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Os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e os horizontes possíveis a partir da Justiça Restaurativa: influxos abolicionistas em tempos de expansão punitiva a partir da extensão acadêmica

The 30th anniversary of the Statute for Children and Adolescents and the possible perspectives from Restorative Justice: abolitionist inflows in times of punitive expansion based on academic extension programs

Resumo

O presente trabalho visa refletir sobre o sistema da Justiça Juvenil no Brasil na ocasião dos 30 anos de aprovação do Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei 8069/1990). Não se limitando a análises meramente tecnicistas, o estudo busca destacar aspectos de como a realidade atual foi construída ao longo dos processos históricos e político-criminais, do período colonial à contemporaneidade. Ademais, o presente estudo apresenta possibilidade de aplicação da Justiça Restaurativa no âmbito da Justiça Juvenil, mesmo diante do cenário de expansão punitiva que marca a presente quadra histórica. Do ponto de vista teórico, o recorte aqui estabelecido privilegia a pesquisa bibliográfica, com destaque para autores como Zehr1 1 ZEHR, 2012; 2015; 2017. , Dünkel; Horsfield & Păroşanu2 2 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015. , Achutti3 3 ACHUTTI, 2013; 2016. , entre outros. Não obstante, o trabalho conta com abordagem empírica através da qual são relatadas as ações restaurativas realizadas no âmbito do programa de extensão acadêmica NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora), através do projeto Além da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes, desenvolvido em parceria com a defensoria pública local. Tal proposta metodológica propõe destacar destaca como a Justiça Restaurativa vem sendo desenvolvida na prática, seus desafios, perspectivas e compromisso com práticas libertárias.

Palavras-chave:
30 anos do ECA; Evolução histórica; Política-criminal, Justiça Restaurativa

Abstract

This paper aims to reflect on Brazil's Youth Justice system on the occasion of the 30th anniversary of the Statute for Children and Adolescents' approval (Federal Law No. 8069/1990). Not limited to purely technical analysis, the study seeks to highlight aspects of how the current reality was constructed throughout the political-criminal and historical processes, from the colonial period to contemporary times. Besides, this study presents the possibility of applying Restorative Justice within the scope of Youth Justice, even in the face of the punitive expansion scenario that indicates the present historical period. From a theoretical perspective, the focus established in this paper favors bibliographic research, emphasizing authors such as Zehr4 4 ZEHR, 2012; 2015; 2017. , Dünkel; Horsfield & Păroşanu5 5 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015. , Achutti6 6 ACHUTTI, 2013; 2016. , among others. Nevertheless, the study relies on an empirical approach through which restorative actions, carried out within the scope of the academic extension program NEPCrim (Extension and Research Unit in Criminal Sciences, Faculty of Law, Federal University of Juiz de Fora), are reported through the project Além da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes [Beyond Guilt: Restorative Justice for teenagers], developed in partnership with the local Public Defender's Office. This methodological proposition intends to highlight highlights how Restorative Justice has been developed in practice, its challenges, perspectives, and commitment to libertarian practices.

Keywords:
30 years of ECA [Statute for Children and Adolescents]; Historical evolution, Criminal Justice Policy; Restorative Justice

1. Introdução

Em julho de 2020 foram lembrados, em todo o país, os 30 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente - Lei 8069/1990 (doravante ECA). De norte a sul da nação foram realizadas sessões solenes pelos órgãos de cúpula dos estados municípios e também do governo federal. Diante do contexto de pandemia causado pelo novo Coronavírus, não foi possível a realização de eventos presenciais, mas diversas foram as atividades realizadas através de plataformas virtuais, como, por exemplo, o curso promovido pelo Conselho Nacional de Justiça, em parceria com Conselho Nacional de Justiça, o Conselho Nacional do Ministério Público, o Ministério da Justiça e Segurança Pública, o Ministério da Cidadania, o Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, a Frente Parlamentar Mista da Primeira Infância, o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescentes - Conanda, a Andi - Comunicação e Direitos, a Associação Brasileira de Magistrados da Infância e da Juventude, o Colégio Nacional dos Defensores Públicos Gerais, o Colégio das Coordenadorias da Infância e Juventude dos Tribunais de Justiça, a Fundação Abrinq, o Instituto Alana, o Instituto Brasileiro da Criança e do Adolescente, a Rede Nacional Primeira Infância e o Unicef Brasil, em parceria com o Pacto Nacional pela Primeira Infância e o Programa de Combate ao Trabalho Infantil e de Estimulo à Aprendizagem, promoveu um congresso digital sobre o tema. O evento teve o intuito de debater as dificuldades e os novos desafios que envolvem a efetiva implementação do ECA, o congresso digital pretendeu reunir profissionais de todas as áreas, pais, mães e cuidadores de crianças e adolescentes e a sociedade como um todo7 7 Mais informações disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/agendas/congresso-digital-dos-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/. Acesso em: 24 jul. 2020. .

Na Câmara dos Deputados, a Frente Parlamentar Mista de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente promove hoje o ato virtual "ECA 30 anos: Uma luta histórica em defesa das crianças e adolescentes". Antes da fase de debates, representantes da sociedade civil entregaram ao presidente da Câmara uma carta aberta assinada por diversas entidades da sociedade civil, frentes parlamentares e conselheiros tutelares, na qual constam denúncias sobre retrocessos no panorama das políticas voltadas à infância e juventude no Brasil. Segundo informado pelo órgão, o documento enfatizou as lacunas na garantia de direitos em áreas como saúde, educação, combate ao trabalho infantil, enfrentamento à violência sexual, de crianças e adolescentes de povos e comunidades tradicionais ocorridas nos últimos anos8 8 Mais informações em: https://www.camara.leg.br/noticias/674989-frente-parlamentar-comemora-hoje-os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020. .

Já no Senado Federal, o senador Fernando Collor (Pros-AL) lembrou que era o presidente da República na época da promulgação da lei (embora não tenha destacado o processo de impeachment sofrido por ele em 1992). Collor destacou que nos dias 29 e 30 de setembro de 1990 participou, com outros 30 presidentes e chefes de Estado, da Cúpula Mundial das Nações Unidas para a Infância, realizada em Nova York, nos Estados Unidos, já com a lei sancionada. Para o senador, a “solução é mais, e não menos, proteção integral à infância e à adolescência; é mais escola, e não mais prisão”9 9 Mais informações em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/13/senadores-destacam-os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020. .

Nos discursos das diferentes autoridades, foi possível perceber ausência de comprometimento e de propostas efetivas, pois, ao mesmo tempo em que diziam estar trabalhando em prol da juventude, por outro lado, não apresentaram metas e prazos para mudanças, o que revela não haver planos efetivos de governo e demais lideranças políticas do país para a necessária salvaguarda dos direitos, garantias e políticas públicas assegurados às crianças e adolescentes brasileiros pelo ECA.

Tal cenário corrobora o senso comum que admite a infância, a adolescência e a juventude brasileiras como problemas, sobretudo os meninos e meninas pretos e pobres filhos da classe trabalhadora. Coadunando-se às falas das autoridades, a mídia, através dos seus diferentes veículos, expõe as mazelas dessa sociedade, destacando as situações de vulnerabilidade que afetam os menores de 18 anos no Brasil, dando, não por acaso, maior ênfase ao envolvimento desse público com a violência e a prática de crimes. Embora, mais recentemente, os episódios em que crianças e adolescentes aparecem como vítimas de crimes violentos estejam ganhando mais cobertura midiática, prevalece o destaque para as situações em que aqueles aparecem como protagonistas de infrações penais, o que fortalece a percepção dos mesmos como problema a ser combatido pela sociedade, o que os coloca em posição bem distante do ideal de proteção integral propugnado pelo ECA. Em meio a esse cenário, crescem os apelos pela redução da menoridade penal, já que a maioria das pessoas tem a impressão de que a dita proteção conferida aos adolescentes pelo ECA termina por deixá-los em situação de vantagem e impunidade em relação aos demais cidadãos.

Assim, a despeito do ECA, que ora completa 30 anos, a situação da infância e juventude brasileiras parece continuar refém de discursos políticos e manipulações midiáticas que visam oferecer respostas simbólicas à sociedade. Enquanto isso, os direitos dos menores e a proteção da qual eles deveriam ser sujeitos é objeto de recusa no que tange a um enfrentamento real e genuíno do tema.

Para analisar criticamente essa realidade, o presente trabalho remonta, inicialmente, o período colonial, a fim de destacar as principais características da evolução histórica da política-criminal, conhecida como tutelar, erigida para os menores de idade no país e como ela se tornou, ao longo da maior parte do século XX, um mecanismo de apartação social do contingente a quem se propunha proteger.

Em segundo momento, pretende-se cotejar a herança que o modelo tutelar relegou às práticas levadas a efeito nas Vara de Infância e Juventude do país, mesmo sob a égide do ECA. Nesse sentido, além de apresentar as principais característica do Estatuto, pretende-se expor dados que dão conta do descompasso entre os princípios reitores do mesmo e a práxis observada no âmbito da Justiça Juvenil e na sociedade como um todo em face das crianças, adolescentes e jovens e as desproteções a que estão sujeitos.

Em seguida, reflete-se sobre a aplicação da Justiça Restaurativa (doravante JR) no âmbito da Justiça Juvenil brasileira à luz das experiências realizadas no âmbito do projeto de extensão acadêmica Além da Culpa - Justiça Restaurativa para adolescentes, fruto da parceria entre o NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora) e a Defensoria Pública da Vara da Infância e Juventude da Comarca de Juiz de Fora.

Do ponto de vista teórico, o recorte aqui estabelecido privilegia a pesquisa bibliográfica, com destaque para autores como Zehr10 10 ZEHR, 2012; 2015; 2017. , Dünkel; Horsfield & Păroşanu11 11 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015. , Achutti12 12 ACHUTTI, 2013; 2016. , entre outros. Não obstante, o trabalho conta com abordagem empírica através da qual são relatadas as ações restaurativas realizadas no âmbito do projeto de extensão Além da Culpa. Tal metodologia é relevante na medida em que destaca como a JR vem sendo desenvolvida na prática, seus desafios, perspectivas e compromisso com práticas libertárias.

Sem pretender esgotar o tema, o estudo visa contribuir para reflexões críticas acerca da lógica punitiva que, infelizmente, ainda orienta as práticas do sistema de justiça criminal pátrio, acenando para promissores caminhos baseados na empatia e nas possibilidades de restauração das relações interindividuais por meio da JR no âmbito da Justiça Juvenil, além de contribuir para a prevenção de novas infrações.

2. Infância e juventude no Brasil: aspectos históricos e político-criminais

Um dos principais achados das pesquisas que se dedicam ao estudo da infância, adolescência e juventude no Brasil é a percepção de como e por que tais contingentes sempre foram considerados, desde o período colonial até a contemporaneidade, um problema social, ou seja, algo que pendia de ações e resoluções, ou que deveria ser administrado pelos agentes de poder.

Ao analisar o tema, Rodrigues13 13 RODRIGUES, 2017. investiga como um problema primariamente de ordem privada ganha status de problema público e destaca que, desde o período colonial, o abandono e a pobreza foram identificados como as causas principais para as medidas de controle social adotadas no Brasil em face da infância e adolescência, sobretudo no âmbito da delinquência. Do ponto de vista sociológico, esse caráter objetivo em relação aos problemas e as causas que se lhe são apontadas não é dado, mas sim construído, representando um processo seletivo entre uma multiplicidade de realidades possíveis capazes de afetar a realidade.

Ao atribuir à infância, à adolescência e juventude o status de problema houve certa atividade, por parte dos agentes de poder, no sentido de construir os contornos desses ditos problemático grupos, bem como a forma como poderiam agir sobre eles, tornando-os uma questão de ordem pública, e também como garantiriam que a seletividade que se lhes era imposta se reproduzisse no tempo de forma a emergir à consciência social.

Na análise do referido percurso, interessa destacar que, desde o período colonial, a questão da infância esteve atrelada a relações de exploração. Ao chegarem ao Brasil, os colonizadores, por meio dos jesuítas, se dedicaram às práticas salvacionistas para as crianças indígenas. Em meio às preocupações com o povoamento da nação, havia o interesse em garantir a sujeição dos nativos à Coroa portuguesa, às disposições legais da corte e à religião católica, pois a dominação, calcada nesses três pilares, garantiria o êxito da empresa portuguesa e legitimaria todas as ações do colonizador14 14 RODRIGUES, 2017, PILOTTI, 1995. .

No século XVII, com o avanço da monocultura e execuções em massa dos povos indígenas, houve o incremento da vinda de escravos africanos para as lavouras brasileiras e o tratamento para com os mesmos seguiu as brutalidades e sujeições conferidas aos indígenas. Quanto às crianças, filhas de escravos, a partir dos sete anos deixavam de ser vistos como crianças e deveriam ser expostas ao trabalho. A Igreja tornava essa prática legítima, através do discurso de que por meio do trabalho os pequenos adquiririam consciência e responsabilidade. Ou seja, da aliança entre Coroa, Igreja e senhores de engenho - os agentes de poder à época - garantiu-se a sujeição legitimada do contingente infanto-juvenil negro, dando-lhe ares de educativa e salvadora15 15 Idem. .

Na centúria seguinte, começaram a surgir outras faces infantis no cenário nacional: os mestiços, fruto das aventuras sexuais dos senhores com as escravas africanas. Tais crianças foram relegadas ao abandono, haja vista que a moral cristã da época considerava tal conduta reprovável. Para atender a questão do abandono das crianças mestiças, outra prática começou a ser legitimada pela Igreja: a instalação de um sistema de recolhimento nos portões dos hospitais, conventos e ruas dos núcleos urbanos, que ficou conhecido como roda de expostos, que nada mais era que recolhimento das crianças indesejáveis em instituições católicas, como uma forma de administrar o abandono16 16 Ibidem. .

Na transição do século XIX para o XX, a retórica higienista foi amplamente recepcionada e difundida pelos agentes de poder brasileiros, que procuravam passar à sociedade a noção de que, através de práticas eugênicas, seria garantido o melhoramento da raça e o branqueamento da população, tido como necessário para o desenvolvimento e progresso do país. Destarte, tem-se que, nesse momento, o discurso deixa de ser salvacionista para adentrar no terreno das políticas públicas17 17 Importa destacar que, antes mesmo de ser alvo de políticas públicas, a juventude já era objeto de políticas criminais, uma vez que o primeiro Código Penal do Império, datado de 1830, já se lhes atribuía responsabilidade por seus atos a partir dos quatorze anos, provado o discernimento. Tal discernimento, contudo, não era objeto de comprovação ou materialidade. O que se viu na prática foi o recolhimento de crianças e adolescentes pobres e abandonados às mesmas prisões destinadas aos adultos, daí que os jovens punidos por tal diploma penal ficaram conhecidos como destinatários da etapa penal indiferenciada. Tal indiferenciação se manteve até a promulgação do Código Penal em 1940, avançando até entrada em vigor do Código Penal Republicano, de 1890 (RODRIGUES, 2017). , em defesa da sociedade e melhoria das condições da nação, tudo com amplo respaldo nas teorias higienistas emergentes à época.

Nessa conjuntura, despontam outros atores sociais para corroborar o discurso higienista em torno da infância e juventude. Além da Igreja, sobrevinham médicos e advogados, que, dotados de saberes específicos e desconhecidos pela maioria da população, orquestravam os discursos que serviriam de base para as ações do Estado em relação aos menores de idade. O discurso médico-higienista em torno da infância e adolescência no Brasil do século XIX e início do século XX não foi privilégio de uma disciplina em particular, mas resultado de formações teóricas do direito, da medicina, da criminologia e da pedagogia, todas atreladas aos agentes de poder estatal. Segundo Antunes, Barbosa e Pereira18 18 ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L.H.S.; PEREIRA, L. M. F., 2002, p. 132. , as condições de emergência histórica desses discursos apontam para uma modalidade de controle social - calcado na noção de infância abandonada, perigosa e em perigo - que indicava o caminho para as ações que deveriam ser tomadas em relação às famílias abastadas para evitar a degeneração e delinquência. Assim, enquanto as classes privilegiadas eram orientadas a temer a delinquência, possibilitava-se, a um só tempo, a preservação das crianças e adolescentes dessas classes e a legitimação da exclusão social dos meninos e meninas das classes pobres, o que garantiria a edificação de um modelo político-criminal seletivo e excludente.

Apoiados na ideia de anormalidade19 19 FOUCAULT, 2001. , médicos e juristas recorreram a inventivas classificações para nomear aquilo que defendiam como sendo resultado da irregularidade do tratamento familiar conferido às crianças e adolescentes, como se a essas famílias tivessem sido dadas condições de adaptação às concepções de normalidade estabelecidas conforme padrões burgueses. A partir da constatação dessa dita inadaptação das famílias pobres, a exemplo do processo havido na Europa no século anterior20 20 DONZELOT, 1986. 21 21 FOUCAULT, 2001. , operou-se no Brasil uma cisão legitimada entre as ações destinadas às famílias abastadas e às famílias pobres. O resultado desse processo, ao final dos anos 1920, foi a construção jurídica de uma categoria de pessoas tidas como anormais que inevitavelmente estariam associadas à criminalidade: o menor.

Para operacionalizar todo o aparato político-criminal destinado aos menores, foram criadas instituições públicas, que, sob o argumento educacional e humanitário, permitiram a segregação de milhares de crianças e adolescentes em cidades como Rio de Janeiro, São Paulo, Bahia, entre outras. Para que tais instituições pudessem funcionar, foi preciso redefinir o tratamento legal dado pelo Direito Penal a crianças e adolescentes até então, justificando, assim, seu recolhimento em instituições correcionais. O caráter moral do seu recolhimento às instituições era justificado através do discurso protetivo, salvacionista e moral, na medida em que prometia regeneração de suas personalidades degeneradas através do trabalho.

Os discursos correcionalistas, ditos protetivos, encobriam a prática de segregação social e recrutamento do contingente infanto-juvenil pobre ao trabalho. Destarte, a partir de 1927, sob a vigência do Código de Menores (Decreto nº 17.943/1927), foi estabelecido o chamado modelo tutelar, que propiciou a emergência de um sistema de Justiça Juvenil excludente baseado no chamado menor como indivíduo anormal, incompleto, irregular, anormal22 22 RODRIGUES, 2017; SPOSATO, 2006. .

Apoiado na retórica salvacionista, o Código de Menores legitimou a intervenção maciça por parte das autoridades na vida das famílias pobres, que, muitas vezes, perdiam o direito à guarda e tutela de seus filhos em favor do Estado, sob a acusação de desestruturação e degenerescência. Dessa forma, foi edificado o chamado modelo tutelar, que garantiu a montagem de todo um sistema de investimento estatal que contava com estruturas e geração de empregos para os agentes envolvidos na questão dos menores e criação de demandas orçamentárias.

Dos anos 1930 até os anos 1970, sob o paradigma do modelo tutelar, diversas ações foram tomadas a fim de garantir a tutela dos menores ao Estado. Lembrando que, por menores, não eram compreendidos todos aqueles com idade abaixo de dezoito anos, mas sim a parcela da infância e da adolescência que escapava ao controle dos pais, devendo ser alvo de controles sociais formais impostos pelos agentes estatais nas mais variadas instâncias correcionais.

Nesse sentido, é possível observar que, que a partir da década de 1930, a questão menoril no Brasil passou a ser considerada um fator de segurança nacional, pois o menor, visto como sujeito irregular que trazia perigo à sociedade, deveria ser recolhido institucionalmente, daí a necessidade de engendramento de todo um aparato político-criminal para gerir a questão.

Durante essa etapa denominada tutelar, foram criadas diversas instituições que compunham a rede responsável pela aplicação do Código de Menores, também conhecido como Código Mello Mattos, dentre elas pode-se citar o SAM (Serviço de Assistência aos menores), a FUNABEM (Fundação Nacional do Bem-Estar do Menor), a FEBEM (Fundação Estadual de Bem-Estar do Menor). Nas décadas de 1960/1970, todo esse complexo terminou por revelar incapacidades de seus operadores, desvios de verbas, maus tratos para com os menores e agravamento dos níveis de delinquência juvenil. Nesse contexto, o modelo tutelar passou a ser alvo de muitas críticas, haja vista que os resultados prometidos não se materializaram.

Nesse ínterim, em meio à ditadura militar e às ofensas aos direitos humanos que se lhe subjazem, a questão dos menores tornou-se mais visível aos olhos da população brasileira e internacional. Tal fato relaciona-se às consequências do aumento dos níveis de desigualdade nas regiões metropolitanas, cujo crescimento corria em paralelo com a expansão da pobreza, o que contribuiu para que a marginalização de crianças e adolescentes passasse a ser vista como um problema de massas. Ao final da década de 1970 - em meio a crises e transformações políticas e econômicas no cenário nacional, agravadas por altos índices inflacionários e recessões - as críticas ao autoritarismo se deram em várias frentes, entre elas o tratamento conferido aos menores nas instituições do Estado.

No início da década de 1980, coincidindo com o fim da ditadura e o início do período de abertura política e de redemocratização, a questão do menor passou a ser mais um paradigma a ser quebrado pela nova cúpula administrativa. Com a presença de um poder constituinte originário, foi promulgada a Constituição Federal de 1988, considerada uma das melhores do mundo em matéria de direitos e garantias fundamentais. No contexto internacional, havia pressão para que o Brasil adequasse sua legislação juvenil à nova Constituição e à normativa internacional sobre o tema, com destaque para a Convenção sobre os Direitos da Criança (1989).

Nesse momento histórico, com apoio no discurso constitucional humanista, o Estado chama a sociedade e a família para intervirem na questão da infância e da adolescência sob o paradigma da proteção integral. Entrementes, tem-se, em 1990, a edição do ECA, diploma elogiado por toda a comunidade internacional por seu viés garantista e humanista, mas que muito longe demonstrava estar da realidade brasileira.

3. O Estatuto da Criança e do Adolescente: aspectos conceituais, evolução no tempo e reflexos práticos

Quando de sua edição, em 1990, a proposta do ECA era romper com a noção de irregularidade e garantir a todos os menores de dezoito anos possibilidades isonômicas de exercício da sua cidadania. A elaboração do Estatuto decorreu do imperativo de pormenorizar o sistema especial de proteção dos direitos fundamentais de crianças e adolescentes, outorgando a estes o status de cidadãos especiais, de acordo com a Constituição de 1988, em razão de peculiaridades da personalidade infanto-juvenil.

Além de regulamentar questões relacionadas aos direitos das crianças e adolescentes e às definições das questões familiares (família substituta, guarda, adoção, tutela, entre outros temas importantes no âmbito cível), o ECA disciplina a política social de atendimento a crianças e adolescentes em situações de vulnerabilidade social e familiar, fixando, para tanto, medidas de proteção. No caso de práticas de infrações penais, o ECA fixa medidas socioeducativas que podem ser cumuladas com as medidas de proteção.

Ademais, o Estatuto regulamenta o funcionamento dos Conselhos Tutelares23 23 Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei. Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII; II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII [...] (BRASIL, 1990). , dispõe sobre o acesso de crianças e adolescentes à justiça, bem como define o procedimento judicial a ser adotado nas varas especializadas de infância e juventude (aspectos processuais; procedimentos para apreensões em flagrante e internações provisórias; apresentação preliminar perante o Ministério Público; regras para oferecimento de representação ou remissão por parte deste mesmo órgão; disciplinamento das audiências de apresentação, de continuação, oitivas das partes e testemunhas, debates orais e sentença e, finalmente, dispõe sobre a interposição de recursos, a definição de crimes em espécie e as infrações administrativas.

No âmbito político-criminal, o Estatuto se orienta a partir do paradigma da chamada proteção integral, que veda a aplicação às crianças e adolescentes das mesmas penas destinadas aos adultos, oferecendo um rol taxativo de medidas, chamadas socioeducativas, a serem aplicadas quando da prática de infrações penais por parte daqueles. A doutrina da proteção integral insculpida no ECA é inspirada na Convenção dos Direitos da Criança de 1989, ratificada no Brasil através do Decreto Nº. 99.710/1990, e preconiza o dever, atribuído aos Estados, às famílias e à sociedade, de assegurar aos menores de 18 anos todas as oportunidades e direitos aptos a lhes proporcionarem o desenvolvimento físico, mental, moral, espiritual e social, em condições de liberdade e de dignidade e com a observância de todos os direitos fundamentais inerentes à pessoa humana.

No que tange à prática de infrações penais, que na forma do ECA são denominadas atos infracionais24 24 Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL, 1990). , compreende-se que os menores de 18 anos são tidos como penalmente inimputáveis, estando os adolescentes (grupo entre 12 a 18 anos incompletos) sujeitos à imposição das medidas socioeducativas previstas no art. 112 do Estatuto, quais sejam: advertência; obrigação de reparar o dano; prestação de serviços à comunidade; liberdade assistida; inserção em regime de semiliberdade; internação em estabelecimento educacional e, por fim, qualquer uma daquelas medidas de proteção previstas no art. 101, I a VI do ECA. Já as crianças (grupo entre o a 12 anos incompletos) ao cometerem atos infracionais, estarão sujeitas apenas às medidas de proteção previstas no art. 101 do Estatuto.

Destaca-se que, conforme o disposto no art. 114 do Estatuto, para a fixação das medidas socioeducativas pressupõe a existência de provas suficientes da autoria e da materialidade da infração, ressalvada a hipótese de remissão, nos termos dos arts. 126, 127 e 128 da mesma lei, in verbis:

Art. 126. Antes de iniciado o procedimento judicial para apuração de ato infracional, o representante do Ministério Público poderá conceder a remissão, como forma de exclusão do processo, atendendo às circunstâncias e consequências do fato, ao contexto social, bem como à personalidade do adolescente e sua maior ou menor participação no ato infracional.

Parágrafo único. Iniciado o procedimento, a concessão da remissão pela autoridade judiciária importará na suspensão ou extinção do processo.

Art. 127. A remissão não implica necessariamente o reconhecimento ou comprovação da responsabilidade, nem prevalece para efeito de antecedentes, podendo incluir eventualmente a aplicação de qualquer das medidas previstas em lei, exceto a colocação em regime de semiliberdade e a internação.

Art. 128. A medida aplicada por força da remissão poderá ser revista judicialmente, a qualquer tempo, mediante pedido expresso do adolescente ou de seu representante legal, ou do Ministério Público (BRASIL 1990).

Em caso de condenações pela prática de infrações penais, a imposição das medidas socioeducativas de natureza restritivas e privativas de liberdade, quais sejam: semiliberdade e internação, deve ser considerada a ultima ratio. O regime de semiliberdade, nos termos do art. 120 do ECA, pode ser determinado logo após a sentença condenatória do ato infracional, ou como forma de transição para o meio aberto. Neste regime são permitidas atividades externas, sendo obrigatórias a escolarização e profissionalização. Conforme o parágrafo segundo do mesmo dispositivo legal, as medidas socioeducativas de semiliberdade não comportam prazo determinado, aplicando-se, no que couber, as disposições relativas às medidas de internação.

Nos termos dos arts. 121 e 122 do ECA, as medidas socioeducativas de internação são destinadas apenas a infrações cometidas com grave ameaça ou violência, com a devida observância dos princípios da brevidade, excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento, não podendo ultrapassar três anos.

Não obstante, contrariando a lógica insculpida no Estatuto, verifica-se a aplicação desmesurada de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade em detrimento das medidas em meio aberto. Confirmando a seletividade verificada no sistema prisional de adultos, os últimos levantamentos do SINASE, organizados pelo Ministério dos Direitos Humanos, revelam que, com relação ao gênero, há predominância de adolescentes do sexo masculino (96%), sendo que a maior proporção (57%) está concentrada na faixa etária entre 16 e 17 anos. Ademais, dentre os adolescentes em restrição e privação de liberdade, 59,08% são de cor parda/preta. Segundo o último levantamento realizado pelo SINASE25 25 Mais informações disponíveis em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/marco/mdh-divulga-dados-sobre-adolescentes-em-unidades-de-internacao-e-semiliberdade. Acesso em: 10 ago. 2020. , no ano de 2016 havia 26.450 adolescentes submetidos a medidas socioeducativas de privação e restrição de liberdade no país, do total 59% eram negros, 57% tinham entre 16 e 17 anos e 99% eram do sexo masculino.

Se observados os indicadores apontados pelos referidos levantamentos nos anos anteriores, é possível verificar o aumento sistemático do número de medidas socioeducativas de internação e semiliberdade impostas aos adolescentes, o que, como dito acima, se contrapõe ao comando normativo e principiológico da restrição e privação de liberdade como ultima ratio. Senão, vejamos: em 2011, havia 19.595 adolescentes em medidas de internação e semiliberdade no país, o que correspondia a 95 a cada 100 mil habitantes entre 12 e 18 anos. Em 2012, os indicadores apontaram a permanência de 20.532 adolescentes em unidades socioeducativas (100/100 mil habitantes entre 12 e 18 anos). Já em 2013, o número subiu para 23.066 (118/100 mil habitantes entre 12 e 18 anos) e, em 2016, chegou a 26.450 (135/100 mil habitantes entre 12 e 18 anos)26 26 SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018. .

Ao destacarem o aumento constante da imposição de medidas socioeducativas de restrição e privação de liberdade, os levantamentos anuais do SINASE chamam a atenção para o fato de que a recorrente elevação desses índices agravou, ainda mais, os quadros de superlotação verificados na década anterior, sobretudo na região sudeste.

O aumento da incidência das sanções restritivas e privativas de liberdade, em detrimento das demais, reflete o traço tutelar ainda presente na prática judicial brasileira, que legitima a aplicação das medidas em meio não aberto sob a alegação da inexistência de outra medida mais adequada para o caso, sem tampouco se dedicar a maiores fundamentações a respeito, porém se respaldando nos termos do art. 122, §2º do ECA. Ao deixar aberta essa possibilidade, o Estatuto - apesar dos vários aspectos positivos - confirma seu caráter reformista, na medida em que não deslegitimou a privação de liberdade, apenas a domesticou a partir da lógica da intervenção mínima. Ocorre que, diante de operadores comprometidos com a razão punitiva, qualquer fresta deixada pela lei pode colocar em risco todos os direitos propugnados pela mesma27 27 RODRIGUES, 2017; SANTOS, 2000; BATISTA, 2008, 2003; BARATTA, 2002. .

Além dos desacertos quanto à sua maciça indicação por parte das autoridades competentes, as sanções restritivas e privativas de liberdade - que, no dizer do ECA, têm natureza diversa de pena - revelam, na prática, seu caráter punitivo. Embora sejam caracterizadas por seu viés social e pedagógico, as medidas executadas nas unidades socioeducativas brasileiras estão, em sua maioria, divorciadas desses ideais, sobretudo quanto à educação. Tal afirmação pode ser confirmada pelo Censo Escolar da Educação Básica, elaborado pelo Ministério da Educação, segundo o qual, no ano de 2013, dos mais de 23.500 adolescentes recolhidos nas unidades socioeducativas, apenas 12.219 estavam matriculados em alguma instituição escolar. Apesar de esse número significar um avanço em relação aos anos de 2010 e 2011, é inegável o déficit educativo existente no sistema socioeducativo nacional. Ademais, de acordo com os levantamentos do SINASE, as instituições que contam com atendimento escolar, este se apresenta de forma extremamente precária28 28 SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018. .

Não bastasse o incremento punitivo em relação às sanções restritivas e privativas de liberdade, as sanções em meio aberto também contaram com sensíveis aumentos. A elevação da incidência das medidas em meio aberto (liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade) foi amplamente destacada pelos levantamentos do SINASE relativos aos anos de 2011 e 2012. De acordo com o Censo SUAS, no ano de 2009 havia 40.657 adolescentes em cumprimento das medidas de prestação de serviços e liberdade assistida. Em 2010, esse número passou para 67.045. Já no ano de 2011, foi verificado um total de 88.022 adolescentes nessas modalidades. No ano de 2012, foram registrados 89.718 adolescentes submetidos às medidas socioeducativas em meio aberto (SDH, 2015, 2013, 2012). Segundo a pesquisa nacional de medidas socioeducativas em meio aberto, realizada entre fevereiro e março de 2018 pelo Ministério do Desenvolvimento Social29 29 Mais informações em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/relatorios/Medidas_Socioeducativas_em_Meio_Aberto.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020. , em 2017 o Brasil contava com 117.207 adolescentes em cumprimento de medidas de liberdade assistida e prestação de serviços à comunidade, o que representa um aumento significativo em relação aos anos anteriores30 30 Ressalta-se que, em que pese o presente artigo estar sendo escrito em 2020, o último levantamento anual SINASE foi publicado em 2018, sendo referente aos dados de 2016. A pesquisa mais recente divulgada pelos órgãos oficiais é essa publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social também em 2018, relativa aos dados de 2017. Tal atraso no repasse de informações dificulta um acompanhamento mais efetivo dos dados, sendo esta, portanto, uma das principais críticas dos pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema. .

Considerando o recorte por raça/etnia, os déficits educacionais, os elevados índices das sanções restritivas e privativas de liberdade e o aumento das sanções em meio livre, é possível observar que, ao contrário das representações sociais quanto a um tratamento leniente do Estado brasileiro para com os adolescentes, o que se desvela, na prática, é uma realidade extremamente dura, que, assim como no sistema prisional de adultos, é marcada pela seletividade, por constantes violações de direitos e pela expansão punitiva31 31 RODRIGUES, 2017; BATISTA, 2008. .

Na confluência dos medos que assombram o cotidiano de muitos cidadãos brasileiros na atualidade, crianças, adolescentes e jovens que vivem em condições precarizadas, marcadas pela luta por estratégias de sobrevivência no comércio ilegal de drogas, no mercado informal ou que perambulam pelas ruas e comunidades são percebidos como uma população de alto risco. A partir da lógica atuarial32 32 Como destaca Dieter (2013, p. 267), a política criminal atuarial tem por objetivo “controlar a ‘underclass’, no que se aproxima dos projetos governamentais historicamente conhecidos, que deturpam todo o discurso jurídico em função da instrumentalização de seus interesses”. No entanto, a grande diferença do novo modelo consiste na estratégia de “neutralização da repressão contra os marginalizados que promove”. Sob o signo da incapacitação dos “grupos de risco”, o modelo atuarial despreza as teorias jurídicas do “crime” e da “pena” - que tradicionalmente se propõem à racionalização das práticas punitivas. Segundo o autor, “esta falta de preocupação na justificação do exercício da violência representa um desafio aberto ao Estado democrático de Direito”. , característica do empreendimento neoliberal, esse contingente populacional não é percebido por si, mas como um grande espectro marginal, que não pode ser integrado economicamente e, por isso, deve ser controlado e neutralizado. No Brasil, essas estratégias atuariais de gerenciamento e neutralização da juventude popular vão além dos toques de recolher e da expansão do controle institucional, chegando a compor verdadeiras cadeias de extermínio.

Tal estado de coisas, no entanto, permanece obscurecido para muitos setores da sociedade, que, alheios aos dados objetivos, insistem na tese do aumento da participação de crianças, adolescentes e jovens em crimes violentos e clamam por mais controle, mais policiamento e mais punição sobre esse grupo social. Contrariando essa percepção, diversas pesquisas vêm demonstrando que os adolescentes e jovens envolvidos em episódios violentos figuram como as principais vítimas e não como os principais autores desse tipo de crime. Enquanto os índices de crimes violentos, sobretudo homicídios, praticados por adolescentes decresceu nos últimos anos, o percentual de adolescentes e jovens assassinados só vem aumentando33 33 WAISELFISZ, 2015; 2014; 2013; 2012; SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018 .

No último decênio, as pesquisas vêm confirmando a hipótese de que os adolescentes e jovens são muito mais vítimas que autores de crimes violentos no Brasil. Não obstante, o suposto crescimento de sua participação em crimes dessa natureza enseja uma das maiores polêmicas na sociedade brasileira na atualidade, com destaque para as plataformas políticas que defendem a redução da maioridade penal. Todavia, os discursos que influenciam boa parte da população quanto à identificação dos adolescentes como um grupo de alto risco não resistem ao confronto com os dados reais34 34 Idem. .

No contexto de pandemia que marca o ano do trigésimo aniversário do ECA, os efeitos das históricas políticas de exclusão e apartação social da infância, adolescência e juventude brasileiras se tornam ainda mais agudos. Dentre os elevados números de mortos vitimados pelo novo Coronavírus, verifica-se que boa parte é oriunda das regiões de periferia, pertencendo a grupos sociais que não contam com privilégios que lhes permitam realizar o isolamento social e utilizar os mecanismos de prevenção, tampouco acessar de forma plena o sistema de saúde. No âmbito socioeducativo, conforme os levantamentos realizados pelo CNJ, até o início de agosto de 2020, havia 2163 adolescentes em cumprimento de medidas de internação e semiliberdade infectados, além de 689 servidores. Foram registrados, nesse período, 17 óbitos de servidores. Não obstante, as autoridades, ao arrepio da proteção integral, insistem em manter esses meninos e meninas custodiados, em detrimento da adoção de outras medidas em meio livre que lhes garantiriam maior proteção em relação ao contágio pelo Coronavírus35 35 Mais informações em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/Monitoramento-Semanal-Covid-19-Info-12.08.20.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020. .

Assim, tem-se que, embora do ponto de vista teleológico, o ECA tenha como pilares a doutrina da proteção integral e os princípios reitores do sistema de Justiça Juvenil, passados 30 anos de sua edição verifica-se que conceder legalmente maiores direitos às crianças e adolescentes não garantiu o seu efetivo cumprimento, uma vez que a dinâmica brasileira se mostrou inacessível à execução plena dos mesmos.

A dificuldade em instituir propostas político-criminais emancipatórias e protetoras dos direitos humanos em relação à aplicação do Estatuto se liga a uma série de fatores, dentre os quais se destaca a disseminação da noção de que se desenvolveu no Brasil, desde os anos 1980, que a defesa dos direitos humanos se relaciona com a concessão de privilégios a bandidos e ao aumento da impunidade dos menores de 18 anos36 36 CALDEIRA, 1991. . O ECA evidencia, portanto, que a questão da infância e adolescência no Brasil não é judicante, mas também política e, sobretudo, social.

4. Breves considerações sobre a Justiça Restaurativa e sua inserção no âmbito do sistema de Justiça Juvenil pátrio

Há algumas décadas, com destaque para os trabalhos críticos publicados nos anos 1970, a pesquisa criminológica vem demonstrando que o modelo punitivo prisional empregado na maioria dos países não se apresenta como apto ao enfrentamento, redução e/ou prevenção da conflitividade social decorrente do crime e da violência. É nesse sentido que se faz mister a busca por novos mecanismos que possam contribuir efetiva e afirmativamente para o aprimoramento da resposta estatal e comunitária ao acontecimento delitivo, com destaque para os programas de JR.

No âmbito infanto-juvenil esse debate remonta às grandes reformas levadas a efeito nos anos 1980 e 1990 em diversos países, com base na normativa internacional37 37 Dentre os quais, se destacam: Convenção dos Direitos da Criança, 1989; Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing - Resolução 40/33, de 1985, da ONU); Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad - Resolução 45/11, de 1990, da ONU). sobre o tema fixada no âmbito da ONU, com destaque para a Resolução 40/33, de 1985 (que dispõe sobre as chamadas Regras de Beijing), que preconizam a observância por parte dos estados, mesmo em caso de infrações penais, do pleno desenvolvimento da criança, do adolescente e do jovem, visto que se encontram em uma etapa inicial do desenvolvimento humano e necessitam de condições dignas para o seu pleno desenvolvimento físico, mental e social. No mesmo sentido, as Regras Mínimas das Nações Unidas para a Proteção dos Jovens Privados de Liberdade, de 1990, estipulam que, em caso de privação de liberdade em estabelecimento prisional (medida a ser adotada somente em último caso - ultima ratio-), deve ser garantida aos menores de idade e jovens adultos a devida proteção, devendo tal privação e/ou restrição de liberdade ser breve.

Entrementes, cabe dizer, portanto, que o pioneirismo dos sistemas de Justiça Juvenil na aplicação dos programas de JR não é dado, antes faz parte de um movimento de abrangência internacional e intercontinental, capitaneado pela ONU a partir do final dos anos 1970, no sentido de demonstrar o desacerto dos modelos marcadamente punitivos vigentes até àquela conjuntura sob o signo da doutrina tutelar ou de situação irregular.

Tais movimentos estão no bojo das críticas organizadas no âmbito da Criminologia e das Ciências Sociais na década de 1970, que se dedicaram a demonstrar através de sólidas pesquisas os efeitos deletérios do cárcere para a personalidade, sobretudo de crianças, adolescentes e jovens adultos, com destaque para o chamado labeling approach, a Criminologia crítica e o Abolicionismo penal.

Como bem destacado por Garland38 38 GARLAND, 2008. , diante das falhas e desacertos apontados, a crise do sistema penal terminou por trazer à tona o debate sobre alternativas para sua contenção. Nesse contexto, as propostas de reforma que mais encontraram eco destacavam a necessidade de aperfeiçoar os serviços voltados à reabilitação dos infratores e redução da opressão imposta sobre os mesmos, oferecendo possibilidades de cumprimento de sanções em meio livre e redução das repostas formais típicas do sistema de justiça criminal.

Nessa esteira, a JR passou a ser vista como um dos mecanismos capazes de contribuir para as respostas alternativas almejadas, visto que, além da redução dos fluxos de criminalização, propõem mecanismos de diversificação (diversion), na medida em que pugna pela busca de metodologias informais de resolução de conflitos que privilegiem a participação das pessoas envolvidas no acontecimento delitivo.

Desde as primeiras pesquisas acadêmicas acerca da JR até a atualidade, é possível dizer que há certo consenso no sentido de que esta não possui um conceito unívoco39 39 PALLAMOLLA, 2009, p. 53. , mas sim um conceito aberto e dinâmico que se relaciona às suas diversas acepções e práticas. Segundo Achutti,

antes de ser considerada uma ideia fechada e acabada, trata-se, primordialmente, de uma proposta conceitual que continua aberta. Sica (2007, p. 10) refere que “a justiça restaurativa é uma prática ou, mais precisamente, um conjunto de práticas em busca de uma teoria”. Pallamolla (2009PALLAMOLLA, Raffaella da Porciuncula. Justiça restaurativa: da teoria à prática. Instituto Brasileiro de Ciências Criminais. São Paulo: 2009., p. 54), por sua vez, acentua que “a justiça restaurativa possui um conceito não só aberto como, também, fluido, pois vem sendo modificado, assim como suas práticas, desde os primeiros estudos e experiências restaurativas”. E essa construção ainda em aberto e em constante movimento é, paradoxalmente, um dos pontos mais positivos da justiça restaurativa, pois não há um engessamento de sua forma de aplicação e, portanto, os casos-padrão e as respostas-receituário permanecem indeterminadas, na busca de adaptação a cada caso e aos seus contextos culturais40 40 ACHUTTI, 2013, p.159. .

Para Zehr41 41 ZEHR, 2012; 2015; 2017. o modelo restaurativo deve ser construído pelas comunidades, pois está atrelado à cultura e às características de cada grupo social, devendo ser estabelecido através da experimentação e do diálogo tendente a repensar as necessidades e desdobramentos gerados a partir da ocorrência de determinado fato delitivo.

Já para Dünkel, Horsfield e Păroşanu42 42 DÜNKEL, HORSFIELD & PĂROŞANU, p. 4, 2015. , os valores da JR não são inteiramente novos e podem ser traçados desde as culturas indígenas e tradicionais presentes no mundo todo, pois muitas de suas práticas são inspiradas nos métodos de resolução de conflitos das tribos indígenas.

Para efeitos deste estudo, concebe-se que a JR se insurge como um movimento social que reage de encontro ao sistema de controle social institucionalizado43 43 ACHUTTI, 2013, p.156. , que visa manter a ordem através de mecanismos de poder, centralizando a pessoa do infrator como inimigo, ou, desviante, buscando respostas penais que atendam expectativas de prevenção da sociedade, enquadrando-se em um modelo clássico de punição estatal (punitivista e opressor). Afastando-se dessa concepção, as práticas restaurativas repercutem um modelo integrador de justiça cujo foco é a edificação de um sistema de justiça criminal embasado no princípio da dignidade humana44 44 NERY, 2011. .

O fortalecimento da JR no âmbito infanto-juvenil é fruto de intensos debates acerca dos limites entre a responsabilização penal e os direitos e garantias desse contingente, que se caracteriza como um grupo de indivíduos que estão em processo de desenvolvimento, e, por isso, deve ter um tratamento diferenciado por parte do Estado e da sociedade como um todo.

As intervenções restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil primam pela reabilitação e reintegração dos menores de 18 anos à comunidade, para tanto contam com a participação da vítima, do adolescente ofensor e seus responsáveis, dos servidores de proteção à criança e ao adolescente, técnicos judiciários, representantes da escola e da comunidade, bem como outras pessoas que, de algum modo, possam ter sido afetadas pelo conflito. Por ser orientada pelo respeito mútuo e ter por foco o fortalecimento das relações, o entendimento majoritário é o de que a JR pode ser aplicada em todas as fases do processo para apuração de infrações penais em que crianças, adolescentes e jovens foram autores ou vítimas45 45 DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015. .

De acordo com estudos realizados por Dünkel; Horsfield & Păroşanu46 46 Idem. em mais de 28 países da União Europeia, os dados levantados permitem verificar que a JR proporciona diversos benefícios aos participantes, a saber: i) menor tendência a desenvolver comportamento antissocial nas relações com a família e a sociedade; ii) maior possibilidade de reflexão a respeito das consequências do ato lesivo, para as demais pessoas; iii) oportuniza a responsabilização; iv) produz menores níveis de medo e de sintomas de estresse pós traumático nos adolescentes; v) oportuniza espaços de fala aos participantes que, em um ambiente seguro, veem aumentada a probabilidade de solucionar o conflito.

Ademais, as práticas restaurativas também vêm apresentando resultados promissores quanto à prevenção da delinquência juvenil, embora não seja este o objetivo principal da JR. Os estudos apontam ainda a elevação dos índices de reinserção social de adolescentes em conflito com a lei à comunidade em diversos países do mundo, principalmente em relação à Alemanha, Bélgica, Áustria, Canadá, Austrália, entre outros47 47 RODRIGUES, 2017. .

Do ponto de vista prático, as possibilidades e/ou efeitos que a adoção dos programas de JR podem conferir aos processos criminais que se lhes subjazem são: i) extinção do processo (pode ocorrer em determinados delitos, caso o autor se responsabilize pelo ato e se comprometa a cumprir o acordo restaurativo pactuado com a outra parte); ii) suspensão provisória do processo mediante período de prova para o devido cumprimento do acordo restaurativo fixado e verificação de bom comportamento do ofensor); iii) substituição ou redução da sentença, se cumprida a proposta restaurativa; entre outros48 48 MIERS, 2003 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 103. .

A fim de esclarecer distorções comuns à percepção da JR a partir de uma perspectiva romantizada, Zehr49 49 ZEHR, 2017. esclarece que o modelo restaurativo não tem por objetivo fundamental o perdão ou a conciliação entre as partes, ou mesmo a redução da reincidência. Em relação aos dois primeiros aspectos, de fato, as abordagens restaurativas oferecem um contexto em que tais possibilidades podem vir a acontecer, mais facilmente do que no modelo tradicional, no entanto, não são tais aspectos pré-requisitos e tampouco resultados necessários. Em relação à redução da reincidência, pesquisas vêm demonstrando bons resultados em relação a grupos participantes de programas de JR, não obstante o autor afirma que tal fato por si só não deve ser motivo para promover programas restaurativos, pois, para ele,

a redução da reincidência é um subproduto, mas a JR é praticada, em primeiro lugar, pelo fato de ser a coisa certa a se fazer. Aqueles que sofreram o dano devem ser capazes de identificar suas necessidades e tê-las apontadas, aqueles que causaram dano, devem ser estimulados a assumir a responsabilidade e aqueles que foram afetados por um delito devem ser envolvidos no processo50 50 Idem, p. 22. .

Importa destacar também, que as abordagens restaurativas não implicam o retorno ao passado, como se o conflito não tivesse acontecido, principalmente os conflitos mais graves, que também são abordados pelas intervenções restaurativas, e os contextos sociais indesejáveis, pautados por opressão e traumas. Logo, não se trata de retornar ao estado pré-conflitual, mas retornar à melhor versão de nós mesmos, que sempre esteve presente e que foi abalada pelo acontecimento delitivo51 51 Idem. p. 20. .

Conforme destaca Achutti, dentre os diversos métodos utilizados nas práticas restaurativas, destacam-se os seguintes: i) ações de apoio à vítima (objetiva demonstrar que há interesse pela situação da vítima); ii) comunicação vítima-ofensor (face-to-face meeting - viabilizar o diálogo (direta ou indiretamente, nas situações em que o encontro não é possível); iii) conferências ou círculos restaurativos (vítima, ofensor, apoiadores, membros da comunidade, facilitador); iv) conferência ou círculos familiares (family group conferences); v) círculos de restauração da paz afetada por determinado conflito na comunidade; vi) círculos de sentença ou decisórios (sentencing circles = comunidades realizam co-julgamentos, com a presença de um juiz; processo deliberativo demanda vários encontros); vii) comitês de paz (pacificação de disputas particulares nas comunidades e construção de paz); viii) conselhos de cidadania (decisões tomadas pelos conselheiros eleitos pela comunidade e não pelas partes, o que compromete, em certa medida, a proposta restaurativa); xix) serviço comunitário (pode ser parte de acordo restaurativo ou decisão judicial. Em todas essas diferentes modalidades, importa destacar que o resultado final será considerado restaurativo se for fruto de livre deliberação entre as partes52 52 ACHUTTI, 2016, p. 79-84. .

Ressalta-se que é nesse sentido que foi publicada a Resolução nº. 2002/201253 53 Disponível em: https://juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020. , das Nações Unidas, que fixou os princípios básicos a serem seguidos na utilização das práticas restaurativas e serviu de base para a implantação da Justiça Restaurativa em vários países, entre eles o Brasil.

Nos programas de JR que vêm sendo implementados no Brasil, sobretudo no âmbito da Infância e Juventude, é possível perceber a prevalência das conferências restaurativas, conhecidas, entre nós, como círculos restaurativos, que consistem em encontros realizados a partir da metodologia circular, conduzidos por facilitadores previamente capacitados que viabilizam a participação da vítima, da pessoa identificada como autor/ofensor, seus apoiadores, membros da comunidade e demais pessoas afetadas pelo conflito. Para a realização dos denominados círculos restaurativos, é necessária a construção de uma rede de apoio que envolve tanto membros da sociedade civil, quanto operadores do sistema de justiça criminal. Pois, para que as propostas restaurativas construídas coletivamente nos círculos produzam efeitos nos respectivos processos, é necessário o apoio dos Tribunais de Justiça, do Ministério Público e demais atores envolvidos na demanda.

No âmbito nacional, os projetos pioneiros de JR no âmbito da Justiça Juvenil foram realizados através do Ministério da Justiça em parceria com o Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), com destaque para o programa Promovendo Práticas Restaurativas no Sistema de Justiça Brasileiro54 54 Mais informações disponíveis em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1711.html. Acesso em: 10 fev. 2020. instituído em 2005 e que se tornou referência para os estudos e práticas inspiradas pelo novo modelo de justiça estabelecido a partir da JR. A partir desse projeto, foi possível a obtenção de apoio financeiro para a execução de três projetos pilotos, quais sejam: o programa Justiça Para o Século 21, desenvolvido na cidade de Porto Alegre/RS55 55 Informações disponíveis em: www.justica21.org.br. Acesso em: 15 jun. 2019. ; o programa Justiça e Educação: parceria para a cidadania, desenvolvido na cidade de São Caetano do Sul/SP56 56 Mais informações em: Justiça e educação: parceria para a cidadania. Um projeto de justiça restaurativa da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul envolvendo a rede escolar da comarca. Disponível em: http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/XXICongressoNacional_ABMP/1 %20Experiencia%20%20Eduardo%20Rezende%20Melo%2008.05%20-%20G7.pdf. Acesso em: 15 jun. 2019. ; e o programa Implantação De Justiça Restaurativa - Núcleo Bandeirante, desenvolvido na cidade de Brasília/DF57 57 Informações disponíveis em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/nupecon/justicarestaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa. Acesso em: 15 jun. 2019. .

Desde então, uma série de projetos vêm sendo desenvolvidos por todo o país, tendo sido boa parte levantada pela pesquisa realizada em 2017, no âmbito do Conselho Nacional de Justiça, denominada Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder judiciário. A pesquisa, que foi coordenada por acadêmicas de destaque como Vera Regina Pereira de Andrade, Alline Pedra Jorge Birol e outras, apontou o protagonismo exercido pelo Poder Judiciário, seus atores e órgãos conexos (Ministério da Justiça, Secretaria de Reforma do Judiciário, Conselho Nacional de Justiça, Sistema de Justiça, juízes, desembargadores, psicólogos, assistentes sociais, equipes técnicas), “na construção de uma Justiça Restaurativa no Brasil, interpretado como uma face do contemporâneo movimento mais amplo denominado ativismo judicial”58 58 CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder judiciário. Sumário executivo. CNJ: Brasília, 2017. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/9055d2b8d7ddb66b87a367599abc4bf5.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020. p. 22. . Ademais, o estudo assinala que

o mapa da Justiça Restaurativa inclui, para além do espaço judicial, o espaço policial, o espaço da educação escolar, do ensino médio à universidade; o espaço do trabalho, o espaço comunitário, o espaço da cidade. Menção específica merecem a interação e o diálogo, que estão a se desenvolver, ainda que de forma residual, entre Judiciário e Universidade, envolvendo um conjunto de atividades relativas ao ensino, pesquisa e extensão, tal como se verificou, por exemplo, em Santa Maria, Florianópolis, Belo Horizonte, Recife, Salvador, Distrito Federal e Santos. Todas essas interações, em princípio, contribuem para o conhecimento, o debate e o próprio avanço da mudança de paradigmas em justiça, além de concorrer para a formação dos trabalhadores da Justiça Restaurativa, num mecanismo de feedback59 59 Idem. p. 27. .

É justamente nesse mecanismo que o projeto de extensão acadêmica Além da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes se insere, tendo por fio condutor o desejo de contribuir para o aprimoramento dos paradigmas de justiça que marcam a cultura jurídica do país. Nesse sentido, passa-se agora à apresentação do projeto desenvolvido pela Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora/MG.

5. Projeto de extensão acadêmica Além da Culpa: Justiça Restaurativa para adolescentes: características, percursos, desafios e horizontes

Diante do cenário de descompasso entre os comandos normativos propugnados pelo ECA e a realidade do sistema de Justiça Juvenil pátrio, bem como os aspectos sociais e políticos que subjazem a questão da infância, adolescência e juventude brasileiras, desde o início dos anos 2000 começaram a ser vislumbradas possibilidades de aprimoramento do Estatuto e da rede socioeducativa como um todo. Os constantes quadros de superlotação nas unidades socioeducativas, as graves violações de direitos, aliados aos altos índices de adolescentes mortos em razão de causas externas, foram objeto de amplas discussões e intensas críticas por parte dos órgãos de proteção à infância e juventude e diversos setores da sociedade brasileira, que culminaram na edição da Lei 12.594/2012 (Lei do SINASE) 60 60 Disponível em: http://www.sejudh.mt.gov.br/documents/412021/9910142/Levantamento+SINASE+_2016Final.pdf/4fd4bcd0-7966-063b-05f5-38e14cf39a41. Acesso em: out. 2019. .

A referida lei, além de instituir o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), regulamenta a execução das medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional e preconiza, expressamente, a necessidade de observância dos princípios reitores do ECA e da incorporação de práticas restaurativas61 61 No Brasil, as práticas restaurativas, apesar de implementadas pelo Poder Judiciário com base em resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, não encontram previsão legal, salvo disposição expressa na Lei do SINASE. A possibilidade de positivação da JR entre vem sendo discutida, no entanto, desde 2006, por meio do Projeto de Lei n. 7.006/2006, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, em apenso ao Projeto de Novo Código de Processo Penal. Tal projeto de lei visa a alteração do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95, para instituir e regular o uso facultativo e complementar da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal. no âmbito do sistema de Justiça Juvenil, nos termos do art. 35:

Art. 35. A execução das medidas socioeducativas reger-se-á pelos seguintes princípios:

I - legalidade, não podendo o adolescente receber tratamento mais gravoso do que o conferido ao adulto;

II - excepcionalidade da intervenção judicial e da imposição de medidas, favorecendo-se meios de autocomposição de conflitos;

III - prioridade a práticas ou medidas que sejam restaurativas e, sempre que possível, atendam às necessidades das vítimas;

IV - proporcionalidade em relação à ofensa cometida;

V - brevidade da medida em resposta ao ato cometido, em especial o respeito ao que dispõe o art. 122 da Lei nº 8.069, de 13 de julho de 1990 (Estatuto da Criança e do Adolescente) ;

VI - individualização, considerando-se a idade, capacidades e circunstâncias pessoais do adolescente;

VII - mínima intervenção, restrita ao necessário para a realização dos objetivos da medida;

VIII - não discriminação do adolescente, notadamente em razão de etnia, gênero, nacionalidade, classe social, orientação religiosa, política ou sexual, ou associação ou pertencimento a qualquer minoria oustatus ;e

IX - fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários no processo socioeducativo (BRASIL, 2012. grifo nosso).

Não obstante a Lei do SINASE, as iniciativas para implantação das práticas restaurativas no âmbito da Justiça Juvenil ainda contavam com muita resistência por parte dos atores jurídicos, que demonstravam lastro histórico e ideológico com a mentalidade tutelar e com o modelo retributivo de responsabilização penal via punição, ou, no dizer do ECA, medidas socioeducativas.

Atento a tais dificuldades, o CNJ, em 2016, publicou a Resolução 225, que disciplinou a criação de centrais restaurativas em todo o território nacional. Embora a JR já estivesse presente no debate jurídico-penal brasileiro desde o início dos anos 200062 62 O processo de implementação da JR no Brasil foi iniciado nos anos 2000, culminando na elaboração de um documento intitulado “Carta de Araçatuaba”, cuja Redação foi elaborada pelos integrantes do I SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, realizado na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo - Brasil, nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2005. Tal documento foi posteriormente ratificado na CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA, que ocorreu em Brasília em junho de 2005. A “Carta de Brasília” funcionou como um importante marco para impulsionar a efetivação de projetos de implantação dos programas de JR no território nacional. Disponível em: http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/carta-aracatuba. Acesso em: 14 jun. 2017. , somente em maio de 2016, através dessa Resolução 225, foram estabelecidas possibilidades mais concretas para sua efetiva implantação.

Nesse sentido, com o aporte normativo fixado pela Lei do SINASE, corroborado pela Resolução 225/2016 pelo CNJ, o sistema de Justiça Juvenil brasileiro passou a contar com os instrumentos legais necessários para a aplicação da JR, além de reafirmar os pressupostos apresentados desde a edição do ECA, em 1990, que, no Capítulo V, de seu Título VI, disciplina a atuação do Ministério Público frente a Infância e Juventude à luz do Princípio da Oportunidade63 63 RODRIGUES, 2017. .

De acordo com tal princípio, embora o Ministério Público detenha, com exclusividade, a iniciativa processual nos procedimentos relativos à apuração de infrações, o Promotor de Justiça tem a faculdade de não proceder à ação penal caso julgue conveniente, de acordo com o fato e com as circunstâncias de cada caso concreto, concedendo, assim, a remissão (nos termos do art. 126 a 128 do ECA). No âmbito da Justiça Juvenil, o Princípio da Oportunidade reafirma o compromisso do Estado com superior interesse e com a proteção integral dos adolescentes acusados da prática de infrações penais64 64 RODRIGUES, 2017, p. 78. . Todavia, embora já presente na legislação infanto-juvenil desde 1990, a observância de tal princípio ganhou força a partir das últimas inovações mencionadas.

Nesse sentido, JR brasileira parece finalmente contar com os instrumentos normativos e político-criminais necessários para avançar no âmbito da Justiça Juvenil e se adequar aos modernos programas já desenvolvidos com êxito em outros países do globo. Todavia, é sabido que, para além do arcabouço normativo, é necessário que tal modelo seja compreendido como política pública e passe a contar com apoio institucional e orçamentário que viabilize sua execução. Ademais, é cediço que uma das principais barreiras para o desenvolvimento de tais políticas repousa na mentalidade seletiva e punitivista ainda existente no país, o que torna a tarefa nada fácil, mas, nem por isso, inglória e/ou prescindível.

Imbuída desse espírito e confiante nos novos rumos da JR no país, a equipe do Além da Culpa também passou contar com abertura e apoio necessários para a colocação em prática das ações iniciadas em 2012, na Comarca de Juiz de Fora/MG.

5.1. Perfil da rede socioeducativa e do sistema de Justiça Juvenil na Comarca de Juiz de Fora/MG

Boa parte da rede socioeducativa que atua em Juiz de Fora/MG é centralizada no prédio em que funciona a Vara da Infância e Juventude local, onde também é a sede da Promotoria da Infância e Juventude local e o núcleo da Defensoria Pública estadual responsável por essa vara especializada. Nesse mesmo prédio também estão o Comissariado de Justiça da Infância e Juventude e os profissionais que compõem a equipe técnica responsável pelos processos de competência da Vara da Infância, quais sejam: psicólogos e assistentes sociais. Em 2015, também passou a funcionar, nesse mesmo edifício, a central de Justiça Restaurativa criada por meio do projeto Além da Culpa, como se verá mais detalhadamente a seguir.

Além dos atores ligados ao poder judiciário, a rede socioeducativa juiz-forana conta ainda com órgãos responsáveis pela execução das medidas de proteção (previstas no art. 101 do ECA) e medidas socioeducativas (previstas no art. 112 do ECA). Quanto às medidas de proteção, o acolhimento institucional (art. 101, VII ECA) se destaca como uma das medidas de maior incidência, sobretudo porque recai sobre crianças e adolescentes pobres, que compõem o público alvo da rede. No município, o acolhimento institucional ocorre em caráter provisório e é destinado a crianças e adolescentes com idades entre zero e 18 anos incompletos que tenham sofrido violência sexual, física, psicológica, doméstica ou negligência familiar. Todos os trâmites necessários para o acolhimento são realizados através da Vara da Infância e da Juventude e, excepcionalmente, pelos Conselhos Tutelares65 65 O município de Juiz de Fora conta com três Conselhos Tutelares, quais sejam: CONSELHO TUTELAR I (REGIÃO CENTRO/NORTE); CONSELHO TUTELAR II (REGIÃO SUL/OESTE); CONSELHO TUTELAR III (REGIÃO LESTE). Maiores informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/conselhotutelar/estrutura/composicao.php. Acesso: 10 fev. 2020. , cujos encaminhamentos serão direcionados para as unidades locais de acolhimento: Casa Estância Juvenil; Casa Lar de Laura; Casa Vivendas do Futuro; Aldeias Infantis do Brasil.

No que tange à execução das medidas socioeducativas, observa-se que é respeitada a organização fixada legalmente, de modo que compete ao poder público municipal a execução das medidas em meio aberto (prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida), ficando o governo estadual com a gestão das medidas de internação e semiliberdade. No âmbito municipal, as medidas socioeducativas de prestação de serviço à comunidade e liberdade assistida ficam a cargo da Secretaria de Desenvolvimento Social (SDS), que organiza a demanda junto aos Centros de Referência em Assistência Social (CRAS)66 66 O CRAS é a principal porta de entrada para os serviços da Proteção Básica. Presta atendimento às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares e comunitários. Oferece atendimento e acompanhamento às famílias que moram nos bairros do seu território de abrangência. Realiza atividades individuais ou em grupo e encaminha para serviços de atendimento a crianças, adolescentes e idosos, entre outras atividades. Mais informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/cras.php. Acesso: 10 fev. 2020. e aos Centros de Referência Especializado de Assistência Socias (CREAS)67 67 O CREAS é uma unidade pública que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos. Nesse espaço são ofertados serviços de proteção a indivíduos e famílias vítimas de violência, maus-tratos, negligência, entre outros. Sua atuação proporciona à família o acesso a direitos sociais. Busca, também, a construção de um espaço de acolhida e escuta qualificada, fortalecendo vínculos familiares e comunitários. O público alvo inclui: crianças e adolescentes vítimas de abuso, exploração sexual e violência doméstica, em situação de mendicância e trabalho infantil; adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; mulheres, idosos e pessoas com deficiência com seus direitos violados. Mais informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/creas.php. Acesso: 10 fev. 2020. .

Com relação às medidas socioeducativas em meio não aberto, quais sejam: internação e semiliberdade, a competência para a execução é do governo estadual, sendo geridas através da Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Em Juiz de Fora, as medidas de semiliberdade ficam a cargo do PEMSE (Polo de Evolução de Medidas Socioeducativas), organização não governamental criada a partir de convênio estabelecido entre o Estado de Minas Gerais e a Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). Atualmente, as atividades do PEMSE estão divididas em duas unidades, quais sejam: Casa de Semiliberdade Caminheiros de Jesus, com capacidade de 16 adolescentes do sexo masculino e Casa de Semiliberdade Bethânia, com capacidade para 20 adolescentes do sexo masculino.

Já as medidas socioeducativas de internação são executadas no Centro Socioeducativo Santa Lúcia (doravante CSE), coordenado pela Subsecretaria de Atendimento às Medidas Socioeducativas (SUASE), subordinada à Secretaria de Estado de Defesa Social (SEDS). O CSE de Juiz de Fora tem capacidade para 56 adolescentes do sexo masculino, sendo 33 vagas para adolescentes sentenciados com a medida de internação e 23 para internações provisórias. Considerando o perfil da Comarca, revela notar que o número de vagas vem se mostrando insuficiente, pois são direcionadas ao CSE local não apenas adolescentes de Juiz de Fora, mas de toda a região da Zona da Mata e Sul de Minas Gerais, já que não existem outras unidades socioeducativas nessas localidades. Destaca-se que, no período de produção deste estudo, o CSE local contava com 90 adolescentes acautelados, ou seja, quase o dobro de sua capacidade.

Destaca-se que, embora o ECA tenha entrado em vigor no ano de 1990, somente em 2008 o município de Juiz de Fora passou a contar com uma unidade socioeducativa, que, como dito acima, abrange a toda a região da Zona da Mata e região Sul de Minas Gerais. O CSE local, situado na região norte da cidade, é comumente apontado pela população juiz-forana como Cerespinho, o que corresponde a uma espécie de apelido que significa uma versão jovem de uma das unidades prisionais locais destinadas a adultos, denominada CERESP (Centro de Remanejamento do Sistema Prisional).

Até o ano de 2018, além do atendimento feito durante a execução das medidas socioeducativas, os adolescentes residentes em Juiz de Fora também contavam com o programa Se liga68 68 Mais informações em: http://www.seguranca.mg.gov.br/socioeducativo/programas-e-acoes/se-liga. Acesso em: 10 fev. 2020. , executado através da SUASE e destinado aos egressos do sistema socioeducativo. O Se Liga visava apoiar o adolescente quando do cumprimento de sua medida socioeducativa e auxiliar em sua reinserção social, incentivando aproximações com a família, educação, trabalho, cultura e renda. Segundo os responsáveis, desde 2018 as atividades do Se liga foram interrompidas na cidade devido a questões orçamentárias.

Em 2012, quando foram iniciadas as atividades do projeto Além da Culpa, a rede socioeducativa local parecia estar seguindo o padrão que vigora em todo o país, caracterizado pela primazia da aplicação das medidas socioeducativas em meio não aberto e pela predominância de sua imposição a adolescentes negros, pobres e do sexo masculino69 69 RODRIGUES, 2017. . Embora a realidade em juiz-forana não fosse tão desoladora como a verificada em outras unidades que padecem com superlotação e maus tratos, sabíamos que a dinâmica dos atendimentos socioeducativos na cidade estava aquém do ideário propugnado pelo ECA e distante dos inovadores programas de JR que nos serviam de modelo.

5.2. Início das atividades e metodologias adotadas

O Além da Culpa foi implementado na Comarca de Juiz de Fora em 2012, por iniciativa da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, sob a coordenação das defensoras públicas Maria Aparecida Rocha de Paiva e Margarida Maria Barreto Almeida, responsáveis pela Defensoria da Vara da Infância e da Juventude à época. Por meio de convênio70 70 Convênio nº 777124/2012, firmado entre a DPMG e SDH/PR, através do setor de projetos e convênios da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais. assinado com o Governo Federal para a execução do projeto, o Além da Culpa passou a contar com recursos próprios, o que tornou possível a seleção e contratação de técnicos e estagiários, a compra dos materiais e a organização do espaço onde passaria a funcionar a Central de Práticas Restaurativas, cuja sede, cedida pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais, se localiza no mesmo prédio onde funciona a Vara da Infância e Juventude local.

Passada a fase de estruturação do projeto, ainda em 2012, foram realizados diversos treinamentos e palestras se sensibilização sobre JR, haja vista ser este um tema muito novo à época. Com o intuito de atender às exigências da Lei do SINASE para a implantação de programas de JR, todos os voluntários, técnicos e estagiários participaram de cursos de capacitação enquanto facilitadores71 71 Atendendo ao disposto na Resolução n° 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os facilitadores devem possuir alto grau de empatia e capacitação, sendo responsáveis por conduzir os círculos restaurativos a partir de um ambiente seguro, capaz de propiciar diálogos abertos e não violentos sobre o conflito em questão. Em todos os círculos os facilitadores são apoiados por co-facilitadores, que também passam por treinamentos e capacitação para atuarem como tais. , para que pudessem atuar de maneira adequada e preparada.

No ano de 2013, os integrantes do projeto, vinculados à Defensoria Pública, realizaram visitas técnicas à Escola Municipal Gabriel Gonçalves e ao CSE, ambos em Juiz de Fora e também passaram por treinamentos junto às equipes de outros projetos de JR nas cidades de São Caetano do Sul/SP72 72 Justiça Restaurativa e comunitária em São Caetano do Sul\SP. Mais informações disponíveis em: http://www.tjsp.jus.br/Download/CoordenadoriaInfanciaJuventude/JusticaRestaurativa/SaoCaetanoSul/Publicacoes/jr_sao-caetano_090209_bx.pdf. Acesso em:15 jun.2017 e Porto Alegre/RS73 73 Justiça Restaurativa - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mais informações disponíveis em http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa. Acesso em 15 jun 2017. , cujo papel pioneiro nas práticas restaurativas no país já foi mencionado acima.

No início de 2015, todos os integrantes do projeto contaram com curso de capacitação como facilitadores, que foi ministrado pela psicóloga Monica Maria Ribeiro Mumme74 74 Currículo disponível em: <http://laboratoriodeconvivencia.com.br/?page_id=145>. Acesso em: 14 jun. 2017. , idealizadora dos cursos para a implantação de políticas públicas para a JR junto à Escola Paulista de Magistratura. O curso contou com representantes de diversas instituições, como: Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora, Secretaria Municipal de Educação, Tribunal de Justiça do Estado de Minas Gerais, Polícia Militar, entre outras.

Durante o período de formação, a equipe da Defensoria encontrou desafios para a devida efetivação do projeto, o que foi possível, a partir de 2015, através das parcerias firmadas com a 12ª Promotoria da Justiça da Infância e Juventude de Juiz de Fora e com a Faculdade de Direito da Universidade Federal de Juiz de Fora. No mesmo ano, graças a ações de natureza interventiva, foi possível colocar em funcionamento a Central de Práticas Restaurativas.

No âmbito da UFJF, o Além da Culpa passou a funcionar como um projeto de extensão acadêmica em 2015, vinculado à Pró-Reitoria de Extensão (área de extensão Direitos Humanos e Justiça). A perspectiva de JR adotada nas ações extensionistas é a de que a JR se trata de um modelo de justiça compreendido como um conjunto de métodos alternativos de resolução de conflitos criminais, que funciona de maneira contraposta aos sistemas de justiça tradicionais, especialmente aqueles orientados pela lógica retributiva, tendo por objetivo a voluntariedade das partes e a responsabilização da pessoa tida como autora da infração penal.

As atividades de extensão interagem com as atividades do NEPCrim (Núcleo de Extensão e Pesquisa em Ciências Criminais da Faculdade de Direito da UFJF), sediado no NPJ (Núcleo de Prática Jurídica) da mesma instituição, e têm por objetivo promover a aplicação do método e das técnicas da JR nos processos de verificação de ato infracional e/ou execução de medidas socioeducativas que tramitam perante a Vara da Infância e Juventude da Comarca de Juiz de Fora. Além disso, são promovidos cursos de capacitação de facilitadores, palestras e seminários consentâneos à temática, o no intuito de colaborar com a divulgação da JR na cidade e região.

Para participarem do projeto foram selecionados, inicialmente, 10 (dez) estagiários, todos devidamente matriculados no curso de Direito da UFJF, que, voluntariamente, passaram a atuar, juntamente com os referidos professores e com a equipe da Defensoria e demais voluntários, na Central de Práticas Restaurativas75 75 Maiores informações sobre o processo seletivo do referido projeto de extensão acadêmica disponíveis em: <http://www.ufjf.br/direito/files/2010/05/Edital-Bolsista-de-Extens%C3%A3o-alem-da-culpa.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017. . As atividades foram exitosas que conferiram à equipe do projeto de extensão a premiação, na categoria Direitos Humanos, na I Mostra de Extensão da UFJF, realizada em 201676 76 Mais informações disponíveis em:< http://www.ufjf.br/noticias/2017/01/12/causas-e-consequencias-dos-atos-de-menores-infratores-e-estudo-de-projeto-de-extensao/>. Acesso em: 14 jun. 2017. .

Além das atividades extensionistas, a professora coordenadora iniciou, em 2016, um projeto de pesquisa, na modalidade iniciação científica77 77 Mais informações em: <http://www.ufjf.br/propp/files/2016/07/Resultado-BIC-PIBIC-2016-Atualizado2.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017. , para refletir sobre as possibilidades e impactos da implantação da JR em Juiz de Fora, objetivando analisar os impactos dos mecanismos alternativos de resolução de conflitos criminais entre adolescentes. À luz da Criminologia crítica, tais estudos buscaram contribuir para a consolidação de uma proposta contra-hegemônica do discurso dominante que se caracteriza por criminalizar a juventude popular, representando um esforço intelectual para a condução dos debates acerca da Justiça Juvenil pátria a perspectivas mais humanizadas e progressistas.

Do ponto de vista metodológico, as práticas mais utilizadas pela equipe nas atividades extensionistas são os chamados círculos restaurativos, que têm por objetivos: i) apoiar os participantes a apresentarem seus pontos de vista em relação ao acontecimento infracional e ajudá-los a se conduzirem com base nos valores que representam quem eles são quando estão no seu melhor momento; ii) fazer com que a ligação entre as pessoas fique visível e o mais equânime e respeitosa possível, mesmo em face de diferenças significativas; iii) buscar o engajamento entre os participantes para com o procedimento realizado, de modo que todos possam deliberar livremente sobre os fatos.

Com fulcro nessa metodologia, a equipe atua em dois momentos processuais diferentes, sendo o primeiro na fase de apuração do ato infracional, quando, diante do fato praticado, em tese, pelo adolescente, o Parquet representa contra ele, dando início, assim, à ação de natureza penal de competência do Juiz da Vara da Infância e Juventude. Recebidos os autos, o magistrado avalia a possibilidade de encaminhamento do feito para a Central de Práticas Restaurativas, que, ouvida a defesa e o MP, ficará responsável por tomar os procedimentos junto às partes envolvidas para a realização do procedimento restaurativo. Quando o encaminhamento à Central de Práticas Restaurativas se dá na fase de apuração do ato infracional, o juiz procede à suspensão do processo para a realização da prática restaurativa, e, caso o procedimento seja exitoso, pode culminar na extinção do feito, como vem ocorrendo em vários casos desde o início das atividades.

Ademais, a equipe do projeto também atua na fase pós-condenação, qual seja: a fase de execução das medidas socioeducativas, através da realização de oficinas no CSE local ou de promoção dos chamamos de círculos de reinserção familiar, que também ocorrem na Central de Práticas Restaurativas.

Para que o procedimento restaurativo de apuração de ato infracional seja completo, ele deve contar com três fases: i) pré-círculos (que compreendem a fase de preparação, em que as partes são contatadas e convidadas para participar voluntariamente do procedimento); ii) círculos restaurativos (que sucedem os pré-círculos exitosos e compreendem a efetiva realização das atividades e encontros restaurativos); iii) pós-círculos (que consistem em acompanhamentos feitos pela equipe do projeto para verificar o cumprimento das propostas restaurativas firmadas nos círculos).

Para a realização dos pré-círculos, os membros da equipe se deslocam pessoalmente até a residência do adolescente e o convidam, na presença de seus responsáveis, a participar do procedimento. Caso o adolescente e os responsáveis aceitem o convite, a equipe solicita que indiquem outras pessoas, além do ofensor e da vítima, cuja participação consideram importante. Essas pessoas indicadas funcionam como apoiadores (pessoas do relacionamento dos envolvidos, como parentes, amigos, empregadores, etc.) ou como referências comunitárias (líderes comunitários ou religiosos, policiais, testemunhas, professores e outros profissionais relacionados às pessoas e/ou ao caso), que auxiliarão as partes na construção das propostas restaurativas.

Feita a visita ao adolescente, a equipe se desloca à residência das demais partes envolvidas para convidá-las a participarem do círculo restaurativo. Finalmente, concluída com êxito a etapa de pré-circulo, a equipe responsável define data e horário específico para a realização do encontro, que, como já dito, é realizado na Central de Práticas Restaurativas.

Ao longo das atividades, foi possível perceber que o contato presencial entre a equipe do projeto e as partes na fase de pré-círculo é de grande importância para o êxito do procedimento restaurativo, na medida em que, através dele, é possível conhecer a realidade do adolescente e de seus familiares, o que facilita as abordagens durante os círculos restaurativos e humaniza a percepção da equipe acerca do adolescente, que deixa de ser percebido como apenas mais um réu cuja suposta infração foi relatada nos autos.

No que tange aos desafios enfrentados pela equipe para realização dos pré-círculos, cumpre destacar que em razão da condição social da maioria dos adolescentes e demais envolvidos, direta ou indiretamente, serem pobres, suas residências são de difícil acesso, sendo necessário transporte para a locomoção da assistente social e dos estagiários responsáveis pela visita. No entanto, como o transporte é fornecido pela Defensoria Pública e deve ser subordinado às outras demandas da instituição, a disponibilidade de dias e horários é restrita, o que dificulta o contato com as partes e o efetivo agendamento dos círculos. Na tentativa de ultrapassar essa barreira, a equipe do projeto realizou, durante o ano de 2019, diversas tentativas de contato com as partes via telefone. Todavia, foi observado que o contato telefônico é menos eficiente ou, até mesmo, menos acolhedor que o pessoal, sendo possível notar maior número de faltas, mesmo com a confirmação anterior da presença pelo telefone.

Passada a fase de pré-circulo, no círculo restaurativo, presentes os facilitadores, co-facilitadores, as pessoas identificadas como ofensor e vítima e seus apoiadores, todos se assentam de forma circular, no sentido de demonstrar a posição de igualdade entre os participantes e a necessidade do respeito e atenção mútuos. Os facilitadores posicionam objetos e materiais de apoio no centro do círculo a fim de dar apoio à fala e à escuta dos participantes. Ademais, a equipe utiliza um objeto para demarcar o momento de fala dos participantes, que é denominado bastão ou objeto de fala. Tal objeto circula de pessoa por pessoa, demarcando o espaço de fala daquele que o detém e estimulando a alteridade e a escuta dos demais, que, em seguida, também poderão se expressar enquanto estiverem segurando o bastão.

Na condução dos círculos restaurativos, os facilitadores elaboram perguntas e estimulam a fala dos participantes a partir de fatos, valores e sentimentos que são, pouco a pouco, abordados pelo grupo. Ao longo dos círculos realizados, atendendo à proposta da comunicação não violenta, os facilitadores não abordam o conflito entre as partes de forma imediata. Ao contrário, as rodadas iniciais procuram fomentar o diálogo a respeito de temas amenos e alheios ao cerne do conflito decorrente do ato infracional em questão, permitindo às partes falarem sobre os sentimentos e perspectivas que, naturalmente, permeiam os primeiros apontamentos acerca da conflitividade que será discutida no círculo.

Importante salientar, ainda, que, ao longo de todo o encontro circular, são exploradas as necessidades das partes, o que se dá através de um diálogo seguro e voluntário, em que todos têm a opção de não falarem ou, até mesmo, de desistirem do procedimento, se assim desejarem. Caso isso não ocorra e os integrantes evoluam no diálogo acerca do conflito propriamente dito, os facilitadores procuram estimulá-los na construção de uma proposta restaurativa coletiva que promova a pacificação das controvérsias e, se possível, aponte possibilidades para a restauração dos laços que foram rompidos com o ato infracional.

Ressalta-se que todas as fases do procedimento restaurativo são devidamente documentadas e o relatório final, confeccionado após a realização do círculo restaurativo, no qual consta a proposta restaurativa construída coletivamente pelas partes, é juntado aos autos do processo de apuração do ato infracional para posterior análise do juiz responsável, que decidirá pela extinção do feito ou pela valoração da participação como condição pessoal favorável na escolha da medida socioeducativa a ser imposta.

No que tange às dificuldades encontradas pela equipe para realização dos círculos restaurativos, destaca-se a dificuldade que as partes têm de se locomoveram até a Vara da Infância e da Juventude, pois, em razão da distância dos bairros em que residem, normalmente distantes do centro da cidade, nem sempre dispõem de dinheiro para a condução. Outro entrave observado pela equipe é fato de a Central de Práticas Restaurativas funcionar no ambiente forense, o que causa certo desconforto e temor às partes, mesmo que orientada, na fase de pré-círculo, que a natureza das práticas restaurativas é diferenciada dos ritos tradicionais das audiências.

Cumpre salientar que o perfil dos feitos encaminhados à Central de Práticas Restaurativas corresponde a, na maioria dos casos, a atos infracionais de pequeno e médio potencial ofensivo, com destaque para condutas análogas aos crimes de ameaça; injúria; difamação; calúnia; lesão corporal leve, dano e furto, bem como a contravenção penal de vias de fato, o que é visto pela equipe como um ponto negativo, já que é cediço que a JR pode ser aplicada também em casos de infrações graves.

Apresentadas as formas de intervenção nos casos de apuração de ato infracional, convém apresentar as demais formas de intervenção do Além da Culpa, agora na fase de execução da medida socioeducativa imposta ao adolescente por meio de sentença condenatória. A primeira é a realização de oficinas semanais no CSE local com um grupo de em média 10 adolescentes por semestre, que são selecionados pela equipe técnica do CSE. Ao final de cada módulo, as atividades são consignadas nos autos e, caso sejam tidas pelo juiz como exitosas, podem contribuir para a progressão e/ou extinção da medida socioeducativa. A segunda é a realização de círculos que reinserção familiar, que ocorrem na Central de Práticas Restaurativas e contam com a participação do adolescente, sua família e/ou membros da comunidade, com o intuito de fortalecer laços familiares e sociais que possam ter sido afetados em razão do ato infracional.

Já os círculos de reinserção familiar, que são realizados de maneira conjunta entre a equipe do projeto e a equipe técnica de referência dos no CSE, consistem na utilização da metodologia circular com a finalidade de promover o diálogo entre adolescente, seus familiares e membros da comunidade, no sentido restaurar relações familiares e sociais, para que o adolescente, após cumprir a medida socioeducativa, possa retomar o convívio com sua família e grupo social. A ideia é trabalhar situações de abandono e/ou rivalidades que correm risco de ser revisitadas quando do retorno do adolescente ao meio livre.

Diferentemente dos círculos restaurativos para verificação de ato infracional, que buscam a responsabilização do adolescente pelo ato cometido e pelos danos resultantes, os círculos de reinserção social não tratam de questões de mérito e visam tão somente fortalecer os vínculos familiares e sociais do adolescente, representando uma espécie de apoio ao seu retorno ao lar e à sociedade após o cumprimento da medida socioeducativa de privação e/ou restrição de liberdade. Tal perspectiva é formulada à luz da compreensão de que a JR pode funcionar como ação afirmativa de reinserção social, uma vez que leva em conta tanto o fato de que o adolescente ficou deslocado de seu meio social em razão das consequências advindas da prática do ato infracional, como também tem em mira a importância do fortalecimento dos vínculos estremecidos, ou mesmo, quebrados em razão do conflito vivenciado pelas partes.

Quanto aos entraves, destaca-se que nos círculos de reinserção familiar a equipe encontra uma série de dificuldades para a participação do adolescente em razão de ele sob a custódia do CSE, ficando a presença prejudicada em razão de falta de escoltas e/ou veículos para transporte. Ademais, o histórico de abandono e negligência familiar vivenciado pelos adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação dificulta o contato com os familiares para o apoio à reintegração do jovem à família e à comunidade de origem.

Na realização de todas as atividades, a equipe extensionista tem a clareza de que o fato de a Central de Práticas Restaurativa funcionar no ambiente forense é um ponto desfavorável, haja vista o constrangimento e, até mesmo medo, que muitos adolescentes, familiares e demais participantes têm de se dirigir a esses espaços. Ademais, a equipe mantem-se atenta aos riscos de captura do procedimento restaurativo pela lógica do sistema de justiça criminal tradicional, por isso são feitas reuniões periódicas de estudos, treinamentos e compartilhamento de experiências, à luz da Criminologia crítica, para que possam ser sempre fomentados os debates críticos acerca das práticas levadas a efeito pelo grupo e da conveniência de repasse de tais críticas aos atores jurídicos e institucionais envolvidos. Outro ponto que merece a atenção da equipe extensionista é o risco de a JR se tornar uma espécie de expansão do poder punitivo estatal, sendo aplicada em casos em que a remissão em face do adolescente foi considerada cabível, o que implicaria em um ônus desarrazoado para o adolescente78 78 ROSENBLATT, 2014a, 2014b. .

Considerações Finais

Pelo exposto, verifica-se que o tratamento conferido pelas diferentes instituições à infância e adolescência brasileiras ao longo dos últimos século sempre esteve voltado ao seu controle, de modo a garantir que as questões sociais, consideradas como problemáticas, fossem administradas a depender dos interesses dominantes vigentes às diferentes épocas. Nota-se que, nos diferentes momentos históricos destacados, os agentes de poder conduziram as ações de modo a construir uma imagem anormal e criminalizada da infância, adolescência e juventude pobres, tendência que, entre rupturas e permanências, perdurou até a edição do ECA em 1990 e ainda se faz presente na contemporaneidade.

Passados 30 anos da edição do ECA, é possível perceber importantes avanços trazidos pela referida lei, sobretudo no que tange à elevação das crianças e adolescentes à categoria de sujeitos de direitos e destinatários de garantias fundamentais. Forçoso reconhecer, no entanto, que tais mudanças não garantiram o cumprimento desses direitos e garantias, uma vez que a realidade brasileira se mostrou inacessível à execução plena dos mesmos.

Nesse sentido, embora não se deixe de reconhecer os méritos da lei, imperioso é refletir sobre os desajustes entre o discurso legal e mecanismos eleitos para realizá-lo terminaram por subverter as propostas reitoras do Estatuto.

Ao trazer a noção de medidas restritivas e privativas de liberdade como ultima ratio, o ECA esbarra em um punitivismo que, além de ser uma permanência histórica do sistema de Justiça juvenil pátrio, vem sendo amplamente fortalecido nos últimos decênios pelos discursos neoliberais e pelas perspectivas político-criminais de expansão e recrudescimento. Tal percepção permite concluir que ainda há muitos desafios pela frente para se fazer valer o arcabouço principiológico, normativo e axiológico previsto no ECA.

Nesse sentido, acredita-se que, para que se possa contribuir para a promoção da proteção integral dos adolescentes brasileiros acusados e/ou condenados pela prática de atos infracionais, imperiosas se fazem iniciativas capazes de dotar de eficácia os princípios reitores do Estatuto. À luz de tais princípios, a JR se apresenta como uma fecunda proposta de responsabilização dos adolescentes por seus atos infracionais que, sem recorrer à ideologia retributivista, rompe com a lógica meramente punitiva e, ao mesmo tempo, promove uma justiça integradora, participativa, preocupada em alcançar todos envolvidos no conflito, quais sejam: a vítima, o ofensor e a comunidade.

Para garantir a difusão e concretização dos programas de JR pelo país é necessário que haja apoio estatal para sua implantação e capacitação de novos facilitadores, além da destinação de recursos à viabilização e melhoramento das práticas restaurativas.

É justamente nesse movimento que vemos as universidades como agentes parceiros desse projeto promissor de implantação da JR pelo país. Sabemos que há muito a ser feito, mas, mesmo diante de um cenário de expansão punitiva, a UFJF, através do Além da Culpa, já começou a avistar um horizonte de possibilidades libertárias através da extensão acadêmica.

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  • 7
    Mais informações disponíveis em: https://www.cnj.jus.br/agendas/congresso-digital-dos-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente/. Acesso em: 24 jul. 2020.
  • 8
    Mais informações em: https://www.camara.leg.br/noticias/674989-frente-parlamentar-comemora-hoje-os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020.
  • 9
    Mais informações em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2020/07/13/senadores-destacam-os-30-anos-do-estatuto-da-crianca-e-do-adolescente. Acesso em: 24 jul. 2020.
  • 10
    ZEHR, 2012; 2015; 2017.
  • 11
    DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
  • 12
    ACHUTTI, 2013; 2016.
  • 13
    RODRIGUES, 2017.
  • 14
    RODRIGUES, 2017, PILOTTI, 1995.
  • 15
    Idem.
  • 16
    Ibidem.
  • 17
    Importa destacar que, antes mesmo de ser alvo de políticas públicas, a juventude já era objeto de políticas criminais, uma vez que o primeiro Código Penal do Império, datado de 1830, já se lhes atribuía responsabilidade por seus atos a partir dos quatorze anos, provado o discernimento. Tal discernimento, contudo, não era objeto de comprovação ou materialidade. O que se viu na prática foi o recolhimento de crianças e adolescentes pobres e abandonados às mesmas prisões destinadas aos adultos, daí que os jovens punidos por tal diploma penal ficaram conhecidos como destinatários da etapa penal indiferenciada. Tal indiferenciação se manteve até a promulgação do Código Penal em 1940, avançando até entrada em vigor do Código Penal Republicano, de 1890 (RODRIGUES, 2017).
  • 18
    ANTUNES, E. H.; BARBOSA, L.H.S.; PEREIRA, L. M. F., 2002, p. 132.
  • 19
    FOUCAULT, 2001.
  • 20
    DONZELOT, 1986.
  • 21
    FOUCAULT, 2001.
  • 22
    RODRIGUES, 2017; SPOSATO, 2006.
  • 23
    Art. 131. O Conselho Tutelar é órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente, definidos nesta Lei.
    Art. 136. São atribuições do Conselho Tutelar: I - atender as crianças e adolescentes nas hipóteses previstas nos arts. 98 e 105, aplicando as medidas previstas no art. 101, I a VII; II - atender e aconselhar os pais ou responsável, aplicando as medidas previstas no art. 129, I a VII [...] (BRASIL, 1990).
  • 24
    Art. 103. Considera-se ato infracional a conduta descrita como crime ou contravenção penal (BRASIL, 1990).
  • 25
    Mais informações disponíveis em: https://www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/noticias/2018/marco/mdh-divulga-dados-sobre-adolescentes-em-unidades-de-internacao-e-semiliberdade. Acesso em: 10 ago. 2020.
  • 26
    SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018.
  • 27
    RODRIGUES, 2017; SANTOS, 2000; BATISTA, 2008, 2003; BARATTA, 2002.
  • 28
    SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018.
  • 29
    Mais informações em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/publicacao/assistencia_social/relatorios/Medidas_Socioeducativas_em_Meio_Aberto.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
  • 30
    Ressalta-se que, em que pese o presente artigo estar sendo escrito em 2020, o último levantamento anual SINASE foi publicado em 2018, sendo referente aos dados de 2016. A pesquisa mais recente divulgada pelos órgãos oficiais é essa publicada pelo Ministério do Desenvolvimento Social também em 2018, relativa aos dados de 2017. Tal atraso no repasse de informações dificulta um acompanhamento mais efetivo dos dados, sendo esta, portanto, uma das principais críticas dos pesquisadores que se dedicam ao estudo do tema.
  • 31
    RODRIGUES, 2017; BATISTA, 2008.
  • 32
    Como destaca Dieter (2013, p. 267), a política criminal atuarial tem por objetivo “controlar a ‘underclass’, no que se aproxima dos projetos governamentais historicamente conhecidos, que deturpam todo o discurso jurídico em função da instrumentalização de seus interesses”. No entanto, a grande diferença do novo modelo consiste na estratégia de “neutralização da repressão contra os marginalizados que promove”. Sob o signo da incapacitação dos “grupos de risco”, o modelo atuarial despreza as teorias jurídicas do “crime” e da “pena” - que tradicionalmente se propõem à racionalização das práticas punitivas. Segundo o autor, “esta falta de preocupação na justificação do exercício da violência representa um desafio aberto ao Estado democrático de Direito”.
  • 33
    WAISELFISZ, 2015; 2014; 2013; 2012; SDH, 2015, 2013, 2012; BRASIL, 2018
  • 34
    Idem.
  • 35
    Mais informações em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2020/08/Monitoramento-Semanal-Covid-19-Info-12.08.20.pdf. Acesso em: 13 ago. 2020.
  • 36
    CALDEIRA, 1991.
  • 37
    Dentre os quais, se destacam: Convenção dos Direitos da Criança, 1989; Regras Mínimas das Nações Unidas para a Administração da Justiça de Menores (Regras de Beijing - Resolução 40/33, de 1985, da ONU); Diretrizes das Nações Unidas para a Prevenção da Delinquência Juvenil (Diretrizes de Riad - Resolução 45/11, de 1990, da ONU).
  • 38
    GARLAND, 2008.
  • 39
    PALLAMOLLA, 2009, p. 53.
  • 40
    ACHUTTI, 2013, p.159.
  • 41
    ZEHR, 2012; 2015; 2017.
  • 42
    DÜNKEL, HORSFIELD & PĂROŞANU, p. 4, 2015.
  • 43
    ACHUTTI, 2013, p.156.
  • 44
    NERY, 2011.
  • 45
    DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
  • 46
    Idem.
  • 47
    RODRIGUES, 2017.
  • 48
    MIERS, 2003 apud PALLAMOLLA, 2009, p. 103.
  • 49
    ZEHR, 2017.
  • 50
    Idem, p. 22.
  • 51
    Idem. p. 20.
  • 52
    ACHUTTI, 2016, p. 79-84.
  • 53
    Disponível em: https://juridica.mppr.mp.br/arquivos/File/MPRestaurativoEACulturadePaz/Material_de_Apoio/Resolucao_ONU_2002.pdf. Acesso em: 10 ago. 2020.
  • 54
    Mais informações disponíveis em: http://www.crianca.mppr.mp.br/pagina-1711.html. Acesso em: 10 fev. 2020.
  • 55
    Informações disponíveis em: www.justica21.org.br. Acesso em: 15 jun. 2019.
  • 56
    Mais informações em: Justiça e educação: parceria para a cidadania. Um projeto de justiça restaurativa da Vara da Infância e da Juventude da Comarca de São Caetano do Sul envolvendo a rede escolar da comarca. Disponível em: http://www.mpdft.mp.br/portal/pdf/unidades/promotorias/pdij/XXICongressoNacional_ABMP/1 %20Experiencia%20%20Eduardo%20Rezende%20Melo%2008.05%20-%20G7.pdf. Acesso em: 15 jun. 2019.
  • 57
    Informações disponíveis em: http://www.tjdft.jus.br/institucional/2a-vice-presidencia/nupecon/justicarestaurativa/o-que-e-a-justica-restaurativa. Acesso em: 15 jun. 2019.
  • 58
    CONSELHO NACIONAL DE JUSTIÇA. Pilotando a Justiça Restaurativa. O papel do poder judiciário. Sumário executivo. CNJ: Brasília, 2017. Disponível em: https://www.cnj.jus.br/wp-content/uploads/2018/01/9055d2b8d7ddb66b87a367599abc4bf5.pdf. Acesso em: 10 fev. 2020. p. 22.
  • 59
    Idem. p. 27.
  • 60
    Disponível em: http://www.sejudh.mt.gov.br/documents/412021/9910142/Levantamento+SINASE+_2016Final.pdf/4fd4bcd0-7966-063b-05f5-38e14cf39a41. Acesso em: out. 2019.
  • 61
    No Brasil, as práticas restaurativas, apesar de implementadas pelo Poder Judiciário com base em resoluções emitidas pelo Conselho Nacional de Justiça, não encontram previsão legal, salvo disposição expressa na Lei do SINASE. A possibilidade de positivação da JR entre vem sendo discutida, no entanto, desde 2006, por meio do Projeto de Lei n. 7.006/2006, atualmente em trâmite na Câmara dos Deputados, em apenso ao Projeto de Novo Código de Processo Penal. Tal projeto de lei visa a alteração do Código Penal, do Código de Processo Penal e da Lei n. 9.099/95, para instituir e regular o uso facultativo e complementar da justiça restaurativa no sistema de justiça criminal.
  • 62
    O processo de implementação da JR no Brasil foi iniciado nos anos 2000, culminando na elaboração de um documento intitulado “Carta de Araçatuaba”, cuja Redação foi elaborada pelos integrantes do I SIMPÓSIO BRASILEIRO DE JUSTIÇA RESTAURATIVA, realizado na cidade de Araçatuba, estado de São Paulo - Brasil, nos dias 28, 29 e 30 de abril de 2005. Tal documento foi posteriormente ratificado na CONFERÊNCIA INTERNACIONAL DE ACESSO À JUSTIÇA, que ocorreu em Brasília em junho de 2005. A “Carta de Brasília” funcionou como um importante marco para impulsionar a efetivação de projetos de implantação dos programas de JR no território nacional. Disponível em: http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa/carta-aracatuba. Acesso em: 14 jun. 2017.
  • 63
    RODRIGUES, 2017.
  • 64
    RODRIGUES, 2017, p. 78.
  • 65
    O município de Juiz de Fora conta com três Conselhos Tutelares, quais sejam: CONSELHO TUTELAR I (REGIÃO CENTRO/NORTE); CONSELHO TUTELAR II (REGIÃO SUL/OESTE); CONSELHO TUTELAR III (REGIÃO LESTE). Maiores informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/conselhotutelar/estrutura/composicao.php. Acesso: 10 fev. 2020.
  • 66
    O CRAS é a principal porta de entrada para os serviços da Proteção Básica. Presta atendimento às famílias e indivíduos em situação de vulnerabilidade social, com o objetivo de fortalecer os vínculos familiares e comunitários. Oferece atendimento e acompanhamento às famílias que moram nos bairros do seu território de abrangência. Realiza atividades individuais ou em grupo e encaminha para serviços de atendimento a crianças, adolescentes e idosos, entre outras atividades. Mais informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/cras.php. Acesso: 10 fev. 2020.
  • 67
    O CREAS é uma unidade pública que oferta serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos. Nesse espaço são ofertados serviços de proteção a indivíduos e famílias vítimas de violência, maus-tratos, negligência, entre outros. Sua atuação proporciona à família o acesso a direitos sociais. Busca, também, a construção de um espaço de acolhida e escuta qualificada, fortalecendo vínculos familiares e comunitários. O público alvo inclui: crianças e adolescentes vítimas de abuso, exploração sexual e violência doméstica, em situação de mendicância e trabalho infantil; adolescentes e jovens em cumprimento de medidas socioeducativas; mulheres, idosos e pessoas com deficiência com seus direitos violados. Mais informações disponíveis em: https://www.pjf.mg.gov.br/secretarias/sds/centros_referencias/creas.php. Acesso: 10 fev. 2020.
  • 68
    Mais informações em: http://www.seguranca.mg.gov.br/socioeducativo/programas-e-acoes/se-liga. Acesso em: 10 fev. 2020.
  • 69
    RODRIGUES, 2017.
  • 70
    Convênio nº 777124/2012, firmado entre a DPMG e SDH/PR, através do setor de projetos e convênios da Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais.
  • 71
    Atendendo ao disposto na Resolução n° 225/2016 do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), os facilitadores devem possuir alto grau de empatia e capacitação, sendo responsáveis por conduzir os círculos restaurativos a partir de um ambiente seguro, capaz de propiciar diálogos abertos e não violentos sobre o conflito em questão. Em todos os círculos os facilitadores são apoiados por co-facilitadores, que também passam por treinamentos e capacitação para atuarem como tais.
  • 72
    Justiça Restaurativa e comunitária em São Caetano do Sul\SP. Mais informações disponíveis em: http://www.tjsp.jus.br/Download/CoordenadoriaInfanciaJuventude/JusticaRestaurativa/SaoCaetanoSul/Publicacoes/jr_sao-caetano_090209_bx.pdf. Acesso em:15 jun.2017
  • 73
    Justiça Restaurativa - Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Mais informações disponíveis em http://jij.tjrs.jus.br/justica-restaurativa. Acesso em 15 jun 2017.
  • 74
    Currículo disponível em: <http://laboratoriodeconvivencia.com.br/?page_id=145>. Acesso em: 14 jun. 2017.
  • 75
    Maiores informações sobre o processo seletivo do referido projeto de extensão acadêmica disponíveis em: <http://www.ufjf.br/direito/files/2010/05/Edital-Bolsista-de-Extens%C3%A3o-alem-da-culpa.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017.
  • 76
    Mais informações disponíveis em:< http://www.ufjf.br/noticias/2017/01/12/causas-e-consequencias-dos-atos-de-menores-infratores-e-estudo-de-projeto-de-extensao/>. Acesso em: 14 jun. 2017.
  • 77
    Mais informações em: <http://www.ufjf.br/propp/files/2016/07/Resultado-BIC-PIBIC-2016-Atualizado2.pdf>. Acesso em: 14 jun. 2017.
  • 78
    ROSENBLATT, 2014a, 2014b.
  • 1
    ZEHR, 2012; 2015; 2017.
  • 2
    DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
  • 3
    ACHUTTI, 2013; 2016.
  • 4
    ZEHR, 2012; 2015; 2017.
  • 5
    DÜNKEL; HORSFIELD & PĂROŞANU, 2015.
  • 6
    ACHUTTI, 2013; 2016.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    10 Fev 2021
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