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Conceitos e práticas de ensino e exercício da liderança em Enfermagem

Conceptos y prácticas de enseñanza y ejercicio del liderazgo en Enfermería

RESUMO

Objetivo:

identificar, descrever e analisar características da liderança, do enfermeiro-líder e dos atores do processo ensino-aprendizagem da liderança em Enfermagem segundo enfermeiras docentes que realizaram pesquisas sobre esse tema e ministraram esse conteúdo entre 1972 e 1994, em escolas paulistas.

Método:

História Oral Temática. Entrevistadas quatro enfermeiras docentes, cujos depoimentos foram submetidos à análise de conteúdo.

Resultados:

foram abordados o contexto no qual os alunos desenvolviam a liderança, a influência de vivências prévias na formação do líder, seus atributos, a importância da liderança, o valor de ensiná-la, as possibilidades de emancipação do enfermeiro-líder, as repercussões do ensino da liderança na vida profissional, as relações entre a formação e o mercado de trabalho, os aspectos da formação docente e as características dos alunos.

Conclusão:

embora não fosse imprescindível para a formação do enfermeiro, a liderança era seu capital simbólico.

Descritores:
História da Enfermagem; Educação em Enfermagem; Ensino Superior; Liderança; Pesquisa em Administração de Enfermagem

RESUMEN

Objetivo:

identificar, describir y analizar las características de liderazgo, del enfermero-líder y de los actores del proceso enseñanza-aprendizaje del liderazgo en Enfermería según enfermeras docentes que investigaron el tema científicamente e impartieron dicho contenido en escuelas paulistas entre 1972 y 1994.

Método:

Historia Oral Temática. Se entrevistaron cuatro enfermeras docentes cuyas deposiciones se sometieron al análisis de contenido.

Resultados:

se abordó el contexto en el cual los alumnos ejercían el liderazgo, la influencia de vivencias previas en la formación del líder, sus atributos, la importancia del liderazgo, el valor de enseñarlo, las posibilidades de emancipación del enfermero-líder, la repercusión de la enseñanza del liderazgo en la vida profesional, las relaciones entre la formación y el mercado de trabajo, los aspectos de la formación docente y las características de los alumnos.

Conclusión:

el liderazgo era su capital simbólico, aunque no fuera imprescindible para la formación del enfermero.

Descriptores:
Historia de la Enfermería; Educación en Enfermería; Enseñanza Superior; Liderazgo; Investigación científica en Administración de Enfermería

ABSTRACT

Objective:

to identify, describe and analyze characteristics of leadership, head nurses and participants in the teaching-learning process of leadership in Nursing, according to nurse professors who performed studies on this theme and taught such content between 1972 and 1994 in nursing schools of the state of São Paulo, southeastern Brazil.

Methods:

Thematic Oral History was used. A total of four nurse professors were interviewed, whose reports were submitted to content analysis.

Results:

the following aspects were approached in this study: the context in which students developed leadership, the influence of previous experiences on leadership qualification, its attributes, the importance of leadership, the value of teaching it, the possibilities of emancipation of a head nurse, the repercussions of teaching leadership for one's professional life, the relationships between qualification and job market, the aspects of teaching qualification and students' characteristics.

Conclusion:

although not essential for nursing qualification, leadership had a symbolic capital.

Descriptors:
History of Nursing; Nursing Education; Higher Education; Leadership; Research on Nursing Management

INTRODUÇÃO

A liderança, atualmente definida como um processo de influência intencional do líder sobre seus seguidores, com vistas ao alcance de objetivos comuns a ambos e alinhados com a cultura organizacional vigente(11 Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 2005.), é uma das competências gerenciais consideradas imprescindíveis para a atuação do enfermeiro.

Um dos alicerces do desenvolvimento da liderança é a formação, de modo que somente a condução competente do processo ensino-aprendizagem pode propiciar a base necessária à atuação satisfatória do enfermeiro-líder. Tal fato evidencia a necessidade de refletir sobre esse processo, seus atores e as características da liderança em Enfermagem.

Para obter o domínio e a maturidade necessários a essa reflexão sobre a realidade atual, é preciso lançar mão dos saberes da História(22 Padilha MICS, Borenstein MS. História da enfermagem: ensino, pesquisa e interdisciplinaridade. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2006[cited 2015 May 20];10(3):532-8. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n3/v10n3a24.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ean/v10n3/v10n3...
). Todo objeto de estudo tem história, e é conhecendo e questionando o passado que se consegue analisar e interferir no presente, viabilizando as modificações desejadas para o futuro.

A história do ensino da liderança em Enfermagem, objeto do presente estudo, está atrelada às transformações curriculares ocorridas nos cursos de graduação, e tem, como marco inicial, a inserção da disciplina Administração Aplicada à Enfermagem no currículo mínimo determinado pelo Conselho Federal de Educação (CFE) em 1972, por meio da aprovação do Parecer nº 163/72 e da Resolução nº 04/72. Esse Parecer estabeleceu a divisão do curso em três partes: o ciclo básico ou pré-profissional, o ciclo profissional ou tronco profissional comum e as habilitações, além da Licenciatura(33 Formiga JMM, Germano RM. Por dentro da História: o ensino da Administração em Enfermagem. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005[cited 2015 May 20];58(2):222-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a19.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a19...
). Essa disciplina, que abarca o conteúdo sobre liderança, passou, então, a ser reconhecida como detentora de identidade própria(44 Martins EG, Sanna MC. A produção científica sobre Administração em Enfermagem no Brasil no período de 1947 a 1972. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005[cited 2015 May 20];58(2):235-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a22.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a22...
).

Tal currículo vigorou até 1994, ano em que ocorreu a aprovação da Portaria MEC nº 1721/94, regulamentando o ensino dos cursos de graduação em Enfermagem. Ele passou a ter carga horária mínima de 3500 horas, e o curso, duração mínima de quatro anos. Um total de 525 horas no mínimo, ou seja, 15% da carga horária total, foi destinado à disciplina de Administração Aplicada à Enfermagem, o que expressa o reconhecimento do ensino de Administração como fundamental para a formação do enfermeiro(44 Martins EG, Sanna MC. A produção científica sobre Administração em Enfermagem no Brasil no período de 1947 a 1972. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005[cited 2015 May 20];58(2):235-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a22.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a22...
). Nesse ínterim, foi promulgada a Lei nº 7.498/86, regulamentada pelo Decreto nº 94.406/87, que dispôs sobre o exercício profissional e apontou as funções administrativas como prerrogativa do enfermeiro(55 Ciampone MHT, Leite MMJ, Gaidzinski RR. Ensino da disciplina Administração em Enfermagem: em busca de um novo paradigma. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 1996[cited 2015 May 20];30(esp):45-58. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v30nspe/v30nspea04.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v30nspe/...
), corroborando a importância da disciplina Administração Aplicada à Enfermagem para a formação desse profissional. As transformações experimentadas pela disciplina que ensina o conteúdo de Administração no curso de graduação em Enfermagem indicam a abordagem de processos cada vez mais complexos e direcionados à coordenação de equipes, ao desenvolvimento de pessoas e ao exercício da liderança(33 Formiga JMM, Germano RM. Por dentro da História: o ensino da Administração em Enfermagem. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005[cited 2015 May 20];58(2):222-6. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a19.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a19...

4 Martins EG, Sanna MC. A produção científica sobre Administração em Enfermagem no Brasil no período de 1947 a 1972. Rev Bras Enferm [Internet]. 2005[cited 2015 May 20];58(2):235-9. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v58n2/a22.pdf
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-55 Ciampone MHT, Leite MMJ, Gaidzinski RR. Ensino da disciplina Administração em Enfermagem: em busca de um novo paradigma. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 1996[cited 2015 May 20];30(esp):45-58. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v30nspe/v30nspea04.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v30nspe/...
).

A despeito da relevância desse tema, a produção científica sobre o ensino da liderança em Enfermagem ainda permanece escassa no Brasil, embora tenha aumentando nos últimos dez anos(66 Neves VR, Sanna MC. Ensino da liderança em enfermagem: um estudo bibliométrico. Acta Paul Enferm [Internet]. 2012[cited 2015 May 20];25(2):308-13. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v25n2/a24v25n2.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ape/v25n2/a24v2...
), o que evidencia lacunas a serem preenchidas pela realização de pesquisas sobre a história do ensino da Liderança em Enfermagem. Além disso, a identificação e análise das transformações ocorridas no ensino da liderança ao longo do tempo viabilizam a compreensão do papel do enfermeiro nesse processo e podem subsidiar a reflexão sobre o tema e fundamentar ações que visem à melhora da formação profissional, o que justifica a realização da presente investigação.

Diante do exposto, cabe indagar: quais transformações ocorreram nas características da liderança, do enfermeiro-líder e dos atores do processo ensino-aprendizagem da liderança em Enfermagem, no período compreendido entre 1972 e 1994, sob a ótica de enfermeiros docentes da disciplina Administração Aplicada à Enfermagem que realizaram pesquisas sobre Liderança em Enfermagem e ministraram esse conteúdo em escolas paulistas?

OBJETIVO

Identificar, descrever e analisar características da liderança, do enfermeiro-líder e dos atores do processo ensino-aprendizagem da liderança em Enfermagem sob a ótica de enfermeiras docentes que realizaram pesquisas sobre liderança em Enfermagem e ministraram esse conteúdo no período compreendido entre 1972 e 1994, em escolas do estado de São Paulo.

MÉTODO

Estudo histórico, no qual a História Oral foi utilizada como método de pesquisa. Definido como o relato de um narrador a respeito de sua existência no decorrer do tempo, a fim de reconstruir os acontecimentos por ele vivenciados e transmitir a experiência de vida então adquirida, esse método permite, pelo estudo das narrativas de determinados sujeitos que vivenciaram o fenômeno histórico a ser investigado, aproximar-se do conhecimento dessa vivência por meio de procedimentos de coleta, análise, interpretação e divulgação dos achados(77 Sanna MC. Histórias de enfermeiras gerentes: subsídios para a compreensão de um modelo-referência de organização de serviços de enfermagem no período de 1950 a 1980. Rio de Janeiro: EAN/UFRJ; 2002.-88 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2010.). Utilizou-se especificamente a História Oral Temática, caracterizada pela existência de um foco central, tema do estudo, para o qual é elaborado um roteiro de perguntas que direciona a abordagem do tema e facilita a condução das entrevistas(88 Meihy JCS, Holanda F. História oral: como fazer, como pensar. São Paulo: Contexto; 2010.).

A população foi composta por quatro enfermeiras que atuaram, de 1972 a 1994, como docentes da disciplina Administração Aplicada à Enfermagem nos cursos de graduação de escolas localizadas no estado de São Paulo, pioneiro quanto ao ensino e à pesquisa em Administração em Enfermagem e berço de pesquisadores que ofereceram expressiva contribuição para a construção do conhecimento sobre a liderança em Enfermagem no Brasil. Foram incluídas as docentes com disponibilidade para conceder entrevista a partir de maio de 2011, conforme cronograma estabelecido no projeto da pesquisa, e apresentaram publicações sobre Liderança em Enfermagem, informação obtida por meio de busca nas bases de dados Literatura Latino-Americana e do Caribe em Ciências da Saúde (LILACS) e Medical Literature Analysis and Retrieval System On-Line (MEDLINE), utilizando-se os descritores Liderança e Enfermagem. A verificação do local e período nos quais as docentes lecionaram foi realizada por meio de busca textual e leitura do currículo de cada uma na Plataforma Lattes do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq). Todas as depoentes ocuparam posições de liderança em instituições de saúde, universidades e entidades de classe e contribuíram sobremaneira para o desenvolvimento da Enfermagem, fatos que atestam a afinidade das entrevistadas pelo tema em estudo.

Após a aprovação do projeto pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) da Universidade Federal de São Paulo (UNIFESP), agendou-se a coleta de dados, realizada por meio de gravação de entrevistas semiestruturadas, pautadas num roteiro, cuja questão norteadora foi "Como [nome da entrevistada] ensinava Liderança aos alunos de graduação em Enfermagem, no período de 1972 a 1994?". Cada depoente assinou um Termo de Consentimento Livre e Esclarecido, de cujo texto consta a cessão dos depoimentos para fins de ensino e pesquisa, o que dispensou a elaboração e assinatura da carta de cessão de direitos autorais, e a garantia de anonimato às entrevistadas.

Para a análise dos dados foram cumpridas as seguintes etapas(77 Sanna MC. Histórias de enfermeiras gerentes: subsídios para a compreensão de um modelo-referência de organização de serviços de enfermagem no período de 1950 a 1980. Rio de Janeiro: EAN/UFRJ; 2002.): transcrição das gravações, validação da transcrição pelas narradoras, textualização da narrativa, com a incorporação das perguntas da entrevistadora à fala da narradora e aproximação dos textos das narrativas que se referiam ao mesmo tema - a transcriação, validação da transcriação por uma doutora, codificação e indexação dos temas abordados para a criação de categorias de análise, segundo o modelo proposto por Minayo(99 Minayo MCS. O desafio do conhecimento: pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Hucitec; 2010.), e validação das categorias por outra doutora.

Em seguida, houve a interpretação e discussão das categorias temáticas à luz da literatura científica encontrada sobre o tema e do referencial teórico-filosófico de análise escolhido, composto pelos conceitos enunciados pelo sociólogo Pierre Bourdieu, apresentados no Quadro 1.

Quadro 1
Conceitos enunciados por Pierre Bourdieu utilizados neste estudo

RESULTADOS

Os depoimentos apresentaram as versões e interpretações das entrevistadas sobre a liderança, o enfermeiro-líder e os atores do processo ensino-aprendizagem da liderança em Enfermagem.

A liderança, segundo a Docente 4, era considerada uma função administrativa:

Naquela época, a liderança era vista como uma das funções administrativas do enfermeiro - planejar, organizar, ... e liderar, motivo pelo qual essa temática possuía espaço e sempre esteve presente na disciplina de Administração Aplicada à Enfermagem. (Docente 4)

Os depoimentos das Docentes 1 e 2 apontaram a personalidade do indivíduo como fator determinante para o desenvolvimento de sua liderança:

Considerávamos que o líder nascia feito. Não era possível formá-lo e era preciso ter algumas características para ser líder. (Docente 1)

A liderança é aprendida ao longo da vida. A pessoa nasce com algumas características que podem torná-la líder, se o meio em que ela for criada, em que ela viver, permitir [...] não é a faculdade que vai ensinar a ser líder. (Docente 2)

Para as Docentes 1 e 3, o líder era alguém que estava fora do grupo, direcionando suas atividades, e apresentava um dos perfis da liderança comportamental:

[...] havia um perfil de líder, e o estilo de liderança - autocrático, democrático e laissez-faire - era valorizado. O líder, obrigatoriamente, se localizava num desses três perfis. (Docente 1)

As relações sociais, de maneira geral, as de poder, em particular, e o acesso à informação sofreram transformações ao longo do tempo, que modificaram o perfil do líder:

[...] é líder na Enfermagem aquele que é bem sucedido, bem avaliado como profissional, alguém que não está na vala comum por algum motivo e que se destaca de alguma forma. Essa é uma constante na liderança: alguém que, naquele momento, traz uma contribuição maior para o grupo. (Docente 3)

A Docente 2 destacou a importância do exercício da liderança para o enfermeiro:

O enfermeiro é quem conduz a equipe; portanto, sua única saída é ser líder. Se ele não cumprir esse papel, que é seu por direito, alguém irá assumi-lo, pois nenhuma equipe vive sem liderança. Qualquer integrante da equipe de enfermagem ou até de fora dela que tiver perfil de líder vai aproveitar a oportunidade e liderar. (Docente 2)

Para essa depoente, o aluno percebia o valor da liderança durante a prática profissional e compreender o significado e a importância da liderança era o salto qualitativo que o transformava em enfermeiro:

Quando o enfermeiro não tem liderança, a equipe toma todas as decisões por ele, faz tudo o que ele deveria fazer, conduz todo o trabalho e chega até a ditar seu comportamento. O aluno não percebe isso. Só quando está atuando como enfermeiro e passa por situações de pressão, "leva bordoada", "come grama" e é acusado pela chefia de subserviência, que ele percebe. [...] a liderança é o ponto principal para que o aluno deixe de ser auxiliar ou técnico de enfermagem e torne-se enfermeiro. Enquanto eles não percebessem isso, o diploma universitário não teria grande função na vida deles. (Docente 2)

Segundo as Docentes 1 e 3, os alunos concluíam o curso de graduação em Enfermagem preparados para o exercício da liderança:

[...] para aquela época, nós formávamos enfermeiros líderes, levando em conta que a liderança esperada do enfermeiro era uma liderança pontual de chefe, e não uma postura de líder. (Docente 1)

[...] [os alunos] voltavam para fazer especialização, pós-graduação, nós os encontrávamos em eventos, eles telefonavam: "Aí, professora, valeu muito. De Administração, eu acho que nós tivemos uma boa capacitação". [...] Depois de quatro meses de estágio, muitas alunas eram contratadas [pelo hospital]. (Docente 3)

Já as Docentes 2 e 4 apontaram o despreparo dos egressos ao atuarem como líderes:

Muitos alunos retornavam, depois de formados, queixando-se de terem sido tratados por seus empregadores como "auxiliares de nível superior" e que não sabiam ser enfermeiros. (Docente 2)

[...] o aluno, ao concluir o curso de graduação em Enfermagem, não estava preparado para liderar. [...] O exercício da liderança dependia muito mais da personalidade do indivíduo que do conhecimento adquirido [na universidade]. (Docente 4)

Havia um desafio para a formação do enfermeiro-líder, segundo a Docente 1, que era minimizar a diferença entre o profissional requerido pelo mercado de trabalho e o formado nos cursos de graduação em Enfermagem:

Esta é uma grande discussão: chegar a um consenso entre o que o mercado quer e o que a escola forma. O discurso da escola, principalmente desta escola, é formar para o Sistema Único de Saúde. [...] Na prática, porém, quem fala mais alto não são os hospitais públicos, [...] mas sim os hospitais particulares. (Docente 1)

Segundo a Docente 4, os professores, à época, embora muito bem intencionados, não haviam adquirido, durante sua formação, conhecimento pedagógico suficiente para ensinar os conteúdos da disciplina de Administração Aplicada à Enfermagem, inclusive liderança:

Havia muitos recém-formados lecionando na universidade. [...] Não havia preparo. Os enfermeiros iam para a universidade porque gostavam da docência e aprendiam a lecionar com a vivência. (Docente 4)

Para a Docente 3, o fato de integrar um grupo de professores que trabalhavam juntos há muitos anos e adquiriram o hábito de aprender uns com os outros facilitou seu desenvolvimento profissional:

Eu, às vezes, ouço as minhas colegas em alguma palestra, ou dando alguma aula, e costumo dizer: "Escuta, eu quero assistir essa tua aula, hein?" [...] Eu aprendo com minhas colegas e direciono o que aprendi para a minha área de atuação. (Docente 3)

Tanto as características dos alunos quanto suas predileções por determinadas disciplinas influenciavam, segundo a Docente 1, seu desempenho no estágio de Administração. Aqueles que gostavam dessa disciplina apresentavam bom aproveitamento e os que não gostavam eram menos desenvoltos. Quanto aos alunos das Docentes 2 e 3, havia diferenças significativas entre suas características:

As alunas eram muito ingênuas, sabe? Eram muito infantis, tinham a linearidade característica das crianças. (Docente 3)

Eu lecionava numa escola em que os alunos eram majoritariamente estudantes-trabalhadores [...] (Docente 2)

DISCUSSÃO

A análise dos depoimentos originou as categorias temáticas apresentadas a seguir.

Conceito e contexto da liderança

A atuação do enfermeiro abarcava funções técnicas e administrativas, como planejamento, organização, controle, tomada de decisão, implementação de mudanças e delegação de tarefas e responsabilidades. Sua formação era conduzida para o desempenho adequado dessas funções, baseado na ciência e permeado pelo exercício da liderança. Conhecimento e liderança eram, portanto, fontes de segurança, poder e prestígio(1313 Mello J. Preparo no curso de graduação para a integração do enfermeiro recém-graduado na vida profissional. Rev Bras Enferm. 1970;23(3/6):45-56.).

Em se tratando do conceito de liderança, a literatura evidenciou a ausência de consenso entre os autores, corroborada pela existência de diversas teorias que atribuem diferentes significados a essa competência e cuja fundamentação decorre das posturas e dos julgamentos de seus enunciadores. As quatro depoentes foram unânimes em evocar tipos de liderança e apontar ações e características do líder para se aproximarem da conceituação com a qual trabalhavam na ocasião, para só então se manifestarem sobre o objeto de estudo. O pragmatismo empregado na definição desse fenômeno sugere que o conceito de liderança, para as entrevistadas, ainda está em construção, sendo necessário, portanto, utilizar classificações, características e ações do líder para aproximar-se de seu significado, ao invés de enunciá-lo e debatê-lo exclusivamente no nível conceitual.

Influência de vivências prévias no desenvolvimento da liderança

Corroborando o depoimento da Docente 1, encontrou-se que os primeiros estudos sobre liderança tratavam das características e do comportamento do líder e, até a metade da década de 1940, as pesquisas com esta temática foram fundamentadas na Teoria do Grande Homem e na Teoria de Características. A primeira, cuja base está ancorada na filosofia aristotélica, afirma que determinadas pessoas nascem para liderar e outras para serem lideradas. A segunda aponta que alguns indivíduos possuem características ou traços de personalidade que os tornam melhores líderes do que outros(11 Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 2005.).

Contrapondo-se a essas teorias e em consonância com o depoimento da Docente 2, Bourdieu(1111 Bourdieu P. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes; 2012.) afirma que as diferenças de êxito, atribuídas às diferenças de dom, são, na verdade, decorrentes das desigualdades de capital cultural e do ethos, transmitidos aos indivíduos por suas famílias. Essa herança, que corresponde às "características" mencionadas pelas depoentes, relaciona-se, sobretudo, ao nível cultural global da família, influenciado pela classe social à qual pertence, e pelo capital econômico de seus componentes. O sistema escolar, equivocadamente considerado favorável à mobilidade social, legitima essas desigualdades, promove a conservação social e fomenta a ideia do dom natural, que nada mais é que a manifestação da herança cultural do indivíduo.

Assim sendo, torna-se pouco crível a existência de quaisquer características natas que dispensem o aprendizado para seu desenvolvimento e presume-se que as características vistas, à época, como cruciais para o desenvolvimento da liderança teriam sido adquiridas no decorrer da vida do líder, sobretudo pela modelagem de seu comportamento.

Quem era o líder naquela época

O conceito de liderança comportamental abrange os estilos que podem ser assumidos pelo líder diante da equipe de trabalho. O líder autocrático controla, coage, ordena e pune, enquanto o democrático conduz, premia, orienta e consulta os liderados. Já o líder laissez-faire é omisso, permissivo, não orienta e não controla os colaboradores(11 Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 2005.). Essa era a classificação em voga, no Brasil, no início da década de 1970, e nela estavam pautadas as descrições das relações de poder entre os integrantes da equipe de trabalho, o que pode explicar sua utilização, pelas depoentes, para caracterizar o líder daquela época.

Como apontado pela Docente 3, o perfil do líder foi deixando de ser centralizador e tornou-se mais participativo. Essa mudança de paradigma pode estar relacionada à difusão, a partir da década de 1970, do conceito de liderança contingencial, segundo o qual o líder assume determinado estilo de acordo com a situação vivenciada durante sua atuação, o que depende da importância por ele atribuída às tarefas a serem realizadas e às relações estabelecidas com os liderados, bem como da maturidade destes para a execução do trabalho. Além disso, não apenas as habilidades do líder, mas também as dos outros membros do grupo, são valorizadas, o que possibilita o surgimento de líderes em todos os níveis hierárquicos(11 Marquis BL, Huston CJ. Administração e liderança em enfermagem: teoria e prática. Porto Alegre: Artmed; 2005.).

A aplicação dessa referência na prática profissional, à época, amenizava assimetrias sociais, pois estendia a possibilidade de exercer o poder aos outros integrantes da equipe de trabalho, além do enfermeiro. O líder, que antes ocupava posição distinta no campo, passou a dividir a liderança, seu capital simbólico, com outros agentes.

Pode-se ainda relacionar essa transformação ao contexto político do período em estudo. O início da década de 1970 foi marcado pela forte repressão do governo Médici, no qual participação política era sinônimo de subversão e acarretava punições severas. As relações profissionais eram influenciadas por esse modelo ditatorial, o que dificultava a divisão do poder entre os componentes da equipe de trabalho. Como decorrência da abertura política, iniciada em meados da década de 1970, o conceito de liderança contingencial foi paulatinamente sendo aplicado no mundo corporativo e, como relatou a Docente 3, tornou-se praticável pelos integrantes da equipe de enfermagem.

A importância da liderança para o enfermeiro

Segundo a Lei nº 7498/86, que dispõe sobre a regulamentação do exercício da Enfermagem, cabe ao enfermeiro, privativamente, a direção e chefia dos serviços de Enfermagem. Nesse contexto, pode-se afirmar que a liderança da equipe de trabalho, legitimada pelo cargo de chefia, era direito do enfermeiro. Para Bourdieu(1010 Bourdieu P. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2012.), o direito atribui um determinado status ao indivíduo e confere a ele poderes reconhecidos pela sociedade e garantidos pela lei. Ocorre que não havia como assegurar a exclusividade do exercício da liderança por esse profissional, ainda que ele fosse autocrático.

A competência para exercer a liderança era, portanto, parte do capital simbólico que distinguia o enfermeiro dos outros integrantes da equipe de trabalho, de modo que a perda desse capital representava a perda do poder simbólico, necessário para a conquista de posições no campo. Estudos recentes apontaram a liderança do enfermeiro como fator facilitador de sua inserção e integração no mercado de trabalho(1414 Jesus BH, Gomes DC, Spillere LBB, Prado ML, Canever BP. Inserção no mercado de trabalho: trajetória de egressos de um curso de graduação em enfermagem. Esc Anna Nery Rev Enferm [Internet]. 2013[cited 2015 May 20];17(2):336-45. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ean/v17n2/v17n2a19.pdf
http://www.scielo.br/pdf/ean/v17n2/v17n2...
) e cujo desenvolvimento era imprescindível para sua ascensão profissional(1515 Titzer JL, Shirey MR, Hauck S. A nurse manager succession planning model with associated empirical outcomes. J Nurs Adm [Internet]. 2014[cited 2015 May 11];44(1):37-46. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24316617
http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24316...
).

Todavia, o conceito de liderança contingencial suscita reflexões sobre a imprescindibilidade da liderança para a atuação do enfermeiro, à medida que consente - e apresenta como alternativa viável - a manifestação de outros líderes no grupo, de acordo com as circunstâncias apresentadas e as capacidades desses indivíduos para liderar.

Quando o ex-aluno percebia o valor da liderança

Nota-se, no depoimento da Docente 2, que o enfermeiro reconhecia a importância da liderança quando, ao iniciar sua atividade profissional, percebia que não detinha esse capital simbólico e, por esse motivo, não conseguia exercer o poder necessário para conquistar posições no campo. Ao invés de destacar-se como líder, esse enfermeiro refugiava-se no desempenho de funções técnicas, para não ter de lidar com situações embaraçosas e estressantes nas quais deveria - e não conseguiria - liderar a equipe de trabalho.

Essa conquista dependia da inculcação, no aluno, do habitus de enfermeiro. Ocorre que o aluno mudava de posição no campo, mas mantinha o habitus anterior, ou seja, conquistava o capital cultural no estado institucionalizado, por meio da aquisição do diploma, mas não adquiria este capital no estado incorporado, visto que nele não se inculcava o habitus de enfermeiro durante o curso de graduação em Enfermagem.

Essa situação era agravada quando os alunos atuavam como auxiliares ou técnicos de enfermagem, cuja subserviência, exigida por líderes autocráticos, levava à rejeição da reprodução do comportamento autocrata diante das equipes que assumiam, quando passavam a atuar como enfermeiros. Os capitais social e econômico desses alunos muitas vezes reforçavam o comportamento subserviente, tornando ainda mais difícil sua aculturação.

O exercício da liderança como possibilidade de emancipação

Quando o aluno passava a enxergar a liderança como o capital simbólico que legitimaria seu poder e o ajudaria a conquistar posições no campo, sua emancipação tornava-se possível. Embora fosse plausível ingressar e permanecer no mercado de trabalho sem exercer adequadamente a liderança, essa capacidade aumentava o poder simbólico do enfermeiro e o auxiliava em sua luta no campo. Segundo a Docente 2, era essa constatação que impulsionava o estudante à aquisição do habitus de enfermeiro, ainda que, para tanto, precisasse romper com sua identidade profissional anterior.

Além desse rompimento, o aluno tinha de lidar com a contradição advinda da herança familiar. Segundo Bourdieu, à medida que o indivíduo aumenta seu grau de escolaridade e ascende profissionalmente, realiza o projeto de reprodução da herança paterna, mas supera seus familiares e deles se distancia, o que acarreta a sensação de transgressão e traição às origens(1111 Bourdieu P. Escritos de educação. Petrópolis: Vozes; 2012.). Em se tratando desses alunos, oriundos de famílias cujo grau de escolaridade geralmente era menor que o nível superior, inculcar o habitus de enfermeiro e utilizar a liderança como capital simbólico reforçavam esse distanciamento, constituindo mais um entrave à consolidação de sua nova identidade profissional.

As repercussões do ensino da liderança na vida profissional dos egressos

Diante do número reduzido de enfermeiras à época(1616 Silva LIMC, Peduzzi M. Os recursos humanos de enfermagem na perspectiva da força de trabalho: análise da produção científica. Rev Esc Enferm USP [Internet]. 2006[cited 2015 May 20];39(spe):589-96. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v39nspe/v39nspea11.pdf
http://www.scielo.br/pdf/reeusp/v39nspe/...
), ao ingressarem no mercado de trabalho, essas profissionais desempenhavam funções administrativas, independentemente dos cargos a elas atribuídos e, mesmo as recém-formadas, deveriam ser eficientes na condução da equipe de trabalho, sendo muitas vezes contratadas pelos hospitais onde haviam estagiado.

Essa incorporação era resultado do processo de aculturação do aluno no campo simbólico, por meio do qual seu comportamento era modelado e ele passava a reproduzir o habitus dos enfermeiros que lá atuavam, conquistando, assim, seu espaço nesse campo. Essa estratégia sucessória era vital para a manutenção dos capitais cultural, no estado incorporado, e social desses agentes, que deles necessitavam para a conquista do poder simbólico.

Já os alunos que não adquiriam, ao longo de suas trajetórias e durante o curso de graduação em Enfermagem, o capital cultural necessário para tornarem-se enfermeiros, apresentavam inaptidão para a condução das equipes de trabalho, pois, ainda que assumissem esses cargos, não conseguiam exercer a liderança.

Pode-se inferir que o foco no preparo técnico do enfermeiro, em detrimento do ensino das competências gerenciais, praticado em algumas universidades, estivesse relacionado ao fato dos docentes considerarem as características pessoais dos alunos mais importantes para o desenvolvimento da liderança que o ensino a eles oferecido. Além disso, levanta-se a hipótese de que, a fim de evitar a conquista de poder pelos alunos, alguns cursos de graduação em Enfermagem tenham sido projetados para privilegiar o desenvolvimento de habilidades técnicas que, embora importantes para o exercício profissional, não concretizavam, sozinhas, a distinção do enfermeiro no campo simbólico.

A formação do aluno e o mercado de trabalho

O grande desafio para a formação do enfermeiro-líder, segundo a Docente 1, era minimizar a diferença entre o profissional requerido pelo mercado de trabalho - apto a atuar na rede privada, na qual vigorava a lógica da competitividade, do lucro e da qualidade - e o que a escola formava - apto a atender à população, de acordo com os princípios do SUS.

A formação desses profissionais era a contrapartida oferecida pelas universidades públicas para a sociedade, visto que os recursos financeiros destinados ao seu funcionamento e à sua manutenção provinham do erário público e deveriam retornar aos cidadãos por meio do atendimento prestado pelos egressos. O fato é que os alunos dessas universidades utilizavam hospitais públicos como campos para aprendizado e, ao ingressarem no mercado de trabalho, assumiam cargos em instituições privadas, cujo atendimento era direcionado a apenas parte da população, o que, sem dúvida, representava uma contradição.

Assim sendo, presume-se que o discurso de "formar para o Sistema Único de Saúde" configurava uma estratégia utilizada pelas universidades públicas para a manutenção de sua posição no campo, e que o enfermeiro formado por essas instituições era, na verdade, preparado para atuar na rede privada. Por outro lado, há que se considerar os desafios, às vezes insuperáveis, do trabalho no serviço público, bem como a possibilidade de as instituições privadas oferecerem aos egressos, à época, condições mais favoráveis ao exercício e ao desenvolvimento profissional.

Formação e atualização docente

Pesquisadores destacaram recentemente a importância da capacitação e experiência dos docentes para a efetivação do ensino da liderança e chamaram a atenção para o fato de educadores líderes serem os indivíduos mais adequados para essa empreitada(1717 Almeida ML. Gerenciamento em enfermagem: formação e prática na perspectiva de egressos de uma universidade pública [dissertação]. Curitiba, Universidade Federal do Paraná; 2010.

18 Amestoy SC, Cestari ME, Thofehrn MB, Milbrath VM, Trindade LL, Backes VMS. Processo de formação de enfermeiros líderes. Rev Bras Enferm [Internet]. 2010[cited 2015 May 20];63(6):940-5. Available from: http://www.scielo.br/pdf/reben/v63n6/11.pdf
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-1919 Stutsky BJ, Laschinger HKS. Developing leadership practices in hospital-based nurse educators in an online learning community. Comput Imform Nurs [Internet]. 2014[cited 2015 May 11];32(1):43-9. Available from: http://www.ncbi.nlm.nih.gov/pubmed/24256766
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). Essa observação reforça a ideia da concretização do ensino dessa competência por meio do contato do aluno com modelos de líderes, cujo comportamento seria por ele reproduzido.

Diante da escassez de referenciais teóricos sobre o ensino da liderança, das dificuldades de acesso à informação naquela época e da falta de preparo pedagógico dos docentes durante sua formação, o bom senso, em detrimento do conhecimento científico, era o capital simbólico que distinguia, naquele campo, o docente capaz de exercer sua autoridade pedagógica perante os alunos. Assim sendo, o aprendizado mútuo era a estratégia adotada para a reprodução cultural e social do grupo de docentes, assim como a busca pelo novo e o descarte do que fosse obsoleto permitiam a construção do arbitrário cultural a ser inculcado tanto nos docentes quanto nos alunos.

Também era parte da construção desse arbitrário cultural a seleção dos conteúdos a serem ministrados pelos docentes aos alunos. A escolha de conteúdos adequados ao nível de compreensão dos estudantes permitia a eles a aquisição do capital cultural necessário ao ingresso no campo simbólico. Trazer esses alunos para o campo era papel do docente, e aquele que conseguia fazê-lo tinha sua autoridade pedagógica legitimada.

Características dos alunos

A predileção pela disciplina de Administração e a ingenuidade e imaturidade dos estudantes aumentavam sua susceptibilidade ao processo de aculturação, tanto que, segundo essas mesmas depoentes, estes eram os alunos que deixavam a universidade preparados para liderar, ainda que de maneira autocrática, como apontado pela Docente 1, e no próprio campo onde haviam estagiado, como descrito pela Docente 3. Alunos de escola pública faziam parte de uma classe social mais favorecida economicamente e tinham melhores condições de vida.

Já os alunos da Docente 2 eram estudantes-trabalhadores e, por este motivo, se consideravam "bravos lutadores". Alunos de escola privada estudavam, trabalhavam, passavam por privações e, por superarem essas dificuldades, consideravam-se heróis, ao mesmo tempo em que se sentiam vítimas daquela difícil situação. Estudo publicado em 2008(2020 Costa MLAS, Merighi MAB, Jesus MCP. Being a nurse after having been a nursing student-worker: an approach of social phenomenology. Acta Paul Enferm [Internet]. 2008[cited 2015 May 20];21(1):17-23. Available from: http://www.scielo.br/pdf/ape/v21n1/02.pdf
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) apontou como características do estudante-trabalhador de enfermagem o desejo de ascender profissionalmente, a condição socioeconômica desfavorável, o cansaço decorrente da necessidade de conciliar trabalho, vida social e estudos, o baixo rendimento nas disciplinas teóricas, devido à dificuldade de administrar o pouco tempo disponível para os estudos, e o alto rendimento nas disciplinas práticas, atribuído à habilidade técnica desenvolvida durante anos de trabalho. Destacou, ainda, que para se tornar enfermeiro esse estudante precisaria modificar não apenas sua prática profissional, mas também seu comportamento e relacionamento social.

Este aluno era, portanto, resistente à inculcação, pois adquirir o habitus de enfermeiro, além de representar o rompimento com a própria identidade e a herança cultural que possuía, significava reproduzir, no campo simbólico, a relação dominante-dominado da qual eram vítimas até então. Além disso, tanto no papel de heróis quanto no de vítimas, esses alunos resistiam à violência simbólica representada por essa mudança de identidade.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O presente estudo permitiu identificar, descrever e analisar características da liderança, do enfermeiro-líder e dos atores do processo ensino-aprendizagem da liderança em Enfermagem, sob a ótica de enfermeiras docentes que realizaram pesquisas sobre o tema e ministraram esse conteúdo no período compreendido entre 1972 e 1994, em escolas paulistas.

Os achados evidenciaram que, embora não fosse imprescindível para a formação do enfermeiro, a liderança era o capital simbólico que aumentava suas possibilidades de atuação, emancipação e distinção no campo, de modo que os alunos que conseguiam concluir o processo de transição aluno-enfermeiro, consolidado pelo aprendizado da liderança, apresentavam maiores chances de sucesso e ascensão profissional. Alguns estudantes o faziam ainda durante a graduação e inseriam-se mais rapidamente no mercado de trabalho. Já aqueles que não conseguiam liderar, ainda que ocupassem postos de trabalho de enfermeiros, na verdade, não eram considerados como tal. Observou-se também o preparo insuficiente dos docentes para o ensino da liderança e que a universidade, por si só, não formava enfermeiros-líderes.

Cabe ressaltar que essas considerações são pertinentes apenas ao ensino da liderança ocorrido nessas escolas, durante esse período e pela atuação dessas docentes, e que o estudo da História permite relacionar tais achados e as reflexões por eles suscitadas à realidade atual, de modo a contribuir para sua análise, compreensão e transformação.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Jul-Aug 2016

Histórico

  • Recebido
    25 Maio 2015
  • Aceito
    11 Abr 2016
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