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Poderá o direito ser decolonial?

Could the law be decolonial?

Resumo

Este artigo pretende discutir lacunas teóricas e conceituais na obra de Boaventura Santos a partir de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade, especialmente no que se refere ao direito. Para tanto, inicialmente são apresentadas, em linhas gerais, a história desse grupo e suas características fundamentais. Na sequência, são debatidas as similaridades e as possíveis divergências entre as concepções de B. Santos e o pensamento decolonial, mesmo antes de sua vinculação oficial. Em seguida, os principais desenvolvimentos teóricos e conceituais na obra de B. Santos a partir dessa vinculação são debatidos. Finalmente, as lacunas mencionadas são diretamente abordadas.

Palavras-chave:
Boaventura Santos; Giro Decolonial; Direito; Emancipação

Abstract

This paper aims at discussing the theoretical and conceptual shortcomings in Boaventura Santos' work from his linking to the Modernity/Coloniality Group, especially with regard to the law. To do so, it first presents, in general terms, the history of that group and its fundamental features. After that, it debates the similarities as well as possible divergences between B. Santos' conceptions and the decolonial thinking, even before their official linking. Next, it approaches the main theoretical and conceptual developments in the work of Boaventura Santos from his linking to the decolonial thinking. Finally, the aforementioned theoretical and conceptual shortcomings are directly adressed.

Keywords:
Boaventura Santos; Decolonial Turn; Law; Emancipation

1. Introdução

Nos últimos anos, tem aumentado a influência de um movimento intelectual cujo objetivo declarado é a renovação da crítica latino-americana (BALESTRIN, 2013, p. 89). Esse movimento, conhecido em geral como pensamento decolonial ou giro decolonial, organizou-se inicialmente em torno do Grupo Modernidade/Colonialidade, que coloca sua ênfase no conceito de colonialidade compreendida como a face violenta e oculta da modernidade (MIGNOLO, 2017MIGNOLO, Walter. Desafios decoloniais hoje. Epistemologias do Sul, Foz do Iguaçu, nº1 v. 1, 2017, p. 12-32., p. 13).

Embora ancore sua crítica na categoria da colonialidade, esse movimento busca distinguir-se de outras vertentes que, também dedicadas à crítica das relações coloniais e de seus efeitos para além do desfazimento dos vínculos coloniais formais, poderiam ser englobadas como “pós-coloniais”. Duas características podem ser apontadas como centrais para a origem dessa distinção: a busca, internamente ao pensamento decolonial, por uma separação definitiva em face de autores eurocêntricos (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 94-95) - ou pelo menos daqueles ligados mais diretamente ao pós-estruturalismo francês - e uma maior preocupação em garantir que as especificidades da América Latina não permanecessem desconsideradas no debate (BALLESTRIN, 2013, p. 95-96).

Apesar de não haver participado da origem do movimento, um autor conhecido e relevante já há algumas décadas para a crítica teórica e prática no Brasil veio a aproximar-se do pensamento decolonial: Boaventura de Sousa Santos (CASTRO-GOMEZ; GROSFOGUEL, 2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social; tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 11), (MIGNOLO, 2010MIGNOLO, Walter. Desobediencia epistémica: retórica de la modernidad, lógica de la colonialidad y gramática de la descolonialidad. Buenos Aires: Ediciones del signo. 2010., p. 7), (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 97), (BELLO, 2015BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. RECHTD - Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 7, p. 49-61, 2015., p. 51).

B. Santos sempre dedicou atenção especial ao Brasil em suas pesquisas1 1 É válido citar, a título meramente exemplificativo, a tese de doutorado defendida em 1973, na Universidade de Yale (EUA), publicada no Brasil com o título “O direito dos oprimidos” (SANTOS, 2014), e o projeto “Reinventar a emancipação social a partir do Sul”, em que o Brasil é um dos seis países abrangidos (SANTOS, 2007b, p. 21). e influenciou, como ainda influencia, as universidades e os movimentos sociais brasileiros. Entretanto, apesar da sua relevância e de sua relação próxima com o Brasil, há pouquíssimos estudos sistematizados no país sobre sua vasta obra, estudos de fôlego dedicados a explicitar seus principais conceitos, as mudanças que sofreram ao longo das décadas e as tensões que daí emergem.2 2 Os pouquíssimos exemplos disponíveis desses estudos em regra não abrangem toda a obra, em seus múltiplos aspectos, mas destacam uns ou outros de seus elementos. Conferir, por exemplo: CARVALHO, 2019.

Ao mesmo tempo, como se sabe B. Santos possui uma significativa reflexão crítica sobre o direito e sobre as relações entre direito e emancipação3 3 Um excelente panorama dessa reflexão pode ser encontrado em SANTOS, 2003, bem como no dossiê organizado pela Revista Direito e Práxis, intitulado “Revisitando 'Poderá o Direito ser emancipatório?'”, organizado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Orlando Aragón Andrade (SANTOS; ANDRADE, 2015) . Por outro lado, embora vez ou outra o direito apareça como uma categoria teórica relevante para o pensamento decolonial, é relativamente pequena a produção desse movimento acerca da temática4 4 Isso não quer dizer que não haja produções relevantes. Por exemplo, PAZELLO, 2014. quando comparada a outros temas como as relações entre gênero e colonialidade ou entre raça e colonialidade.

As considerações dos parágrafos anteriores iluminam, assim, as questões que guiam a pesquisa de fundo da qual resulta o presente trabalho: como pensar o direito à luz do pensamento decolonial? O que a aproximação de Boaventura Santos ao movimento traz de influência para sua reflexão sobre o direito? Quais as relações entre direito, giro decolonial e emancipação? O questionamento em relação à possibilidade de o direito ser emancipatório se mantém inalterado, ou, relido à luz do giro decolonial, passa a ser: poderá o direito ser decolonial?

No presente texto, como relatório parcial da pesquisa de fundo mencionada no parágrafo anterior, o objetivo é explicitar as dificuldades teórico-conceituais que se colocam internamente à obra de Boaventura Santos a partir de sua aproximação ao pensamento decolonial e de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade. Para tanto, inicialmente é resgatada, em linhas gerais, a história de constituição do giro decolonial e do Grupo Modernidade/Colonialidade, apresentando-se suas características fundamentais. Em seguida, por meio do conceito de “pós-modernismo de oposição” é mostrado como a aproximação entre B. Santos e o pensamento decolonial pode ser lida no sentido de um desdobramento interno de posições já presentes anteriormente em seus escritos. A seção seguinte, por seu turno, dedica-se a tentar lidar com as ambiguidades do que seriam as divergências entre B. Santos e o pensamento decolonial, canalizadas pelo conceito de “pós-colonialismo de oposição”. Na sequência, são apresentados os desenvolvimentos que consideramos mais relevantes na obra de B. Santos a partir de sua aproximação ao pensamento decolonial. Por fim, na última seção o objetivo do presente artigo é mais diretamente abordado, quando são discutidas as dificuldades teórico-conceituais e as necessidades de reformulação que derivam daquela aproximação. A metodologia, definida pelo próprio escopo do texto, é a revisão bibliográfica e a reconstrução textual e conceitual.

2. O giro decolonial e o grupo modernidade/colonialidade

Um grupo de pesquisadores e de pesquisadoras, em sua maioria latino-americanos e latino-americanas, foi responsável por dar início a um notável movimento epistemológico, que pode ser definido como a realização de uma “radicalização do argumento pós-colonial” (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 89) na América Latina.

O principal local de encontro dessas pesquisadoras e desses pesquisadores veio a ser o Grupo Modernidade/Colonialidade, cuja origem remota situa-se na década de 1990, nos Estados Unidos, quando em 1992 foi reimpresso o texto de Aníbal Quijano “Colonialidad y modernidad-racionalidad” (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 94). Algum tempo depois, o ano de 1998 seria decisivo. Nele, a América Latina viria a ser definitivamente inserida no debate pós-colonial a partir da tradução para o espanhol e a publicação do manifesto inaugural do Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos, que surgira naquele 1992. Em conjunto com a tradução do referido manifesto, era lançada uma coletânea de artigos na qual um dos membros do grupo, Walter Mignolo, criticava a posição dos estudos pós-coloniais “originais” denunciando seu “imperialismo”, uma vez que não haviam sido capazes de romper de um modo definitivo com autores e com autoras eurocêntricos (BALLESTRIN, 2013, p. 94-95).

Para W. Mignolo, os estudos subalternos latino-americanos não deveriam espelhar-se nas respostas ao colonialismo oferecidas pelos estudos subalternos indianos, pois a trajetória da América Latina seria muito diferente, comportando especificidades irredutíveis a um denominador comum. Desse modo, enquanto prevalecesse a chave de leitura pós-colonial, as formas de dominação e de resistência que ocorreram no continente americano estariam sendo invisibilizadas no debate. Devido a essas divergências, ainda em 1998 o Grupo Latino-Americano de Estudos Subalternos viria a ser dissolvido; no mesmo ano, teriam lugar os primeiros encontros que deram origem ao Grupo Modernidade/Colonialidade (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 95-96).

O Grupo Modernidade/Colonialidade foi sendo estruturado a partir de seminários e publicações, com a década de 2000 marcando a entrada de novas e novos integrantes e o diálogo com outras pesquisadoras e outros pesquisadores, como Catherine Walsh, Nelson Maldonado-Torres, Margarita Cervantes de Salazar, Libia Grueso e Boaventura de Sousa Santos (BALLESTRIN, 2013SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 14a. ed. São Paulo: Cortez, 2013., p. 98).

Em uma síntese apertada, pode-se dizer que o Grupo Modernidade/Colonialidade realiza uma crítica à colonialidade, entendida como conjunto de relações sociais que continuam existindo mesmo com o fim do colonialismo, ou seja, com o processo de independência das ex-colônias (PAZELLO, 2014PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. 2014. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 89-90). Nesse trabalho de crítica, intelectuais vinculadas e vinculados ao grupo defendem uma “opção decolonial” epistêmica, teórica e política, para que sejam possíveis a compreensão do e a atuação no mundo, caracterizado este precisamente pelo prolongamento da colonialidade em distintos níveis e esferas da vida, tanto individual quanto coletiva (BALLESTRIN, 2013BALLESTRIN, Luciana Maria de Aragão. América Latina e o giro decolonial. Revista Brasileira de Ciência Política, v. 2, p. 89-117. 2013., p. 89).

Além disso, esse trabalho de crítica, na medida em que procura seguir a trilha da ruptura que deu origem ao Grupo Modernidade/Colonialidade, é desenvolvido afastando-se das influências pós-modernas - buscadas sobretudo no pós-estruturalismo francês da segunda metade do século XX - que marcavam os estudos pós-coloniais dominantes (PAZELLO, 2014PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. 2014. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 89-90).5 5 Por causa da pluralidade interna ao pensamento decolonial, esse afastamento em relação à influência pós-moderna, mais especificamente em relação ao pós-estruturalismo francês, não pode ser tomada como uma característica geral que permanece inalterada para além do momento de fundação do Grupo Modernidade/Colonialidade. A obra de um autor como Santiago Castro-Gómez, por exemplo, não mantém esse afastamento.

3. Pós-modernidade e o pós-modernismo de oposição

Intelectual já de projeção internacional antes da constituição do Grupo Modernidade/Colonialidade, Boaventura Santos acabará se aproximando do movimento decolonial algum tempo depois de sua origem. Essa trajetória de aproximação não corresponde a um mero encontro aleatório, nem pode ser reduzida a uma comunhão de perspectivas político-ideológicas apenas. Antes, ela pode ser traçada internamente à obra teórica prévia do próprio B. Santos, tendo como ponto de partida a sua crítica ao paradigma moderno, que desde muito cedo está presente em suas reflexões.

Para ele, a modernidade aparece inicialmente como um problema na medida em que as promessas inscritas nela não puderam ser cumpridas por ela mesma (SANTOS, 2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social; tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007., p. 19). Nesse âmbito de reflexão sobre promessas que não se cumpriram, o direito e a ciência vão aparecer como instituições basilares para a compreensão do transcurso da modernidade e para pensarem-se as possibilidades de sua superação (SANTOS, 2011, p. 52).

É importante destacar, desde já, que nesse momento de sua obra a distinção entre Norte e Sul ainda não possui a força que viria a adquirir depois. Não que essa distinção não apareça, mas, mesmo quando aparece, ainda não está vinculada ao que viria a ser o giro decolonial, a partir do qual ela assumirá a condição de uma clivagem conceitual central.

Seguindo a linha argumentativa das promessas que não se cumpriram, o paradigma da modernidade, segundo B. Santos, seria fortemente marcado por contradições internas: ele traz consigo a possibilidade de uma inovação cultural e social, mas essa possibilidade não se efetiva (SANTOS, 2011SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8a. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 50-51). Como consequência, a modernidade, no limite, torna-se um conjunto contraditório de promessas não cumpridas, de um lado, e de promessas cumpridas em excesso, de outro (SANTOS, 2007, p. 19).

Esse caráter contraditório do paradigma moderno abre caminho, por sua vez, para a categoria das transições paradigmáticas. Estas ocorrem quando as contradições internas a um paradigma não são mais geridas de maneira satisfatória por mecanismos também internos a ele (SANTOS, 2011SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8a. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 167). O fato de na modernidade haver perguntas modernas para as quais não há respostas modernas (SANTOS, 2007, p. 19) estaria, assim, a apontar tanto para um esgotamento da modernidade quanto para uma transição paradigmática em direção a uma pós-modernidade:

Afirmar que o projeto da modernidade se esgotou significa, antes de mais, que se cumpriu em excessos e déficits irreparáveis. São eles que constituem a nossa contemporaneidade e é deles que temos de partir para imaginar o futuro e criar as necessidades radicais cuja satisfação o tornarão diferente e melhor que o presente. A relação entre o moderno e o pós-moderno é, pois, uma relação contraditória. Não é de ruptura total como querem alguns, nem de linear continuidade como querem outros. É uma situação em que há momentos de ruptura e momentos de continuidade. A combinação específica entre estes pode variar de período para período ou de país para país (SANTOS, 2013SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 14a. ed. São Paulo: Cortez, 2013., p. 134).

Essa transição não seria apenas entre modos de produção econômicos, como era pensada na chave do marxismo mais ortodoxo, mas entre formas de sociabilidade, incluindo a dimensão social, cultural, política e econômica (SANTOS, 2011SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8a. ed. São Paulo: Cortez, 2011., p. 168).

Não é difícil vislumbrar aqui uma similaridade com a crítica pós-moderna à modernidade, crítica que, respeitadas as divergências internas entre tantas e tantos autores distintos, é também compartilhada pelos estudos pós-coloniais.

Como dito acima, o Grupo Modernidade/Colonialidade terá como um dos motivos fundamentais de seu surgimento a busca por afastar-se do pós-colonialismo, busca justificada exatamente pela influência que nele se fazia sentir de autores e de autoras ligados aos argumentos e aos afetos da pós-modernidade (PAZELLO, 2014PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. 2014. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 89-90).

A posição de Enrique Dussel quanto ao tema é exemplar quanto à relevância que esse afastamento possui para o pensamento decolonial. Segundo ele, as correntes pós-modernas, diferentemente dos estudos decoloniais, acabariam caindo em um reducionismo vulgar tão grande quanto aqueles levados a cabo pela modernidade eurocêntrica mesma. Pois, segundo o filósofo argentino radicado no México, nos estudos pós-modernos

Se critica uma certa unilateralidade com outra de sentido contrário, e se cai naquilo que se critica. Desde uma crítica panóptica pós-moderna repete-se a pretensão universal da Modernidade; ou seja, “a pós-modernidade - nos diz Eduardo Mendieta - perpetua a intenção hegemônica da modernidade e da Cristandade ao negar-lhe a outros povos a possibilidade de nomear a sua própria história e de articular seu próprio discurso autorreflexivo” (DUSSEL, 2017DUSSEL, Enrique. A Filosofia da Libertação frente aos estudos pós-coloniais, subalternos e a pós-modernidade/The Philosophy of Liberation face the post-modernity and post-colonial and subalterns studies. Revista Direito e Práxis, v. 8, n. 4, p. 3232-3254, dez. 2017., p. 3237-3238).

No mesmo sentido, Aníbal Quijano - que, ao lado de E. Dussel e de W. Mignolo são em geral reconhecidos como os pilares centrais do pensamento decolonial (BRAGATO; CASTILHO, 2014BRAGATO, Fernanda Frizzo; CASTILHO, Natalia Martinuzzi. A importância do pós-colonialismo e dos estudos descoloniais na análise do novo constitucionalismo latino-americano. In: BELLO, Enzo; VAL, Eduardo Manuel (orgs.). O pensamento pós e descolonial no novo constitucionalismo latino-americano. Caxias do Sul , EDUCS, p. 11-25, 2014., p. 19; BELLO, 2015BELLO, Enzo. O pensamento descolonial e o modelo de cidadania do novo constitucionalismo latino-americano. RECHTD - Revista de Estudos Constitucionais, Hermenêutica e Teoria do Direito, v. 7, p. 49-61, 2015., p. 51; BERCLAZ, 2017BERCLAZ, Márcio Soares. Da injustiça à democracia : ensaio para uma Justiça de Libertação a partir da experiência zapatista. Tese (Doutorado) - Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2017., p. 205-206; PAZELLO, 2014PAZELLO, Ricardo Prestes. Direito insurgente e movimentos populares: o giro descolonial do poder e a crítica marxista ao direito. 2014. Tese (Doutorado em Direito) - Programa de Pós-Graduação em Direito, Setor de Ciências Jurídicas, da Universidade Federal do Paraná, Curitiba, 2014., p. 39) - afasta-se da tradição pós-moderna afirmando que ela teria compreendido a realidade de modo distorcido ao também seguir ocultando a colonialidade. Nas palavras do sociólogo peruano:

Na realidade, cada categoria usada para caracterizar o processo político latino-americano tem sido sempre um modo parcial e distorcido de olhar esta realidade. Essa é uma conseqüência inevitável da perspectiva eurocêntrica, na qual um evolucionismo unilinear e unidirecional se amalgama contraditoriamente com a visão dualista da história; um dualismo novo e radical que separa a natureza da sociedade, o corpo da razão; que não sabe o que fazer com a questão da totalidade, negando-a simplesmente, como o velho empirismo ou o novo pós-modernismo, ou entendendo-a só de modo organicista ou sistêmico, convertendo-a assim numa perspectiva distorcedora, impossível de ser usada salvo para o erro (QUIJANO, 2014QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del Poder, Eurocentrismo y América Latina. En: PALERMO, Zuma; QUINTERO, Pablo (Orgs.). Anibal Quijano. Textos de Fundación. Buenos Aires: Ediciones del Signo, 2014., p. 157, destaques nossos).

Se assim o é, torna-se questionar: um autor como Boaventura Santos, que se vincula textualmente a um projeto de pós-modernidade, pode vincular-se também ao movimento decolonial? Não haveria aí um choque radicalmente incomensurável de pressupostos?

Para começar a galgar o caminho de uma resposta capaz de afastar a suspeita de incompatibilidade, o primeiro passo é evidenciar que a concepção de B. Santos sobre a pós-modernidade é distinta da definição de pós-modernidade6 6 O próprio Enrique Dussel chega a utilizar, na década de 1970, a nomenclatura pós-moderna para definir o seu projeto teórico, projeto que hoje assume o nome de transmodernidade. Conferir: DUSSEL, 1977; DUSSEL, 2015. frente à qual as autoras e os autores decolonais procuram afastar-se.

Apesar de Boaventura Santos ter denominado assim o período de transição paradigmática, para ele essa designação de pós-moderno seria inadequada. Em suas próprias palavras: “a designação pós-moderno nunca me satisfez” (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 6).

O problema do termo “pós-moderno” seria que ele carrega consigo uma série de pré-compreensões, das quais o autor português se afasta, como: o entendimento sugerido de que a definição do novo paradigma somente ocorre a partir da negação do anterior; a pressuposição de que há uma sequência no tempo, como se o novo paradigma somente pudesse ser constituído com o fim do anterior; o risco de que, como o desenvolvimento social e científico não é o mesmo em todo o mundo, a pós-modernidade pudesse ser compreendida como sendo um privilégio das sociedades do centro (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 4).

Como nenhuma dessas características está presente na concepção de pós-modernidade que havia sido sustentada por B. Santos, ele chama atenção para o fato de que seu conceito de pós-modernidade é muito diferente do que circula na Europa e nos Estados Unidos - em ambos os casos, e apesar de diferenças mais ou menos sutis, relacionado a uma celebração da pós-modernidade paralela a uma recusa da modernidade, dos seus modos de racionalidade, de seus valores e também do pensamento crítico que nela havia sido inaugurado. Para esse pós-modernismo, a crítica à modernidade acabava “paradoxalmente na celebração da sociedade que ela tinha conformado” (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 4-5). Por conseguinte, à sua concepção de pós-modernidade, em contraposição ao pós-modernismo celebratório típico dos Estados Unidos e da Europa, B. Santos optou por chamar de “pós-modernismo de oposição” (SANTOS, 2004, p. 4-5).

Da perspectiva de B. Santos, haveria uma relação entre o pós-modernismo celebratório e o pós-colonialismo dominante, sendo que o primeiro exerce influência sobre o segundo, o que levaria a um eurocentrismo, ou melhor, a um etnocentrismo dos estudos pós-coloniais (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 11-12). Assim, sem negar totalmente o mérito das concepções pós-modernas e pós-estruturalistas na emergência dos estudos pós-coloniais, essas concepções não seriam capazes de corresponder às aspirações éticas e políticas subjacentes ao pós-colonialismo (SANTOS, 2004, p. 13). Essa crítica, porém, não se aplicaria ao pós-modernismo de oposição (SANTOS, 2004, p. 13), pois este compreende a superação da modernidade desde uma perspectiva tanto pós-colonial quanto pós-imperial, situando-se nas margens mais extremas da modernidade nortecentrada para, a partir desse lugar epistêmico, lançar sobre ela um olhar crítico (SANTOS, 2004, p. 18-19).

Estabelecida a diferença entre “pós-modernismo celebratório” e “pós-modernismo de oposição”, não é difícil perceber o quanto a proposta de B. Santos já guardava afinidades eletivas com as bases fundamentais do Grupo Modernidade/Colonialidade antes da efetiva aproximação entre eles7 7 Para críticas algo semelhantes ao pós-modernismo, conferir, por exemplo: DUSSEL, 2017; QUIJANO, 2014; MIGNOLO, 2017. . Quanto à tarefa de superação da modernidade/colonialidade, por exemplo, ela consiste para W. Mignolo em

[...] contar as histórias não apenas a partir do interior do mundo “moderno”, mas também a partir das fronteiras. A partir de histórias “[...] esquecidas que trazem para o primeiro plano [...] uma nova dimensão epistemológica: uma epistemologia da, e a partir da margem do sistema mundial colonial/moderno”. (MIGNOLO, 2002, p. 83, destaques nossos)

Partindo da perspectiva do pós-modernismo de oposição, B. Santos vai direcionar duas principais críticas ao que seria, também em seu entender, o pós-colonialismo dominante. A primeira está relacionada ao eurocentrismo e ao não rompimento definitivo com autores eurocêntricos e com autoras eurocêntricas8 8 Voltando ao tema da influência de autores e de autoras ligadas ao pós-estruturalismo nos estudos pós-coloniais, ela também foi identificada por W. Mignolo, sendo um dos motivos determinantes para o afastamento dos autores e das autoras decoloniais em relação aos estudos pós-coloniais. Conferir: MIGNOLO, 2008. Ver, porém, nota 5 acima. , cuja presença contribuiria para uma fragilização política do pós-colonialismo (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 26).

A segunda crítica, por sua vez, diz respeito à compreensão homogeneizante das relações coloniais, indicando uma ausência de capacidade histórico-comparativa (SANTOS, 2006SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006., p. 243-244). Nesse sentido, as relações coloniais, no bojo dos estudos pós-coloniais, seriam consideradas como um todo uniforme e homogêneo, sem se analisar o que havia de específico nas variadas formas de colonização e de colonialidade que se deram em lugares tão distintos como as Américas, a África, a Ásia (SANTOS, 2006, p. 243-244).

Mais uma vez aqui, B. Santos não está distante de um dos fundadores do Grupo Modernidade/Colonialidade, W. Mignolo. Também para este o movimento pós-colonial dominante teria ocultado a dominação colonial latino-americana e a resistência latino-americana do debate pós-colonial (MIGNOLO, 1998MIGNOLO, Walter. Postoccidentalismo: el argumento desde América Latina, In: CASTRO-GÓMEZ, Santiago; MENDIETA, Eduardo (coords.). Teorías sin disciplina: latinoamericanismo, poscolonialidad y globalización en debate. México: Miguel Ángel Porrúa, 1998.).

Assim, apesar de em alguns contextos não ficar claro até que ponto Boaventura Santos não engloba todos os autores e todas as autoras dos estudos pós-coloniais e do pensamento decolonial dentro de uma mesma categoria9 9 Por exemplo, no texto “Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e de outro”, B. Santos debate com o movimento pós-colonial. No entanto, no próprio texto, ele responde a uma crítica realizada por W. Mignolo em relação ao fato de sua teoria manter-se “demasiadamente dentro da modernidade” (SANTOS, 2004, p. 20). Nesse mesmo texto, B. Santos discorda da concepção de A. Quijano quanto à derivação das formas de dominação na modernidade (SANTOS, 2004, p. 27). Ao mesmo tempo, no texto “Entre próspero e Calibã: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, texto também destinado ao tema, ele cita “Homi Bhabha”, “Gayatri Spivak”, “Renajit Guha”, entre outros (SANTOS, 2007, p. 234), como sendo integrantes do “movimento pós-colonial”. , é nítido que suas críticas ao pós-colonialismo voltam-se contra um conjunto de características ao menos de uma parte do movimento pós-colonial, que é exatamente a parte à qual o Grupo Modernidade/Colonialidade viria a se contrapor.

4. Para além do pós-colonialismo dominante

Por tudo o que foi dito na seção anterior, não demoraria para que a aproximação entre Boaventura Santos e o Grupo Modernidade/Colonialidade ocorresse, vindo aquele a tornar-se membro deste.

Porém, a posição de Boaventura Santos também diante de autores e autoras decoloniais não é uma posição de compartilhamento pleno de pressupostos e conclusões. Como desdobramento de sua aproximação ao pensamento decolonial, e ao mesmo tempo em contraste com o pensamento decolonial, B. Santos cunha a expressão “pós-colonialismo de oposição” (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 22).

Não fica exatamente claro a que se referiria esse pós-colonialismo de oposição e o que ele traria de novidade em face do giro decolonial e do Grupo Modernidade/Colonialidade. Mesmo não ficando completamente claro, todavia, parece que dois aspectos são relevantes para compreender-se a singularidade que B. Santos reivindica para si. O primeiro refere-se a uma maior ênfase na crítica ao capitalismo, que, segundo Boaventura Santos, receberia, em regra, pouca atenção do movimento pós-colonial dominante em comparação com a atenção dada à modernidade e ao colonialismo (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 28)10 10 Essa crítica dificilmente se sustenta em face da obra de E. Dussel e A. Quijano. Conferir: DUSSEL, 2007; QUIJANO, 2010; 2014. .

O segundo aspecto trata da consideração da especificidade da colonização, sobretudo as relações Portugal/colônias e Portugal/mundo (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 43-44)(SANTOS, 2006, p. 244), que acabaria ofuscada na compreensão homogeneizante da colonização latino-americana junto ao Grupo Modernidade/Colonialidade.

Esse segundo aspecto é particularmente interessante na medida em que aponta para uma contradição interna ao Grupo Modernidade/Colonialidade, pois, ao mesmo tempo em que o grupo criticara a homogeneização dos processos de colonização e de colonialidade que acabava por ofuscar as singularidades latino-americanas, acabara por homogeneizar as relações coloniais e de colonialidade na América Latina, ao tratar a América Latina como um todo uniforme (SANTOS, 2006SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006., p. 243-244).

Para B. Santos, da mesma maneira que há diferenças internas ao colonialismo inglês e entre este e o colonialismo ibérico, há peculiaridades no colonialismo ibérico, pois há especificidades do colonialismo português em relação ao espanhol, derivadas tanto da posição específica - semiperiférica - de Portugal no mundo quanto do modo específico de sua relação com suas antigas colônias (SANTOS, 2006SANTOS, Boaventura de Sousa. Entre Próspero e Caliban: Colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade. In: SANTOS, Boaventura de Sousa. A gramática do tempo: para uma nova cultura política. São Paulo: Cortez, 2006., p. 244). Essas distinções não marcam apenas o modo como ocorreram as diferentes formas de colonização, como também geram efeitos distintos no momento “pós-colonial” nos espaços de língua portuguesa, sejam eles antigas colônias, ou mesmo a antiga metrópole (SANTOS, 2006, p. 244). Portanto, os impactos das distinções e especificidades da colonização e da colonialidade portuguesa precisariam ser observados, embora essa tarefa ainda carecesse de ser realizada (SANTOS, 2004, p. 43-44).

Esses dois aspectos, contudo, se podem iluminar um pouco melhor o que seria a singularidade do pós-colonialismo de oposição, não permitem desfazerem-se em definitivo as dúvidas sobre a que esse conceito se refere nem, o que é mais grave, até que ponto as críticas que o constituem estão dirigidas apenas ao pós-colonialismo dominante, apenas ao pensamento decolonial, ou a ambos (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 22).

Apesar dessa ambiguidade nem de longe pouco relevante, é possível mapear desenvolvimentos robustos na obra de Boaventura Santos a partir da sua aproximação ao Grupo Modernidade/Colonialidade - desenvolvimentos que, como se verá ao final, não deixam de lançar novas perguntas sobre a compatibilidade interna à sua obra.

5. O sul global

Datado de 2010, “Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur” (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010.), é um texto que condensa provavelmente a maior e mais desenvolvida parte desses desenvolvimentos que os estudos e escritos de B. Santos seguirão desde sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade.

Segundo o autor, há dois grandes sistemas de dominação do mundo inscritos na modernidade, o capitalismo e o colonialismo, ao mesmo tempo diferentes e inseparáveis (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 60-61). Portanto, haveria três grandes desafios para o pensamento crítico na América Latina: o pós-colonialismo, o pós-capitalismo e a articulação entre eles (SANTOS, 2010, p. 29).

O colonialismo seria, então, uma das principais dificuldades a serem enfrentadas pela “imaginação política”, ao lado do capitalismo. Pois, enquanto os governos oficiais pensam, quando muito, um pós-capitalismo a partir do capitalismo e os movimentos indígenas a partir do pré-capitalismo, nem um dos dois logra imaginar “o capitalismo sem o colonialismo interno” (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 26). Para Boaventura Santos,

[...] o colonialismo interno não é somente nem principalmente, uma política de Estado, como foi durante o colonialismo da ocupação estrangeira; é uma gramática social muito vasta, que atravessa a sociabilidade, o espaço público e o espaço privado, a cultura, as mentalidades e subjetividades. É, em resumo, um modo de viver e conviver muitas vezes compartilhado por quem se beneficia com isso e por aqueles que o sofrem (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 29).

Sendo assim, ao tratar do tema central do texto em questão, o Estado, B. Santos o define como sendo moderno, capitalista e colonial, procurando chamar atenção para o fato de que a refundação necessária desse Estado guarda os limites e as possibilidades da imaginação política do fim do capitalismo e do fim do colonialismo (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 69), algo que estaria no horizonte dos movimentos indígenas do continente latino-americano: eles têm consciência da dificuldade de se refundar o Estado, uma vez que isso não acontecerá sem que haja o fim dos referidos sistemas de dominação e de exploração (SANTOS, 2010, p. 71).

Identificados os dois grandes sistemas de dominação global e os desafios que eles colocam para o pensamento e a prática críticos na América Latina, o passo seguinte tem um caráter propositivo. B. Santos defende que os processos de desmercantilizar, democratizar e descolonizar devem ser realizados por meio das epistemologias do Sul, a partir do refazimento e, consequentemente, da ampliação do conceito de justiça social. Neste, deve-se incluir na liberdade e na igualdade o reconhecimento da diferença, tanto quanto incluir a justiça cognitiva, por meio da ecologia dos saberes11 11 Ecologia dos saberes é a proposta teórico-conceitual de B. Santos para a realização de um diálogo horizontal entre as diferentes formas de conhecimento. Assim, é possível recuperar e valorizar os diferentes saberes que resistiram à monocultura da ciência moderna e permanecem coexistindo com ela (SANTOS, 2013, p. 13). É necessário evidenciar que o objetivo não é “‘descredibilizar’ a ciência”, mas realizar um uso contra-hegemônico do conhecimento hegemônico: “Ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês. Isso não significa que tudo vale o mesmo. [...] Somos contra as hierarquias abstratas de conhecimento, das monoculturas que dizem, por princípio, ‘a ciência é única, não há outros saberes’. [...] Não há dúvidas de que para levar o homem ou a mulher à Lua não há conhecimento científico; o problema é que hoje também sabes que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a ciência moderna. Ao contrário ela a destrói. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses [...]” (SANTOS, 2007b, p. 32-33). , e a justiça histórica, compreendida como luta contra o colonialismo tanto estrangeiro quanto interno (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 131).

Possivelmente, a mais nítida influência de sua aproximação com o movimento decolonial se evidencie quando Boaventura Santos vai definir o que são as epistemologias do Sul. Trata-se da

[...] demanda por novos processos de produção e avaliação de conhecimentos científicos e não científicos válidos e de novas relações entre diferentes tipos de conhecimento, com base nas práticas das classes e grupos sociais que sofreram desigualdades e discriminações sistematicamente injustas causadas pelo capitalismo e pelo colonialismo. O Sul global não é então um conceito geográfico, embora a grande maioria dessas populações viva em países do hemisfério sul. É mais uma metáfora do sofrimento humano causada pelo capitalismo e pelo colonialismo em uma escala global e de resistência para superá-lo ou minimizá-lo. É por isso um Sul anticapitalista, anticolonial e antiimperialista (SANTOS, 2010SANTOS, Boaventura de Sousa. Refundación del Estado en América Latina: perspectivas desde una epistemología del Sur. Lima: Instituto Internacional de Derecho y Sociedad; Programa Democracia y Transformación Global, 2010., p. 43, destaques nossos).

A nitidez da influência se revela na alteração expressa do conceito de Sul, ao acrescentar-se o colonialismo como causa do sofrimento humano12 12 Da mesma forma, no texto “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma ecologia dos saberes”: “[...] Sul global não-imperial, concebido como metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo (SANTOS, 2009, p. 37). . Antes, para o autor, o Sul global era também a metáfora do sofrimento humano, mas tinha como causa apenas o capitalismo (SANTOS, 2004SANTOS, Boaventura de Sousa. Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e outro. Conferência de Abertura do VIII Congresso Luso-Afro-Brasileiro de Ciências Sociais, realizado em Coimbra de 16 a 18 de setembro de 2004., p. 6).

Outro texto emblemático na obra de B. Santos que permite mapear a influência do giro decolonial é o “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma ecologia dos saberes” (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.). Anterior cronologicamente, nele a ênfase recai em mostrar que o mundo não consiste em um todo homogêneo. Dessa forma, soma-se à clivagem emancipação-regulação, que dominara seu pensamento desde o início13 13 Naquele contexto, a modernidade era compreendida como ancorada fundamentalmente na tensão entre dois pilares, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. O pilar da regulação seria composto pelo princípio do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade. O pilar da emancipação seria constituído pela racionalidade estético-expressiva, pela racionalidade cognitivo-instrumental e pela racionalidade moral-prática. Contudo, no transcurso da modernidade, teria vindo a ocorrer um desequilíbrio internamente aos referidos pilares e entre eles: no pilar da emancipação houve a colonização das diferentes racionalidades pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e as potencialidades da emancipação passaram a estar concentradas na ciência e na técnica; no pilar da regulação, por sua vez, houve o desenvolvimento excessivo do mercado (SANTOS, 2011, p. 49-57); a consequência foi a absorção do pilar da emancipação pelo pilar da regulação. Em outros termos, a “[...] redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna” (SANTOS, 2011, p. 57). , uma nova clivagem, uma clivagem geopolítica, correspondente à divisão do mundo em linhas abissais.

Nessa chave de leitura, passa a ser entendida como uma das marcas da modernidade o caráter abissal do pensamento dominante nela produzido. Dividindo o mundo em dois, entre Norte e Sul global, esse pensamento abissal consiste em distinções visíveis e invisíveis, sendo que estas fundamentam aquelas ao dividir o mundo entre o lado de cá e o lado de lá da linha - das linhas abissais. Essa cisão opera de tal maneira que o outro lado da linha é invisibilizado, é tornado inexistente e, como existência tornada inexistente pelo traçar mesmo das linhas abissais, sofre a exclusão radical, não se encaixando sequer naquilo que a concepção dominante do “mesmo” aceita como sendo o “outro” (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 23-24).

Duas seriam as principais manifestações do pensamento abissal - não por acaso, as duas categorias que melhor elucidavam, anteriormente em seu pensamento, a tensão moderna entre emancipação e regulação: o direito moderno e o conhecimento moderno. Em relação a este, o que estaria em jogo, “deste lado da linha” é a pretensão da ciência moderna quanto ao monopólio do critério da verdade, em detrimento de formas outras de conhecimento, como a filosofia e a teologia; ao mesmo tempo, “do outro lado da linha”, formas variadas de conhecimentos populares não são sequer reconhecidas como conhecimento, estando para além da própria distinção verdadeiro/falso (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 24-25).

Já no que tange ao direito, no “lado de cá da linha” - isto é, no Norte -, ele é determinado pelo que se compreende como legal ou ilegal, a partir do direito oficial estatal e internacional, sendo essa distinção entre legal e ilegal a única relevante e tomada, por isso mesmo, como universal. Logo, é desconsiderado todo um conjunto de relações perante as quais essa clivagem legal/ilegal em termos oficiais não faz sentido (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 26). Do “lado de lá da linha”, entretanto, não é nem mesmo a distinção legal/ilegal que opera, ainda que gerando problemas quanto a relações não captáveis adequadamente por ela: no Sul, as relações sociais são tomadas como situadas para além de uma compreensão de mundo passível de ser organizada em torno da distinção entre legal e ilegal - trata-se do simplesmente “sem lei” que repete em tom menos alegórico a velha máxima segundo a qual não há pecado para além da linha do Equador (SANTOS, 2009, p. 28).

As linhas abissais assim traçadas dividem o mundo entre Norte e Sul negando a possibilidade da co-presença, da presença comum entre formas de saber e de viver distintas, e, na medida em que essa negação da co-presença se dá por meio de uma negação ativa da existência válida daquilo que está para além das linhas, produz-se um desperdício de experiências, vivências, experimentações da realidade. Também aqui não é difícil ouvir os ecos da velha crítica de Boaventura Santos aos desperdícios de uma “razão indolente” (SANTOS, 2011SANTOS, Boaventura de Sousa. A crítica da razão indolente: contra o desperdício da experiência. 8a. ed. São Paulo: Cortez, 2011.), mas essa velha crítica aparece agora talhada em uma linguagem claramente influenciada pelo pensamento decolonial.

Ao mesmo tempo, é também aqui que a continuidade entre seus estudos anteriores e suas novas perspectivas recebe uma forte suspeita de não se sustentar sem reformulações mais profundas do que prevalecera até então. Devido à separação em dois universos distintos, entre metrópole e territórios coloniais, entre Norte e Sul, a tensão que fundamenta a modernidade, assim como seus conflitos, entre emancipação e regulação só se aplica nas sociedades metropolitanas, ou seja, no Norte global, não fazendo sentido perante as sociedades coloniais. Nestas, a dicotomia presente é a da apropriação/violência (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 24), que se manifesta de formas distintas no que tange às linhas abissais epistemológica e jurídica - mas se manifesta em ambas.

A existência dessa outra tensão, do “outro lado da linha”, no Sul global, diferentemente da tensão entre regulação e emancipação, coloca, em princípio, o caráter universal desta última dicotomia em xeque. Com ela, naquilo que interessa mais de perto ao presente artigo, ameaça ruir também a defesa de B. Santos de que o direito poderia, sim, ser emancipatório, a depender dos usos que se deem a ele (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio, 2003, p. 3-76.).

Para tentar lidar com esses riscos que emergem diante de ambas as formulações - a de uma dicotomia regulação/emancipação organizando uma modernidade que, a um só tempo, é cindida por linhas abissais que fazem com que aquela dicotomia tenha de conviver globalmente com outra, a da apropriação/violência -, é necessário compreender-se toda a complexidade da articulação possível entre elas.

Dentro dessa proposta, pode-se afirmar que as linhas abissais globais historicamente se deslocaram, sofreram “abalos tectônicos”, sendo o primeiro deles referente aos processos de independência e às lutas anticoloniais das antigas colônias, em que o “lado de lá da linha” voltou-se em atuações concentradas e concertadas contra a exclusão e os povos que “haviam sido sujeitos ao paradigma da apropriação/violência se organizaram e reclamaram o direito à inclusão no paradigma da regulação/emancipação” (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 32).

O segundo abalo tectônico, por sua vez, vem ocorrendo desde 1970 e 1980. Nele, as linhas abissais globais movimentam-se no sentido de que o Sul parece estar a expandir-se, enquanto o Norte parece estar encolhendo: ou seja, a dicotomia apropriação/violência vem tornando-se mais presente e mais forte no Norte global, enquanto a lógica da regulação/emancipação vem enfraquecendo-se. Mais do que isso: o domínio da regulação/emancipação não apenas está diminuindo, mas está sendo desfigurado, pois vai contaminando-se inclusive internamente a si pela lógica da apropriação e da violência (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 32-33). A consequência vem estampada com a face do fascismo social e do estado de exceção, que, dentro mesmo do Norte, convivem, cada vez mais como se fora algo não problemático, ao lado da democracia liberal e da normalidade constitucional, “transformando o colonial numa dimensão interna do metropolitano” (SANTOS, 2009, p. 41).

Diante desse cenário, a tendência à reprodução do pensamento abissal - que não só sustentou o delineamento moderno das linhas abissais, manifestando-se precipuamente no direito moderno e no conhecimento moderno, mas continua fundamentando hoje o deslocamento dessas linhas em direção a um encolhimento do espaço de ação da dicotomia regulação/emancipação - somente pode ser barrada por uma resistência ativa. Esta, por sua vez, embora deva manifestar-se como resistência política, assenta-se numa resistência epistemológica, porquanto, para que haja uma justiça social global, é necessário que haja uma justiça cognitiva, que seja também global (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 41): daí toda a força de sentido da proposta de “epistemologias do Sul” (SANTOS; MENESES, 2009).

Para tanto, a crítica possui uma tarefa que vai além da criação de alternativas: trata-se, antes, de gerar um pensamento pós-abissal como “um pensamento alternativo de alternativas”. No desempenho dessa tarefa, atenção deve recair-se sobre o “contra-movimento”, resultado do segundo abalo tectônico que as linhas abissais globais estão sofrendo, denominado por Boaventura Santos como “cosmopolitismo subalterno”, uma “globalização contra-hegemônica” caracterizada por iniciativas, organizações, movimentos e redes capazes de ligar globalmente iniciativas locais dispersas, todas elas comungando o propósito comum de opor-se à globalização hegemônica e a seus traços claros de um neoliberalismo capitalista e colonial (SANTOS, 2009SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009., p. 41-42).

Com isso, e sem desconsiderar as diferenças de um lado e do outro lado da linha, seguiria sendo possível uma utilização não convencional do direito moderno e do conhecimento moderno, que podem, a depender de seus usos, contribuir para a diminuição das mazelas sofridas pelos povos e grupos oprimidos ao redor do globo.

6. Considerações finais: poderá o direito ser decolonial?

A articulação entre as dicotomias regulação/emancipação e apropriação/violência apresentada no final da seção anterior guia-se pelo princípio hermenêutico fundamental que, possuindo também uma dimensão ética, recomenda procurar-se ler qualquer texto à sua melhor luz. Entretanto, mesmo um esforço como tal não consegue eliminar de todo as ameaças de curto-circuito que se projetam sobre as reflexões de B. Santos a partir de sua aproximação ao pensamento decolonial e de sua vinculação ao Grupo Modernidade/Colonialidade.

Especificamente quanto ao direito, é importante inicialmente lembrar que Boaventura Santos o pensara, em uma de suas formulações canônicas sobre o tema, sob a chave mais ampla da tensão regulação/emancipação. Assim, o direito, ao lado da política, aparecia conectado às noções de globalização contra-hegemônica e de cosmopolitismo sulbaterno - ou seja, para opor-se ao fascismo social não bastaria o mesmo direito e a mesma política, mas um um outro direito e uma outra política (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio, 2003, p. 3-76., p. 27).

Relido no âmbito do cosmopolitismo subalterno - compreendido à época como um projeto cultural, político e social ainda em suas manifestações embrionárias - esse novo direito aparece sob a rubrica de uma “legalidade cosmopolita subalterna” (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio, 2003, p. 3-76., p. 35). Esta possui um conjunto de pressupostos, nos quais se pode vislumbrar um rol amplo de possibilidades para as lutas emancipatórias que se valham do direito. De partida, como a própria noção de uma “legalidade subalterna” convida a entender, o que assume centralidade é um direito para além do direito estatal moderno, cunhado em uma linguagem individualista moderna. Trata-se de um direito que emerge de outras fontes que não o Estado - infra-estais, como grupos, comunidades, favelas e movimentos sociais, mas também supra-estatais - e que pode ser reunido na noção mais ampla de direito não-hegemônico. Porém, nem todo direito produzido fora da esfera estatal oficial e, por isso, não-hegemônico é necessariamente também contra-hegemônico. O teste fundamental - o "teste de Litmus"14 14 Sobre esse tema, conferir: MALDONADO, 2015. - consiste em averiguar-se se esse direito não-hegemônico, esse pluralismo jurídico, contribui ou não para a redução das desigualdades e para a inclusão. Se o fizer, aí sim está-se diante de um direito não-hegemônico e contra-hegemônico, uma “pluralidade jurídica cosmopolita” (SANTOS, 2003, p. 39).

Por outro lado, porém, o direito hegemônico não é totalmente excluído do cosmopolitismo subalterno. Em primeiro lugar, porque é possível o uso não-hegemônico de ferramentas jurídicas hegemônicas: isto é, “a legalista cosmopolita perfilha uma visão não-essencialista do direito estatal e dos direitos” (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio, 2003, p. 3-76., p. 37), de modo que o que torna esse direito um direito hegemônico é o uso que classes e grupos dominantes dão a ele, não sendo uma questão de um direito que seria, desde sempre e para sempre, ontologicamente hegemônico. Em segundo lugar, contudo, nem mesmo um uso hegemônico do direito estatal e dos direitos individualistas que o caracterizam - a “legalidade demoliberal” - estão descartados: “as lutas cosmopolitas podem aliar com proveito estratégias jurídicas cosmopolitas e estratégias demoliberais, originando assim híbridos político-jurídicos de vários tipos” (SANTOS, 2003, p. 41). Um bom exemplo desses híbridos seriam as lutas pelos direitos humanos15 15 É válido mencionar que A. Quijano também atribui uma relevância significativa aos direitos humanos. Conferir: QUIJANO, 2001. .

Em face de toda essa dinâmica complexa envolvida na legalidade cosmopolita subalterna, B. Santos concluiu que o “direito não pode ser nem emancipatório, nem não-emancipatório, porque emancipatórios e não-emancipatórios são os movimentos, as organizações e os grupos cosmopolitas subalternos que recorrem à lei para levar as suas lutas por diante” (SANTOS, 2003SANTOS, Boaventura de Sousa. Poderá o direito ser emancipatório? Revista Crítica de Ciências Sociais, 65, maio, 2003, p. 3-76., p. 71). O que, em outras palavras, significa concluir tanto pela possibilidade da emancipação em nível global quanto pela utilização emancipatória do direito nas lutas subalterno-cosmopolitas contra a globalização hegemônica.

Todavia, essa clareza de conclusão abre-se a ser questionada no momento em que a reflexão sobre o direito passa a ser atravessada pela clivagem colonial, pela centralidade recebida pela distinção Norte/Sul e pela correlata dicotomia apropriação/violência.

Em termos gerais, se a tensão regulação/emancipação é situada “do lado de cá da linha”, como ainda seria possível pensar a emancipação “do lado de lá da linha”, isto é, no Sul Global, onde precisamente se situam as situações e experiências que mais clamam por justiça social? O modo topográfico - ou, para usar seus próprios termos, cartográfico - como B. Santos lida com as duas dicotomias parece enredar sua obra em contradições não facilmente superáveis desde um ponto de vista teórico-conceitual: se não em nome da emancipação, em nome do quê se articulam e se devem articular as lutas no Sul Global contra uma modernidade capitalista e colonial? Mas como podem essas lutas valer-se da utopia emancipatória se, na forma descrita de um mundo cartograficamente cindido por linhas abissais, a emancipação é tensionada pela regulação apenas num Norte que se atrofia? Não se esconde nessa formulação ainda um resto de eurocentrismo que não consegue estender também ao Sul as tensões tipicamente geradas pelas expectativas de emancipação?

Se nossa leitura não estiver de todo equivocada, a maneira como se encontra apresentada a relação entre linhas abissais, Norte, Sul, tensão regulação/emancipação e tensão apropriação/violência na obra de B. Santos precisa ser profundamente reformulada para que essas perguntas não assumam a figura de um beco sem saída.

No que tange à discussão mais específica sobre o direito, até que ponto, recepcionadas a clivagem colonial Norte/Sul, as linhas abissais e a dicotomia apropriação/violência, permanece válida em sua integridade a reflexão que havia sido construída sobre o direito e a afirmação da possibilidade de um seu uso emancipatório? Se “do lado de lá da linha” não há direito/não direito, mas apenas apropriação e violência, como o é que o direito, confinado dentro do Norte, ainda pode ser usado de modo contra-hegemônico no Sul? Uma solução possível seria esta: na formulação anterior, a pergunta é pela possibilidade de o direito ser emancipatório, pergunta que recebe uma resposta, conquanto ambígua, relativamente positiva: seus usos podem ser emancipatórios; na leitura pós-giro decolonial, tanto a pergunta continuaria válida quanto a resposta permaneceria positiva: mas se restringiriam ao Norte, ao “lado de cá da linha”, pois do “lado de lá da linha” não há nem direito, nem emancipação.

Essa solução, caso conseguisse assegurar uma coerência interna, caminha em direção radicalmente oposta aos propósitos práticos de uma obra como a de B. Santos, que tanto tem contribuído ao longo das décadas com as lutas no Sul Global. Mas nem mesmo essa coerência interna ela pode assegurar, exatamente porque Boaventura Santos destaca-se, dentre tantas outras coisas, por ter sabido reconhecer o papel do direito nas lutas sociais do Sul - em um país como o Brasil, por exemplo (SANTOS, 2007SANTOS, Boaventura de Sousa. Renovar a teoria crítica e reinventar a emancipação social; tradução Mouzar Benedito. São Paulo: Boitempo, 2007.).

Assim, também especificamente quanto ao direito, o corpus das reflexões de B. Santos parece necessitar de uma reformulação profunda, apta a articular de maneira não contraditória a concepção de um direito cujo uso possa ser emancipatório também ali onde mais se necessita que ele o seja: no Sul Global, como um instrumento a mais de suas lutas contra as ameaças crescentes de uma globalização hegemônica. Enfim, poderá o direito, em seus usos emancipatórios, ser também uma ferramenta de uso decolonial?

7. Referências bibliográficas

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  • SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula. Introdução. Em: SANTOS, Boaventura de Sousa; MENESES, Maria Paula (orgs.). Epistemologias do Sul. Coimbra: Almedina, 2009.
  • 1
    É válido citar, a título meramente exemplificativo, a tese de doutorado defendida em 1973, na Universidade de Yale (EUA), publicada no Brasil com o título “O direito dos oprimidos” (SANTOS, 2014), e o projeto “Reinventar a emancipação social a partir do Sul”, em que o Brasil é um dos seis países abrangidos (SANTOS, 2007b, p. 21).
  • 2
    Os pouquíssimos exemplos disponíveis desses estudos em regra não abrangem toda a obra, em seus múltiplos aspectos, mas destacam uns ou outros de seus elementos. Conferir, por exemplo: CARVALHO, 2019.
  • 3
    Um excelente panorama dessa reflexão pode ser encontrado em SANTOS, 2003, bem como no dossiê organizado pela Revista Direito e Práxis, intitulado “Revisitando 'Poderá o Direito ser emancipatório?'”, organizado pelos professores Boaventura de Sousa Santos e Orlando Aragón Andrade (SANTOS; ANDRADE, 2015)
  • 4
    Isso não quer dizer que não haja produções relevantes. Por exemplo, PAZELLO, 2014.
  • 5
    Por causa da pluralidade interna ao pensamento decolonial, esse afastamento em relação à influência pós-moderna, mais especificamente em relação ao pós-estruturalismo francês, não pode ser tomada como uma característica geral que permanece inalterada para além do momento de fundação do Grupo Modernidade/Colonialidade. A obra de um autor como Santiago Castro-Gómez, por exemplo, não mantém esse afastamento.
  • 6
    O próprio Enrique Dussel chega a utilizar, na década de 1970, a nomenclatura pós-moderna para definir o seu projeto teórico, projeto que hoje assume o nome de transmodernidade. Conferir: DUSSEL, 1977; DUSSEL, 2015.
  • 7
    Para críticas algo semelhantes ao pós-modernismo, conferir, por exemplo: DUSSEL, 2017; QUIJANO, 2014; MIGNOLO, 2017.
  • 8
    Voltando ao tema da influência de autores e de autoras ligadas ao pós-estruturalismo nos estudos pós-coloniais, ela também foi identificada por W. Mignolo, sendo um dos motivos determinantes para o afastamento dos autores e das autoras decoloniais em relação aos estudos pós-coloniais. Conferir: MIGNOLO, 2008. Ver, porém, nota 5 acima.
  • 9
    Por exemplo, no texto “Do pós-moderno ao pós-colonial e para além de um e de outro”, B. Santos debate com o movimento pós-colonial. No entanto, no próprio texto, ele responde a uma crítica realizada por W. Mignolo em relação ao fato de sua teoria manter-se “demasiadamente dentro da modernidade” (SANTOS, 2004, p. 20). Nesse mesmo texto, B. Santos discorda da concepção de A. Quijano quanto à derivação das formas de dominação na modernidade (SANTOS, 2004, p. 27). Ao mesmo tempo, no texto “Entre próspero e Calibã: colonialismo, pós-colonialismo e inter-identidade”, texto também destinado ao tema, ele cita “Homi Bhabha”, “Gayatri Spivak”, “Renajit Guha”, entre outros (SANTOS, 2007, p. 234), como sendo integrantes do “movimento pós-colonial”.
  • 10
    Essa crítica dificilmente se sustenta em face da obra de E. Dussel e A. Quijano. Conferir: DUSSEL, 2007; QUIJANO, 2010; 2014.
  • 11
    Ecologia dos saberes é a proposta teórico-conceitual de B. Santos para a realização de um diálogo horizontal entre as diferentes formas de conhecimento. Assim, é possível recuperar e valorizar os diferentes saberes que resistiram à monocultura da ciência moderna e permanecem coexistindo com ela (SANTOS, 2013, p. 13). É necessário evidenciar que o objetivo não é “‘descredibilizar’ a ciência”, mas realizar um uso contra-hegemônico do conhecimento hegemônico: “Ou seja, a possibilidade de que a ciência entre não como monocultura mas como parte de uma ecologia mais ampla de saberes, em que o saber científico possa dialogar com o saber laico, com o saber popular, com o saber dos indígenas, com o saber das populações urbanas marginais, com o saber camponês. Isso não significa que tudo vale o mesmo. [...] Somos contra as hierarquias abstratas de conhecimento, das monoculturas que dizem, por princípio, ‘a ciência é única, não há outros saberes’. [...] Não há dúvidas de que para levar o homem ou a mulher à Lua não há conhecimento científico; o problema é que hoje também sabes que, para preservar a biodiversidade, de nada serve a ciência moderna. Ao contrário ela a destrói. Porque o que vem conservando e mantendo a biodiversidade são os conhecimentos indígenas e camponeses [...]” (SANTOS, 2007b, p. 32-33).
  • 12
    Da mesma forma, no texto “Para além do pensamento abissal: das linhas abissais globais a uma ecologia dos saberes”: “[...] Sul global não-imperial, concebido como metáfora do sofrimento humano sistêmico e injusto provocado pelo capitalismo global e pelo colonialismo (SANTOS, 2009, p. 37).
  • 13
    Naquele contexto, a modernidade era compreendida como ancorada fundamentalmente na tensão entre dois pilares, o pilar da regulação e o pilar da emancipação. O pilar da regulação seria composto pelo princípio do Estado, pelo princípio do mercado e pelo princípio da comunidade. O pilar da emancipação seria constituído pela racionalidade estético-expressiva, pela racionalidade cognitivo-instrumental e pela racionalidade moral-prática. Contudo, no transcurso da modernidade, teria vindo a ocorrer um desequilíbrio internamente aos referidos pilares e entre eles: no pilar da emancipação houve a colonização das diferentes racionalidades pela racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e as potencialidades da emancipação passaram a estar concentradas na ciência e na técnica; no pilar da regulação, por sua vez, houve o desenvolvimento excessivo do mercado (SANTOS, 2011, p. 49-57); a consequência foi a absorção do pilar da emancipação pelo pilar da regulação. Em outros termos, a “[...] redução da emancipação moderna à racionalidade cognitivo-instrumental da ciência, e a redução da regulação moderna ao princípio do mercado, incentivadas pela conversão da ciência na principal força produtiva, constituem as condições determinantes do processo histórico que levou a emancipação moderna a render-se à regulação moderna” (SANTOS, 2011, p. 57).
  • 14
    Sobre esse tema, conferir: MALDONADO, 2015.
  • 15
    É válido mencionar que A. Quijano também atribui uma relevância significativa aos direitos humanos. Conferir: QUIJANO, 2001.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    29 Jun 2019
  • Aceito
    09 Mar 2020
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