Intervenções empreendedoras de Enfermagem para a emancipação social de mulheres recicladoras

RESUMO

Objetivo:

Implementar e significar intervenções empreendedoras de Enfermagem, com vistas à emancipação social de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis.

Método:

Pesquisa-ação, cujo processo de intervenção teve como cenário uma ação alusiva ao Dia das Mães, em período pandêmico, com a participação de 28 mulheres de uma Associação Recicláveis.

Resultados:

Da análise temática do tipo Reflexive, que possibilitou o registro sistemático de ideias, insights e a significação da intervenção realizada, resultaram duas categorias: Do aparente isolamento à reinvenção profissional e Da invisibilidade à dignidade e à sensação de igualdade social.

Conclusão:

O significado das intervenções realizadas em uma Associação de Materiais Recicláveis em período pandêmico significou, para as mulheres/Mães trabalhadoras, sentido de vida, sobrevivência, dignidade e empoderamento, quando pouco ou nada esperavam. Possibilitar uma identidade social às mulheres de uma Associação de Reciclagem implica, em suma, superar intervenções lineares e assistencialistas.

DESCRITORES
Pandemias; COVID-19; Enfermagem em Saúde Comunitária; Empreendedorismo; Responsabilidade Social

ABSTRACT

Objective:

To implement and signify entrepreneurial interventions in Nursing, with a view to the social emancipation of women working in an Association of Recyclable Materials.

Method:

Action-research with an intervention process based on an action alluding to Mother’s Day, carried out in a pandemic period, with the participation of 28 women from a Recycling Association.

Results:

The reflexive thematic analysis, which enabled the systematic recording of ideas, insights and the meanings of the intervention, gave rise to two categories: From apparent isolation to professional reinvention and from invisibility to dignity and the feeling of social equality.

Conclusion:

The interventions carried out in an Association of Recyclable Materials in a pandemic period provided, for its female workers, a sense of life, survival, dignity and empowerment, when they expected little or nothing. Enabling a social identity for the women of a Recycling Association implies, in short, overcoming linear interventions focused on assistance.

DESCRIPTORS
Pandemics; COVID-19; Community Health Nursing; Entrepreneurship; Social Responsibility

RESUMEN

Objetivo:

Implementar y significar intervenciones emprendedoras de Enfermería hacia la emancipación social de mujeres trabajadoras de una Asociación de Materiales Reciclables.

Método:

Se trata de una Investigación-acción, cuyo proceso de intervención tuvo como escenario una acción alusiva al Día de las Madres, en período pandémico, con la participación de 28 mujeres de una Asociación de Reciclaje.

Resultados:

Del análisis temático de tipo reflexivo, que permitió registrar sistemáticamente las ideas, las percepciones y el sentido de la intervención realizada, resultaron dos categorías: Del aislamiento aparente a la reinvención profesional y De la invisibilidad a la dignidad y al sentido de igualdad social.

Conclusión:

El significado de las intervenciones llevadas a cabo en una Asociación de Materiales Reciclables durante el período pandémico les dio a las mujeres/Madres trabajadoras un sentido de supervivencia, dignidad y empoderamiento a su vida cuando esperaban poco o nada. Brindar identidad social a mujeres de una Asociación de Reciclaje implica, en definitiva, superar las intervenciones lineales y asistencialistas.

DESCRIPTORES
Pandemias; COVID-19; Enfermería en Salud Comunitaria; Emprendimiento; Responsabilidad Social

INTRODUÇÃO

A pandemia da Covid-19, doença causada pelo novo coronavírus – SARS-CoV-2, gerou dúvidas, incertezas, distanciamento social, questionamentos sem respostas e, paralelamente, exigiu a reinvenção profissional e a busca incessante e sistemática de soluções estratégicas para fazer frente à multiplicidade de demandas. Os empreendimentos, em geral, foram afetados, mas a situação se agravou e deixou mais ­visíveis ­problemas sociais já conhecidos(¹–²). Nesse contexto, o empreendedorismo social eclodiu como alternativa possível e viável para subsidiar necessidades e melhorar a condição de vida de populações em situação de vulnerabilidade, como a de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis, objeto deste estudo.

Embora complementado pelo movimento empreendedor empresarial, o empreendedorismo social distingue-se pela prospecção e a implementação de ideias inovadoras e pelos projetos práticos para o alcance de um bem coletivo(³–⁴). Para autores contemporâneos, o empreendedorismo social caracteriza-se como um novo arquétipo de desenvolvimento em redes e parcerias, com foco na dimensão humana, social e sustentável. Define-se, ainda, como mecanismo de mobilização social capaz de impulsionar o enfrentamento dos problemas sociais de forma criativa, inovadora e transformadora(⁵–⁷).

O empreendedor social configura-se, nessa direção, como agente de mudança, ou seja, alguém que, para além do lamento das oportunidades perdidas face à pandemia da Covid-19, vislumbra possibilidades inovadoras, solidárias e resilientes. Na área da saúde/Enfermagem, os empreendedores sociais são reconhecidos pela busca de soluções inovadoras e sustentáveis para problemas práticos, pelo estímulo de processos interativos e associativos centrados no viver saudável de indivíduos, famílias e comunidades(⁸–⁹).

Na lógica do empreendedorismo social, a saúde deve ser apreendida como um sistema complexo, isto é, dinâmico e auto-organizado, interligado aos diferentes sistemas sociais que visam promover a saúde, a partir de uma perspectiva sócio-eco-sistêmica(⁹). Essa compreensão de saúde é ainda mais complexa ao relacioná-la ao trabalho de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis. Essas profissionais operam, na maioria das vezes, em condições insalubres e expostas a riscos de toda natureza, tais como químicos, biológicos, ambientais, convivendo com iniquidades e desvalorização social(¹⁰).

Nessa perspectiva, o empreendedorismo social pode ser apreendido como ferramenta indutora de saberes e práticas ­solidárias e colaborativas, com vistas à promoção da saúde integral. Para estudiosos da área, o empreendedorismo induz a processos que interligam diferentes agentes e segmentos sociais, tendo em vista que as inovações e transformações em âmbito local resultam de redes interativas e associativas, em que as necessidades de grupos vulneráveis são assumidas colaborativamente(⁶,¹¹).

A atuação da Enfermagem, sob esse enfoque, não pode ser reduzida ao desenvolvimento de habilidades técnico-científicas lineares e assistencialistas. A percepção de que pelo cuidado empreendedor o Enfermeiro pode contribuir para o desenvolvimento social sustentável, relacionado com a ampliação das oportunidades e possibilidades reais de indivíduos, famílias e comunidades, constitui-se não mais um desafio, mas um apelo prospectivo para o avanço da ciência de Enfermagem(¹²–¹³).

Esse movimento empreendedor gradual e prospectivo reflete, em última análise, o desejo de transpor o paradigma cartesiano, ainda hegemônico na saúde, a fim de intuir um pensamento sistêmico, capaz de fomentar o protagonismo e o empreendedorismo social(¹⁴–¹⁵). Reconhece-se que o foco no assistencialismo parece ter esgotado as possibilidades evolutivas face à complexidade dos problemas sociais e de saúde crescentes, o acelerado avanço tecnológico e os novos valores e modos de vida, especialmente os decorrentes da pandemia do novo coronavírus.

Considerando os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável – Agenda 2030, que assegura uma vida saudável e o bem-estar para todos os cidadãos, questiona-se: Como assegurar o viver saudável e contribuir para a emancipação social de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis face à pandemia da Covid-19? Objetivou-se, para tanto, implementar e significar intervenções empreendedoras de Enfermagem, com vistas à emancipação social de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis.

MÉTODO

Tipo de Estudo

Adotou-se a pesquisa-ação pela possibilidade dessa metodologia propiciar a construção e a intervenção de ­saberes e práticas, com a participação de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Reciclagem e de alunos da graduação e pós-graduação de Enfermagem que se engajaram tanto no processo de intervenção quanto na investigação e significação da prática. O método considera o empírico, a partir de uma demanda previamente identificada, no sentido de possibilitar intervenções capazes de favorecer a emancipação social de mulheres trabalhadoras de uma Associação de Materiais Recicláveis(¹⁶). Consideraram-se, no processo de construção do estudo, os critérios do Consolidated Criteria for Reporting Qualitative Research (COREQ)(¹⁷).

Cenário

O processo de intervenção teve como cenário uma ação ­alusiva ao Dia das Mães, sendo que ocorreu em período ­pandêmico, com a participação de mulheres de uma Associação de Materiais Recicláveis, localizada no Sul do Brasil. Essa Associação, composta majoritariamente por trabalhadoras mulheres, existe desde o ano de 2009 e oportuniza trabalho e renda para cerca de 30 famílias que dependem unicamente dessa fonte de renda. A média de filhos, por família, varia entre quatro e oito. A rotina diária de trabalho é de oito horas e a receita mensal individual varia, atualmente, entre 300 e 500 reais, ­acrescida, esporadicamente, de doações voluntárias. Essa ­instituição foi escolhida por ser cenário de uma pesquisa-ação ampliada com foco no empreendedorismo social da Enfermagem da autora principal e, principalmente, pelo desejo da liderança local que, em período pandêmico, intentava proporcionar um evento surpresa para as trabalhadoras dessa Associação, por ocasião do Dia das Mães.

População

Participaram do processo de intervenção as 28 mulheres que trabalham na referida Associação de Materiais Recicláveis e, do processo de significação das intervenções, 16 mulheres, quatro alunos da graduação e dois alunos da pós-graduação de Enfermagem. Consideraram-se os seguintes critérios de inclusão: mulheres com mais de dois anos de atuação na Associação e alunos da graduação e da pós-graduação de Enfermagem que previamente haviam participado das intervenções na Associação. Excluíram-se do estudo as mulheres e os ­alunos que não compareceram às entrevistas nos dias e horários previamente agendados.

Intervenções na Associação de Materiais Recicláveis

No início da pesquisa-ação, foram contempladas intervenções no local de trabalho das 28 mulheres da Associação, realizadas entre fevereiro e julho de 2021. Dentre as intervenções demandadas, a partir de levantamento prévio e realizadas na modalidade presencial, figuraram as seguintes ações: oficinas educativas semanais de promoção da saúde, atividades relacionadas à prevenção de riscos no trabalho, cuidados básicos de combate ao novo coronavírus Covid-19 e outras.

Neste estudo, no entanto, serão abordados e discutidos ­significados de intervenções relativas à homenagem do Dia das Mães, realizada em maio de 2021, em plena vigência da ­pandemia da Covid-19. A homenagem surpresa alusiva ao Dia das Mães, dinamizada por pesquisadores e alunos da graduação e pós-graduação de Enfermagem, foi realizada com o consentimento da liderança local, na modalidade presencial reinventada, respeitados os protocolos de contingenciamento social. Com duração de duas horas, essa homenagem consistiu em telemensagens, ao vivo, ar livre e com repercussão na comunidade local, na entrega de rosas, uma carta nominal, um almoço marmitex especial e um presente personalizado (kit proteção Covid-19) a cada uma das mulheres/Mães. A carta nominal continha as principais qualidades e habilidades de cada mulher/Mãe.

Coleta de Dados

Conduziu-se, após a sistematização das atividades no cenário, o processo investigativo de significação da ­intervenção por meio de entrevistas individuais com as 16 mulheres e os seis alunos da graduação e pós-graduação de Enfermagem antecipadamente selecionados e contatados. As entrevistas foram realizadas em dias e horários previamente agendados com os participantes e guiadas com base em uma questão norteadora, desenvolvida em profundidade, qual seja: Fale-me sobre o significado da homenagem alusiva ao Dia das Mães. O que este momento significou para você?

Análise dos Dados

Adotou-se a Análise Temática do tipo Reflexive, a qual possibilitou o registro sistemático de ideias e insights, além de facultar uma codificação fluida e flexível dos significados ­investigados. Buscou-se, nesse percurso, não apenas alcançar acurácia, mas a imersão aprofundada nos dados. Seguiram-se, para tanto, as seis fases da Análise Temática: Familiarização a partir de leituras repetidas dos dados e uma lista rascunhada de ideias; Geração de códigos iniciais, manualmente, pela sistematização de extratos relevantes; Busca de temas a partir da classificação dos diferentes códigos; Refinamento dos temas a partir da validação das temáticas iniciais; Nomeação dos temas a partir da essência que cada tema retrata em seu conjunto de códigos; e a Produção do relatório que ofereceu uma descrição reflexiva do vivido(¹⁸).

Aspectos Éticos

Em todo o processo de pesquisa-ação, foram observadas as recomendações da Resolução n° 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde(¹⁹), bem como as recomendações do Ofício Curricular n° 2 de 2021 relativo às pesquisas em tempos de pandemia(²⁰). O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética sob o parecer: 4.253.910/2020. Após o aceite dos participantes, foi assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. Para manter o anonimato, as falas dos participantes foram identificadas, ao longo do texto, com as letras “M” de Mãe e “A” de aluno, seguidas de um algarismo, correspondente à ordem das falas: M1, M2... M16; AG1, AG2...A4; AP1 e AP2.

RESULTADOS

Os dados organizados e analisados resultaram em duas categorias temáticas: Do aparente isolamento à ­reinvenção ­profissional e Da invisibilidade à dignidade e à sensação de igualdade social. Deseja-se, no entanto, para além da descrição linear das temáticas de significação, dar voz a sentimentos, vivências e expressões manifestas e/ou não pelos participantes, considerado o processo interativo da pesquisa-ação.

Do Aparente Isolamento à Reinvenção Profissional

Enquanto vários serviços foram fechados e/ou funcionaram parcialmente sob o resguardo de protocolos regidos de contingenciamento social, as trabalhadoras de serviços de reciclagem não tiveram a mesma sorte. Para manterem a sobrevivência de suas famílias, era preciso que trabalhassem, e em condições ainda mais insalubres e desgastantes, pelo fato de não ­reconhecerem, ao certo, a forma de proliferação do vírus da Covid-19, a procedência e as condições do material recebido, dentre outros agravos, incertezas e prerrogativas. O que esperar no Dia das Mães, momento em que os questionamentos afloravam à pele e as incertezas paralisavam expectativas, metas e sonhos?

Foi em meio a todos esses questionamentos e ­incertezas que pesquisadores, em diálogo com a liderança local, se perguntaram: como comemorar o Dia das Mães das mulheres trabalhadoras da Associação de Materiais Recicláveis? O que proporcionar a essas Mães, geralmente, tão invisíveis aos olhos da sociedade e ainda mais invisíveis face os rigorosos protocolos de distanciamento social? Até então, só se tinha uma única certeza: o Dia das Mães não passaria em branco. Porém, como reinventá-lo, visto que em anos anteriores esse dia sempre havia sido marcado de forma expressiva e em âmbito universitário? Como conseguir a adesão dos tradicionais parceiros e colaboradores, como os institutos de maquiagem, churrascarias e empresas de transporte?

Nesse contexto de reflexões e alinhamentos, irrompeu-se a ideia da “telemensagem” ao vivo e ao ar livre, em dia e horário surpresa para as integrantes da associação. Esse momento, no entanto, não se reduziu à mensagem, que por si só teve um significado especial, mas mobilizou a vizinhança e a comunidade local. Em poucos minutos, inúmeras Mães da comunidade haviam se agregado às mulheres da Associação para reforçar a relevância do trabalho que prestam à comunidade. O sentimento de cada uma das Mães ficou estampado no olhar, na expressão do rosto, nos gestos e atitudes, como se eclodisse uma voz interior: “eu nunca imaginei que seria lembrada neste ano”. A telemensagem ao ar livre e com repercussão local tornou-as mais especiais e distintas na comunidade, tomando uma dimensão ainda maior que a das edições anteriores à pandemia, ao verbalizarem que “esta foi a homenagem mais linda que já recebemos”.

A sentença marcante e de significado indescritível foi: “Eu nunca pensei que fosse lembrada neste Dia das Mães”. A frase foi expressa pela quase totalidade das mulheres/Mães da Associação e, nesse contexto, transcende palavras e compreensões lineares. O fato de terem sido lembradas como Mães, face à pandemia da Covid-19, as empoderou como mulheres e trabalhadoras, além de relevá-las a um status de dignidade pessoal, profissional e social.

Eu nunca pensei que fosse lembrada neste Dia das Mães. (M1, M2, M3, M5, M6, M9, M11, M13)

Assim como esse dia ficou registrado como “especial, não estamos sozinhas” para as Mães homenageadas, também foi marcante para os alunos da graduação e pós-graduação de Enfermagem que compartilharam dessa reinvenção e que, mesmo sem abraços, mas aquecidos pelo amor, o carinho e a ternura, se sentiram acolhidos e confortados em período de distanciamento social. Na fala de duas alunas, essa reinvenção e o sentimento de solidariedade ficarão registrados para sempre na memória, conforme segue:

Cada dia que passa, tenho mais convicção de que estou no caminho certo: estar com alguém que prioriza a humildade das pessoas. É isto que eu quero para minha profissão de enfermagem. Não tenho palavras para expressar o que sinto, principalmente depois de tudo o que eu ouvi destas mães. Este sentimento me deixou mais forte. (AG2)

Me faltam palavras para descrever os inúmeros sentimentos que passaram no meu coração. Só quero agradecer por ter compartilhado destes momentos, assim como ter feito a diferença na vida destas mães. Aprendi muito e sinto que posso contribuir muito mais. (AP1)

Tanto as Mães quanto os integrantes do projeto perceberam e vivenciaram a sinergia do momento que, para além de uma homenagem, significou presença, acolhimento, empatia, ­solidariedade, ou seja, a expressão do cuidado de Enfermagem em seu verdadeiro sentido empreendedor. Na troca solidária e colaborativa de saberes e práticas, todos se fortaleceram, ­cresceram, aprenderam, tornando, assim, o isolamento social mais tolerável e menos dolorido.

Da Invisibilidade à Dignidade e à Sensação de Igualdade Social

Denotou-se, na fala das Mães, que o empreendedorismo social da Enfermagem não se reduz em “fazer coisas” ou em simplesmente promover inovações. Muito além de “fazer coisas” ou promover mudanças, elas desejam ser ouvidas, acolhidas e respeitadas em sua singularidade e dignidade. Observou-se, nessa direção, que era preciso rapidamente descontruir saberes e práticas assistencialistas para alcançar o verdadeiro sentido da “reinvenção profissional”, de modo que as intervenções tivessem significado para as Mães e também para os alunos envolvidos.

O enunciado que perpassou sentimentos, expressões e longas discussões foi “pela primeira vez, eu recebo rosas no Dia das Mães”. Essa fala foi expressa por uma das Mães e compartilhada por várias outras, por diversas vezes, de modo que esse enunciado recorrentemente voltou à luz de reflexões teórico-práticas dos integrantes do projeto. Ganhar “rosas” para essas Mães não se reduziu a receber um presente ou donativo, mas se traduziu em significado de existência, de dignidade, de respeito e, sobretudo, em sensação de igualdade às Mães de outras classes sociais, para as quais receber rosas se configura em gesto normal/natural. Receber “rosas” para as Mães da associação, em especial, se conformou e confirmou em ter uma identidade, um nome, um valor de igualdade perante a sociedade.

A força da expressão “pela primeira vez, eu recebo rosas no Dia das Mães” reflete, no sentimento das Mães, ao mesmo tempo, um processo de exclusão social. Se, na normalidade, a maioria das mulheres da sociedade recebe rosas de seus filhos por ocasião do Dia das Mães, as mulheres/Mães da associação são privadas desse gesto simples e humano, frequentemente, pela falta de condições financeiras ou pela impossibilidade de estarem próximas de seus filhos. Esse sentimento de resgate da identidade e dignidade de ser Mãe fica expresso no ­depoimento seguinte:

A gente nem esperava nada ou que seria algo simples, só uma lembrancinha por causa da pandemia, mas no fim foi tudo lindo, emocionante. Me senti mãe. Coisa boa a gente poder receber rosas, receber um carinho. Quando eu via na televisão outras mães receberem rosas, eu sempre me perguntava: ‘por que elas e eu não’? Mas, hoje eu percebi que eu também sou especial. Sabemos que todas as coisas foram escolhidas com muito amor. (M14)

No relato de outras Mães, ficou notório o significado dessa manifestação de reconhecimento e empatia em tempos de isolamento social. O principal sentimento, sob esse enfoque, é não estar sozinha e ter com quem partilhar suas dores, angústias, medos, incertezas e conquistas, conforme expresso no relato a seguir:

Precisamos trabalhar para ter o que comer. Não temos escolha. Estamos com medo, estamos, mas somos fortes, lutamos, nos cuidamos e nos animamos mutuamente. A homenagem de hoje nos trouxe energia, ânimo, força e coragem. Sentimos que não estamos sozinhas e esquecidas. Temos pessoas que nos amam, nos valorizam e que se interessam por nós. Obrigada pela linda homenagem, pelo carinho e pelos presentes. (M5)

Esses movimentos de interação científico-social não engrandecem apenas os beneficiários e/ou receptores de homenagens, mas enobrecem, sobretudo, os envolvidos no processo de (re)criação e dinamização, como no caso os alunos da graduação e da pós-graduação. Houve, nesse processo, verdadeira troca de energias, alegrias, emoções e aprendizados teórico-práticos, conforme expresso em dois depoimentos a seguir:

Esses momentos engrandecem o coração. A importância do trabalho dessas mulheres nos faz refletir que, com pequenos gestos e atitudes, é possível transformar nossa comunidade em um lugar melhor. O amor delas transcende os desafios do distanciamento social e aquece os nossos corações. (AG4)

Gratidão é o sentimento que sinto por ter participado da homenagem do Dia das Mães dessas mulheres incríveis e batalhadoras. Gratidão por ter conhecido cada uma delas e por aprender a cada dia com elas, por ter a oportunidade de compartilhar conhecimento e vê-las tão alegres e emocionadas. Foi de extrema importância para mim, como acadêmica, realizar esta ação, sentir a alegria e a emoção em cada mãe. (AP2)

A sensação de igualdade social, com base no expresso pelas Mães da Associação, não está unicamente relacionada ao ­status profissional, a um salário compatível ou a um cargo renomado. Para as Mães dessa Associação, serem vistas, lembradas e agraciadas, quando nada ou pouco esperavam, teve um ­sentido de vida, sobrevivência, sustentabilidade e de eternidade. Na mesma dimensão, poder proporcionar um momento ­solidário e singular às Mães, por parte dos envolvidos nas intervenções, denotou um significado de distinção e a sensação de estarem contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária.

DISCUSSÃO

Ao discutir o empreendedorismo social da Enfermagem em período pandêmico, as primeiras questões que vêm à mente são as seguintes: Como pensar em empreendedorismo social face à grave crise que assola a saúde global? Como pensar em empreendedorismo social diante de estimativas que sinalizam que o número de pobres saltou de 9,5 milhões para mais de 27 milhões em fevereiro de 2021, produzindo cenários de ­instabilidade na vida das pessoas? Que novas habilidades e ­competências profissionais precisam ser desenvolvidas e assumidas pela Enfermagem? Como desenvolver uma cultura ­empreendedora na Enfermagem/saúde, a fim de romper com modelos assistencialistas e contribuir para o desenvolvimento saudável e sustentável?

Toda a crise sinaliza oportunidades e induz inovações e reinvenções. Em um cenário de incerteza e caos, como o da pandemia do novo coronavírus, a curiosidade e a capacidade de conexão prospectiva em busca de soluções ágeis e colegiadas se fortaleceram e ampliaram. É preciso, sob esse enfoque, que o Enfermeiro(a) esteja apto e disposto a perscrutar oportunidades onde aparentemente emergem lamentos, desordens e paralizações. A pandemia, mais que em outros tempos, mobilizou a zona de conforto e possibilitou reinvenções profissionais. É preciso gradativamente, para tanto, prospectar processos colegiados e interprofissionais, de modo a ampliar alianças e fortalecer habilidades, como a resiliência, a paciência, a tolerância, a inovação e a capacidade de escuta empática(¹⁴).

Encontramo-nos, portanto, face a um período pandêmico tecido, simultaneamente, de ordem, de desordem e de (re)organização, além de alternâncias entre certezas e incertezas(¹⁵). Assim, como em todos os setores da sociedade, também na Enfermagem as reinvenções foram incessantes e prospectivas, talvez, como nunca antes. A Enfermagem reinventou-se em âmbito de ensino, de pesquisa, nos hospitais, nas clínicas, nas unidades básicas de saúde, nos domicílios, ou seja, nos mais diferentes espaços e áreas de atuação profissional(²¹). Porém, como tem sido essa reinvenção nas atividades comunitárias? Quais são as rupturas e os avanços em termos do empreendedorismo social da Enfermagem?

Ao mencionarem que “a homenagem de hoje nos trouxe energia, ânimo, força e coragem. Sentimos que não estamos ­sozinhas e esquecidas. Temos pessoas que nos amam, nos valorizam e que se interessam por nós”, fala-se de quais profissionais e de qual cuidado? Imediatamente, nos vem à mente que o cuidado de Enfermagem transcende espaços e fronteiras geográficas, sociais, culturais e linguísticas. Será que a campanha Nursing Now conseguiu demonstrar e alavancar o verdadeiro sentido do cuidado de Enfermagem em sua dimensão comunitária e social? O que pode e deve ser diferente à luz do empreendedorismo social?

O cuidado empreendedor de Enfermagem traduz-se, nessa direção, pelo olhar atento e sensível, na capacidade de perceber e fazer o diferente, na habilidade de reinventar retóricas, discursos e processos. Enfim, está na atitude de sair do lugar comum, da normalidade, e de correr o risco, eventualmente, da exposição a “aglomerações” frente aos protocolos rígidos de isolamento social. Sob esse enfoque (re)criado, o cuidado de Enfermagem só pode ser compreendido à luz do pensamento da complexidade, isto é, como fenômeno complexo, sistematizado pelas múltiplas relações, interações e associações sistêmicas, no sentido de alcançar a promoção do cuidado de forma integral e articulada com tudo que o cerca(⁹,¹⁴).

A força da expressão “pela primeira vez, eu recebo rosas no Dia das Mães” denota, de um lado, ações e atitudes verticalizadas que se resumem em dar o que se tem de sobra e, de outro, a expectativa, geralmente frustrada, de pessoas de classes menos favorecidas, usada para fins utilitaristas. O empreendedorismo social, com base nessas evidências, demostra que é preciso ir além de intervenções assistencialistas do dar, do intervir a qualquer custo ou do editar normas e receitas para os outros. Corroborando esse pensamento, estudos evidenciam que o empreendedorismo social se relaciona à coexistência humana, com o propósito de possibilitar uma identidade social, a partir de um processo permanente de metamorfose e um sentido de existência e história como realização de um porvir com os outros e entre os outros seres humanos(²²–²⁴).

Além de fortalecer a liderança prospectiva e empreendedora, é fundamental que a Enfermagem amplie a sua influência social e a disseminação de seus saberes e práticas comunitárias(¹¹–¹²). Nesse contexto, as contribuições deste estudo para o avanço técnico-científico da Enfermagem estão relacionadas à percepção de que o Enfermeiro é um profissional dinâmico, ágil e flexível à reinvenção. Demostra-se que, em suma, a partir da experiência das irrupções afloradas no período de pandemia da Covid-19, a Enfermagem necessita estar apta e disposta, assim como os demais profissionais da saúde, a descortinar as oportunidades sob novas lentes e contribuir, de forma proativa e prospectiva, para o alcance dos Objetivos do Desenvolvimento Sustentável(²⁵) em âmbito local e global.

Consideram-se, como limitação deste estudo, os aspectos restritivos de tempo e espaço, além da participação limitada de alunos e pessoas próximas das mulheres/Mães trabalhadoras da associação por ocasião da intervenção alusiva ao Dia das Mães. Outra limitação está associada à vigilância constante dos protocolos de contingenciamento social para que não houvesse casos de contaminação do novo coronavírus.

CONCLUSÃO

As intervenções realizadas em uma Associação de Materiais Recicláveis em período pandêmico para as mulheres trabalhadoras, quando pouco ou nada esperavam, tiveram sentido de vida, sobrevivência, dignidade e empoderamento. Além disso, para os alunos da graduação e da pós-graduação de Enfermagem, significou a possibilidade da reinvenção criativa, ousada e transformadora.

Evidenciou-se que a sensação de igualdade social não está unicamente relacionada ao status profissional, a um ­salário ­compatível ou a um cargo renomado. Para as Mães da Associação serem vistas, lembradas e agraciadas, constituiu-se em força propulsora e emancipadora. Na mesma dimensão, poder ­proporcionar um momento solidário e singular às Mães, por parte dos alunos da graduação e da pós-graduação de Enfermagem, denotou um significado de distinção e a sensação de estarem contribuindo para uma sociedade mais justa e igualitária.

Sugere-se, com base nos resultados deste estudo, a ­realização de novas investigações teórico-práticas sobre a temática ­apresentada, a fim de ampliar e fortalecer a cultura empreendedora do Enfermeiro em âmbito comunitário e social. É fundamental que, para além do período pandêmico, prevaleçam os movimentos de reinvenção profissional e a capacidade de vislumbrar possibilidades inéditas onde grande parte da ­sociedade só vê problemas.

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Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  21 Fev 2022
• Data do Fascículo
  2022

Histórico

• Recebido
  07 Out 2021
• Aceito
  17 Jan 2022