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Elementos do paradigma sociocrítico nas práticas do cuidado de enfermagem: revisão integrativa

Elementos del paradigma sociocrítico en las prácticas del cuidado de enfermería: revisión integrativa

RESUMO

Objetivo:

Analisar as evidências disponíveis nas teses brasileiras sobre os elementos do paradigma sociocrítico na construção do conhecimento e das práticas do cuidado de enfermagem.

Método:

Revisão integrativa de literatura realizada no Banco de Teses da Coordenadoria de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações.

Resultados:

De um montante de 320 teses, somente 19 apresentaram elementos do paradigma sociocrítico em sua construção, dentre os quais se destacaram o emprego de investigações participativas (principalmente pesquisa-ação), que apresentam interação entre pesquisador e participantes; o uso de técnicas de coleta de dados como grupos focais e círculos de cultura; e referenciais teóricos que permitem analisar os fenômenos em sua complexidade.

Conclusão:

O suporte do paradigma sociocrítico atribui à enfermagem o caráter de uma ciência prática e a serviço da comunidade, comprometida com a transformação social a partir do empoderamento das pessoas.

DESCRITORES
Enfermagem; Pesquisa; Conhecimentos, Atitudes e Prática em Saúde; Medidas, Métodos e Teorias; Revisão

RESUMEN

Objetivo:

Analizar las evidencias disponibles en las tesis brasileñas acerca de los elementos del paradigma socio-crítico en la construcción del conocimiento y las prácticas del cuidado de enfermería.

Método:

Revisión integrativa de literatura realizada en el Banco de Tesis de la Coordinación de Perfeccionamiento de Personal de Nivel Superior y la Biblioteca Digital Brasileña de Tesis.

Resultados:

De un monto de 320 tesis, solo 19 presentaron elementos del paradigma socio-crítico en su construcción, entre los que se destacaron el empleo de investigaciones participativas (especialmente investigación-acción), que presentan interacción entre investigador y participantes; el empleo de técnicas de recolección de datos como grupos focales y círculos de cultura; y marcos de referencia teóricos que permiten analizar los fenómenos en su complejidad.

Conclusión:

El soporte del paradigma socio-crítico atribuye a la enfermería el carácter de una ciencia práctica y a servicio de la comunidad, comprometida con la transformación social mediante el empoderamiento de las personas.

DESCRIPTORES
Enfermería; Investigación; Conocimientos, Actitudes y Práctica en Salud; Mediciones, Métodos y Teorías; Revisión

ABSTRACT

Objective:

Analyze the evidence available in Brazilian theses on the elements of the socio-critical paradigm in the construction of knowledge and practices of nursing care.

Method:

An integrative literature review was carried out in the Theses Database of the Coordination for the Improvement of Higher Education Personnel and the Brazilian Digital Library of Theses and Dissertations.

Results:

Of a total of 320 theses, only 19 had elements of the socio-critical paradigm in their construction, among which the use of participatory investigations stand out (especially action-research), which present interaction between the researcher and the participants, the use of data collection techniques such as focus groups and culture circles, and theoretical frameworks for analyzing the phenomena in their complexity.

Conclusion:

The support of the sociocritical paradigm attributes to nursing the character of a practical science and service to the community, being committed to social transformation by empowering people.

DESCRIPTORS
Nursing; Research; Health Knowledge, Attitudes, Practice; Measurements, Methods and Theories; Review

INTRODUÇÃO

A raiz das concepções sobre os conhecimentos, as atitudes e a prática em saúde é influenciada por valores, pressupostos e crenças construídas socialmente. A Enfermagem, que possui um curto período de tempo como disciplina, está muito ligada a seu fazer, carecendo de um espírito questionador e de uma definição paradigmática(11. Pires DA. Enfermagem enquanto disciplina, profissão e trabalho. Rev Bras Enferm [Internet]. 2009 [citado 2016 maio 25];62(5):739-44. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v62n5/15.pdf.
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).

Pesquisadores(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.

3. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.

4. Weaver K, Olson JK. Understanding paradigms used for nursing research. J Adv Nurs. 2006;53(4):459-69.

5. Kagan PN, Smith MC, Cowling III WR, Chinn PL. A nursing manifesto: an emancipatory call for knowledge development, conscience, and praxis. Nurs Philos. 2010;1 1(1):67-84.
-66. Chinn PL, Falk-Rafael A. Peace and power: a theory of emancipatory group process. J Nurs Scholarsh. 2015;47(1):62-9.) defendem a importância de pensarmos a enfermagem enquanto ciência. Para isso, é fundamental que esta se organize em torno de um paradigma, ou seja, um guia para os pesquisadores observarem e analisarem o seu objeto de estudo. O paradigma fornece o suporte para a realização de investigações, orientando a perspectiva ontológica, epistemológica e metodológica dos fenômenos investigados. A partir disso, se compreende que um paradigma não é comparável a outro. Pesquisadores podem ignorar as diferenças e combinar paradigmas de forma inadequada, resultando em inconsistência teórico-metodológica(44. Weaver K, Olson JK. Understanding paradigms used for nursing research. J Adv Nurs. 2006;53(4):459-69.). No campo da enfermagem ainda não há paradigmas aceitos de forma majoritária, o que nos leva a considerar que esta disciplina se encontra em uma fase pré-paradigmática. Neste ponto, reside a dificuldade da enfermagem em reconhecer-se como ciência, em razão de seu incipiente desenvolvimento epistemológico, necessário para a delimitação de seu objeto(77. Siles JG, Ruiz MCS. Antropología educativa de los cuidados: una etnografia del aula y las prácticas clínicas. Alicante: Marfil; 2009.).

Estudos europeus(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.) e norte-americanos(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.,55. Kagan PN, Smith MC, Cowling III WR, Chinn PL. A nursing manifesto: an emancipatory call for knowledge development, conscience, and praxis. Nurs Philos. 2010;1 1(1):67-84.-66. Chinn PL, Falk-Rafael A. Peace and power: a theory of emancipatory group process. J Nurs Scholarsh. 2015;47(1):62-9.,88. Kagan P, Smith M, Chinn P. Philosophies and practices of emancipatory nursing: social justice as praxis. London: Routledge; 2014.) apontam que o paradigma racional tecnológico/particular-determinista é predominante no saber e no fazer em enfermagem nesses contextos. No Brasil, temos uma caminhada recente na construção do conhecimento de enfermagem, com a criação do primeiro programa de doutorado em Enfermagem em 1982 pela Universidade de São Paulo. Nesse sentido, consideramos oportuno realizar um panorama das teses publicadas pela enfermagem brasileira, a fim de clarificar a base dos conhecimentos e das práticas de enfermagem e seus impactos sobre a práxis profissional enquanto relação sujeito-pesquisador.

Concordamos com o raciocínio de alguns autores(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.-33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.), que esclarecem a caminhada da enfermagem na construção de seu conhecimento. Embora utilizando denominações diferentes, esses autores revelam, de forma similar, a presença de três paradigmas na trajetória da enfermagem: paradigma “particular-determinista”(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.)/”racional tecnológico”(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.), paradigma “interativo-integrativo”(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.)/”hermenêutico-interpretativo”(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.) e paradigma “unitário-transformativo”(22. Newman MA, Sime AM, Corcoran-Perry SA. The focus of the discipline of nursing. ANS Adv Nurs Sci. 1991;14(1):1-6.)/”sociocrítico”(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.). Neste artigo, utilizaremos a nomenclatura de um destes pesquisadores(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.), que avança ao acrescentar ao terceiro paradigma um elemento prático, que significa exercitar a práxis no processo investigativo, ou seja, a produção de um conhecimento emancipatório de enfermagem.

Paradigma Racional Tecnológico: no terreno da enfermagem destacam-se algumas características deste paradigma: o enfermeiro/investigador constitui-se como um aplicador de técnicas, permanecendo alheio e superior ao sujeito da pesquisa, a teoria gerada direciona a ação separada da práxis; o indivíduo é objeto de controle e receptor passivo de prescrições terapêuticas; o conceito de saúde é “vazio/negativo”, uma vez que esta é concebida como a ausência de doenças ou agravos(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.).

Paradigma Hermenêutico/Interpretativo: o processo de investigação a partir deste paradigma é entendido como um intervalo subjetivo *tanto por parte do sujeito investigador como do objeto-sujeito pesquisado. O enfermeiro atua como agente comunicador e interpretador da realidade do investigado. O indivíduo caracteriza-se como um agente comunicador de seu estado e de suas expectativas de saúde(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.).

Paradigma Sociocrítico: o paradigma sociocrítico é caracterizado pela natureza dialético-crítica da construção do conhecimento e pelo papel da ideologia no processo científico. Além da interpretação de realidades dos sujeitos (característica do paradigma hermenêutico), o paradigma sociocrítico possui um componente ativo, no qual a prática é crítica e colaborativa(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.).

A construção do paradigma sociocrítico deriva principalmente da teoria crítica, especificamente dos conceitos de pensamento crítico, racionalidade comunicativa e ação comunicativa(99. Habermas J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes; 2012.). Também se observa a influência de outro autor(1010. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.), o qual defende a práxis emancipatória como uma ferramenta de transformação. No contexto da enfermagem, a práxis é o momento em que o cidadão pensa criticamente sobre sua realidade de vida e saúde, e age para modificar posições ingênuas/acríticas. Esse processo sustenta a liberdade do ser humano para escolher seu modo de viver.

Visualizamos o potencial do paradigma sociocrítico em fortalecer nos cidadãos a capacidade de enxergar contradições no sistema de saúde (por exemplo, a posição ingênua de seguir acriticamente um plano de cuidados) e agir criticamente (transitar para uma posição crítica e ativa, na qual se tornam conscientes e construtores de sua história/escolhas).

Este estudo parte do pressuposto de que a adoção do paradigma sociocrítico pela enfermagem brasileira tem o potencial de transformar os conhecimentos, as atitudes e a prática em saúde, pois a comunicação e o pensamento crítico - pilares deste paradigma - redirecionam o ensino, a pesquisa e a assistência para uma compreensão global e dialética das situações. Este caminho torna possível identificar desigualdades sociais que interferem na realidade de saúde das comunidades e transformar estas situações por meio do diálogo entre o contexto profissional e a vida cotidiana das pessoas.

Com base nessas considerações, o objetivo deste estudo é analisar as evidências disponíveis nas teses brasileiras sobre os elementos do paradigma sociocrítico na construção do conhecimento e práticas do cuidado de enfermagem.

MÉTODO

A revisão integrativa foi eleita como método para alcançar o objetivo do estudo, pois corresponde a uma estratégia metodológica ampla que permite a busca, a avaliação crítica e a síntese de evidências relevantes(1111. Whittemore R, Knafl K. The integrative review: update methodology. J Adv Nurs. 2005;52(5):546-53.) sobre a construção do conhecimento em enfermagem. Entendemos que o objetivo de uma tese é gerar conhecimento novo em relação às concepções paradigmáticas. O Brasil tem uma massa de teses e essa análise paradigmática ainda não foi realizada. Por isso, consideramos oportuno e original realizar este estudo em nível nacional.

Esta revisão foi desenvolvida em seis etapas(1212. Mendes KDS, Silveira RCCP, Galvão CM. Revisão integrativa: método de pesquisa para a incorporação de evidências na saúde e na enfermagem. Texto Contexto Enferm [Internet]. 2008 [citado 2016 maio 25];1 7(4):758-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/tce/v17n4/18.pdf.
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). A primeira foi a identificação do tema e a seleção da questão de pesquisa: Quais são os elementos do paradigma sociocrítico na construção do conhecimento sobre as práticas do cuidar em enfermagem? Na segunda etapa, se estabeleceram critérios para inclusão e exclusão de estudos. Foram considerados critérios de inclusão: teses disponíveis no Banco de Teses da Coordenação de Aperfeiçoamento Pessoal de Nível Superior (BTC/CAPES) e na Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações do Instituto Brasileiro de Informação em Ciência e Tecnologia (BDTD/IBICT), que fossem produzidas em Programas de Pós-Graduação de Enfermagem, que abordassem práticas do cuidar em enfermagem e que apresentassem elementos do paradigma sociocrítico em sua construção. Os critérios de exclusão foram: teses que apresentassem elementos do paradigma racional tecnológico ou do paradigma hermenêutico, teses repetidas e não disponíveis na íntegra. Não foi estabelecido recorte temporal para a seleção das teses, pois o intuito foi abranger o máximo de evidências da produção do conhecimento sobre os elementos do paradigma sociocrítico na construção do conhecimento e das práticas do cuidado de enfermagem brasileira.

A busca e a análise das produções foram realizadas no período de maio a julho de 2016, no BTC/CAPES e na BDTD/IBICT, nos quais se selecionaram somente teses. Utilizou-se dos descritores: “Conhecimentos, atitudes e prática em saúde” e “Enfermagem”, segundo os Descritores em Ciências da Saúde (DeCS). No banco de teses CAPES utilizou-se da Busca Avançada e das opções “Todos os campos” e “contém”. Na BDTD, também se utilizou da Busca Avançada e das opções “Todos os Campos” e “Todos os Termos” (Figura 1).

Figura 1
Fluxograma da seleção das teses para a revisão integrativa - Brasil, 2016.

No BTC foram utilizados os seguintes refinamentos: Area do conhecimento “Enfermagem” e nível do Curso “Doutorado”, resultando em 300 teses. Na BDTD, foi refinado pelo Grau “Tese”, e Assunto “Enfermagem”, resultando em 21 teses, totalizando 321 teses. Uma tese repetiu-se nos bancos, sendo excluída, restando 320 teses. Para este processo de seleção, foram utilizadas as recomendações do Preferred Reporting Items for Systematic reviews and Meta-Analyses (PRISMA).

As 320 teses foram analisadas a partir da leitura dos títulos, resumos e, se necessário, dos textos completos, a fim de classificá-los de acordo com os três paradigmas da enfermagem(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.): Racional Tecnológico, Hermenêutico/Interpretativo e Sociocrítico.

Alguns elementos dos paradigmas foram evidenciados nas investigações por meio de características como objetivo do estudo, metodologia e referencial teórico. No paradigma racional tecnológico, o processo investigativo possui como elementos o uso de técnicas de quantificação, com a finalidade de construir um conhecimento pautado na objetividade, verificação, replicabilidade e construção de normas e leis(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.). No paradigma interpretativo/hermenêutico, o conhecimento construído tem suporte em disciplinas como sociologia, hermenêutica, fenomenologia e antropologia. Os estudos têm o propósito de interpretar a realidade, a exemplo da pesquisa etnográfica e dos estudos de significados em seus contextos. Essas investigações possuem como elementos o uso de métodos e técnicas fenomenológicas, narrativas, material bibliográfico e autobiográfico, observação, notas de campo, diários, relatos, entre outros. As pesquisas que se fundamentam no paradigma sociocrítico são construídas por meio de investigações participativas, nas quais o enfermeiro/pesquisador desperta no sujeito a capacidade de pensar criticamente a partir de sua experiência de vida. Por isso, as pesquisas utilizam referenciais críticos, metodologias participativas (a exemplo da pesquisa-ação) e métodos interativos, como grupos focais e oficinas(77. Siles JG, Ruiz MCS. Antropología educativa de los cuidados: una etnografia del aula y las prácticas clínicas. Alicante: Marfil; 2009.).

A partir da análise metodológica, dos objetivos e do referencial teórico das pesquisas, foram excluídas 301 teses, das quais 160 (50%) foram amparadas por métodos quantitativos, de caráter descritivo, longitudinal, ecológico, estudo de caso, quase experimental, experimental, observacional, transversal, comparativo, de intervenção, com instrumentos baseados em questionários fechados, avaliação de escalas, pré-teste e pós-teste (elementos do paradigma racional tecnológico). Outras 141 teses (44%) foram excluídas por apresentarem elementos do paradigma hermenêutico, pois buscaram compreender o fenômeno estudado sem interagir ativamente com o sujeito pesquisado. Estas utilizaram como instrumentos de coleta de dados entrevistas semiestruturadas, observação simples, entrevistas narrativas, entrevistas em profundidade, entrevistas abertas, história oral, foto-imagem, busca documental e diário de campo. Tais teses foram majoritariamente exploratórias e descritivas, estudos de caso e etnografias.

Na terceira etapa, foi realizada a leitura dos textos na íntegra das 19 teses (6%) que se fundamentaram no paradigma sociocrítico, as quais foram organizadas em um instrumento, contendo: título, objetivo, metodologia e referencial teórico. A quarta etapa se caracterizou pelo preenchimento e avaliação do instrumento com os dados das publicações selecionadas, realizados por três pesquisadoras. A quinta etapa consistiu na discussão e interpretação dos resultados obtidos, seguida da sexta etapa, com a apresentação das evidências encontradas.

RESULTADOS

Após a realização da pesquisa nas bases de dados, 19 teses foram avaliadas, por empregarem elementos do paradigma sociocrítico. Com isso, identificou-se que a maioria das publicações é do ano de 2011 (53%), seguido do ano de 2012 (37%), 2006 (5%) e 2007 (5%). A concentração de teses nos anos de 2011 e 2012 pode ser explicada pela sua disponibilidade no Banco de Teses da CAPES, o qual gerou publicações apenas nestes dois anos (Figura 2).

Figura 2
Caracterização das teses quanto ao ano de publicação e instituição de ensino - Brasil (2006-2012).

Dentre as Universidades brasileiras com curso de Doutorado, o maior número de publicações disponíveis é gerado pela Universidade de São Paulo (USP) (52,6%) e pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) (21,1%), seguidas da Universidade Federal do Ceará (UFC) e Universidade Federal de Santa Catarina (cada uma com 10,5%), e, posteriormente, pela Universidade Federal do Rio Grande (5,3%).

Todas as teses guiadas pelo paradigma sociocrítico foram construídas por estudos qualitativos, com o emprego de investigações participativas, nas quais se evidenciou preocupação com a integração dos participantes na construção do conhecimento. Do total de estudos, 48% foram pesquisa-ação, 21% foram denominados apenas como pesquisa qualitativa, 11% foram pesquisa-intervenção e pesquisa-interação, pesquisa convergente assistencial e estudo de caso representam, cada um, 5% das teses (Figura 3).

Figura 3
Distribuição das publicações de acordo com o tipo de pesquisa - Brasil, 2006-2012.

Como técnicas de coleta de dados, estas teses utilizaram grupos focais, oficinas, círculos de cultura, grupos de discussão, observação participante, entrevista, registro fotográfico, filmagem, diário de campo, diálogo, cartografia, entre outros. Dentre os referenciais teóricos mais utilizados, destacam-se autores como Paulo Freire, Jürgen Habermas e Edgar Morin.

Quadro 1
Caracterização das teses quanto aos elementos do paradigma sociocrítico nas práticas do cuidar em enfermagem - Brasil, 2006-2012.

Os trabalhadores/enfermeiros/gestores que representam o sistema profissional de saúde foram os interlocutores de 12 pesquisas(1313. Tavares CMA. A atuação da enfermeira: uma contribuição para a prevenção do câncer ginecológico [tese doutorado]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2006.,1616. Ferreira IP. Estratégia coletiva de enfermeiras para reimplantação do Processo de Enfermagem: uma pesquisa convergente-assistencial [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.,1818. Mulato SC. Pesquisa-ação com graduandos do curso de bacharelado e licenciatura em enfermagem na identificação de estresse, cansaço e desconforto físico à promoção de saúde física e mental no cotidiano acadêmico [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.-1919. Souza DF. Estratégias de educação em saúde em enfermagem: aprendendo para ensinar [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.,2121. Martines WRV. O cotidiano da produção de cuidados em saúde mental e a produção de prazer: uma cartografia [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2012.-2222. Paulin GST. Os sentidos do envelhecer na preparação de cuidadores formais de idosos: uma estratégia de promoção de saúde [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.,2525. Meira MDD. Avaliação de um curso de graduação em enfermagem por egressos, empregadores e docentes [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.,2727. Rasche AS. A práxis do enfermeiro no planejamento e avaliação das ações na saúde escolar [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2012.,3030. Carvalho BG. Coordenação de unidade da atenção básica no SUS: trabalho, interação e conflitos [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2012.-3131. Silveira F. A prática de saúde bucal em uma equipe de saúde da família [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.), enquanto os sujeitos sociais/usuários foram interlocutores de seis investigações(2020. Ferraz F. Contexto e processo de desenvolvimento das comissões permanentes de integração ensino-serviço: perspectiva dos sujeitos sociais pautada na concepção dialógica de Freire [tese doutorado]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2011.,2323. Rodrigues DAL. Mulheres com 50 anos ou mais e a epidemia de AIDS: proposta de jogo educativo para a estratégia saúde da família [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2011.-2424. Paes Neto PP. Educação para a saúde e a atividade física na promoção da qualidade de vida de pessoas que vivem com HIV/AIDS [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.,2626. Beserra EP. Saúde do adolescente: ação educativa mediada pelo modelo de atividades de vida [tese doutorado]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2012.,2828. Jaques AS. Significado da sexualidade e assuntos correlatos no contexto escolar por professores do ensino fundamental na educação sexual: experiência de uma pesquisa-ação [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.-2929. Santos DB. Sexualidade e imagem corporal de mulheres com câncer de mama [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.). Um estudo(1717. Souza MLB. Modelo orgânico de avaliação participativa: construção e aplicação na estratégia saúde da família [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.) foi realizado com as equipes de saúde da família e com os usuários.

No que se refere à temática das teses de fundamentação sociocrítica, a maioria aborda educação em saúde, a partir de estudos com foco na educação em saúde e enfermagem(1919. Souza DF. Estratégias de educação em saúde em enfermagem: aprendendo para ensinar [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.); na reconstrução de ações educativas(1414. Monteiro EMLM. (Re)construção de ações de educação em saúde a partir de círculos de cultura: experiência participativa com enfermeiras do PSF do Recife/PE [tese doutorado]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2007.); na ação educativa voltada ao público adolescente(2626. Beserra EP. Saúde do adolescente: ação educativa mediada pelo modelo de atividades de vida [tese doutorado]. Fortaleza (CE): Universidade Federal do Ceará; 2012.); na saúde escolar(2727. Rasche AS. A práxis do enfermeiro no planejamento e avaliação das ações na saúde escolar [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2012.) e na educação em saúde com pessoas portadoras de HIV/AIDS(2424. Paes Neto PP. Educação para a saúde e a atividade física na promoção da qualidade de vida de pessoas que vivem com HIV/AIDS [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.). Também foram abordados temas como o cuidado de enfermagem ao idoso(1515. Hammerschmidt KSA. Gerontotecnologias para o ensino educativo direcionadas ao idoso: cuidado de enfermagem complexo [tese doutorado]. Rio Grande (RS): Universidade Federal do Rio Grande; 2011.,2222. Paulin GST. Os sentidos do envelhecer na preparação de cuidadores formais de idosos: uma estratégia de promoção de saúde [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.), câncer feminino(1313. Tavares CMA. A atuação da enfermeira: uma contribuição para a prevenção do câncer ginecológico [tese doutorado]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2006.,2929. Santos DB. Sexualidade e imagem corporal de mulheres com câncer de mama [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.), processo de enfermagem(1616. Ferreira IP. Estratégia coletiva de enfermeiras para reimplantação do Processo de Enfermagem: uma pesquisa convergente-assistencial [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.), avaliação participativa na ESF(1717. Souza MLB. Modelo orgânico de avaliação participativa: construção e aplicação na estratégia saúde da família [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2011.), saúde de estudantes de enfermagem(1818. Mulato SC. Pesquisa-ação com graduandos do curso de bacharelado e licenciatura em enfermagem na identificação de estresse, cansaço e desconforto físico à promoção de saúde física e mental no cotidiano acadêmico [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2011.), avaliação de curso de graduação em enfermagem(2525. Meira MDD. Avaliação de um curso de graduação em enfermagem por egressos, empregadores e docentes [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo; Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.), significados da sexualidade para professores do ensino fundamental(2828. Jaques AS. Significado da sexualidade e assuntos correlatos no contexto escolar por professores do ensino fundamental na educação sexual: experiência de uma pesquisa-ação [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.), integração ensino-serviço(2020. Ferraz F. Contexto e processo de desenvolvimento das comissões permanentes de integração ensino-serviço: perspectiva dos sujeitos sociais pautada na concepção dialógica de Freire [tese doutorado]. Florianópolis (SC): Universidade Federal de Santa Catarina; 2011.), saúde mental de trabalhadores da saúde(2121. Martines WRV. O cotidiano da produção de cuidados em saúde mental e a produção de prazer: uma cartografia [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2012.), jogo educativo para mulheres com AIDS(2323. Rodrigues DAL. Mulheres com 50 anos ou mais e a epidemia de AIDS: proposta de jogo educativo para a estratégia saúde da família [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2011.) e saúde bucal na ESF(3131. Silveira F. A prática de saúde bucal em uma equipe de saúde da família [tese doutorado]. Ribeirão Preto (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto; 2012.).

DISCUSSÃO

Muitos elementos do paradigma sociocrítico podem ser observados nestas investigações, a exemplo da metodologia da pesquisa-ação, de métodos como círculos de cultura e de referenciais teóricos construtivistas, que direcionam uma prática libertadora, social e crítica. A perspectiva desses elementos é contribuir para a transição de um cuidado como elemento técnico (paradigma racional tecnológico) para um cuidado como forma de empoderamento (paradigma sociocrítico). A ideia de leigo/paciente dá espaço a um cidadão que tem voz, sentimentos, senso de pertencimento a uma cultura e um entendimento próprio de saúde. A quebra da dicotomia “experts/profissionais - leigos” e o reposicionamento desses atores gera uma concepção de cuidado que se harmoniza com a construção de conhecimento de interesse emancipatório.

O propósito dessa vertente é auxiliar a enfermeira a compreender as experiências, vivências e concepções de saúde dos cidadãos, para construir coletivamente um plano de cuidados. Nesse sentido, o cuidado tende à valorização da prática reflexiva e do pensamento crítico das pessoas, em um processo gradual de empoderamento.

Dentre os referenciais teóricos mais utilizados, destaca-se Paulo Freire(1010. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.). Com o suporte desse autor, entendemos que, se as condições sociais distorcem a autopercepção do indivíduo (ser oprimido), as percepções formuladas por intermédio da ciência sociocrítica permitirão que o cidadão reflita criticamente sobre seu mundo da vida, construindo respostas para suas necessidades (ser livre/empoderado). Ele defende a práxis emancipatória como uma ferramenta de transformação(1010. Freire P. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à pratica educativa. São Paulo: Paz e Terra; 2011.). No contexto da enfermagem, a práxis é o momento em que o cidadão pensa criticamente sobre sua realidade de vida e saúde, e age para modificar posições ingênuas/acríticas. Esse processo sustenta a liberdade do ser humano para escolher seu modo de viver.

Outro referencial teórico utilizado em algumas teses(2727. Rasche AS. A práxis do enfermeiro no planejamento e avaliação das ações na saúde escolar [tese doutorado]. Rio de Janeiro (RJ): Universidade Federal do Rio de Janeiro; 2012.,3030. Carvalho BG. Coordenação de unidade da atenção básica no SUS: trabalho, interação e conflitos [tese doutorado]. São Paulo (SP): Universidade de São Paulo, Escola de Enfermagem; 2012.) foi o de Habermas(99. Habermas J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes; 2012.). Este autor é considerado um dos expoentes da teoria crítica, pois modificou a concepção de ciência até então estabelecida, acrescentando um componente prático e crítico, com o intuito de desenvolver uma ciência a serviço da comunidade. A partir do paradigma sociocrítico, Habermas formula Teoria do Agir Comunicativo (TAC), propondo uma filosofia subjetiva baseada na interação entre os interlocutores. Ele defende a linguagem em seu uso comunicativo, na qual há uma conexão estreita entre fala e ação. Nesta lógica, ação comunicativa é uma forma de ação social, livre de coerção, em que os participantes se envolvem em igualdade de condições para expressar opiniões e elaborar acordos subjetivos(99. Habermas J. Teoria do agir comunicativo. São Paulo: Martins Fontes; 2012.).

Essa teoria é de fundamental importância para a enfermagem, pois a ação comunicativa permite desenvolver relações intersubjetivas com a comunidade e construir consensos em saúde. Esse consenso permite que a enfermeira seja aceita no mundo de vida do cidadão como um ator em cena. Dessa perspectiva decorre o conceito de enfermagem sociocrítica(33. Siles JG. Epistemología y enfermería: por una fundamentación científica y profesional de la disciplina. Enferm Clínica. 1997;7(4):188-94.), entendida como uma profissão social imersa em um processo dialético e subjetivo, cuja finalidade é a construção de novas realidades sociais e de saúde.

A educação, pensada na lógica libertadora, é inerente à enfermagem sociocrítica, pois é no diálogo que as situações são problematizadas. É nessa interação que o cidadão passa a reelaborar seus sentidos sobre saúde. Na visão sociocrítica, esses sentidos não envolvem apenas a elaboração da ciência. Abrangem um contexto amplo, envolvendo valores, crenças, interações intersubjetivas, articulações políticas, éticas e filosóficas(3232. Gadamer HG. O mistério da saúde: o cuidado da saúde e a arte da medicina. Lisboa: Nova Biblioteca 70; 1993.). O sentido é o que uma comunicação, situada em um contexto, desperta na consciência das pessoas, somado a uma totalidade de acontecimentos significativos. Ele é extraído do contexto em que a palavra surge. Se o contexto muda, muda também o sentido. À saúde são atribuídos diferentes sentidos pelas pessoas. Esses se ancoram em significados culturais e refletem as percepções e as experiências vividas, configurando-se numa ampla polissemia(3333. Vygotsky LS. Pensamento e linguagem. São Paulo: Martins Fontes; 1987.).

Outra observação quanto às teses é relacionada à metodologia. Todas as teses incluídas neste estudo foram de abordagem qualitativa e apresentaram técnicas de coleta de dados interativas. A pesquisa qualitativa busca compreender os significados e as experiências de indivíduos ou grupos, aprofundando-se em fenômenos sociais(3434. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.). Este olhar diferenciado expande as perspectivas de cuidado ao considerar a complexidade do ser humano(3535. Lacerda MR, Labronici LM. Papel social e paradigmas da pesquisa qualitativa de enfermagem. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [citado 2016 maio 25];64(2):359-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a22v64n2.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a22...
).

A revisão inicial das 320 teses – das quais apenas 6% foram incluídas por apresentarem elementos do paradigma sociocrítico – evidencia que a maioria das teses brasileiras (50%) produzidas sobre as práticas do cuidar em enfermagem estão alicerçadas no paradigma racional tecnológico. Portanto, as pesquisas em nível de doutorado produzidas pela enfermagem brasileira ainda estão bastante atreladas à reprodução do modelo biomédico sem autocrítica, enraizada na conceituação negativa de saúde. Essa linguagem, que interpreta a saúde através da doença, exclui da análise estilos e formas de viver singulares de cada ser humano.

A prevalência de investigações quantitativas na produção do conhecimento de enfermagem decorre da histórica hegemonia do paradigma positivista, materializado a partir do método cartesiano. Sob o prisma deste paradigma, desenvolveu-se uma cultura de entendimento da ciência como caminho de construção de conhecimento para estabelecer condições de causalidade e predizer o comportamento dos fenômenos, para o qual a pesquisa qualitativa não teria relevância(3434. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.).

Na lógica das ciências sociais, não é possível descobrir as leis da sociedade tal como foi possível descobrir as leis da natureza. A pesquisa qualitativa responde a questões muito singulares do ser humano, em seu espaço individual ou coletivo, que envolve o universo de sentidos, significados, hábitos, valores e crenças. A dinâmica desses processos não pode ser objetivada(3434. Minayo MCS. Pesquisa social: teoria, método e criatividade. 30ª ed. Petrópolis: Vozes; 2011.).

Para a pesquisa qualitativa, os dados numéricos não contemplam a complexidade do ser humano. É preciso ir além do conhecimento da relação entre variáveis e dos dados epidemiológicos da população. O que tem por trás desses dados? Quem são essas pessoas? Como elas vivem? Que sentidos produzem sobre o processo saúde-doença?

Nesse sentido, entendemos que o conhecimento e as práticas do cuidar, fundamentados no paradigma racional tecnológico, não se ocupam da saúde em si, mas de estratégias para a cura de enfermidades e teorias para explicá-las. Uma abordagem distinta nesse campo requer a ruptura com a visão puramente técnica da saúde, incorporando as dimensões social, histórica, cultural, ética e política da vida. É neste sentido que se faz necessária a incorporação de outros paradigmas na produção do conhecimento de enfermagem.

É neste contexto que visualizamos a importância de definir um paradigma para a enfermagem. O ofício desta é se limitar a reafirmar que o indivíduo é/está doente ou incapaz, impondo prescrições (paradigma racional tecnológico), ou promover com as pessoas o pensamento crítico e o empoderamento para qualificar a saúde e dar sentido à vida (paradigma sociocrítico)? Esses questionamentos levam à necessidade de recordar a dimensão crítica e sociopolítica da enfermagem, pelo seu compromisso com a promoção da saúde e qualidade de vida(3535. Lacerda MR, Labronici LM. Papel social e paradigmas da pesquisa qualitativa de enfermagem. Rev Bras Enferm [Internet]. 2011 [citado 2016 maio 25];64(2):359-64. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a22v64n2.pdf.
http://www.scielo.br/pdf/reben/v64n2/a22...
). Neste sentido, o cuidado é pensado como um ato interativo de empoderamento e de cidadania, que produz uma construção social para além da doença.

Essa proposição traz a importância de esclarecer que referenciais de fundamentação sociocrítica refletem-se positivamente na produção de conhecimentos e práticas de enfermagem, pois tem interface com o contexto cultural e fatores relevantes para a saúde, como emocional e situacional. Construir um conhecimento emancipatório de enfermagem significa conferir à comunidade a habilidade de pensar de maneira reflexiva e crítica, resultando em um processo gradual de autonomia e transformação de realidades.

CONCLUSÃO

Com este trabalho foi possível identificar as evidências disponíveis nas teses brasileiras sobre os elementos do paradigma sociocrítico na construção do conhecimento e das práticas do cuidado de enfermagem, no período de 2006 a 2012. O estudo apresentou como limite a incompletude no cadastro das investigações nos dois bancos de teses brasileiros, os quais ainda não disponibilizam a totalidade de trabalhos realizados ao longo dos anos, limitando-se a um período de tempo determinado.

Dentre as 320 teses analisadas inicialmente, apenas 19 foram incluídas no estudo por apresentaram elementos do paradigma sociocrítico em sua composição. A exclusão de 94% das pesquisas reforça a necessidade de discussões acerca do futuro da enfermagem, especialmente pela necessidade de ultrapassar a objetividade científica e a tendência técnica e clínica das produções da área.

A análise do referencial teórico, da metodologia e dos objetivos das 19 teses incluídas permitiu identificar alguns elementos do paradigma sociocrítico: adoção de investigações participativas (pesquisa-ação, pesquisa-intervenção, pesquisa-interação, pesquisa convergente assistencial); o uso de técnicas interativas para a coleta de dados (grupos focais, círculos de cultura, reuniões de discussão, observação participante, cartografia) e referenciais teóricos que permitem analisar os fenômenos em sua complexidade. Esses elementos têm o potencial de construir um conhecimento emancipatório de enfermagem, buscam compreender a realidade como práxis, integrando conhecimento, ações, valores e sentimentos.

Nessa perspectiva, a pesquisa torna-se uma ferramenta de construção de um conhecimento emancipatório de enfermagem, ou seja, tem potencial de estimular a reflexão das pessoas sobre suas ações e sobre o planejamento de ações futuras. Contudo, visualizamos importantes desafios para a concretização desta perspectiva: (I) Exercitar, no campo da pesquisa em enfermagem, diálogo com os interlocutores e o conhecimento do contexto de vida destes; (II) Repensar a formação em saúde, no sentido de associar à visão racional, clínica e tecnológica, uma perspectiva participativa, flexível, coletiva e humana das práticas do cuidado; (II) Investir na divulgação de pesquisas de fundamentação sociocrítica, a fim de dar visibilidade a sua potencialidade na construção do conhecimento emancipatório de enfermagem.

A adoção do paradigma sociocrítico – de forma majoritária pela enfermagem – é um caminho promissor para integralizar a rede conceitual/teórica, a pesquisa, o ensino e o cuidado de enfermagem. Essa lógica lança visibilidade para a enfermagem enquanto ciência e fortalece seu propósito central: transformar contextos de opressão que desempoderam o cidadão na condução de igualdade de condições de diálogo e de cuidado. Isso significa que o enfermeiro vai facilitar a transição de uma posição ingênua/oprimida para uma posição ativa e crítica no cuidado. Trata-se de um processo gradual de empoderamento e libertação, no qual o ser humano elege suas escolhas e transforma-se em ator de sua história.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    2017

Histórico

  • Recebido
    27 Set 2016
  • Aceito
    19 Jul 2017
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