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A fantasia política ou a política da fantasia?

Political fantasy or fantasy politics?

RESUMO

Este artigo é uma resposta ao comentário de Velloso ao nosso artigo publicado anteriormente sobre o II PND. Discordamos de Velloso em seu contra-argumento às nossas conclusões, pois o comentário não melhorou a discussão nem trouxe novos dados que desmentem nossas descobertas.

PALAVRAS-CHAVE:
II PND; história econômica do Brasil; planejamento econômico; crises econômicas

ABSTRACT

This paper is a response to the commentary of Velloso to our previously published article regarding the II PND. We disagree with Velloso on his counterargument to our conclusions as the commentary did not improve the discussion neither brought new data dismissing our findings.

KEYWORDS:
II PND; economic history of Brazil: economic planning; economic crisis

No artigo “A fantasia política: a nova alternativa de interpretação do II PND”, publicado neste número da Revista de Economia Política, o ministro João Paulo dos Reis Velloso apresenta uma importante análise de um artigo publicado numa edição anterior da mesma revista1 1 Aguirre Basilia M.B. & Saddi, Fabiana da C. Saddi (1997) “Uma alternativa de interpretação do II PND.” Revista de Economia Política, vol 17, nº 4 (68), out.-dez. . Esta importância se justifica pelas razões que se seguem. Em primeiro lugar, porque o autor da análise, além de ser um intelectual possuidor de um profundo conhecimento da economia brasileira, também foi um dos atores principais das decisões tomadas no período do II PND, o que engrandece o debate. Em segundo lugar, porque demonstra que o confronto de ideias a respeito de fase tão significativa da economia brasileira ainda não se esgotou, o que, por sua vez, indica que o conhecimento neste campo continua a se expandir, o que é muito bom. Em terceiro lugar, porque uma compreensão mais abrangente deste período da história brasileira nos permite refletir melhor a respeito dos problemas enfrentados pelo país nos períodos mais recentes. Essas razões incitam uma réplica por parte destas autoras.

O ministro João Paulo dos Reis Velloso apreendeu corretamente o sentido da análise realizada pelo artigo. Os pontos que ele comenta explicitam, de fato, o encadeamento da explicação apresentada. Porém, na sua resposta não apresentou, em primeiro lugar, novas evidências que viessem a se somar ao conhecimento público a respeito do II PND, e que se encontram especialmente publicadas em um de seus importantes livros2 2 Velloso, João Paulo Reis (1986). O último trem para Paris, Rio de Janeiro, Nova Fronteira. ; em segundo lugar, negligenciou elementos essenciais para a sustentação da explicação e, finalmente, apresentou visão equivocada de determinados conceitos relevantes para a discussão. Cada uma dessas afirmações é fundamentada a seguir.

A inexistência de novas evidências não permite à análise avançar além do que está atestado no artigo. No que se refere à concepção do plano, a argumentação con­tinua a se basear na necessidade do ajuste macroeconômico que eliminaria a depen­dência externa brasileira, adotando uma perspectiva de defesa da substituição de im­portações de cunho autárquico, idêntica à que consta de seus outros textos e do conhecido livro de Barros de Castro e Pires de Souza3 3 Barros de Castro, Antonio & Pires de Souza, Francisco Eduardo (1985). A economia brasileira em marcha forçada, Rio de Janeiro, Paz e Terra. (1985). Com relação à operacionalização do plano, também a análise igualmente se mantém presa aos mesmos argumentos listados em publicações anteriores, e que defendiam a posição de que as dificuldades de implementação do plano evidenciam-se, não pelo equacionamento do desajuste macroeconômico de curto prazo, mas pela estratégia definida de realização do plano, numa trajetória de desaceleração gradual, mantendo a inflação e o balanço de pagamentos sob controle. Uma vez que nenhum novo argumento relacionado a essas questões foi apresentado, considera-se que a discussão se mantém aberta no ponto colocado pelo artigo. O que precisa ficar claro é que, em momento algum foi sugerido que não existe uma lógica econômica a perpassar a concepção do plano. Em termos teóricos, é sempre possível a construção de uma lógica específica, a partir de premissas pré-estabelecidas. O ponto em discussão é se havia um consenso mínimo a respeito das premissas sobre as quais assentou-se a racionalidade do plano. Como salientado no artigo, vários autores, utilizando-se de premissas e argumentos tão defensáveis quanto os do ministro João Paulo dos Reis Velloso, apontaram os riscos e desvantagens embutidos na estratégia. Uma vez que a racionalidade pode ser discutida e que nenhum fato novo apareceu para mudar os rumos da controvérsia, o investigador da realidade brasileira tem a obrigação de procurar outras explicações plausíveis, buscando a expansão do conhecimento.

A principal negligência observável nos comentários refere-se à maciça transformação na estrutura de preços relativos empreendida no início do governo Geisel. O objetivo desta foi o de orientar a economia brasileira no sentido requerido pelo plano. Ao invés de procurar uma adequação gradual à nova estrutura de preços relativos, que se estabeleceu após o choque do preço do petróleo de 1974, o período pós-1974 pode ser caracterizado como um desvio das tendências dos preços internacionais e, portanto, representa um desvio da rota de ajustamento estrutural imposto pelo choque do petróleo. Isso vai ter consequências negativas profundas para o ajustamento da economia brasileira na década de 80. Uma outra negligência importante refere-se à imprevisibilidade dos choques. Ao adotar esta perspectiva, o ministro parece desconhecer as importantes transformações no mercado financeiro internacional que estavam em curso e que foram inclusive responsáveis, em parte, pelo choque inicial dos preços do petróleo.

A visão equivocada a respeito de alguns conceitos pode modificar radicalmente a análise. O conceito em questão é o do neo-patrimonialismo, assim como definido por Eisenstadt (1978)4 4 Eisenstadt, S. N. (1978). Revolution and the transformation of societies, a comparative study of civilizations. Nova York, The Free Press. . Não se referiu, em nenhum momento, no artigo, ao nepotismo como forma de condução dos negócios públicos no período em questão. O conceito de neo-patrimonialismo, que pode envolver o recurso a este tipo de prática, não requer que ela seja adotada. Por outro lado, essencial à aplicação do conceito é a existência de práticas de cooptação. Isto porque a estrutura de dominação neo-patrimonial que se caracteriza por governos formados por grupos que detêm o poder, sem a participação da maioria dos membros da sociedade. A ausência de bases de legitimidade assentadas na tradição requer a utilização mais acentuada de outras formas de sustentação, as quais são providenciadas pela cooptação. Além disso, é recorrente nos casos históricos de neo-patrimonialismo o recurso ao crescimento e à modernização como forma de cooptação, assim como nos vários tipos de populismos verificados no pós-Segunda Guerra Mundial.

É fácil observar que todo tipo de autoritarismo, mesmo o que coloca na mesa uma agenda democratizante, aproxima-se muito do tipo ideal do neo-patrimonialismo. Ademais, tomando-se explicitamente o caso brasileiro em questão, verificamos ainda que o recurso ao crescimento está presente. Portanto, não é suficiente elencar todos os esforços realizados pelos vários governos brasileiros no intuito de burocratizar, no sentido weberiano, a administração pública, para demonstrar a característica não-patrimonial deste Estado. Seria necessário demonstrar que não é possível estabelecer qualquer relação entre o II PND e o Pacote de 1977, que sugere uma relação entre apoio político dos estados do Nordeste e o rol de investimentos do II PND, na forma como apontada no artigo. Assim como explicar a impossibilidade de relacionar o crescimento econômico do período, a manutenção e elevação da taxa de juros interna e o endividamento externo, que apontam para uma interligação entre II PND e setor financeiro nacional. E, finalmente, explicitar a inexistência de relação entre II PND e os investimentos em infraestrutura regional, que, por sua vez, sugere interligação entre empreiteiras e o II PND.

Talvez a principal lição a ser extraída dos comentários acima é a de que o depoimento de pessoas, por mais respeitáveis e respeitadas que sejam, não constitui, em si, uma evidência histórica.

  • 1
    Aguirre Basilia M.B. & Saddi, Fabiana da C. Saddi (1997) “Uma alternativa de interpretação do II PND.” Revista de Economia Política, vol 17, nº 4 (68), out.-dez.
  • 2
    Velloso, João Paulo Reis (1986). O último trem para Paris, Rio de Janeiro, Nova Fronteira.
  • 3
    Barros de Castro, Antonio & Pires de Souza, Francisco Eduardo (1985). A economia brasileira em marcha forçada, Rio de Janeiro, Paz e Terra.
  • 4
    Eisenstadt, S. N. (1978). Revolution and the transformation of societies, a comparative study of civilizations. Nova York, The Free Press.
  • 5
    JEL Classification: N16; O21.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    27 Jun 2022
  • Data do Fascículo
    Apr-Jun 1998
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