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Training Female Leadership: Reflections on the IBAM Experience

Resumos

Partindo da experiência do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) na formação de lideranças femininas, e tomando como exemplo a Campanha Mulheres sem medo do Poder, realizada nas eleições de 1996, a exposição tece reflexões sobre os novos significados que o campo político adquire com as entradas das mulheres, e analisa as possíveis peculiaridades das mulheres no exercício do poder.

campanha; mulher; homem; acesso ao poder; eleições


Based on the IBAM (Brazilian Institute of Municipal Administration) experience in the training of female leadership and using the Campaign "Women Unafraid of Power" (Mulheres sem medo do poder) carried out during the 1996 elections as our example, this paper reflects on the new meanings that the field of politics takes on when women enter it, and discusses the possible specificities of the way women exercise political power.

campaign; women; men; access to power; elections


Capacitação de Líderes femininas: reflexões sobre a experiência do IBAM

1 1 Texto editado a partir das notas taquigráficas de exposição realizada no Seminário Mulheres na política, mulheres no poder, realizado pelo CFEMEA, CNDM, Bancada Feminina no Congresso Nacional e outras entidades, em Brasília, de 16 a 18 de maio de 2000.

DELAINE MARTINS COSTA

Resumo: Partindo da experiência do Instituto Brasileiro de Administração Municipal (IBAM) na formação de lideranças femininas, e tomando como exemplo a Campanha Mulheres sem medo do Poder, realizada nas eleições de 1996, a exposição tece reflexões sobre os novos significados que o campo político adquire com as entradas das mulheres, e analisa as possíveis peculiaridades das mulheres no exercício do poder.

Palavras-chave: campanha, mulher, homem, acesso ao poder, eleições.

Gostaria de dizer que, na verdade, falo a partir de um lugar que está menos ligado à academia e muito mais à experiência empírica que o IBAM desenvolveu, desde 1990, na formação de lideranças femininas. É esta, especificamente, a abordagem que pretendo utilizar para tratar do projeto desenvolvido pelo IBAM, em parceria com diversas entidades, e voltado para a capacitação de líderes femininas. Portanto, não falo a partir do âmbito da academia, no sentido de apresentar dados sistematizados, fruto de pesquisas. Falo de um lugar que é híbrido, desta mistura que consiste em estar envolvida com o tema e acompanhar estas trajetórias, por intermédio das assessorias prestadas aos Municípios pelo IBAM.

É a partir desta reflexão, desenvolvida no âmbito dos treinamentos para Vereadoras, depois para Prefeitas e candidatas a Deputadas Estaduais, que pretendo trazer algumas contribuições as quais, espero, possam ajudar a refletir sobre a imbricação entre as mulheres e o poder.

Serei sucinta, para não ultrapassar o tempo de vinte minutos. Dividi essa exposição em quatro aspectos principais: 1) o contexto das eleições municipais de 1996; 2) o sistema de cotas; 3) as ações desenvolvidas tendo em vista o sistema de cotas; e 4) os resultados pretendidos. Ao final, trarei algumas problematizações a respeito deste tema e dos seus desdobramentos.

O contexto das eleições municipais de 1996

O mais importante é destacar o caráter inovador das eleições municipais de 1996. A Lei n.º 9100, de 1995, implementa as cotas como uma estratégia para redução das desigualdades de gênero, contribuindo para a discussão da sub-representação feminina nos Parlamentos. Em geral, as mulheres representam cerca de 12% dos parlamentares. Em alguns países a participação é maior, em outros é menor, mas a média é esta.

No contexto da Lei n. 9.100, gostaria de chamar atenção para a IV Conferência Mundial da Mulher, cujo tema principal foi o acesso das mulheres ao poder e a questão da divisão e redistribuição de poder. Quero enfatizar que o tema da sub-representação feminina nas esferas de poder está intrinsecamente relacionado a uma pauta mundial da qual se originou a Lei que foi aprovada no Congresso, reservando o mínimo de 20% para as candidaturas femininas.

A Campanha Mulheres Sem Medo do Poder, que a Vereadora Eni muito bem lembrou, desencadeada pela bancada feminina no Congresso Nacional e com caráter suprapartidário, desenvolveu uma rede de articulações com ONGs, Conselhos Municipais e Estaduais dos Direitos da Mulher, núcleos universitários e movimentos de mulheres no sentido de que não bastava apenas haver a Lei n.º 9.100. Partiu-se da premissa de que outras ações deveriam ser colocadas em prática, como por exemplo incentivar-se a filiação de mulheres aos partidos políticos; influenciar as convenções partidárias, para que a cota mínima de 20% fosse atingida; e implementar estratégias de apoio e capacitação para as mulheres candidatas.

Cabe aqui destacar a cartilha "Mulheres Sem Medo do Poder — chegou a nossa vez", elaborada pelo IPEA e distribuída no País para as candidatas, os spots de rádio produzidos pelo CFEMEA e ainda o projeto Participação Igualitária da Mulher nas Instâncias Decisórias nos Municípios Brasileiros, que teve apoio do PNUD e do UNIFEM, e no qual vou deter-me.

Mulheres disputando o acesso ao poder

Dentre as questões principais relativas ao debate como um todo, uma me chamou a atenção, quando passava os olhos pela publicação do CFEMEA: os significados e destinos do "empoderamento" das mulheres. Que poder? Poder para quê? Então, este é o tema central da nossa discussão, parte essencial do nosso debate.

Neste sentido, gostaria de ressaltar três aspectos. O primeiro é o acesso das mulheres ao poder, um poder que contribua para a redução das assimetrias entre mulheres e homens — não apenas entre o grupo das mulheres e o dos homens como um todo, mas também entre as mulheres e entre os homens. Portanto, para enfrentar esta discussão temos também de perceber como se dão as relações de poder entre as mulheres, para não atrelarmos o debate a uma visão tão polarizada.

Em segundo lugar, é importante refletirmos sobre a mudança na cultura política, a partir da inserção das mulheres nas disputas do acesso ao poder. É preciso lembrar que quando falamos de cultura, estamos sempre falando de uma reificação, ou seja, é muito difícil sairmos da ordem de significação, entendendo-se a cultura como ordem de significação. Por outro lado, mesmo no campo da cultura política, há muitas discussões sobre o que é cultura política. Este é um elemento novo para a cultura política: as mulheres trarão novos ingredientes para esta discussão se consideramos que ação política é, antes de tudo, uma ação de caráter significativo.

A entrada das mulheres na política traz a possibilidade de produzir novos significados no campo político. Como exemplo, podemos usar a figura da primeira-dama. À medida que mais mulheres assumem os cargos executivos, teremos uma reavaliação desta posição. Por outro lado, há também a inscrição de novas questões na agenda política. Estas novas questões são trazidas por uma pauta de políticas de gênero e pela agenda feminista.

Neste sentido, como já disse, juntamente com a entrada das mulheres na política, temos a possibilidade da subversão de padrões, marcadamente masculinos. Torna-se, portanto, necessário acompanhar as trajetórias femininas na política, na medida em que a tendência é a de termos mais mulheres concorrendo a eleições, seja com homens ou com mulheres. Este último aspecto é um fato relativamente novo: mulheres concorrendo com mulheres.

O terceiro aspecto refere-se à questão das mulheres no poder e à sub-representação feminina na construção do processo democrático. Em que medida a democracia se viabiliza considerando a exclusão das mulheres? Neste aspecto, refiro-me tanto à quantidade quanto à qualidade: em que medida mais mulheres no poder significa mais políticas voltadas para a redução das desigualdades de gênero?

Trarei para o debate, sucintamente, o resumo dum artigo que escrevi para a Fundação Konrad Adenauer. Nele, tentei sistematizar elementos sobre esta reflexão, isto é, a dificuldade que têm as mulheres em se fazer presentes nos espaços de poder. Cabe aqui sublinhar o impacto da divisão sexual do trabalho e os constrangimentos impostos à participação feminina no campo político. Vários estudos demonstram que a divisão sexual do trabalho, na forma como hoje está estruturada, dificulta a divisão de responsabilidades sobre o trabalho não-remunerado e remunerado e, por conseguinte, dificulta o aumento do número de mulheres nos partidos políticos, na militância, nas reuniões, nos fóruns, etc. Por outro lado, as condições de trabalho no campo da política partidária também dificultam que homens e mulheres conjuguem as responsabilidades da esfera pública e da esfera privada, minimizando a inserção feminina neste campo. Há que se destacar, também, o mundo da política partidária, cujos modos de funcionamento contribuem para gerar menor permeabilidade das mulheres aos postos de tomada de decisão nos partidos. Estes e outros aspectos me levam a crer que as ações afirmativas se constituem numa estratégia pertinente para tratar do acesso das mulheres às instâncias de poder.

A Campanha Mulheres sem medo do Poder

Tendo feito estas observações sobre os principais aspectos que nortearam a Campanha e o projeto em si, desenvolvido pelo IBAM com uma rede de parcerias, gostaria de destacar os principais eixos que mobilizaram o projeto, a saber: as estratégias a serem adotadas e as condições de possibilidades para tratar, de forma transversal ou não, da incorporação do enfoque de gênero nas políticas públicas. Quero dizer que aumentar a representação feminina no legislativo municipal é uma destas condições de possibilidade, mas não é a única.

O projeto foi aprovado em julho de 1996 e as eleições ocorreram em 3 de outubro do mesmo ano. Houve um longo processo de negociação até conseguirmos captar os recursos e reformalizar o projeto, haja vista que os recursos foram disponibilizados alguns meses antes das eleições. Então, optamos por conceber uma estratégia que agilizasse o processo de trabalho. Realizamos treinamentos descentralizados, para fortalecer as candidaturas femininas, em praticamente todas as capitais do País.

Como tínhamos muito pouco tempo, baseamo-nos na cartilha do IPEA, elaborada por Lena Lavinas e Hildete Pereira de Melo, adaptada para servir como principal material pedagógico a ser utilizado pelos treinadores ou capacitadores. Uma pedagoga transformou aquela cartilha num material pedagógico a ser utilizado durante os dois dias de seminário. Realizamos, então, um "treinamento de treinadores", levado a cabo por membros da equipe técnica do IBAM e por representantes das entidades parceiras que se integraram ao projeto. O objetivo foi o de equalizar os conhecimentos da equipe como um todo, bem como definir duplas de treinadores (formada por uma pessoa da equipe do IBAM e uma da entidade parceira), responsáveis por desenvolver os seminários nas cidades previamente identificadas.

Os treinamentos, realizados sob a forma de seminários, foram implementados, como previsto, nas mais diversas condições, e endereçados a candidatas com perfis os mais diferenciados possíveis, isto é, Vereadoras cuja campanha estava pronta, Vereadoras que não tinham plataforma de campanha e não estavam orientadas pelos partidos, uns seminários com trinta pessoas, outros com duzentas pessoas, enfim, uma diversidade bastante grande.

É importante lembrar a maneira como os seminários foram estruturados. Cada seminário, em geral, foi dividido em quatro módulos: 1) "A história das mulheres: nossa história tem história", no qual procuramos informar as candidatas sobre a luta das mulheres no Brasil pelos seus direitos e por maior igualdade; 2) "O retrato das desigualdades de gênero", no qual traduzíamos as desigualdades entre homens e mulheres em números, em estatísticas, em ações e em exemplos concretos; 3) "A descentralização do poder local", assunto que mobilizou as candidatas no sentido de adequar o discurso de campanha às competências do poder legislativo municipal; e 4) "A revisão dos passos de campanha", módulo que muitas vezes encerrávamos com o exercício intitulado "alerta feminista", que tinha por objetivo constituir uma ação suprapartidária durante o evento, a qual fortalecesse a campanha das candidatas. Foram estes, basicamente, os quatro eixos dos seminários.

A metodologia consistia sobretudo na participação das candidatas e no fornecimento de insumos para a sua campanha. Embora houvesse uma diretriz que permeava o desenvolvimento dos seminários, em cada cidade foram feitas adaptações, considerando-se as especificidades locais. No entanto, tínhamos como um dos principais objetivos fortalecer a auto-estima das candidatas, posto que muitas delas, como sabemos, entraram na lista de candidatas apenas para preencher a cota mínima. Muitas disseram que se candidataram porque o partido tinha de preencher a cota, mas, ao sair do seminário, diziam que queriam ser eleitas: "Se não for eleita nessa eleição, vou ser candidata de novo". Fortalecemos também a discussão da campanha em si no sentido de que as mulheres, como grupo de interesse, podem criar identidade e diálogo entre mulheres candidatas e eleitoras.

A insuficiência de dados sistematizados dificultou uma apreciação exata do impacto do sistema de cotas. Como não temos a série histórica, ou pelo menos não conheço essa série histórica, solicitamos aos TREs e ao TSE informações relativas às eleições para os períodos 1993/1996 e 1997/2000. Então vemos que, antes das cotas, o número de mulheres eleitas era de 3.952, e a maior concentração ocorria na Região Nordeste.

Podemos ver que há um aumento muito significativo de eleição para eleição. Em números absolutos, quase dobra o número de Vereadoras; em termos percentuais, o percentual aumenta de 8% para 11%.

Quanto às eleições majoritárias, o número de Prefeitas que existia no País, para o período de 1993-1996, era de 171; do total de Prefeitas eleitas, mais de 50% se encontravam nos municípios da região Nordeste. E nas eleições seguintes — independentemente do sistema de cotas, que não se aplica às eleições majoritárias — tivemos 312 Prefeitas eleitas, o que significa 6% do total. Quer dizer, nas eleições proporcionais, as mulheres no Parlamento são em maior número do que as mulheres em cargos executivos. A especificidade do Nordeste permanece, tanto no caso das Prefeitas, quanto das Vereadores: esta região concentra o maior percentual de mulheres eleitas. Portanto, oferece subsídios para refletirmos sobre o acesso das mulheres ao poder, numa região em que o campo político está tradicionalmente ligado às relações de clientelismo e patronagem.

Poder: masculino e feminino

Gostaria de concluir trazendo algumas problematizações para a nossa reflexão e debate. Primeiro, gostaria de chamar a atenção para o aumento da formação de lideranças femininas e a importância de se desenvolver este trabalho através de Vereadoras, de Prefeitas ou dos partidos políticos, para termos mais projetos voltados para o aumento das lideranças femininas.

O segundo aspecto é uma abordagem do Poder Legislativo municipal, uma abordagem mais da rotina, do quotidiano, do dia-a-dia, quer dizer, o papel da Vereadora para além das competências formais. Não podemos perder de vista que o Parlamento é um espaço ritualizado, um espaço do teatro (as grandes negociações se dão fora do plenário); devido a isto, é necessária uma abordagem menos normativa se se quiser conhecer o dia-a-dia do Vereador e da Vereadora nas suas múltiplas dimensões. É necessário igualmente conhecer os conflitos inerentes a esta atividade que reúne dois modelos concorrentes de atuação: o modelo que temos na sociedade brasileira, do clientelismo e da patronagem, da troca de favores e que ainda é padrão de comportamento dentro da política, e o modelo de uma democracia mais horizontalizada, do universalismo de procedimentos. Também temos a possibilidade de incluir, neste debate, a tradução das ações voltadas para a redução das desigualdades de gênero no âmbito do legislativo municipal.

É possível afirmar que estamos habituados a pensar a incorporação do enfoque de gênero sobretudo no campo do Executivo, das ações, projetos, programas e políticas — mas que deixamos de lado o âmbito do Legislativo municipal. Por exemplo, há diversos Programas que visam premiar boas práticas de gestão, mas via de regra estes programas estão circunscritos ao Executivo. O ideal seria podermos ter um banco de leis, a exemplo do trabalho exemplar que o CFEMEA faz aqui, a fim de que tivéssemos esta experiência voltada para o governo local, considerando as suas especificidades, as margens de intervenção de uma bancada feminina dentro do Parlamento municipal.

Outro aspecto relevante é a discussão sobre o poder e, por conseguinte, a polarização, que surge deste debate, entre o "poder feminino" e o "poder masculino". Pessoalmente, por vezes acredito nela, mas por vezes me acometem sérias dúvidas acerca desta forma de se pensarem as relações de poder. As relações de poder são inerentes às relações sociais, quer seja entre mulheres, quer entre homens, ou ainda entre homens e mulheres em bloco. Temos de ter cautela, devido ao esgotamento do modelo de poder masculino, para não cairmos numa visão essencialista e naturalizar o "feminino" e o "poder feminino". Dependendo da concepção, se queremos obter uma macrovisão, usamos o binóculo e vamos ver as estruturas e as relações do poder e essa polarização; e se queremos uma visão mais microscópica, usamos um outro instrumento e vamos ver esses micropoderes nas relações sociais para além do gênero.

O que está em jogo, em xeque, é a não-reprodução de um determinado modelo de poder, um poder que vise a transformação, as relações mais igualitárias, horizontalizadas. Digo-o porque a teoria organizacional tem trazido contribuições importantes, baseadas em estudos do comportamento de lideranças femininas, reafirmando atributos tidos como femininos, ora valorizados nos estilos de gerência e liderança. Acho isto perigoso, porque no fim de contas se reafirmam os estereótipos que sempre questionamos, tais como a docilidade, a meiguice, a intuição e a sensibilidade, que são atributos associados à mulher. Então, na medida em que nos pusermos a reafirmar estes estereótipos, estes atributos, estaremos realmente contribuindo para uma discussão que desafia os papéis masculinos e femininos?

Por outro lado, há problematizações que surgem do próprio campo dos estudos de gênero. Cada vez mais observamos que, quando falamos sobre esse pólo contínuo masculino/feminino, estamos excluindo o que há no meio: um terceiro, quarto, quinto... sexo. Então, como devemos lidar com esse fluxo contínuo? Em que medida a categoria gênero nos auxilia a pensarmos e rompermos com esta visão dicotômica?

A igualdade é um valor das sociedades democráticas, ocidentais, contemporâneas. Como vamos lidar com a igualdade e a diferença, sem falar também da diversidade de experiências entre as mulheres? Ora as mulheres formarão um grupo que terá uma ação suprapartidária, um grupo de pressão e de interesse; ora as mulheres não conseguirão fazê-lo. Isto ficou muito claro nos treinamentos; às vezes conseguíamos esta ação suprapartidária e às vezes não. Por exemplo, a questão do aborto é um "divisor de águas" dos interesses entre as próprias mulheres.

Portanto, subjacentes à pauta do feminismo — um feminismo plural — estão múltiplas concepções em disputa; uma delas é bastante essencialista, por substantivar os atributos tidos como femininos e subtrair as diferenças entre as mulheres.

A representação feminina

Por último, gostaria de falar sobre o voto feminino. Em que medida as mulheres votam em mulheres e quem vota nas mulheres? Devemos pensar nisto, porque tenho percebido que, freqüentemente, as mulheres candidatas dizem que "mulher não vota em mulher". Não sei responder a isto. Os meus votos sempre vão para mulheres. Evidentemente, estou envolvida no tema, isto faz parte da militância, mas não sei se este argumento se sustenta.

Por fim, ao pensarmos na categoria "gênero", gostaria de chamar atenção para o risco de a supervalorizar. Julgo ser mais pertinente pensar-se que ela está sempre relacionada com outros termos tais como raça, etnia, classe, orientação sexual e geração. Embora as mulheres, num determinado momento, formem um grupo homogêneo, a própria experiência da subordinação feminina não pode ser considerada sem a classe social, por exemplo. Quer dizer, não se trata de supor a existência dum grupo de indivíduos necessariamente iguais apenas por se tratar de mulheres, nem de supor que mulheres na política são necessariamente melhores. Acho que há um conjunto de atributos em jogo. Várias questões vão determinar a competência, seja em termos de políticas públicas, seja em termos dessa nova visão do exercício do poder no Parlamento ou no Executivo.

Sobre a representação feminina nas Câmaras Municipais, quero lembrar que há dois percentuais: um em termos do total de Vereadoras, e outro em termos de regiões. Por exemplo, tomaram posse, em 1993, na Região Norte, 11% de Vereadoras. Em 1997, depois das quotas, 14%. Houve um aumento na Região Norte. Na Região Nordeste, de 12,7% em 1993, o percentual subiu para 13% em 1997; no Sudeste, de 6,1% em 1993, para 9,3% em 1997; no Sul, de 5,1% em 1993, para 9,5%; e, no Centro-Oeste, de 8%, para 12,5%. Observamos, na verdade, que primeiro houve aumento na Região Norte, em termos de total de Vereadoras, e depois nas Regiões Nordeste, Centro-Oeste, Sul e Sudeste.

Como disse, não sou especialista em eleições; venho estudando as eleições tão-somente para acompanhar a trajetória feminina neste campo. Os trabalhos do IBAM e do Núcleo têm estado mais voltados para a formação de lideranças femininas. Creio que a migração do homem da Região Nordeste para a Região Centro-Sul pode ser uma das explicações desse aumento, bem como os indicadores sobre desigualdade sociais. Temos, hoje, no Brasil, dois modelos em termos de comportamento político: o das relações de clientelismo e patronagem e o das relações mais pautadas por um universalismo de procedimentos. Na política, há uma forma de comportamento — alguns dirão mesmo que o próprio eleitor a espera — voltado para a troca de favores.

Não pretendo aqui defender o clientelismo, mas se observamos a importância das redes de relações pessoais na cultura e na sociedade brasileira veremos que as relações de clientelismo perpassam as relações da política. Em todos os partidos políticos, via de regra, há expectativa quanto a um padrão de comportamento, qual seja o da lealdade, da troca de favores, da reciprocidade entre atores. Ela é muito mais importante do que, digamos, o universalismo de procedimentos. Em vários depoimentos relacionados com o nepotismo — que podem soar a demagogia —, geralmente se ouve dizer: "Mas ele é meu amigo, eu não podia fazer isto". A lealdade acaba sendo uma característica muito importante, em que as relações pessoais se sobrepõem às relações institucionais.

Para quê trazer isto à baila? No Nordeste, embora tenhamos grande concentração de Prefeitas e Vereadoras, não há muitos estudos a respeito do perfil dessas mulheres. Chegamos a tentar fazer pesquisas, mas faltaram recursos para que pudéssemos traçar o perfil das Vereadoras e Prefeitas como um todo. Há o estudo de Ana Alice Costa, na Bahia. Observa-se o predomínio de uma rede familiar de poder, seja para homens ou mulheres. As mulheres são alçadas ao poder para darem continuidade a um projeto familiar a partir do qual constituem o seu patrimônio político. Respondendo à pergunta, mais vale conhecer os processos e as trajetórias políticas dessas mulheres para, a partir daí, procedermos a análises mais complexas e conclusivas.

Com relação à diferente visão do homem e da mulher — este tema é complexo —, tivemos oportunidade de realizar um trabalho de desenvolvimento institucional em duas organizações feministas, e discutir alguns aspectos das relações de poder. Isto está no livro que foi lançado há quatro anos. Toda discussão de poder é evidentemente muito complexa, e não tenho a pretensão de esgotá-la aqui. Mas quero chamar a atenção para dois fatos. Para compreendermos as relações de poder, temos dar atenção às posições que se ocupa na sociedade. Quer dizer, é a posição diferenciada que nos vai indicar o lugar de que se fala. O lugar de que se fala é o que se experimenta, vivencia, no qual se cria e se opera a (inter)subjetividade da experiência em termos dos agentes sociais. Se a mulher pertencer a uma elite, se ela não viver a divisão sexual do trabalho, se não viver uma relação de preconceito, de opressão, é provável — embora não seja necessário — que tenha dificuldades em reconhecer a condição subordinada da mulher, diferentemente daquela mulher que vive esta condição, dada a sua posição social. Então, eu também me questiono sobre isto: quem está autorizado a falar sobre as mulheres?

Mulheres na política: qual a diferença?

Não é o fato de ser mulher que torna as mulheres iguais. A condição biológica não é fator preponderante sobre a experiência social, sobre como a mulher organiza a experiência e de que lugar ela fala. Esta construção social, o gênero, não é dada apenas pelo "sexo", mas sim pela forma como vivemos esta condição, a qual está relacionada com a experiência de classe, raça, etnia, idade, etc.

Por outro lado, muitos estudos têm demonstrado que as mulheres fazem diferença na poder. No Brasil, não há muitos estudos, até porque são poucas as mulheres em cargos de poder, mas eles mostram que há sim uma diferença a ser apontada. Quando temos mais mulheres no Parlamento ou no Executivo, o tipo de demanda e de políticas implementadas são diferentes, inclusive em função da divisão sexual do trabalho: é apanágio das mulheres cuidar das crianças e, cada vez mais, dos idosos. Existe então esta divisão sexual do trabalho, a qual estrutura as relações entre homens e mulheres: as mulheres têm esta experiência, elas vivem, passam por isto. E quando alçada a postos de tomada de decisão, seja de secretária municipal, seja de Vereadora, seja de Prefeita, quase que "intuitivamente" a mulher encaminha demandas relacionadas com este universo. Segundo a divisão sexual de trabalho, a mulher está para o trabalho reprodutivo assim como o homem está para o produtivo. Da mesma forma, a mulher está para o privado assim como o homem está para o público.

Que risco decorre disto? Que se reforcem as divisões sexuais. As mulheres são sempre autorizadas a falar do social, e os homens do econômico, do macro. Temos de procurar diversificar isto. Particularmente, sou muito mais adepta da idéia da diversidade, de sairmos do único, da unidade e procurarmos a fragmentação, e de que sejamos também autorizadas a falar inclusive sobre assuntos tradicionalmente atribuídos ao mundo masculino, por menos homogêneo que este universo seja. Que possamos falar em economia, da dívida externa e de outros assuntos, e que o homem fale também sobre outros temas. À medida em que alguns homens começarem a falar a respeito de creche e saúde, outros homens passarão a ouvi-los. Enquanto nós, mulheres, o fazemos, produzimos um discurso que estigmatiza e cria um gueto que não tem ressonância no universo masculino.

Relativamente a esta visão diferenciada, acredito que há homens e mulheres no plural, sobretudo se nos voltarmos para os estudos sobre masculinidade. Pessoalmente, não gosto de generalizar e dizer que a visão masculina foi sempre esta. Nem os homens nem as mulheres — posto que estamos justamente discutindo diversidade e democracia —podem cair na falácia de homogeneizar. Isto seria mais fácil, mas temos de problematizar as questões. Este é o caminho: questionar, desafiar, perguntar se é assim mesmo, se os homens e as mulheres são todos assim. Não digo que não haja condição subordinada. Ela é estrutural e histórica — isto é inegável. Simplesmente advogo que possamos mudar e questionar isto.

Com relação aos estereótipos, é evidente que não vamos partir de um estereótipo ruim em direção a um bom, e vice-versa. Mas o que é o belo? É uma questão de valor. Os estereótipos trazem em si representações e significados, valores atribuídos ao feminino, ao masculino. São sobretudo esses valores que o movimento feminista, os estudos de gênero, o movimento de mulheres têm questionado. De onde vêm esses valores? Esse questionamento constante, sobretudo dos valores, nos constitui enquanto seres humanos. A linguagem é valor puro, as hierarquias são dadas, assim como os significados. É preciso poder questionar os valores. Então, quando falo do estereótipo é isto: ele traz em si valores estanques. E temos de ter muito cuidado.

A literatura americana de desenvolvimento organizacional, de teoria organizacional, tem apelo popular muito forte no sentido de reafirmar as vantagens das habilidades femininas. É verdade: os processos de socialização são diferenciados. Homens e mulheres são socializados de modo distinto. Por exemplo, pesquisas recentes sobre o uso do tempo mostram que as mulheres gastam nove vezes mais tempo cuidando das crianças do que os homens. O lazer feminino é diferente do masculino. O lazer feminino está voltado para a família, para o privado, para a casa; o masculino está voltado para o futebol, para a diversão no bar. É evidente que é diferente. Mas, enfim, tenhamos mais uma vez o cuidado de fazer esse tipo de questionamento.

Outra questão importante também apresentada é a dos poderes Executivo e Legislativo. É evidente que temos um modelo presidencialista, onde a participação popular no Poder Legislativo está cada vez mais difícil. Agora, há que se entender o Legislativo para além daquilo que ele parece ser. Em primeiro lugar, a atuação dos Vereadores é muito diversificada. Há Vereadores que realizam trabalho numa concepção tida como clientelista, prestando serviços à comunidade, dispondo de gabinetes comunitários e doando cestas básicas. Há também Vereadores que transformam o Parlamento em fórum de discussão, e não apenas numa casa de produção de leis.

Então, mais uma vez convém que não reduzamos o Parlamento. Particularmente, acho que hoje em dia o Parlamento é uma grande porta de entrada. Enquanto no Executivo há secretarias e hierarquias muito bem delimitadas, no Legislativo há os gabinetes — dos Vereadores —, onde estão os assessores. Então, por mais inócuos e ineficazes que sejam, sempre se poderá contar com eles ao entrar num gabinete. A propósito, lembro-me do caso de uma Vereadora que recebeu um convite de uma pessoa que lhe disse: "Se você não puder ir, mande o seu acessório". (Risos.)

Enfim, por mais que um assessor possa vir a ser um acessório, o Legislativo é o lugar onde há ressonância. A despeito da prática clientelista, num gabinete sempre se recebe algum encaminhamento. Mas enfim, onde há Câmaras Municipais, há gabinetes, há galerias, há votações em plenário, há indicações de Vereadores a Prefeitos, há reuniões, há audiências públicas, há fóruns — hoje em dia há muitos fóruns, um nova forma de mediação. Portanto, os Vereadores, para o bem ou para o mal, em sua prática cotidiana podem ser visto como mediadores.

Voltamos para a questão da democracia participativa e dos instrumentos de participação popular. Com a Constituição Federal de 1988, vários instrumentos passaram a regulamentar a participação popular. Observou-se que na década de 80, depois da ditadura militar, houve uma explosão do planejamento participativo: conselhos municipais, planos-diretores, leis orgânicas municipais, enfim, vários foram os instrumentos de regularização e normatização da participação popular. Como instaurar instâncias de participação popular, seja no Executivo, seja no Legislativo? Esta é uma outra discussão, para um outro seminário.

Gostaria de lembrar que é preciso entender as lógicas sociais no espaço do Parlamento, não esquecendo que as relações no campo da política são violentas. Como já dizia Weber: viver da política ou para a política? São duas concepções bastante diferentes.

Training Female Leadership: Reflections on the IBAM Experience

Abstract: Based on the IBAM (Brazilian Institute of Municipal Administration) experience in the training of female leadership and using the Campaign "Women Unafraid of Power" (Mulheres sem medo do poder) carried out during the 1996 elections as our example, this paper reflects on the new meanings that the field of politics takes on when women enter it, and discusses the possible specificities of the way women exercise political power.

Keywords: campaign, women, men, access to power, elections.

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    Texto editado a partir das notas taquigráficas de exposição realizada no Seminário
    Mulheres na política, mulheres no poder, realizado pelo CFEMEA, CNDM, Bancada Feminina no Congresso Nacional e outras entidades, em Brasília, de 16 a 18 de maio de 2000.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Maio 2002
    • Data do Fascículo
      2001
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