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Violência simbólica entre adolescentes nas relações afetivas do namoro* * Extraído da tese “Violência simbólica entre adolescentes nas relações afetivas do namoro e a rede de apoio social”, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, 2015.

RESUMO

Objetivo

Compreender como os adolescentes significam suas relações afetivas e situações de conflito/violência no namoro.

Método

Pesquisa qualitativa, cujo recorte empírico foi constituído por adolescentes de uma escola estadual, sendo utilizadas técnicas de grupo focal e entrevista. A análise foi realizada por meio do método de interpretação de sentidos, baseado na perspectiva hermenêutico-dialética.

Resultados

Participaram do estudo 19 adolescentes. Depreenderam-se duas categorias temáticas centrais: “Significados das relações afetivas dos adolescentes” e “Da (des)construção da violência simbólica à expressão de outras formas de violência”.

Conclusão

Os resultados revelam que nas relações afetivas dos adolescentes é possível depreender situações em que se identifica a legitimação da violência simbólica contra a mulher. Entende-se que atuar sobre a origem da violência, já no início dos relacionamentos dos adolescentes, seja a melhor forma de combatê-la ou minimizá-la, visando à democratização das relações de gênero e à prevenção da violência conjugal.

Adolescente; Violência; Violência contra a Mulher; Dominação-Subordinação; Saúde do Adolescente; Enfermagem

ABSTRACT

Objective

Understanding how adolescents signify their affective relationships and situations of conflict/violence within the dating context.

Method

A qualitative research with an empirical group comprised of adolescents from a state/public school, using focus group techniques and interviews. The analysis was performed through the interpretation of meanings method based on the hermeneutic-dialectical perspective.

Results

A total of 19 adolescents participated in the study. Two central theme categories emerged: “Meanings of adolescents’ affective relationships” and “From the (de)construction of symbolic violence to the expression of other forms of violence”.

Conclusion

The results show that it is possible to understand situations from affective adolescent relationships in which the legitimation of symbolic violence against women is identified. We believe that acting on the origin of violence at the beginning of adolescents’ relationships is the best way to fight or minimize it, aiming for democratizing gender relations and preventing conjugal violence.

Adolescent; Violence; Violence Against Women; Dominance-Subordination; Adolescent Health; Nursing

RESUMEN

Objetivo

Comprender cómo los adolescentes extraen significado de sus relaciones afectivas y situaciones de conflicto/violencia entre novios.

Método

Investigación cualitativa, cuyo recorte empírico estuvo constituido de adolescentes de una escuela estadual (pública), siendo utilizadas técnicas de grupo focal y entrevista. El análisis se llevó a cabo mediante el método de interpretación de sentidos, basado en la perspectiva hermenéutico-dialéctica.

Resultados

Participaron en el estudio 19 adolescentes. Se desprendieron dos categorías temáticas centrales: “Significados de las relaciones afectivas de los adolescentes” y “De la (de)construcción de la violencia simbólica a la expresión de otras formas de violencia”.

Conclusión

Los resultados desvelan que en las relaciones afectivas de los adolescentes es posible desprenderse situaciones en las que se identifica la legitimación de la violencia simbólica contra la mujer. Se entiende que actuar sobre el origen de la violencia, ya en el inicio de las relaciones de los adolescentes, sea la mejor manera de combatirla o minimizarla, con vistas a la democratización de las relaciones de género y la prevención de la violencia conyugal.

Adolescente; Violencia; Violencia contra la Mujer; Dominación-Subordinación; Salud del Adolescente; Enfermería

INTRODUÇÃO

A violência durante as relações de namoro não é uma problemática rara. Apesar de ter grande relevância social, a violência de gênero nos relacionamentos íntimos dos adolescentes é um tema recente na literatura científica. A carência de estudos sobre essa temática pode ser justificada pela ideia de que namoro não é lugar de violência.

Entre as hipóteses para tal representação social dominante, há a percepção de que a violência de gênero situa-se apenas nos relacionamentos mais estáveis ou mais estruturados, situação que exclui as relações de namoro/ficar, comuns entre adolescentes(11. Minayo MCS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2011.).

Observa-se que na adolescência podem se exacerbar as diferenças entre os papéis de gênero e se consolidar a aceitação da violência como uma versão do amor ou como aceitável em certas circunstâncias(22. Reyes HLM, Foshee VA, Niolon PH, Reidy DE, Hall JE. Gender role attitudes and male adolescent dating violence perpetration: normative beliefs as moderators. J Youth Adolesc. 2016;45(2):350-60.) e, ainda, como um período especialmente propício à adesão a alguns mitos perigosos sobre as relações românticas – indissolubilidade, associação do amor ao sofrimento. O cenário social em que essa violência eclode é caracterizado pela vigência da ideologia machista entremeando as relações de gênero, tendo como resultante a naturalização da dominação masculina.

Assim como na violência marital, a violência no namoro pode produzir impacto significativo para a vítima, resultando em danos diversos, em curto e em longo prazo, tais como: perturbações emocionais, baixa autoestima, depressão, raiva, ansiedade, ideação suicida, insucesso escolar, consumo de substâncias, disfunções de comportamento alimentar, estresse pós-traumático, comportamentos sexuais de risco(33. Oliveira RNG, Gessner R, Brancaglioni BCA, Fonseca RMGS, Egry EY. Preventing violence by intimate partners in adolescence: an integrative review. Rev Esc Enferm USP. 2016;50(1):134-43. DOI: http://dx.doi.org/10.1590/S0080-623420160000100018
http://dx.doi.org/10.1590/S0080-62342016...
-44. Caridade S, Saavedra R, Machado C. Práticas de prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil: orientações gerais. Análise Psicol. 2012;30(1-2):131-42.). Nesta direção, destaca-se a grande importância de estudos sobre essa forma de violência social para melhorar as vivências afetivo-sexuais entre os adolescentes e para prevenir a violência conjugal(11. Minayo MCS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2011.).

Um dos estudos pioneiros realizado no Brasil sobre a violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes de 15 e 19 anos de idade, de escolas públicas e privadas, em cinco diferentes regiões do país, verificou que, aproximadamente, 87% dos cerca de quatro mil adolescentes investigados sofreram algum tipo de violência no namoro. Observou-se ainda que as várias formas de violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes costumam ter origem nas experiências agressivas entre os pais e presenciadas pelos adolescentes, em um tipo de comunicação desrespeitosa reincidente, naturalizada, que pode afetar toda a constelação familiar e se refletir na sociedade em geral(11. Minayo MCS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2011.).

Na literatura internacional, autores portugueses verificaram que, nas relações afetivas no namoro entre adolescentes, o ciúme desempenha papel de demonstração de amor, mesmo de forma confusa e de justificativa para a violência. A violência é encarada como forma de intimidação para as mulheres e, diferentemente, para os homens como resposta às “provocações femininas”(44. Caridade S, Saavedra R, Machado C. Práticas de prevenção da violência nas relações de intimidade juvenil: orientações gerais. Análise Psicol. 2012;30(1-2):131-42.).

Percebe-se que adolescentes envolvidos nesses contextos de violência afetivo-sexual – vítimas ou perpetradores – geralmente não procuram ajuda profissional(55. Ashley OS, Foshee VA. Adolescent help-seeking for dating violence: prevalence, sociodemographic correlates and sources of help. J Adolesc Health. 2005;36(1):25-31.). Diante desse fato, a elaboração de medidas de prevenção e aquelas que auxiliem a identificação precoce do problema são desafios para qualificar a ação sistêmica sobre esses eventos. Constatam-se dificuldades na implementação de programas de prevenção e intervenção, entre os quais: o estigma associado ao ato de buscar ajuda para problemas pessoais; a preocupação dos adolescentes com a privacidade e a proteção de suas relações afetivas; o apreço pela autossuficiência e a falta de informação dos adolescentes para avaliar a qualidade dos seus relacionamentos afetivos.

Na área da saúde, especialmente para a enfermagem, a exploração de questões que envolvem a violência no namoro entre adolescentes, contém subsídios para a geração de avanços na atenção à saúde e implementação de ações de cuidado a esse grupo, em suas demandas singulares. A compreensão de seus relacionamentos e as vias pelas quais as relações abusivas podem colocar em risco a saúde e o bem-estar dos adolescentes são componentes críticos na expansão do conhecimento em enfermagem e no consequente desenvolvimento de abordagens efetivas para o cuidado aos adolescentes(66. Burton CW, Halpern-Felsher B, Rankin SH, Rehm RS, Humphreys JC. Relationships and betrayal among young women: theoretical perspectives on adolescent dating abuse. J Adv Nurs. 2011;67(6):1393-405.).

Reconhecemos que é preciso ir além da compreensão dos significados atribuídos a essa violência, o que requer um olhar mais abrangente transpondo os limites que o problema aparenta impor (a invisibilidade da violência), ou seja, buscar compreender as relações afetivas e as situações de violência no namoro levando-se em consideração o contexto e a situação em que se manifestam na perspectiva das relações de dominação situadas na região do simbólico. O processo de dominação simbólica se dá de forma sutil e eficiente porque a maioria das mulheres não está ciente da sua condição de dominada. Elas próprias participam desse processo de dominação, na medida em que tudo aquilo que está no campo do simbólico tem o poder de mascarar a arbitrariedade da inculcação e do que é inculcado(77. Bourdieu P. A dominação masculina. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007. Anamnese das constantes ocultas; p. 20-54.).

As relações afetivas e as situações de conflito/violência no namoro dos adolescentes serão compreendidas à luz da teorização(77. Bourdieu P. A dominação masculina. 5ª ed. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil; 2007. Anamnese das constantes ocultas; p. 20-54.) sobre poder, violência e dominação simbólica, bem como do gênero, como categoria teórica analítica(88. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1994;16(2):72-99.).

A relevância do presente estudo é trazer subsídios para elaborar estratégias que considere o contexto de socialização dos adolescentes, abrindo espaço para a desconstrução dos preconceitos sociais, da herança cultural machista e para novas articulações de modo a recompor as fronteiras entre papéis, funções e qualidades para cada gênero, capaz de modificar as atuais ideologias. Atuar sobre a origem da violência já no início dos relacionamentos afetivo-sexuais dos adolescentes talvez seja a melhor forma de combatê-la ou minimizá-la. Assim, o presente estudo se propõe a compreender como os adolescentes significam suas relações afetivas e situações de conflito/violência no namoro.

MÉTODO

Privilegiamos a dimensão qualitativa da pesquisa social para a compreensão do objeto de estudo, cuja abordagem procura aprofundar a complexidade de fenômenos e processos particulares de grupos(99. Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês; 2014.). Nesta pesquisa, têm-se como fenômenos as relações afetivas e os conflitos/violências durante o namoro dos adolescentes, sendo considerados adolescentes as pessoas com idades entre 15 e 19 anos(1010. Organización Panamericana de la Salud. La salud del adolescente y el joven en las Américas. Washington: OPAS; 1985.).

Sobre o caminho metodológico percorrido, primeiramente, houve a imersão da pesquisadora no campo de estudo, aproximando-se dos adolescentes que se encontravam na faixa etária estabelecida, no 2º ano do ensino médio de uma escola estadual de Ribeirão Preto/São Paulo, período noturno, selecionados aleatoriamente.

O recorte empírico foi definido através da triagem desses estudantes, realizando-se o convite aos adolescentes de duas classes para participar do estudo e aplicando-se um instrumento construído pela pesquisadora. Nesse instrumento, os adolescentes declaravam se possuíam disponibilidade para participar da pesquisa, interesse pela temática e admitiam se já tiveram algum relacionamento afetivo. Dessa forma, o recorte empírico inicial foi constituído por 19 adolescentes que cumpriam esses critérios de inclusão, de ambos os sexos, independentemente da orientação sexual, regularmente matriculados na escola, no ano letivo de 2014.

Dentre as técnicas para construção dos dados, foram utilizados o grupo focal (GF) e a entrevista individual (EI) do tipo aberta/em profundidade, que foram agendados pela pesquisadora conforme disponibilidade dos interlocutores (I) do estudo, autorização dos professores, direção da escola e responsáveis pelos adolescentes.

A técnica de GF contribuiu para desvelar as opiniões e as percepções dos interlocutores do estudo sobre suas relações afetivas no namoro, formas de negociação de conflitos e suas relações familiares. Sobre a forma de condução dos grupos e tópicos de discussão, utilizou-se de figuras e questões como motivação inicial, fornecidas pela pesquisadora/moderadora, abordando: a opinião dos adolescentes sobre o namoro atualmente, situações de ciúmes, figuras de casais em que a mulher vestia roupas curtas, figuras de violência psicológica, figura de violência sexual, cenas familiares de discussão dos pais presenciadas pelos filhos, figuras de uso de álcool e drogas na adolescência. É importante ressaltar que o ambiente dos grupos foi acolhedor, assegurando privacidade, para facilitar o debate e aprofundar as discussões. Nesse mesmo sentido, as cadeiras foram organizadas em um círculo, a fim de promover a participação e a interação dos envolvidos.

Pretendendo alcançar a profundidade de expressão de cada participante, optamos por grupos menores. O primeiro grupo focal foi constituído por nove participantes, cinco homens e quatro mulheres, e o segundo grupo foi constituído por dez participantes, seis homens e quatro mulheres. Portanto, realizamos dois grupos focais, com duração de 1 hora e meia a 2 horas cada um, conforme estabelecido para o desenvolvimento desta técnica(1111. Trad LAB. Grupos focais: conceitos, procedimentos e reflexões baseadas em experiências com o uso da técnica em pesquisas de saúde. Physis [Internet]. 2009 [citado 2016 out. 16];19(3):777-95. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a13v19n3.pdf
http://www.scielo.br/pdf/physis/v19n3/a1...
).

Após serem estimulados a discutir a temática do estudo nos grupos focais, em um segundo momento, foi agendada uma entrevista semanal e individual com cada adolescente, em lugar privativo, para que os interlocutores tivessem a liberdade de falar sobre o tema proposto. Foi construído um roteiro norteador da entrevista, que incluía as seguintes informações: identificação do adolescente e dos membros de sua família, contexto e relações familiares, informações direcionadas à apreensão de aspectos específicos sobre as vivências dos adolescentes em suas relações de namoro e formas de manifestação de violência.

Nesse momento, o tamanho do recorte empírico foi estabelecido quando se obteve informações suficientes e em profundidade para descrever o fenômeno em estudo, mediante o processo de obtenção dos dados e concomitante análise(1212. O´Reilly M, Parker N. “Unsatisfactory saturation”: a critical exploration of the notion of saturated sample sizes in qualitative research. Qual Res. 2012;13(2):190-7.). Assim, as entrevistas foram encerradas com um total de 15 adolescentes, não sendo necessário entrevistar todos os participantes dos grupos focais nem realizar novas triagens em outras classes da escola.

Para a análise dos dados construídos, utilizou-se do método de interpretação de sentidos, o qual se baseia na perspectiva hermenêutico-dialética e se volta para a interpretação do contexto, das razões e da lógica das falas, das ações, correlacionando os dados ao conjunto de inter-relações e conjunturas, dentre outros corpos analíticos(99. Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês; 2014.).

A pesquisa foi realizada respeitando-se os aspectos éticos para desenvolvimento de pesquisas com seres humanos, iniciando-se a construção dos dados somente após a obtenção da autorização da instituição coparticipante e da aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto/SP, sob o Parecer n.º 312/2013. As etapas de construção dos dados foram gravadas e os termos de assentimento assinados pelos adolescentes menores de 18 anos, assim como os termos de consentimento foram assinados pelos responsáveis pelos adolescentes menores de 18 anos e pelos próprios adolescentes maiores de 18 anos.

RESULTADOS

PERFIL SOCIOCULTURAL DOS INTERLOCUTORES DO ESTUDO

Participaram do estudo um total de 19 adolescentes, nove no primeiro grupo focal e dez no segundo. Em relação ao sexo, 11 eram do sexo masculino e oito do sexo feminino. Constatamos que a média de idade dos participantes foi de 17 anos, variando de 16 a 18 anos. Todos os adolescentes referiram trabalhar, inclusive estudavam no período noturno para conciliar trabalho e escola. Justifica-se a escolha da instituição devido à sua localização central na cidade de Ribeirão Preto, o que facilitaria o acesso de uma população de adolescentes de diversas regiões da cidade. Constatou-se que dos 19 adolescentes participantes do estudo, 14 residiam em bairros diversos da cidade.

Por meio da análise das falas dos adolescentes que participaram dos grupos focais e das entrevistas, depreenderam-se os significados atribuídos às suas relações afetivas e às situações de conflito/violência no namoro.

SIGNIFICADOS DAS RELAÇÕES AFETIVAS DOS ADOLESCENTES

Nesta primeira categoria temática central, identificaram-se dois núcleos de sentido. O primeiro núcleo de sentido, “Os sentidos de ficar e namorar e suas relações com ciúme, gênero e violência simbólica”, articula informações sobre como os adolescentes percebem algumas dimensões da sexualidade, o início da vida sexual, as interações afetivo-sexuais e o posicionamento dos adolescentes frente a questões de gênero e violência na relação.

O ficar aparece como uma forma alternativa ao namorar, cujos aspectos mais enfatizados pelos adolescentes dizem respeito ao relaxamento dos acordos mais complexos, pertinentes às relações estáveis:

É aquela história de que ser solteiro tem liberdade, namorando não tem. Eu acho que é um namoro ciumento, daqueles que um prende o outro (I8 fem. – GF2).

O relacionamento sexual está presente no namoro e também pode estar presente no ficar. A diversidade de gênero ainda é marcante nos relacionamentos, mas já se percebem atenuantes, pois a adolescente se expressa um pouco mais sexualmente. O comportamento feminino, muitas vezes, aproxima-se do comportamento masculino na contemporaneidade:

Porque as duas partes hoje em dia querem o ‘lepo lepo’ (sexo), só que o homem é mais assim: ele quer e já vai falando. Antigamente, você tinha que perder uns 2 anos da sua vida pra conseguir fazer um ‘lepo lepo’ decente. Hoje você chega, assim e diz: ‘Oi, tudo bem?’ E elas dizem: ‘Vamos para o lepo lepo!’ (I3 masc. – GF1).

Apesar dessa modificação aparente, a exigência social da virgindade da mulher ou do menor número possível de relações sexuais ainda está presente:

(...) essa minha atual, agora, que é a primeira (namorada), me ligou. Aí o ‘lepo lepo’ (sexo) rolou, foi no clube, atrás do tobogã. Ela ainda era virgem, graças a Deus! (I3 masc. – GF1).

A velocidade com que os relacionamentos ocorrem é rápida, sendo a tecnologia e a internet bastante presentes como ferramentas de conexão entre os pares. O que se observa é que a internet viabiliza esses relacionamentos de forma rápida e prática:

Minha namorada eu conheci num chat, pela internet, eu tinha 15 anos. Eu vi uma foto de uma menina linda e comecei a conversar com ela. E ela começou a me dar bola (...) eu liguei a webcam e era uma mulher linda! No outro dia eu já fui na casa da amiga dela. Pra ligar a webcam demorou umas 2 horas! Aí quando eu cheguei na casa da amiga dela (...) conversamos uns 20 minutos, a gente ficou, saímos e aí a gente começou a namorar. Num dia eu a conheci, no outro a vi pessoalmente e no outro já estava namorando (I3 masc. – GF1).

As falas dos adolescentes também demostram que o namoro está relacionado a sentimentos, afeto, e que solicita um comportamento e indumentária adequados à seriedade que o relacionamento exige, geralmente unilateral, por parte da mulher; assim como um local em que pessoas “sérias” podem frequentar:

Não é um relacionamento sério porque ela está com essa roupa, num lugar inadequado... E ele está com cara de safado, que quer pegar ela, mas não sente nada por ela (I8 fem. – GF2).

Quando você namora, eu acho que é um programa mais casal, tipo sair pra jantar com os amigos, cinema, shopping. Não é aquela coisa de você ficar indo para a balada sozinha (...) Pra mim, isso não é namoro (...) Ontem meu avô veio me contar que o moço que trabalha com ele foi levar a namorada no rodeio e, quando ele foi ao banheiro, os caras chegaram em cima da namorada dele. E, como é grupinho, falaram assim: ‘Você trouxe ela para cá, se ela está namorando ela não tem que vir pra cá, agora ela é nossa’. Então, você tem uma noção, que não é lugar pra ficar indo quando você namora (I5 fem. – GF1).

O ciúme apresenta-se como sinal de amor e cuidado e, se ausente, a mulher torna-se apenas um objeto do desejo masculino e não sua namorada, verdadeiramente. Na fala que se segue, a interlocutora afirma que o homem não tem ciúmes, assim, provavelmente não tem intenção de respeitar a mulher ou namorar sério com ela:

Ele não tem ciúmes dela, porque ela está pelada. Ele só quer abusar dela, ele não quer namorar sério com ela (I8 fem. – GF2).

Observam-se conexões entre o ciúme e o mito do amor romântico. Abaixo uma das adolescentes cita que sente falta do ciúme do namorado, associando o ciúme ao amor:

Às vezes, eu ligo um pouco, porque não que eu quero que ele tenha ciúmes, mas, às vezes, ele é muito tranquilo... Eu sou muito ciumenta (I8 fem. – EI).

Ao se considerar determinadas características como exclusivas de um gênero específico, as falas podem se configurar como facetas da violência:

Ela sair desse jeito (com roupa curta) quando eu não estiver perto, não (I4 masc. – GF2).

Roupa é outra coisa, tem o tipo de roupa, que nem essa daqui ele não gosta, acha muito decotada. Short ele não gosta que eu saia na rua (I5 fem.– EI).

Já a adolescente I8 verbaliza a relação direta de namoro e violência:

Se fosse namoro, provavelmente estariam discutindo, porque a gente só briga! (I8 fem. – GF2).

No segundo núcleo de sentido, “Isolamento social – ‘se você não pode o outro também não pode’ –, os significados presentes nas relações de namoro dos adolescentes são marcados pelo controle recíproco da vida do parceiro, no sentido de desejar saber tudo o que ocorre em seu cotidiano e de se afastar de seus círculos sociais devido ao namoro e ao ciúme que ronda a relação permanentemente, como vemos pelas falas:

O que eu prezo é contar. Porque eu conto tudo pra ela, então eu quero tudo dela pra mim. Se ela conta por cima, eu pergunto por que ela não contou tudo pra mim (I3 masc. – GF1).

Porque o seu namorado não quer que você tenha amizade masculina, e a gente não quer que eles tenham feminina. Se você não pode o outro também não pode... (I5 fem. – GF1).

No trecho seguinte, observam-se outras conexões entre o ciúme, o mito do amor romântico e a violência simbólica nas relações dos adolescentes:

Eu estou namorando de novo, só que ela não mora aqui... Ela é ciumenta demais... Não quer me deixar fazer academia, nada (I17 masc. – GF2).

Só queria que eu tivesse amizade com homem. Eu sou de boa, não sou ciumento, mas ela, Deus do céu! Em dez dias eu já não aguentava ela mais, por causa de ciúmes (I1 masc. – EI).

DA (DES)CONSTRUÇÃO DA VIOLÊNCIA SIMBÓLICA À EXPRESSÃO DE OUTRAS FORMAS DE VIOLÊNCIA

À luz da desigualdade de gênero, analisamos esta segunda categoria temática, constituída também por dois núcleos de sentido. Em relação ao primeiro núcleo de sentido, “Posicionamento da mulher frente à dominação masculina”, faz-se uma discussão sobre a dominação masculina, que se apresenta como um processo de construção social, como uma forma de violência simbólica contra a mulher, reproduzindo-se ao longo da história.

As adolescentes entrevistadas se posicionam como reprodutoras das ideologias de gênero, contribuindo para a dominação masculina como forma de violência simbólica, o que podemos constatar pelas falas seguintes:

Essa menina tira foto com esse tipo de roupa, ela vai para as festas com esse tipo de roupa, eu acho que não é coisa de uma menina que namora fazer (I7 fem. – GF1).

Quando se namora, você tem que se respeitar, não vai com uma roupa assim, mesmo se o namorado deixar (I10 fem. – GF2).

As falas das adolescentes afirmam sua cumplicidade, mesmo de forma inconsciente, em sofrer uma violência insensível, invisível, suave, naturalizada, o que as faz reafirmar um comportamento como o de I3:

Um dia eu levei ela ao shopping, comprei as alianças pra fazer uma surpresa. Comprei uma correntinha com a letra do meu nome, pra saberem que tem dono (I3 masc. – GF1).

Contrapondo-se às relações de desigualdade e redefinindo o poder nas relações do namoro, as adolescentes também se posicionam contra o que se espera delas socialmente:

Eu acho que ele não manda na minha roupa, eu choro, mas não troco de roupa. Nem meu pai manda na minha roupa, namorado muito menos. Não troco de jeito nenhum (I7 fem. – EI).

Não é toda mulher que usa roupa curta que se desvaloriza, mas a sociedade e os meninos de hoje em dia pensam isso (I10 fem. – GF2).

No segundo núcleo de sentido, “As situações de violências física, sexual e psicológica no namoro: quem realmente é o agressor?”, dentre as formas de agressão, em nosso estudo, a violência psicológica – falar alto, gritar com o outro, ameaçar, controlar a vida do parceiro, perseguir, dentre outros exemplos – aparece de modo marcante no cotidiano das relações afetivo-sexuais dos adolescentes:

Porque se um dia, sei lá, acontecer e eu ficar sabendo que ela me traiu, eu tenho duas reações. Se ela tiver na minha frente e eu ver isso acontecer, seria muito pior. Eu acho que eu agrediria muito ele e acho que eu não iria bater nela de soco, eu não me vejo batendo nela de soco, só que eu apertaria o braço dela até quebrar (I3 masc. – EI).

Sobre a violência física, I10 fem. – GF2, coloca:

Mas o homem é sempre mais violento, qualquer briga o homem já perde o controle e quer bater, a mulher não, ela só fala e fala...

Contrapondo-se a essa passividade feminina, vemos as falas:

Você fala uma coisa e ela já começa a xingar, bater. Ela bate, ela bate (I3 masc. – EI).

Quem começa é ela, porque ela não aguenta nas palavras e parte pra agressão, porque sabe que eu não posso bater nela. Ela vinha com tapa, murro e jogava coisas em mim. Ela morde, arranha, belisca, chuta (I3 masc. – EI).

DISCUSSÃO

A compreensão dos significados que os adolescentes deram às suas relações afetivas e situações de conflito/violência no namoro deu-se por meio do método de interpretação de sentidos, baseado na perspectiva hermenêutico-dialética(99. Gomes R. Pesquisa qualitativa em saúde. São Paulo: Instituto Sírio-Libanês; 2014.), em que se depreenderam diversos pontos.

Observa-se que tanto o namoro quanto o ficar são formas de interações afetivo-sexuais dos adolescentes, de exercício da sexualidade, de socialização e da construção da identidade. A obrigação da fidelidade é uma das dificuldades que o ficar minimiza, proporcionando uma maior flexibilidade das trocas afetivas. Esse afrouxamento propiciado pelo ficar é ressaltado pelo fato de que namorar diminui a liberdade de ir e vir e exige muita responsabilidade(1313. Sartori AT. Posições enunciativas entre namorar e ficar: jovens escrevendo na escola. Rev Prolíngua. 2015;10(2):25-36.-1414. Chaves JC. Práticas afetivo-sexuais juvenis: entre a superficialidade e o aprofundamento amoroso. Psicol Soc [Internet]. 2016 [citado 2017 mar. 27]; 28(2):320-30. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v28n2/1807-0310-psoc-28-02-00320.pdf
http://www.scielo.br/pdf/psoc/v28n2/1807...
).

Experiências mediadas pela internet como formas concretas de vivências amorosas, dotadas de características específicas, demonstraram uma nova forma de interação emergente na contemporaneidade. A influência da tecnologia da informação vem entremeando cada vez mais as relações amorosas e, consequentemente, alterando-as, pois estas, ao menos precedentemente, somente eram possíveis, na maioria das ocasiões, em âmbito presencial. Trata-se de experiências de vidas amorosas atuais que revelam práticas e ações sociais novas, as quais não substituem a interação sem mediações tecnológicas, mas sim a complementam, potencializando as formas de criar laços afetivos(1515. Silva GPT. Possíveis contribuições das redes sociais mediadas pela internet para os relacionamentos amorosos. Multiverso. 2016;1(2):181-95.).

As questões de gênero se mostraram fundamentais nas escolhas que cercavam as relações. Em relação à mulher, ao mesmo tempo que existia o desejo de se descobrir, impunha-se a necessidade de se ‘preservar’. Ainda podemos verificar nas falas a importância da virgindade da mulher. A perspectiva de gênero recomenda que as diferenças entre os sexos não devam ser naturalizadas, mas as considera como consequência de uma construção social e cultural dos significados do que é ser homem e do que é ser mulher, hierarquias e relações de poder em cada tempo, espaço e grupo social(88. Scott J. Gênero: uma categoria útil de análise histórica. Educ Real. 1994;16(2):72-99.).

Circundando tal perspectiva, o ciúme apareceu como um componente chave das falas construídas pelos adolescentes quando abordaram e debateram as relações de namoro e o ficar. Bastante frequente nas relações humanas, o ciúme romântico é entendido como qualquer resposta instintiva da pessoa, apresentada em diversas situações, comportamental ou cognitiva, por temer a perda do parceiro e na presença ou não de um possível rival. Então, pode-se conceber o ciúme como uma emoção experimentada por um indivíduo que percebe que o amor, a afeição e a atenção do parceiro estão sendo dados a uma terceira parte, quando julga que essas oportunidades deveriam estar sendo oferecidas a ele(1616. Conceição BRTC, Martins CR, Freitas RB. O ciúme romântico entre gêneros: uma visão sociopsicológica. Rev Psicol Foco. 2015;7(9):53-66.). A ideia de infidelidade, mesmo que não confirmada, sinaliza o ciúme em uma parceria amorosa.

As experiências e os sentidos revelados apresentaram o ciúme, em um primeiro momento, como expressão de amor e cuidado, ou seja, como aquele componente que dava um toque extra às relações amorosas. Entretanto, houve também revelações sobre outros significados para o ciúme: os adolescentes o relacionaram e o abordaram, ainda que silenciosamente, como um dos aspectos significativos presente no processo de construção da violência de gênero, ou seja, apresentava-se a violência simbólica(1717. Teixeira A. Nunca você sem mim: homicidas-suicidas nas relações afetivo-conjugais. São Paulo: Annablume; 2009.). Apesar de algumas vezes invisível aos olhos dos adolescentes, o ciúme, fazendo parte da relação amorosa, também era colocado como motivo do isolamento social, como apresentado na literatura(1616. Conceição BRTC, Martins CR, Freitas RB. O ciúme romântico entre gêneros: uma visão sociopsicológica. Rev Psicol Foco. 2015;7(9):53-66.).

Dessa forma, as falas apontam para o ciúme como ferramenta de controle e de dominação nas relações afetivo-sexuais, convergindo com as reflexões produzidas pela teoria feminista de gênero, que chama a atenção para analisarmos criticamente as situações em que o ciúme emerge como sinônimo de amor, e, também, para identificar as possíveis conexões entre o mito do amor romântico, o ciúme e a violência simbólica como parte do processo de construção da violência de gênero. A dominação masculina é exercida como forma de violência materializada nas brigas e simbolizada na culpabilização da mulher. A mulher está inserida em uma sociedade historicamente marcada pelo viés androcêntrico, base da dominação masculina, e é a principal vítima da violência simbólica.

Em linhas gerais, percebe-se que o ciúme aparece como um dos elementos mais importantes no âmbito das vinculações afetivo-sexuais dos adolescentes, sendo considerado expressão de amor e cuidado, que se inscreve em uma acepção mais ampla de amor romântico. No entanto, no jogo discursivo, percebe-se que esses sentidos são ampliados, de modo que expressam também, ainda que de forma antagônica e sutil, que o ciúme é uma ferramenta de poder e controle sobre o parceiro, uma forma de violência simbólica, capaz de refletir e (re)produzir as desigualdades de gênero no âmbito do (des)afeto entre casais.

Nossos achados corroboram um estudo(1818. Nascimento FS, Cordeiro RLM. Violência no namoro para jovens moradores de Recife. Psicol Soc [Internet]. 2011 [citado 2016 jun. 18];23(3):516-25. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/psoc/v23n3/09.pdf
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) que se refere à violência no namoro como um padrão que se repete, apresentando uma dinâmica relacional em que um dos elementos do casal, através da violência, pretende controlar, dominar, submeter o outro. Inicialmente assume formas de dominação socialmente aceitas que, com o tempo, vão se tornando mais graves, frequentes e destrutivas.

As mulheres, por conta do desconhecimento e mascaramento em que estão fundadas as relações sociais de desigualdade entre os sexos, “(...) submetem-se às normas que definem o que deve ser o corpo, não só na sua configuração perceptível, mas também na sua atitude, na sua apresentação”(1919. Bourdieu P. Questões de sociologia. Rio de Janeiro: Marco Zero; 1983.). Verifica-se que a mulher é vista como objeto do desejo masculino, o que se pode caracterizar como violência simbólica contra a mulher. Destaca-se a necessidade de se deslocar o debate da redução da mulher como objeto da violência – expresso em uma vitimização exclusiva – para a promoção de um sujeito que vivencia situações de violência – ancorada em uma perspectiva relacional de gênero(2020. Gomes R. A mulher em situação de violência sob a ótica da saúde. In: Minayo MCS, editor. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003. p. 199-222.).

O adolescente I3 compra uma correntinha para a namorada simbolizando seu amor, porém sua maior intenção é que todos saibam que ela “tem dono”. A violência simbólica define-se, em um primeiro momento, como uma violência dissimulada, o que lhe confere poderes particulares e eficácia específica. Tal violência não pode ser usada independentemente, pois não é um tipo distinto de violência. Ela é violência física mascarada e, por conseguinte, invisível e esquecida. Contudo, as adolescentes também buscam uma posição equitativa perante os homens e uma desconstrução dessa violência quase imperceptível, que a mulher sofre constantemente.

Sobre as violências física e psicológica identificadas, nossos achados corroboraram um relevante estudo nacional(11. Minayo MCS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2011.), em que ambas estão presentes nas relações afetivo-sexuais dos adolescentes, em ambos os sexos. Todavia, as moças, quando são agredidas fisicamente, sofrem consequências mais sérias, a ponto de requerem mais cuidados emergenciais. Os adolescentes destacaram agressões verbais, tentativas do parceiro de controlar sua vida, chantagens emocionais e pressões que sofriam para realizar certos atos ou adotar condutas, como os tipos mais comuns de violência psicológica.

A análise das falas dos interlocutores também são similares às encontradas em uma pesquisa(2121. Barreira AK, Lima MLC, Bigras M, Njaine KASG. Direcionalidade da violência física e psicológica no namoro entre adolescentes do Recife, Brasil. Rev Bras Epidemiol [Internet]. 2014 [citado 2017 mar. 28];17(1):217-28. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rbepid/v17n1/pt_1415-790X-rbepid-17-01-00217.pdf
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) realizada nas redes pública e particular de ensino médio da cidade de Recife (PE), em que a violência praticada nas relações afetivas/amorosas dos adolescentes apresentava um padrão: os parceiros se agrediam mutuamente, tanto física como psicologicamente, revelando que para romper com essa dinâmica relacional é necessário intervir no casal, e não somente no adolescente homem ou na mulher. A reciprocidade da violência no namoro pressupõe que os padrões culturais do machismo ainda não estão bem estruturados nessa fase da vida, o que torna esse grupo prioritário para medidas de intervenção. Levar em consideração essa dinâmica, em que pode haver uma mistura de amor e violência, significa prevenir futuras violências entre parceiros na fase adulta.

No caso das violências conjugais, as estatísticas comprovam que há maior incidência da violência do homem contra mulher, enquanto na adolescência a violência é cometida e sofrida por ambos os sexos. Além disso, existem particularidades nas relações dos jovens, pois estas são mais fluidas, menos compromissadas e há menor cobrança social para que a relação seja mantida. Não existe dependência econômica, filhos ou bens compartilhados que poderiam “justificar” a continuidade da relação frente à violência(11. Minayo MCS, Assis SG, Njaine K, organizadoras. Amor e violência: um paradoxo das relações de namoro e do ‘ficar’ entre jovens brasileiros. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2011.).

Diante dos dados, salientamos a importância de se avaliar situações de risco a que podem estar submetidos adolescentes, identificando-se sinais em uma relação que se inicia e que poderia, em um futuro muito próximo, caracterizar-se como uma relação violenta(2020. Gomes R. A mulher em situação de violência sob a ótica da saúde. In: Minayo MCS, editor. Violência sob o olhar da saúde: a infrapolítica da contemporaneidade brasileira. Rio de Janeiro: FIOCRUZ; 2003. p. 199-222.).

CONCLUSÃO

A compreensão dos significados dados pelos adolescentes às suas relações afetivas e situações de violência no namoro apontam diferentes faces da violência simbólica. Marcadamente, as articulações entre masculinidade e violência se apresentam com uma inflexão muito acentuada, a ponto de a segunda expressão ser entendida como uma pertença à primeira, de uma forma quase que naturalizada.

No senso comum, ainda persistem tanto atitudes que desculpam ou licenciam comportamentos violentos masculinos quanto aquelas que cobram certo grau de violência nas condutas masculinas para que os atores dessas condutas recebam o atestado de homens. Neste cenário de associação mecânica entre o ser masculino e o ser violento, as relações de gênero podem ser construídas e reproduzidas a partir de uma lógica em que a violência seria a referência para se diferenciar o homem da mulher.

Nas cenas cotidianas retratadas pelos adolescentes interlocutores do estudo, os códigos de condutas se expressam no que se define por aceitável e desejável relacionado ao uso de roupas, comportamento sexual, lugares a se frequentar quando se está namorando, dentre outros exemplos. Teoricamente, isso se refere ao uso social do corpo como forma de distinção entre os sexos e de padronização das condutas e à utilização de objetos-signos. À luz do conceito de dominação masculina, podemos dizer que não é conferida à mulher – representada por atributos de delicadeza e submissão de seus atos – uma postura e atitudes próprias, legítimas no namoro, que possam ferir esses atributos; enquanto, ao homem, é conferida uma postura de masculinidade e poder, claramente presente e forte no relacionamento afetivo-sexual dos adolescentes, além de reafirmada por ambos os gêneros.

Frente aos resultados, pode-se dizer que diversos são os modelos explicativos para a presença da violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes. Esta pesquisa se propôs a analisar a violência nas relações afetivo-sexuais entre adolescentes oferecendo subsídios que considerem os modelos culturais de gênero existentes em nossa sociedade para a possível formulação de políticas e programas intersetoriais, tanto no âmbito da prevenção e da intervenção quanto da recuperação de perpetradores e vítimas desse tipo de violência. Nesse sentido, o planejamento e a execução de ações que enfrentem esse fenômeno perpassam por diferentes áreas – saúde, educação, assistência social e justiça – e exige a participação dos próprios adolescentes, assim como de suas famílias.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    24 Jan 2017
  • Aceito
    05 Out 2017
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