o ritmo de vida (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p.18). Em outros termos, o avanço tecnológico deveria produzir um acréscimo no tempo de vida. Porém, ocorre justamente o contrário. A despeito de toda a tecnologia desenvolvida para auxiliar na economia do tempo, quanto mais rápida são essas tecnologias, quanto mais tempo conseguimos economizar, de menos tempo parecemos dispor. A explicação possível, segundo Rosa, para esse paradoxo é que a própria quantidade de atividades mudou ou, mais precisamente, aumentou mais rápido que a correspondente taxa de aceleração tecnológica. Por exemplo, se a velocidade do transporte dobra enquanto que a distância que necessitamos para percorrer quadriplica, necessitamos do dobro do tempo que utilizamos antes: o tempo se tornou, proporcionalmente, escasso.

A tese levantada por Rosa é a de que, pelo menos desde os anos 908 8 “E eu acredito que isso começou a mudar realmente por volta do ano 1990, pois os processos de aceleração social ocorrem em movimentos ondulares, e é justamente nesse período que pelo menos três ondas de aceleração se manifestaram. Uma delas foram as revoluções políticas que levaram à queda do Muro de Berlim e do bloco comunista. A Europa do Leste e a Eurásia possuíam uma temporalidade distinta, e a confrontação entre os blocos funcionava como uma barreira de velocidade. Dessa forma, as revoluções políticas significaram a abertura de uma vastidão de terras e populações à lógica da aceleração. Uma segunda onda teve a ver com a reforma dos mercados financeiros no sentido de desregulação e privatização, o que costumamos chamar de neoliberalismo - o que está relacionado em grande medida com a transformação do modo de produção fordista. E, por fim, obviamente, a revolução digital e o advento da internet” (ROSA, 2017, p. 371). , contexto que ele denomina modernidade tardia, em contraposição à modernidade clássica - fundada a partir do século XVIII -, a aceleração social se impulsionou e tornou-se um sistema que impulsiona a si mesmo. As três formas de aceleração tornaram-se, hoje, um círculo entrelaçado que se retroalimenta e que mobiliza uma a outra de maneira constante. Primeiramente, porque a aceleração tecnológica provoca toda uma série de mudanças nas práticas sociais, nas estruturas de comunicação e nas correspondentes formas de vida, gerando espaços de interação social e novas formas de identidade social mais dinâmicos (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 21). Em segundo lugar, porque a aceleração das mudanças sociais (ou da própria sociedade) supõe uma “contração do presente”, o que conduz a uma aceleração do ritmo de vida, por meio do fenômeno do “declive escorregadio”: o capitalista não pode parar e descansar, nem assegurar sua posição, já que não existe ponto de equilíbrio. Ou se está em ascensão ou em queda, até porque permanecer parado é igual ficar para trás, isto é, tornar-se antiquado, obsoleto, anacrônico. As pessoas se sentem pressionadas a manter o ritmo de velocidade de mudança que experimenta em seu mundo social e tecnológico para evitar a perda de opções e conexões potencialmente valiosas (ROSA, 2011, p. 21-22). Assim, a mudança social acelerada conduzirá a uma aceleração do ritmo de vida e, por sua vez, serão requeridas novas formas de aceleração tecnológica para acelerar os processos da vida produtiva e cotidiana: há, portanto, ciclos de aceleração que funcionam como um processo fechado e auto-impulsionado (ROSA, 2011, p. 22).

4. Os motores da aceleração social

A principal força, conforme Rosa (2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., 2011), que impulsiona esses ciclos de aceleração social nas sociedades ocidentais é, por suposto, o capitalismo. O funcionamento do sistema capitalista está baseado na circulação acelerada de bens e capital frente a uma sociedade orientada pelo crescimento. O tempo do trabalho deve ser muito bem aproveitado de modo a gerar um acúmulo de lucro cada vez maior. Do mesmo modo, novas tecnologias são empregadas para diminuir o custo da produção e estimular a competição. Também, o círculo de produção, distribuição e consumo deve ser estimulado e acelerado constantemente. Para usar a famosa expressão de Benjamin Franklin: “tempo é dinheiro”.

Portanto, a lógica do capitalismo conecta crescimento com aceleração na necessidade de desenvolver a produção e também a produtividade - que pode ser entendida como produção por unidade de tempo (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 22). Com Marx, Rosa (2017ROSA, Hartmut. Modernidade dessincronizada: aceleração social, destemporalização e alienação: Uma entrevista com Hartmut Rosa realizada por João Lucas Faco Tziminadis. Estudos de sociologia. Araraquara v.22 n.43 p.365-383 jul.-dez. 2017, p.373) entende que o sujeito de movimento da sociedade capitalista é o próprio capital, o que torna a competição uma das chaves do sistema e uma das forças motoras da aceleração social, na medida em que seu critério de medida, sua mensuração é o número de efetivações por unidade de tempo. Mas diferentemente de Marx, a lógica da competição não pode ser circunscrita apenas ao capitalismo, não se trata apenas de efeito do sistema. Há competição em diversas esferas da vida social que não a econômica9 9 “A competição, enquanto uma norma de distribuição e alocação de recursos, não é completamente dependente do capitalismo. No campo da ciência, por exemplo, aquele que consegue um emprego como professor ou pesquisador é quem oferece a melhor proposta para tal, aquele que é mais competitivo, e não aquele que possui esse ou aquele status, ou pertence a essa ou aquela classe. O mesmo ocorre no campo da política, ou no âmbito das relações amorosas”. (ROSA, 2017, p.373) . Como consequência, onde quer que exista competição, existe escassez de tempo.

Mas além desse motor de natureza predominantemente econômica, existe um motor cultural da aceleração. A “roda de hamster” da aceleração social não gira por si mesma, mas por nós: somos nós que impulsionamos o moinho (ROSA, 2017ROSA, Hartmut. Modernidade dessincronizada: aceleração social, destemporalização e alienação: Uma entrevista com Hartmut Rosa realizada por João Lucas Faco Tziminadis. Estudos de sociologia. Araraquara v.22 n.43 p.365-383 jul.-dez. 2017, p. 373). E assim o fazemos não apenas pela força bruta do capitalismo que nos coloca a correr constantemente. Ainda que o capitalismo submeta quase tudo a uma pressão aceleratória, esse processo ainda precisa da energia humana e do nosso desejo. “Como Charles Taylor diz, não podemos entender o que e quem somos de modo independente de nossas autointerpretações” (ROSA, 2017, p.374).

O motor da aceleração é impulsionado fortemente por uma poderosa promessa cultural: na sociedade secular, a aceleração tem a mesma função que tinha a promessa religiosa da vida eterna. A sociedade moderna é secular no sentido de que em termos culturais, a ênfase central está coloca antes da morte: a riqueza, a plenitude e o grau de felicidade de uma vida podem ser medidas por meio da profundidade e da quantidade de experiências acumuladas durante essa vida (ROSA, 2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p. 48). Dentro dessa lógica cultural, se continuarmos aumentando a velocidade da vida, com o tempo poderíamos chegar a viver uma multiplicidade de vidas dentro de uma única vida (ROSA, 2011, p. 25). A aceleração do ritmo de vida representa, nessa concepção, a resposta moderna ao problema da finitude e da morte.

Para Rosa, há uma coesão interna entre esses dois motores da aceleração. Nem o motor cultural é uma causa do capitalismo, nem o motor econômico é uma causa da cultura. Ambos se entrelaçam e se nutrem reciprocamente, pois não somos apenas movidos pela promessa de aumento de nosso escopo, mas também pelo medo de que, se não aumentarmos, cairemos em um abismo (ROSA, 2017ROSA, Hartmut. Modernidade dessincronizada: aceleração social, destemporalização e alienação: Uma entrevista com Hartmut Rosa realizada por João Lucas Faco Tziminadis. Estudos de sociologia. Araraquara v.22 n.43 p.365-383 jul.-dez. 2017, p.374).

5. Implicações da aceleração social para o Tempo da Política e do Direito

Do ponto de vista da experiência temporal, o que está em jogo na passagem para a modernidade é a nova articulação entre passado e futuro, inscrita especialmente na relação entre as ideias de progresso e de aceleração, o que, por sua vez, trouxe impactos para a política e para o Direito. Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006.) afirma que só se pode conceber a modernidade como um tempo novo a partir do momento em que as expectativas passam a distanciar-se cada vez mais das experiências feitas até então, no sentido de que as mudanças passam a ser produzidas de forma mais acelerada e o futuro se torna aberto e desconhecido. Se antes do século XVIII, era possível contar-se com a “futuridade do passado”, isto é, com a expectativa de que o futuro seria igual ao passado no sentido de que era possível tirar lições e conclusões dele no amanhã, a modernidade inaugura, em contraposição, a ideia da radicalidade do futuro, vivido no presente como aceleração, o que tornou descartável a experiência e a tradição.

Essa passagem pode ser vista, segundo Koselleck (2006KOSELLECK, Reinhart. Futuro passado: contribuição à semântica dos tempos históricos. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio, Contraponto, 2006., p.49-50), por meio de uma mudança significativa do vocabulário na segunda metade do séc. XVIII na Alemanha. Progressivamente, a palavra Geschichte vai sendo substituída pelo termo Historie. Historie traduz a ideia de narrativas dos acontecimentos, enquanto geschichte significa história no singular, um singular coletivo. As histórias de alguma coisa ou de alguém tornaram-se simplesmente a História. E isso traduz uma ideia de sistema, uma ideia de unidade, como se a história fosse uma epopeia única, uma história universal: os homens constroem a história, como singular coletivo, com suas próprias mãos. A história passa a ser a síntese de vários tempos e particularidades em um movimento único, linear e universal de um percurso estruturado de desenvolvimento, que se inicia na barbárie e se orienta na direção de um futuro luminoso (DUARTE, 2012DUARTE, João de Azevedo e Dias. Tempo e crise na teoria da modernidade de Reinhart Koselleck. História da historiografía, n. 8, p. 70-90, 2012., p.75). Essa ideia de temporalização da história, como nota Marramao, pressupõe:

um processo indefinido caracterizado pela passagem a estados sempre melhores, enquanto prospecção do futuro, se entrelaça intimamente com a ideia de planificação. A superação entre razão e tempo mundano - a apropriação do tempo enquanto campo de aplicação dos artefatos, dos projetos racionais, em suma, das formas produzidas pelo “pensamento consciente” do homem - é, no entanto, possível não somente, na medida em que a história tem um “sentido”, mas na medida em que esse sentido coincide com a sua “direção” (MARRAMAO, 1995MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. São Paulo: UNESP, 1995, p. 108).

Concebendo a história como progresso orientado, a política da modernidade clássica articulou-se em tornos de noções temporais a partir de denominações próprias como “progressistas” e “conservadores”: a política progressista buscou acelerar este movimento histórico para tempos melhores, enquanto que a política conservadora se estruturou de modo reacionário ao se opor às forças de mudança e de aceleração (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 35). A própria ideia de Constituição surgiu como espaço de atuação das forças progressistas, reestruturando também as relações entre tempo e direito num movimento próprio da modernidade.

A Constituição, conforme Luhmann (1996LUHMANN, Niklas. A Constituição como Aquisição Evolutiva. 39p. Tradução livrem feita por Menelick de Carvalho Netto para fins acadêmicos da obra: La costituzione come acquisizione evolutiva. In: ZAGREBELSKY, Gustavo (coord.). et alli. Il Futuro Della Costituzione. Torino: Einaudi, 1996., p.1), desenvolveu-se sob o fundo de uma concepção dinâmica de história, na medida em que foi fundada em algum momento do tempo presente, não como um processo único, que tenha acontecido de uma só vez, mas que ao contrário, algo que pode ser posteriormente replanejado através de interpretações e eventuais emendas ao seu texto10 10 Sobre uma análise mais profunda sobre a relação entre tempo e Constituição em Luhmann, ver Costa Junior (2012). . No lugar de encontrar sua legitimidade em uma normatividade estática advinda do passado, da tradição ou de concepções de ordem metafísicas - e, portanto, fora da temporalidade mesma -, ela se abre ao futuro, pois funda a política e o direito que passam a funcionar a partir do referencial constitucional, estando ambos submetidos a uma construção continuada no tempo. O ato fundador não está assim fixado intemporalmente, mas passa a funcionar como um projeto permanente, “dirigeant progressivement le cours de l’évolution sociale au long du processus historique” (ROSA, 2010ROSA, Hartmut (Ed.). High-speed society: Social acceleration, power, and modernity. Penn State Press, 2010., p. 307). Trata-se, genuinamente, de um ato performativo que é ele mesmo, um ato constituinte, um processo de constitucionalização que se prolonga no tempo e se inscreve na própria historicidade, ao mesmo tempo em que se faz reafirmação e ruptura, contendo um sentido normativo, que nele mesmo se expressa (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição. Belo Horizonte: Arraes, 2017., p. 114).

A Constituição funciona, assim, como um projeto performativo que organiza jurídico e politicamente a sociedade no tempo: ela ratifica que o futuro pode ser diferente do passado, que a evolução social futura pode ser atingida, dirigida e organizada num quadro político democrático, que os critérios normativos definem os objetivos dessa organização existente ou mesmo poderão ser estabelecidos através de um consenso político coletivo, ainda que se possa revisá-lo11 11 Hartmut Rosa não teoriza especificamente sobre o papel da Constituição na modernidade, mas sua reflexão sobre a política caminha num sentido bem próximo. O projeto político da modernidade e a ideia que a funda de uma organização democrática dos modos de vida coletivos - tal como pensado por Rosa (2010, p. 307) -estruturou-se, fundamentalmente, por meio das Constituições normativas a partir das revoluções do séc. XVIII, o que justifica a nossa leitura. (ROSA, 2010ROSA, Hartmut (Ed.). High-speed society: Social acceleration, power, and modernity. Penn State Press, 2010., p. 308). Para Rosa (2010ROSA, Hartmut (Ed.). High-speed society: Social acceleration, power, and modernity. Penn State Press, 2010., p. 308), a própria democracia política delineada aí está imediatamente ligada a uma visão da história temporalizada, tal como concebida por Koselleck. Do mesmo modo, diríamos que os direitos fundamentais, definidos constitucionalmente, permitem orientar expectativas sociais numa dinâmica de realização histórica com vistas na concretização de promessas de autonomia e de emancipação, estando abertos a reconstrução insaturável do seu sentido.

A Constituição relaciona-se com as estruturas temporais da sociedade também porque define um sistema de regras e princípios assim como os procedimentos por meio dos quais se desenvolverão as diversas estruturas de formação de vontade política e da tomada de decisão, inerentes ao sistema democrático de modo que sejam compatíveis com o ritmo e a duração das evoluções sociais. Segundo Rosa (2010ROSA, Hartmut (Ed.). High-speed society: Social acceleration, power, and modernity. Penn State Press, 2010., p. 308), deve haver algum tipo de relação sincronizada entre as tomadas de decisão coletiva e o curso dessas evoluções sociais, de modo que o sistema político tenha o tempo de tomar as decisões fundamentais e de organizar diante disso o processo democrático e deliberativo de formação de vontade. É nesse sentido que a Constituição deve proporcionar condições estáveis e de longa duração que permita, ao mesmo tempo, abertura do seu conteúdo de forma que as gerações subsequentes tenham o direito de deliberar sobre a vida pública na experiência histórica de uma comunidade política. Ela representa, em termos normativos, o entrelaçamento entre a experiência da dinamização social e a expectativa de direcionamento do movimento através dos seus direitos fundamentais - de conteúdo insaturável - e os critérios político-jurídicos democraticamente articulados.

Ora, sob essa expectativa, a aceleração social combina-se muito bem com o projeto constitucional por não poder ser considerada senão meio para o progresso e para a realização da autonomia privada e pública. Porém, a tese levantada por Rosa é a de que nos dias de hoje, na modernidade dita tardia, a aceleração passa a converter-se em um fim em si mesmo, o que coloca em risco as promessas modernas de emancipação assim como a estabilidade das instituições político-jurídicas que poderiam funcionar nessa direção. O impulso à aceleração e ao crescimento se tornaram desejos autojustificados e passaram, agora, a funcionar como imperativos de ação: o movimento é o fim e a condição do próprio movimento. Sob esse aspecto, a “condição pós-moderna”, como nota Marramao 1995MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. São Paulo: UNESP, 1995, p.170), não se encontra completamente numa relação de ruptura, mas antes de íntima continuidade (ainda que seja uma continuidade de filha ilegítima) com o moderno. Crescer, expandir e dinamizar que já eram aspirações modernas tornam-se, hoje, uma necessidade que se justifica a si mesma. Mas a aceleração divorciou-se da responsabilidade e também da carga moral do progresso.

Assim, há uma nítida interdependência entre o déficit crônico de legitimação dos Estados contemporâneos e a aceleração dos dias de hoje, como nota Marramao (1995MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. São Paulo: UNESP, 1995, p.170), na queda do futuro como potência simbólica frente a uma síndrome da pressa. Essa aceleração que acomete as estruturas institucionais e normativas na modernidade tardia (ou hipermodernidade) é um sintoma da dificuldade de manter o simbolismo social: consequência de produzir o programa da futurização sem ter mais a possibilidade do recurso simbolicamente eficaz aos mitos do progresso e da revolução (MARRAMAO, 1995MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. São Paulo: UNESP, 1995, p. 170). O tempo da modernidade tardia é, pois, o tempo do sacrifício do presente, tempo sempre a perder, tempo de mera subtração:

Com a passagem da era do progresso à era da modernização, a futurização perde sua polaridade axiológica, deixando livre o caminho para a pura e simples aceleração: o desejo e a tensão do futuro se revertem em frustração e ‘anomia’. O Moderno, de excitante aventura das margens e dos limites, transforma-se numa progressão geométrica eternamente ameaçada pelo abismo e pela voragem do presente. O Futuro não é mais intencionado e projetado como finalidade, mas como etapa a ser queimada: existe apenas para ser consumido o mais rapidamente possível e deixado para trás, depositado na margem perigosamente mínima deixada à experiência. A época da modernização é a época do definitivo ‘contrair-se’ do hiato entre passado e futuro, do futuro que transcorre com imperceptível rapidez no passado: é a época do vergangene Zukunft, do futuro passado (MARRAMAO, 1995MARRAMAO, Giacomo. Poder e secularização: as categorias do tempo. São Paulo: UNESP, 1995, p.118-119).

O futuro, hoje, perdeu de forma irremediável o seu significado prospectivo: ele antes uma fronteira fugaz que se retira e que deixamos para trás, como as dunas de areia (MAARAMAO, 1995, p. 119). Como consequência, a própria Constituição como projeto converteu-se num obstáculo da aceleração “pós-moderna”. A ideia de uma instituição político-jurídica cuja raiz latina indica seu caráter estável, prospectivo e duradouro é, pois, incompatível com a ideia de uma aceleração “total” (ROSA,2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p.35).

Ironicamente, hoje em dia, aqueles referenciais temporais da política moderna também se inverteram. Os progressistas hoje tendem a simpatizar com os defensores da desaceleração em pautas como controle político da economia, negociação democrática, proteção do meio ambiente e defesa de direitos fundamentais que asseguram o Estado de bem-estar social; enquanto que os conservadores converteram-se como fortes defensores da necessidade de uma maior aceleração, incluindo as novas tecnologias, a velocidade dos mercados econômicos, a expansão do processo de privatização e a rápida tomada de decisão administrativa (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 35). As forças de aceleração, assim, sobrepuseram-se às mesmas instituições político-jurídicas que as colocaram em marcha como o próprio Estado Constitucional que, agora, se vê no risco de erosão dos seus direitos fundamentais que historicamente colocaram em marcha a aceleração social. A estabilização dinâmica, operada mediante a articulação entre Constituição e aceleração na modernidade, entra em colapso, atualmente, de maneira que o momento da estabilização se desestabiliza de forma assustadora pelas forças da dinamização. Com isso, a própria função das Constituições é posta em risco, seu papel de guiar a comunidade política através do horizonte da emancipação e da autonomia está, precisamente, em crise. Quanto menos direitos, mais eficiência.

Como efeito, o discurso constitucional tornou-se, para usarmos a expressão de Rosa, “situacionista”: ele já não aspira ao seu horizonte normativo condutor do desenvolvimento social, ao contrário, ele se limita, em sua essência, a reagir às pressões aceleratórias, no lugar de desenvolver perspectivas progressistas próprias. Os compromissos de longo prazo e o sentido performativo do projeto constituinte cedem lugar a “una sensación de cambio frénetico y carente de dirección” (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 36). A orientação da Constituição em direção ao futuro como uma narrativa que é construída e se prolonga no tempo para mobilizar forças de transformação social não faz sentido num presente comprimido, sem experiência e expectativa, que se reduz a responder ao contingencial. As decisões assim são tomadas de vez em quando, segundo as necessidades e desejos situacionais e contextuais (ROSA, 2011, p.33), numa permanente revisão de pressupostos e comprometimentos normativos temporalmente estendidos.

Essa temporalização do tempo da Constituição equivale, paradoxalmente, a destemporalização do tempo Constitucional. A dificuldade de se retomar retrospectivamente os sentidos das “origens” do projeto constitucional no sentido de sua abertura ao porvir político conduz a uma lógica presentista destemporalizada em que os momentos são desconectados uns dos outros, profundamente vulneráveis às contingências e desvinculados das promessas da modernidade. Isso logicamente compromete o próprio aprendizado social contido na dinâmica das lutas progressistas por direitos que são travadas em torno dos significados da Constituição, o que abre caminho para a perda da memória dos percursos dessas lutas por reconhecimento e o retrocesso dos direitos já conquistados (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n. 3, jan./jun., 2010., p.45).

De forma paradoxal também, o novo já nasce velho. As propostas de reformas e estratégias de mudanças constitucionais não são mais impostas em torno do comprometimento com uma vida privada e pública autônoma e reflexiva, mas motivadas pela ameaça da perda da competividade. O discurso constitucional submete-se assim a uma miopia: torna-se refém da situação imediata, geralmente reivindicada pelo discurso vazio do crescimento do PIB e pela suposta necessidade de salvaguardar mercados, em detrimento de visões históricas bem elaboradas ou estratégias político-normativas de longo prazo. “Avec chaque nouveau présent, le monde change, et l’on peut em déduire que l’avenir qui nous fait face n’est qu’un avenir présent. Le futur est irrémédiablement inconnu” (ROSA, 2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016., p. 328).

Portanto, essa temporalização destemporalizada, conduzida pela pressão aceleratória autojustificada em si mesma, provoca, assim, uma dessincronização das esferas sociais. A incapacidade de envolver-se em comprometimentos públicos de longa duração e de desenvolver prioridades resistentes ao tempo - como é o caso dos direitos sociais -, parece impor ao tempo da Constituição um dinamismo - próprio da Economia - que conduz a sua erosão. A aceleração fixa um tempo da Constituição dessincronizado, porque sensível a uma sensação de movimento frenético e sem rumo incompatível com o sentido normativo de direção, prioridade e narratividade da vida pública que seu projeto carrega.

6. A “ponte para o futuro” como projeto de aceleração dessincronizado

No dia 31 de agosto de 2016, o então Vice-presidente em exercício, Michel Temer, assumiu peremptoriamente a presidência do Brasil em razão do processo de impeachment sofrido pela Presidente Dilma Rousseff. A plataforma colocada em prática pelo novo governo foi intitulada “Uma ponte para o futuro” e apresentou um plano normativo de contrarreformas, em aberta divergência à agenda de propostas do governo anterior, democraticamente eleito e do qual Temer fazia parte. A hipótese a ser defendida aqui é a de que essa ponte para o futuro e sua expressão máxima, a Emenda Constitucional n. 95, constituem num projeto de aceleração social, tal como se vem delineando no decorrer desse texto, que implica desincronização do tempo da Constituição e, com isso, desintegração social.

“Uma ponte para o futuro” foi formalizada num documento de 19 páginas e lançada pelo PMDB juntamente com a Fundação Ulysses Guimarães (FUG), instituição privada sem fins lucrativos sediada em Brasília. O documento (PMDB, 2015) tem profundas ligações com outro, elaborado pela Confederação Nacional da Indústria (CNI), intitulado como “Propostas da Indústria para as Eleições 2014” (CNI, 2014), em diversas dimensões.

Em ambos, é apresentada a necessidade de se reformular o regime fiscal nacional, a partir da redução de gastos públicos, a expansão dos processos de privatização e terceirização e a redução de custos tributários e trabalhistas para as empresas ligadas ao comércio, indústria e agronegócio, dentre outras pautas de ideologia manifestamente neoliberal. A modernização do Brasil, nessa perspectiva, deveria se impor como um imperativo econômico de desenvolvimento e expansão pautado na autovalorização do capital, sujeito, para Rosa (2016ROSA, Hartmut. Alienación y aceleración: hacia una teoría crítica de la temporalidad en la modernidad tardía. Vol. 2047. Katz Editores, 2016.), da aceleração nas sociedades modernas. Questões como incremento da competitividade e expansão de mercado passam a ser apropriados de forma independente de processos normativos de desenvolvimento social e de erradicação da pobreza, delineados na Constituição de 1988.

Segundo o próprio documento apresentado pelo ex presidente Michel Temer, “voltado para o crescimento e não para o impasse e a estagnação” (PMDB, 2015, p. 9), “este programa destina-se a preservar a economia brasileira e tornar viável o seu desenvolvimento” (PMDB, 2015, p. 2).

O discurso, contido na proposta apresentada, prenuncia uma lógica de crescimento para o Brasil que se assemelha com a da aceleração: um crescimento enquanto movimento de expansão inevitável que se justifica por si mesmo e cujo sentido é predominantemente (ou até mesmo unilateralmente) econômico. Esse mesmo significado de crescimento é reforçado em outros trechos como: “crescer a economia não é uma escolha que podemos fazer, ou não. É um imperativo de justiça” (PMDB, 2015, p. 8); os “motores esgotaram-se e um novo ciclo de crescimento deverá apoiar-se no investimento privado e nos ganhos de competitividade do setor externo, tanto do agronegócio, quanto do setor industrial” (PMDB, 2015, p. 17); “recriar um ambiente econômico estimulante para o setor privado deve ser a orientação de uma política correta de crescimento” (PMDB, 2015, p. 17); “devemos nos preparar rapidamente para uma abertura comercial que torne nosso setor produtivo mais competitivo” (PMDB, 2015, p. 17).

No mesmo programa, o que se verifica é que tal exigência de aceleração é articulada por meio de um discurso fatalista que reforça o atraso e o fracasso das instituições político-jurídicas, a partir da construção de um cenário catastrófico para o Brasil. Nos termos do programa:

A parte mais importante dos desequilíbrios é de natureza estrutural e está relacionada à forma como funciona o Estado brasileiro. Ainda que mudássemos completamente o modo de governar o dia a dia, com comedimento e responsabilidade, mesmo assim o problema fiscal persistiria. Para enfrentá-lo teremos que mudar leis e até mesmo normas constitucionais, sem o que a crise fiscal voltará sempre, e cada vez mais intratável, até chegarmos finalmente a uma espécie de colapso (PMDB, 2015, p.5-6, grifo nosso).

Com base nessa narrativa que prioriza o sentido pejorativo das experiências do Estado Brasileiro, o caminho que se propõe é o da via única, imprescindível e urgente. A ponte que se deve edificar para o futuro contém uma dimensão de inexorabilidade frente a uma história contada de uma vez por todas, intocável e com o sentido necessário, absoluto, definitivo:

Todas as iniciativas aqui expostas constituem uma necessidade, e quase um consenso, no país. A inércia e a imobilidade política têm impedido que elas se concretizem. A presente crise fiscal e, principalmente econômica, com retração do PIB, alta inflação, juros muito elevados, desemprego crescente, paralisação dos investimentos produtivos e a completa ausência de horizontes estão obrigando a sociedade a encarar de frente o seu destino (PMDB, 2015, p. 2, grifo nosso).

Se “no Brasil de hoje a crise fiscal, traduzida em déficits elevados, e a tendência do endividamento do Estado, tornou-se o mais importante obstáculo para a retomada do crescimento econômico” (PMDB, 2015, p. 2, grifo nosso), não haveria outra solução senão o congelamento dos gastos públicos por 20 anos em áreas como saúde, educação, moradia. “Não temos outro caminho a não ser procurar o entendimento e a cooperação” (PMDB, 2015, p.2). A culpa da crise seria do Estado, tal como desenhado na Constituição, prolongando-se a suas prestações positivas. “As despesas públicas primárias, ou não financeiras, têm crescido sistematicamente acima do crescimento do PIB, a partir da Constituição de 1988. Em parte estes aumentos se devem a novos encargos atribuídos ao Estado pela Constituição” (PMDB, 2015, p.6-7). Faltaria à Constituição justamente flexibilidade, maleabilidade, dinamicidade:

Na forma como está desenhada na Constituição e nas leis posteriores, que resultam em excessiva rigidez nas despesas, o que torna o desequilíbrio fiscal permanente e cada vez mais grave. É a leitura destas regras que alimenta os prognósticos cada vez mais sombrios sobre o futuro das nossas contas públicas (PMDB, 2015, p.8).

O desejado crescimento explicitado no programa de Temer opor-se-ia ao ritmo cadenciado do tempo da Constituição que implicaria “estagnação ou retração econômica” (PMDB, 2015, p.5). Com isso, seria preciso:

aprovar leis e emendas constitucionais que [...]aproveite os mais de 25 anos de experiência decorridos após a promulgação da Carta Magna, para corrigir suas disfuncionalidades e reordenar com mais justiça e racionalidade os termos dos conflitos distributivos arbitrados pelos processos legislativos e as ações dos governos (PMDB, 2015, p. 16, grifo nosso).

Resta saber que disfuncionalidades são essas. Quais os vícios da Constituição sobre os quais o programa “Uma ponte para o futuro” se refere? Trata-se dos próprios compromissos de longa duração, delineados pelos direitos sociais que ela vincula em seu projeto, que se sobrepõem a imediatismos contingenciais. As ditas disfuncionalidades referem-se, paradoxalmente, a própria funcionalidade da Constituição na modernidade: “a própria expressão contrafática de compromissos entre as forças políticas e sociais, num determinado momento da história vista como um processo de aprendizado social em longo prazo” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2017CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Contribuições para uma Teoria Crítica da Constituição. Belo Horizonte: Arraes, 2017., p. 116). Ora, a Constituição que se propunha dirigir - leia-se, obrigar - os governos a implementarem políticas públicas que pusessem em marcha o que foi pactuado em 1988 é entendida como prejudicial aos interesses do país, causadora última das crises econômicas, do déficit público e da “ingovernabilidade” (STRECK, 2016STRECK, Lenio Luiz. Do AI-5 à PEC 55: receita para destruir uma Constituição e um país. Carta Maior. 12/12/2016. Disponível em: <https://www.cartamaior.com.br/?/Editoria/Politica/Do-AI-5-a-PEC-55-receita-para-destruir-uma-Constituicao-e-um-pais/4/37432> Acesso em: 20-dez-2017.
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). Segundo o documento, “esta mesma Constituição e legislações posteriores criaram dispositivos que tornaram muito difícil a administração do orçamento e isto contribuiu para a desastrosa situação em que hoje vivemos” (PMDB, 2015, p.7). A ponte que conduz ao futuro, construída pela Emenda Constitucional n. 95, se trata, supostamente, de desfazer esse “mal” da fixidez a partir de um novo regime fiscal que acelere a resolução dos problemas postos pelo projeto constituinte:

É necessário em primeiro lugar acabar com as vinculações constitucionais estabelecidas, como no caso dos gastos com saúde e com educação, em razão do receio de que o Executivo pudesse contingenciar, ou mesmo cortar esses gastos em caso de necessidade, porque no Brasil o orçamento não é impositivo e o Poder Executivo pode ou não executar a despesa orçada (PMDB, 2015, p.).

Essa pretensa agenda normativa para o desenvolvimento impõe sérios riscos à Constituição de 1988, em termos de desincronização e desintegração social. Há paradoxos insuperáveis nessa “ponte para o futuro” de modo que se deve, pois, perguntar, com Derrida e Roudinesco (2004DERRIDA, Jacques. ROUDINESCO, Elisabeth. De que Amanhã. Diálogo. Trad. André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2004): “qual amanhã?” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n. 3, jan./jun., 2010., p.52). A demasiada ênfase no crescimento não se trata da satisfação de necessidades concretas, mas de uma produção direcionada a um contínuo aumento escalar da própria produção do setor privado ad infinitum e de um desinteresse pela lógica própria dos comprometimentos públicos de distribuição e inclusão social. A pressão pelo desenvolvimento econômico tende a se manter em detrimento dos direitos que amparam a integração social, o que leva ao declínio do horizonte normativo da Constituição.

A Constituição passa a funcionar numa estrutura de linguagem que lhe é estranha. Ao invés de se falar em direitos, fala-se em “necessidade inerente” e “inevitável ajuste” (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49.). No lugar de um núcleo de proteção de minorias e de vulneráveis dilatado no tempo, a proposta anuncia “a formação de uma maioria política, mesmo que transitória ou circunstancial, capaz de num curto prazo produzir todas estas decisões na sociedade e no Congresso Nacional” (PMDB, 2015, p. 2). A compulsão ao movimento já não implica uma projeção longitudinal. O congelamento dos gastos públicos das despesas primárias, como saúde e educação é justificado pelo alto contingenciamento econômico, sobretudo pela imprevisibilidade e volatilidade dos mercados financeiros. Trata-se de ajustar compromissos públicos duráveis - por meio da limitação de recursos para os direitos sociais - às pressões imediatistas do mercado “em termos que tornem possível à adaptação a circunstâncias excepcionais” (PMDB, 2015, p. 10).

Situação inversa a da saúde e da educação - que são direitos fundamentais, nunca é demais lembrar, e por isso possuem natureza vinculante e não programática- é a da destinação de recursos da União para o pagamento da dívida pública. Por não se tratar de uma despesa primária, a dívida ficou de fora dos limites impostos pela Emenda 95 e pode crescer sem controle e limitação. Com o teto dos gastos públicos, a tendência é ainda de cada vez mais recursos federais sejam deslocados para o pagamento de juros e amortizações da dívida. Só no ano de 2018, tais recursos consumiram por volta de 40 % do orçamento da União, muito mais do que todos os gastos juntos dos programas sociais do Estado. É desse modo que o ajuste fiscal ganhou status constitucional a partir de um processo perverso de desconstitucionalização do projeto constituinte. Não se trata, pois, de reforma, mas de rompimento com a Constituição.

Essa emenda desconstituinte (CATTONI DE OLIVEIRA, 2016CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Breves considerações iniciais sobre a PEC n. 241 (“Novo Regime Fiscal”): o estado de exceção econômico e a subversão da Constituição democrática de 1988. 2016. Empório do Direito. Disponível em: http://emporiododireito.com.br/leitura/breves-consideracoes-iniciais-sobre-a-pec-n-241-novo-regime-fiscal-o-estado-de-excecao-economico-e-a-subversao-da-constituicao-democratica-de-1988-por-marcelo-andrade-cattoni-de-oliveira . Acesso em: 9 nov. 2017.
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) está, pois, relacionada a um processo maior que integra a própria lógica interna dos subsistemas Direito e Economia e a capacidade de reproduzirem-se autonomamente. Contrariamente à opinião generalizada, a modernidade não estabeleceu apenas uma forma unitária de tempo linear e abstrato que sincronize todos os seus diversos subsistemas (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p. 38): cada subsistema na modernidade opera de modo autônomo dentro de sua própria linguagem (LUHMANN, 1983LUHMANN, Niklas. Sociologia do Direito I. Rio de Janeiro : Tempo Brasileiro, 1983) como “la economia, la ciencia, el derecho, la politica, las artes, etc., cada uno de los cuales sigue sus proprios ritmos temporales, pautas y horizontes” (ROSA, 2011, p. 38). Da mesma forma não existe um centro unificador social ou substancial que governe as operações subsistêmicas, não existe tampouco uma autoridade temporal integradora, e isto resulta por sua vez numa crescente desincronização temporal (ROSA, 2011, p.38).

Para a Constituição, isto implica verdadeiros horizontes temporais paradoxais. Em primeiro lugar, porque o tempo necessário para a tomada de decisões políticas democráticas e também de realização continuada das promessas da modernidade, inscritas em uma Constituição é muito difícil de acelerar, na medida em que os processos de deliberação numa sociedade democrática e pluralista assim como os de realização dos direitos sociais, especialmente num país tão desigual como o Brasil, inevitavelmente exigem tempo. A Constituição, reiteramos, funciona numa temporalidade outra que a do mercado: sua concretização é tarefa presente e permanente de longa duração. Por outro lado, a lógica da Economia conecta crescimento com aceleração no sentido que a produção e a produtividade devem se desenvolver em tempos cada vez mais curtos: “tempo é dinheiro”, repetimos com Benjamin Franklin.

Como consequência, o horizonte temporal da Constituição precisa contrair continuamente com a primazia do prazo curto do mercado. Essas pressões temporais contraditórias impõem não só uma lógica situacionista, sem direção; também exige que a Constituição se acelere a tal ponto de modo a perder sua autonomia. O teto de gastos públicos impõe a transferência progressiva da tomada de decisão sobre o orçamento federal, próprio do jogo político democrático, para a arena econômica numa lógica que conduz a uma expansão desenfreada da privatização e da desregulamentação. Com capacidade de investimento limitado, há não só um processo progressivo de obsolescência constitucional diante do recuo de políticas públicas, mas igualmente um enfraquecimento do Estado que torna-se, a cada dia, refém do setor privado, pois passa a ter mais poder de negociação e de articulação nas decisões estatais12 12 “Ao longo dos anos, com o teto sufocando cada vez mais as demandas da sociedade e com a lenta retomada econômica, decorrente inclusive dessa escolha de política fiscal de austeridade, o governo tem que realizar cortes orçamentários. Como o governo tem dificuldade em cortar as despesas com serviços públicos, por serem em sua maioria obrigatórias, a tesoura recai sobre as despesas com investimento, estas discricionárias, ou seja, o governo não tem obrigação de executar. O resultado disso é que o investimento público chegou em 2017 ao menor nível em quase 50 anos, de acordo com Orair e Gobetti. União, estados e municípios investiram apenas 1,17% do PIB - valor sequer suficiente para garantir a conservação da infraestrutura já existente” Disponível https://www.inesc.org.br/para-manter-teto-dos-gastos-governo-burla-constituicao-na-ldo-2019/. .

O tempo da duração dos direitos fundamentais e da orientação de horizontes normativos sede lugar para o tempo da competitividade, da imediaticidade dos mercados e da austeridade. “La configuración política deliberada y democrática de nuestra sociedad y nuestra forma de vida, el proyecto político y la promesa de la modernidad ilustrada, parece por tanto volverse obsoleta em esta ‘sociedade de la aceleración’ de la modernidad tardía” (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49., p.40). Esse processo de des-diferenciação dos subsistemas Direito e Economia conduz aquilo que Bercovici (2005BERCOVICI, Gilberto. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. Boletim de Ciências Económicas, vol. XLVIII, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2005, pp. 1-9., p.1) chamou, com base numa leitura criativa de Schmitt, “estado de exceção econômico” a que está submetida, especialmente, a periferia do capitalismo. Especialmente nos Estados periféricos, há o convívio do decisionismo de emergência para salvar os mercados com o funcionamento dos poderes constitucionais, bem como a subordinação do Estado ao mercado, com a adaptação do direito interno às necessidades do capital financeiro, exigindo cada vez mais flexibilidade para reduzir as possibilidades de interferência da soberania popular: enfim, a razão de mercado passa a ser a nova razão de Estado (BERCOVICI, 2005BERCOVICI, Gilberto. O estado de exceção econômico e a periferia do capitalismo. Boletim de Ciências Económicas, vol. XLVIII, Coimbra, Universidade de Coimbra, 2005, pp. 1-9., p.4). Trata-se, com isso, de submeter direitos fundamentais à lógica da acumulação capitalista.

Mas esse processo de desincronização operado pela Emenda 95 não se restringe às relações sistêmicas entre Constituição e Economia, ele se impõe aos diferentes grupos e segmentos da sociedade brasileira. O crescimento preconizado na “ponte para o futuro” tende a se manter mesmo sob o risco da fragilização das mediações normativas delineadas pela Constituição que sustentam a integração social. Isso quer dizer que relações de maior densidade e de menor capacidade de aceleração tendem a ser externalizadas, ou melhor, expulsas do sistema autorregulado do modo de estabilização dinâmica (TZIMINADIS, 2018TZIMINADIS, João Lucas Faco. Frenesi em suspensão: em direção a um modelo crítico a partir da teoria da aceleração social de Hartmut Rosa. 2018. Universidade Estadual Paulista Julio de Mesquista Filho., p. 71). O Novo Regime Fiscal já começou a desproporcionalmente afetar grupos em desvantagem, tais como as mulheres negras e pessoas vivendo em situação de pobreza, aumentando os níveis de desigualdade de classe, de raça e de gênero em suas relações interseccionais com o desmonte das políticas de transferência de renda.

Essa perspectiva é confirmada pelo estudo, realizado pelo Instituto de Estudos Socioeconômicos (Inesc) em parceria com a Oxfam Brasil e Centro para os Direitos Econômicos e Sociais (Center for Economic and Social Rights - CESR, em inglês), que fez um levantamento dos gastos governamentais desde 2015 a 2017, primeiro ano em que a Emenda Constitucional vigorou. A avaliação é a de que, entre os programas que apresentaram maior redução de recursos públicos no período, destacaram-se aqueles que possuem elevado impacto nas pessoas em condição de vulnerabilidade, sendo que as políticas públicas voltadas para a promoção dos direitos fundamentais sofreram queda de até 83% nesses anos:

GRÁFICO 1:
variação (%) da dotação orçamentária nominal por programa selecionado, 2014 a 2017

O gráfico 1 permite ainda extrair uma conclusão adicional relevante: nesses três anos analisados, o Brasil experimentou expressiva transferência de recursos públicos de programas sociais relevantes para os serviços da dívida pública, o que traduz uma significativa redistribuição inversa dos recursos públicos, das populações vulneráveis para as mais ricas13 13 No sentido contrário do que temos demonstrado, em novembro de 2016, o assessor especial do Ministro da Fazenda, Marcos Mendes, em audiência pública conjunta da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal buscou desconstruir o que ele chamava de mito em torno do teto dos gastos públicos, alegando que a reforma “vai beneficiar os mais pobres e a despesa com juros vai cair” (MENDES, 2016). A partir dos dados aqui apresentados, se confirma a falta de embasamento dos seus argumentos. (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018DAVID, Grazielle; LUSIANI, Nicholas; CHAPARRO, Sérgio (orgs). Monitoramento dos Direitos Humanos em tempos de austeridade no Brasil. Estudo realizado por Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Center for Economic and Social Rights (CESR) e Oxfam Brasil. 2018. Disponível em https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Rel_Dir_Hum_Temp_Aust-NOVO-1-_V3.pdf?x63825 Acesso em 10 de dezembro de 2019.
https://www.inesc.org.br/wp-content/uplo...
, P.10). Isso ainda pode ser reforçado a partir do gráfico 2, extraído dos mesmos dados levantados. Ele revela que, entre os anos de 2015 e 2016, a proporção do orçamento gasto com despesas financeiras (serviços da dívida) cresceu 2% em termos reais, o que implicou igual perda para as despesas primárias (programas sociais) (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018, P.10):

GRÁFICO 2:
Proporção da despesa total do Orçamento Geral da União com despesas primárias e despesas financeiras (%), 2014 a 2017

O que se vê é uma política de austeridade seletiva que suspende o projeto constituinte no que se refere ao horizonte normativo do uso máximo de recursos disponíveis para a realização progressiva dos direitos fundamentais14 14 Esse horizonte normativo do projeto constituinte de 1988 pode ser extraído de pelo menos dois princípios. O primeiro e mais óbvio é o princípio do uso máximo dos recursos disponíveis, ancorado no art. 2 do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, do qual o Brasil é signatário desde 1992, que estabelece que “Cada Estado-Parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até no máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (PIDESC, 1966). Sobre tal princípio, ver Oliveira (2007), O segundo princípio é o da vedação do retrocesso social que em seu sentido mais amplo possui duas dimensões, uma negativa e a outra positiva: a negativa refere-se à obrigação da não supressão de direitos sociais nem mesmo redução de seu sentido normativo; a positiva refere-se à exigência do Estado de implementar programas que possibilitem o avanço na concretização de direitos sociais de modo a reduzir as desigualdades sociais. Sobre tal princípio, ver Sarlet (2015). de modo a agravar o quadro de desigualdades no Brasil, que já é um dos piores do mundo15 15 Os 10% mais ricos recebem mais da metade de toda a renda nacional18. A concentração de renda do 1% dos brasileiros no topo é a maior do mundo19, com os seis maiores bilionários do país possuindo riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres, metade da população . Os dados (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018DAVID, Grazielle; LUSIANI, Nicholas; CHAPARRO, Sérgio (orgs). Monitoramento dos Direitos Humanos em tempos de austeridade no Brasil. Estudo realizado por Instituto de Estudos Socioeconômicos (INESC), Center for Economic and Social Rights (CESR) e Oxfam Brasil. 2018. Disponível em https://www.inesc.org.br/wp-content/uploads/2018/08/Rel_Dir_Hum_Temp_Aust-NOVO-1-_V3.pdf?x63825 Acesso em 10 de dezembro de 2019.
https://www.inesc.org.br/wp-content/uplo...
, P.10) confirmam, pois, um comprometimento do uso máximo dos recursos não para a realização dos direitos fundamentais, mas para o enriquecimento dos mais ricos por intermédio do pagamento de despesas financeiras. Uma total inversão do pacto constitucional com a submissão de seus preceitos à lógica aceleratória do mercado, ratificando a hipótese da investigação.

É nesse sentido que se intensificam formas de desincronização de classes sociais no Brasil. Nem todos os grupos se aceleram da mesma maneira: alguns como aqueles segmentos sociais que precisam de acesso às políticas públicas se vêem forçados a desacelerar16 16 A título de exemplo desse processo de desaceleração, anteriormente às medidas de austeridade, mais de um terço dos beneficiários só podiam acessar os medicamentos em farmácias públicas que tinham objetivo de ampliar o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais, disponibilizados a um baixo custo. Em 2017, o Ministério da Saúde decidiu fechar 314 farmácias públicas, deixando apenas 53 em funcionamento hoje (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018). , frente aqueles outros que conseguem realizar seus projetos de vida, ainda que com a mínima participação do Estado. Para usar os termos de Rosa, “há uma maior simultaneidade do não simultâneo dentro de uma mesma sociedade”. O resultado dessa multitemporalidade desincronizada é a desintegração progressiva da sociedade brasileira. Na medida em que os direitos sociais são condições para o desenvolvimento da autodeterminação pública e privada dos vulneráveis, a desincronização agrava o problema da guetização, transformando a sociedade em um mosaico de guetos temporais.

Por fim, a aceleração imposta pela Emenda incorre num último paradoxo temporal que é o sentido normativo atribuído ao horizonte do futuro. Em primeiro lugar, porque não há nada de temporário na proposta, já que se estenderá para além das futuras recuperações econômicas que possam ocorrer durante as duas próximas décadas. Em segundo lugar, porque a imposição do teto de gastos públicos por esse longo período subtrai o direito das próximas gerações de deliberar sobre as modalidades de despesa dos recursos estatais. Esse dispositivo temporal provoca, assim, um enfraquecimento do núcleo da soberania popular, definido como fundamento da República do Brasil no art. 1 da Constituição. Nem mesmo a sociedade, por meio do voto, poderia, em princípio, eleger programas de governo voltados a uma perspectiva inclusiva e progressista de direitos sociais, uma vez que as despesas com as políticas públicas jamais, dentro do atual quadro normativo, poderão elevar-se.

Há, nessa lógica, uma delimitação máxima e desarrazoável do campo de ação político-democrático que deveria estar aberto a disputas e reorientações das expectativas normativas. Em outras palavras, a Emenda suprime a própria contingência do jogo democrático e, portanto, o próprio tempo da Constituição numa pretensão um tanto quanto absurda. A sensação é de uma “jaula de ferro”, para usar a expressão de Weber (2003WEBER, Max. A Ética Protestante e o Espírito do Capitalismo. São Paulo, Martin Claret, 2003.), por meio do controle dos governos subsequentes e das propostas normativas que estão obrigados, sem possibilidade de questionar as regras, a cumprir o mesmo plano aceleratório neoliberal. Ela fecha o sentido normativo da Constituição em uma espécie de “Constituição Dirigente Invertida” (BERCOVICI, MASSONETO, 2006), vincula prospectivamente toda a política do Estado brasileiro à tutela estatal da renda financeira do capital, à garantia da acumulação de riqueza privada. Paradoxalmente, a aceleração aqui dá lugar a um “tempo congelado, sem passado e sem futuro” (ROSA, 2011ROSA, Hartmut. Aceleración social: consecuencias éticas y políticas de una sociedad de alta velocidad desentronizada. Persona y Sociedad. Universidad Alberto Hurtado, Vol. XXV, Nº 1, 2011, p. 9-49.).

Ora, a temporalização do tempo da Constituição, operado pelo teto de gastos, é sua destemporalização. Ela afeta o próprio caráter aberto e infuturante da Constituição de 1988 enquanto Constituição moderna. Por isso mesmo, diríamos que o “constitucionalismo democrático lança-se, aqui e agora, a um porvir, a um futuro-em-aberto, como projeto falível, mas no sentido de que o presente pode ser o futuro de um passado que agora é redimido pelo agir político-jurídico, constitucional, que o constitui” (CATTONI DE OLIVEIRA, 2010CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n. 3, jan./jun., 2010., p. 54). É esse porvir do projeto constituinte que se opõe ao amanhã, delineado na “ponte para o futuro”. O porvir é abertura da Constituição em sua articulação com o tempo histórico e, portanto, compromisso com o sentido performativo do projeto de emancipação que herdamos como promessas ainda não cumpridas de modo a possibilitar que o direito seja desenvolvido, ampliado e ressignificado, aqui e agora, na arena de disputa política e democrática. Foi isso que garantiu, até os dias de hoje, as transformações sociais e a ampliação do significado dos direitos fundamentais no Brasil e cuja concretização é uma tarefa sempre presente, permanente e inacabada.

A pergunta “qual amanhã?”, anteriormente aqui colocada, diz muito sobre o sentido desses vinte anos de congelamento enquanto “futuro” do país. Não é à toa que a justificativa da Emenda faz referência à tradicional identificação do Brasil como país do futuro:

A ideia, sempre presente em nossa história de que somos um “país do futuro”, combina uma realidade e uma expectativa que, juntos, nos ajudaram a transpor nossos dramas políticos e sociais, sem que a sociedade perdesse a coesão ou se envolvesse em conflitos destrutivos (PMDB, 2015, p.3).

Diferentemente do porvir (DERRIDA, 2007DERRIDA, Jacques. Força de lei: o fundamento místico da autoridade. São Paulo: Martin Fontes, 2007.; CATTONI DE OLIVEIRA, 2010CATTONI DE OLIVEIRA, Marcelo Andrade. Democracia sem espera e processo de constitucionalização: uma crítica aos discursos oficiais sobre a chamada “transição política brasileira”. Revista Anistia Política e Justiça de Transição. Brasília, n. 3, jan./jun., 2010.), esse “futuro” é um horizonte de expectativa urgentemente reivindicado e paradoxalmente hipertrofiado. A ponte para o futuro conduz a ideia, ao mesmo tempo, de aceleração econômica e de um futurismo da “espera”. Giacomo Marramao, em uma leitura particular das teses sobre o conceito de história de Benjamin, afirma que: “é exatamente em nome do direito das gerações futuras que foi construída a “pirâmide de sacrifício” no curso da história ocidental; é em nome do direito de um não melhor precisado porvir que temos sacrificado a nossa vida presente para fabricar “paraísos na terra” (MARRAMAO, 2018MARRAMAO, Giacomo. Universais em conflito: identidade e diferença na era global. Belo Horizonte: Conhecimento, 2018, p. 72). Se os opressores se alimentam do futuro a partir do discurso da “espera” (por vinte anos) pela realização dos direitos fundamentais, de um sonho que um dia virá, os oprimidos, ao contrário, se alimentam da “imagem dos ancestrais escravizados, não do ideal dos descentes libertados” (MARRAMAO, 2018, p. 72). É assim que a ponte para o futuro é uma ponte interminável da espera e do retrocesso: país do futuro, para onde aceleramos para trás. Como já disse Millor Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente. Ou um enorme futuro por detrás, se preferem”.

7. Conclusão

Ao longo do nosso percurso, constatou-se que o programa “Uma ponte para o futuro”, especialmente na sua expressão máxima, a Emenda n. 95, expõe uma nova consciência histórica - que já vem sendo desenvolvida pelo menos desde as jornadas de junho - como pano de fundo da atual crise constitucional cujo passado é percebido como um espaço em que a experiência constitucional é encurtada e rechaçada e o futuro como horizonte desprovido de legado e de projeção, o que resulta um processo de aceleração social contra a Constituição.

O tempo da Constituição - enquanto tempo da processualidade, da duração e dos comprometimentos de longo prazo que se realizam e tem continuidade por meio de sucessivas gerações - é submetido à velocidade do tempo do mercado, da competitividade e da austeridade. A Emenda do congelamento dos gastos públicos é, talvez, a maior referência, entre nós, dessa aceleração: ao estabelecer por 20 anos o congelamento dos gastos públicos sob o pretexto de pagamento de dívidas e compromissos com bancos e instituições privadas, ela impõe uma agenda neoliberal a ser compulsoriamente seguido, por meio da exclusão da contingência e de planos normativos inclusivos e dissidentes, o que enfraquece o próprio sentido da esfera pública democrática além de barrar oportunidades presentes e vindouras de concretização e avanços em termos de direitos fundamentais. É nesse sentido que a emenda é “desconstituinte”, porque inverte a fundação constitucional de 1988 e a submete a um Estado de Exceção Econômico e, com isso, despreza a dimensão temporal da Constituição (e das políticas públicas necessárias para a sua realização) como processo tenso e contraditório não imediatista, de construção sempre presente e de aprendizado social no tempo.

Esse movimento de aceleração desconstituinte parece não ter chegado ao fim. O atual governo federal de Bolsonaro já deu declarações suficientes no sentido de manutenção do teto das despesas públicas e ainda da ampliação das contrarreformas aceleratórias, como a previdenciária que, da forma como vem sendo conduzida, restringe consideravelmente o acesso ao direito à aposentadoria. Com o pronunciamento "vamos desengessar o Orçamento porque o teto é compromisso17 17 Disponível em <https://extra.globo.com/noticias/economia/equipe-de-transicao-estuda-desvinculacao-para-respeitar-teto-dos-gastos-diz-guedes-23268644.html> ", o Ministro da Economia, Paulo Guedes, promete ainda encaminhar ao Congresso Nacional uma proposta que pretende modificar drasticamente a Constituição de 1988 através da, chamada por ele, “PEC do Pacto Federativo”. Atualmente, a Constituição determina que os estados da federação devem investir no mínimo 12% do orçamento na área da saúde, enquanto os municípios devem investir 15%. Em educação, a vinculação orçamentária obriga que estados e municípios apliquem pelo menos 25% das receitas tributárias e repasses. A medida prometida pelo governo significa acabar com qualquer obrigação de estados ou municípios ou mesmo do próprio governo federal de investir o mínimo constitucional nas áreas de saúde e educação. Na prática, é uma continuidade do processo de suspensão do pacto constitucional e de desmonte dos direitos sociais de modo a lançar sua prestação nas mãos da iniciativa privada e de colocar em risco importantes processos normativos de integração social.

À luz dos resultados obtidos até aqui, fenômenos como esse abrem caminho para a realização de pesquisas ainda por vir.

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  • 1
    Disponível em <https://dicionariodoaurelio.com/crises>
  • 2
    Posição distinta daquela assumida no presente artigo é a de Henrique Meirelles (2016), na época Ministro da Fazenda e do Planejamento, segundo a qual a reforma busca estabelecer “regras que contenham a pressão por expansão do gasto além da capacidade de pagamento do governo” e “recobrar o equilíbrio fiscal com visão de longo prazo”. Para ele (2016), “solucionar a crise e voltar a crescer é a mais importante política social que precisamos colocar em prática para recuperar emprego e renda”. Argumentos como esse são reforçados em Veloso (2016), Pessoa (2017) e Mendes (2016) que insistem, como se buscará aqui demonstrar, a submeter a Constituição a uma variável puramente econômica (como a taxa de inflação), impondo uma política permanente de redução e precarização do gasto público (e social).
  • 3
    O economicismo é uma das ideologias contra a qual a hipótese da pesquisa em questão se coloca. Por economicismo, entende-se, no mesmo sentido de Kwak (2017) ou de Souza (2013), a invocação do discurso econômico como chave de explicação de todos os fenômenos sociais, numa espécie de determinismo que ignora distintos olhares e fatores da sociedade e reduz a realidade a simples modelos abstratos. “É uma visão empobrecida e amesquinhada da realidade, como se fosse ‘toda’ a realidade social” (SOUZA, 2013, p. p.132). De certo modo, não se confunde com a ciência econômica cuja importância é irrefutável, trata-se, na verdade, de uma forma de ver o mundo dominante, reproduzida, de forma irrefletida, pela grande mídia e por políticos (e até mesmo por acadêmicos) que contribui para a dominação da política pela riqueza privada, ao construir uma arquitetura interpretativa que justifica as políticas elitistas e a desigualdade por elas geradas, por meio da distorção da visão de mundo, que passa a ser pautada em uma caricatura do conhecimento econômico. (KWAK, 2017, p. 187).
  • 4
    A primeira tentativa de aproximação entre tempo e Constituição para um dos autores ocorreu em sua dissertação de mestrado (ver Costa Junior, 2011). Algumas das conclusões tiradas ali foram posteriormente publicadas no artigo “Constituição, tempo e narrativa” (ver Costa Junior, 2013).
  • 5
    “Entre as propostas de atribuição de poderes de revisão específicos ao Congresso Nacional, destacou-se a PEC 554/1997, apresentada pelo dep. Miro Teixeira (PDTRJ), permitindo alterações por maioria absoluta nos artigos 14, 16, 17, 21 a 24, 30, 145 a 162 e conexos da Constituição Federal. Essa proposição foi posteriormente apensada à PEC 157/2003, apresentada pelo dep. Luiz Carlos Santos (PFL/SP), e à PEC 447/2005, apresentada pelo dep. Alberto Goldman (PSDB/SP), ambas voltadas a implementar uma ampla revisão constitucional pelos próprios parlamentares, o que mostra a persistência desse posicionamento político, cabendo destacar que todas essas propostas de revisão ampla foram apresentadas por deputados de oposição, o que contraria a ideia vigente de que o interesse nesse tipo de estratégia é sempre da base governista. Também na linha das propostas voltadas a promover uma revisão constitucional pelo Congresso foi a PEC 193/2007, do dep. Flávio Dino (PCdoB/MA), que se diferenciou ao propor que essa revisão deveria ser autorizada por meio de plebiscito e que deveria cingir-se a temas de Organização dos Poderes e de Tributação e Orçamento. Já a PEC 384/2009, apresentada pelo dep. Marco Maia (PT/RS), concretizava uma proposta que foi publicamente sustentada por seu partido em 2007, quando do Terceiro Encontro Nacional do PT e indicou que “a reforma política não pode ser um debate restrito ao Congresso Nacional, que já demonstrou ser incapaz de aprovar medidas que prejudiquem os interesses estabelecidos dos seus integrantes” e, por isso, o “Partido dos Trabalhadores defende que a reforma política deve ser feita por uma Constituinte exclusiva, livre, soberana e democrática” (COSTA; ARAÚJO, 2015, p.214).
  • 6
    Diferentemente do que ocorre com as taxas de aceleração tecnológicas, as taxas de mudança social são difíceis de se medir empiricamente. Segundo Rosa (2011), há pouco consenso na sociologia a respeito de quais são os indicadores relevantes de mudança e quando as alterações ou variações realmente constituem uma mudança social significativa ou pouco relevante. Aqui a sociologia precisaria complementar-se com as contribuições da filosofia social.
  • 7
    Para demonstrar essa aceleração, Rosa afirma: “Por el momento quiero sugerir que el cambio en esos dos ámbitos -trabajo y familia- se há acelerado de un ritmo intergeneracional en la sociedad moderna temprana a um ritmo generacional en la ‘modernidad clásica’ y a un ritmo intrageneracional en la modernidad tardía. Por eso, la típica estructura familiar ideal de las sociedades agrarias tendió a permanecer estable a lo largo de los siglos, con una renovación generacional, dejando las estructuras básicas intactas. En la modernidad clásica, esta estructura se construyó para durar por sólo una generación: se organizaba em torno a una pareja y tendía a desaparecer con la muerte de la pareja. En la modernidad tardía existe uma tendencia creciente de los ciclos de vida familiar a durarmenos que la duración de la vida de un individuo: tasas crecientes de divorcio y segundos matrimonios son la prueba más obvia de esto” (ROSA, 2011, p.17).
  • 8
    “E eu acredito que isso começou a mudar realmente por volta do ano 1990, pois os processos de aceleração social ocorrem em movimentos ondulares, e é justamente nesse período que pelo menos três ondas de aceleração se manifestaram. Uma delas foram as revoluções políticas que levaram à queda do Muro de Berlim e do bloco comunista. A Europa do Leste e a Eurásia possuíam uma temporalidade distinta, e a confrontação entre os blocos funcionava como uma barreira de velocidade. Dessa forma, as revoluções políticas significaram a abertura de uma vastidão de terras e populações à lógica da aceleração. Uma segunda onda teve a ver com a reforma dos mercados financeiros no sentido de desregulação e privatização, o que costumamos chamar de neoliberalismo - o que está relacionado em grande medida com a transformação do modo de produção fordista. E, por fim, obviamente, a revolução digital e o advento da internet” (ROSA, 2017, p. 371).
  • 9
    “A competição, enquanto uma norma de distribuição e alocação de recursos, não é completamente dependente do capitalismo. No campo da ciência, por exemplo, aquele que consegue um emprego como professor ou pesquisador é quem oferece a melhor proposta para tal, aquele que é mais competitivo, e não aquele que possui esse ou aquele status, ou pertence a essa ou aquela classe. O mesmo ocorre no campo da política, ou no âmbito das relações amorosas”. (ROSA, 2017, p.373)
  • 10
    Sobre uma análise mais profunda sobre a relação entre tempo e Constituição em Luhmann, ver Costa Junior (2012).
  • 11
    Hartmut Rosa não teoriza especificamente sobre o papel da Constituição na modernidade, mas sua reflexão sobre a política caminha num sentido bem próximo. O projeto político da modernidade e a ideia que a funda de uma organização democrática dos modos de vida coletivos - tal como pensado por Rosa (2010, p. 307) -estruturou-se, fundamentalmente, por meio das Constituições normativas a partir das revoluções do séc. XVIII, o que justifica a nossa leitura.
  • 12
    “Ao longo dos anos, com o teto sufocando cada vez mais as demandas da sociedade e com a lenta retomada econômica, decorrente inclusive dessa escolha de política fiscal de austeridade, o governo tem que realizar cortes orçamentários. Como o governo tem dificuldade em cortar as despesas com serviços públicos, por serem em sua maioria obrigatórias, a tesoura recai sobre as despesas com investimento, estas discricionárias, ou seja, o governo não tem obrigação de executar. O resultado disso é que o investimento público chegou em 2017 ao menor nível em quase 50 anos, de acordo com Orair e Gobetti. União, estados e municípios investiram apenas 1,17% do PIB - valor sequer suficiente para garantir a conservação da infraestrutura já existente” Disponível https://www.inesc.org.br/para-manter-teto-dos-gastos-governo-burla-constituicao-na-ldo-2019/.
  • 13
    No sentido contrário do que temos demonstrado, em novembro de 2016, o assessor especial do Ministro da Fazenda, Marcos Mendes, em audiência pública conjunta da Comissão de Constituição e Justiça e da Comissão de Assuntos Econômicos do Senado Federal buscou desconstruir o que ele chamava de mito em torno do teto dos gastos públicos, alegando que a reforma “vai beneficiar os mais pobres e a despesa com juros vai cair” (MENDES, 2016). A partir dos dados aqui apresentados, se confirma a falta de embasamento dos seus argumentos.
  • 14
    Esse horizonte normativo do projeto constituinte de 1988 pode ser extraído de pelo menos dois princípios. O primeiro e mais óbvio é o princípio do uso máximo dos recursos disponíveis, ancorado no art. 2 do Pacto Internacional sobre direitos econômicos, sociais e culturais, do qual o Brasil é signatário desde 1992, que estabelece que “Cada Estado-Parte no presente Pacto compromete-se a adotar medidas, tanto por esforço próprio como pela assistência e cooperação internacionais, principalmente nos planos econômico e técnico, até no máximo de seus recursos disponíveis, que visem a assegurar, progressivamente, por todos os meios apropriados, o pleno exercício dos direitos reconhecidos no presente Pacto, incluindo, em particular, a adoção de medidas legislativas” (PIDESC, 1966). Sobre tal princípio, ver Oliveira (2007), O segundo princípio é o da vedação do retrocesso social que em seu sentido mais amplo possui duas dimensões, uma negativa e a outra positiva: a negativa refere-se à obrigação da não supressão de direitos sociais nem mesmo redução de seu sentido normativo; a positiva refere-se à exigência do Estado de implementar programas que possibilitem o avanço na concretização de direitos sociais de modo a reduzir as desigualdades sociais. Sobre tal princípio, ver Sarlet (2015).
  • 15
    Os 10% mais ricos recebem mais da metade de toda a renda nacional18. A concentração de renda do 1% dos brasileiros no topo é a maior do mundo19, com os seis maiores bilionários do país possuindo riqueza equivalente ao patrimônio dos 100 milhões de brasileiros mais pobres, metade da população
  • 16
    A título de exemplo desse processo de desaceleração, anteriormente às medidas de austeridade, mais de um terço dos beneficiários só podiam acessar os medicamentos em farmácias públicas que tinham objetivo de ampliar o acesso da população aos medicamentos considerados essenciais, disponibilizados a um baixo custo. Em 2017, o Ministério da Saúde decidiu fechar 314 farmácias públicas, deixando apenas 53 em funcionamento hoje (DAVID; LUSIANI; CHAPARRO, 2018).
  • 17
    Disponível em <https://extra.globo.com/noticias/economia/equipe-de-transicao-estuda-desvinculacao-para-respeitar-teto-dos-gastos-diz-guedes-23268644.html>

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    09 Set 2019
  • Aceito
    09 Mar 2020
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