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Transferência de política do tratamento diretamente observado da tuberculose: discursos de gestores da saúde

RESUMO

Objetivo:

Analisar os efeitos de sentidos produzidos pelos discursos de gestores em saúde sobre a Transferência de Política do Tratamento Diretamente Observado da Tuberculose.

Métodos:

Estudo qualitativo, desenvolvido em 2017, com seis gestores atuantes em serviços de saúde localizados em municípios do estado da Paraíba. O corpus, coletado por meio de entrevistas, foi analisado sob a perspectiva da Análise de Discurso.

Resultados:

Os discursos expressaram aspectos favoráveis para operacionalizar o processo de transferência de política, como o investimento em recursos humanos, tecnológicos, físicos e materiais; articular a gestão na organização da rede e sensibilizar os profissionais envolvidos. Identificaram-se barreiras como a prevalência de casos na Unidade de Referência, rotatividade de profissionais, preconceito e vulnerabilidade social.

Conclusões:

O estudo evidenciou que são necessários investimentos financeiros, pactuações governamentais e compromisso dos atores envolvidos na produção de cuidado para efetivar o processo de transferência de política nos municípios em estudo.

Palavras-chave:
Gestão em saúde; Tuberculose; Atenção primária à saúde; Pesquisa qualitativa; Política de saúde

ABSTRACT

Objective:

To analyze the effects of meanings produced by the speechess of health managers about the Policy Transfer of Directly Observed Treatment of Tuberculosis.

Method:

Qualitative study developed in 2017 with six managers working in health services located in municipalities in the state of Paraíba. The corpus, constituted by interviews, was analyzed by Discourse Analysis.

Results:

The speeches expressed aspects favorable to the operationalization of the policy transfer process, such as investing in human, technological, physical and material resources; coordinating management in the organization of the network and raising the awareness of the professionals involved. Barriers were identified, such as the prevalence of cases in the Reference Unit; professional turnover; prejudice and social vulnerability.

Conclusions:

The study showed that financial investments, government pacts and commitment of the actors involved in the production of care are necessary to carry out the policy transfer process in the municipalities investigated.

Keywords:
Health management; Tuberculosis; Primary health care; Qualitative research; Health policy

RESUMEN

Objetivo:

Analizar los efectos de los significados producidos por los discursos de los gestores de salud sobre la Política de Transferencia de Tratamiento Directamente Observado de la Tuberculosis.

Método:

Estudio cualitativo, desarrollado en 2017, con seis gerentes trabajando en servicios de salud ubicada en municipios del estado de Paraíba. El corpus recopilado a través de entrevistas, fue analizado por Discourse Analysis.

Resultados:

Los discursos expresaron aspectos favorables para la operacionalización del proceso de transferencia de políticas, como la inversión en recursos humanos, tecnológicos, físicos y materiales; la articulación de la gestión en la organización de la red y la sensibilización de los profesionales implicados. Se identificaron barreras como la prevalencia de casos en la Unidad de Referencia; rotación profesional; prejuicio y vulnerabilidad social.

Conclusiones:

El estudio mostró que las inversiones financieras son necesarias, pactos de gobierno y compromiso de los actores involucrados en la producción de cuidados con el propósito de llevar a cabo el processo de transferencia de políticas en los municipios en estudio.

Palabras clave:
Gestión em salud; Tuberculosis; Atención primaria de salud; Investigación cualitativa; Política de salud

INTRODUÇÃO

A tuberculose (TB) tem se mantido com alta carga de mortalidade, especialmente na população socioeconomicamente menos favorecida, e tem sido negligenciada como política pública de saúde, conforme evidenciado pela Organização Mundial da Saúde (OMS)11. World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020. [cited 2020 Apr 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/336069/9789240013131-eng.pdf
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No Brasil, em 2018, registraram-se 72.788 casos novos de TB diagnosticados, o que corresponde a uma incidência de 34,8 casos/100 mil hab. Apesar do declínio médio anual de 1,0%, observado entre os anos de 2009 e 2018, o coeficiente de incidência, em 2017 e 2018, superou o coeficiente em relação ao período de 2014 a 2016, o que pode representar um aumento no acesso aos dispositivos diagnósticos. A incidência da doença, no entanto, tem sido determinada socialmente por meio de aspectos individuais, contextuais e programáticos, aliados às crises econômicas que podem ter contribuído para aumentar essa incidência no contexto brasileiro22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Vigilância em saúde no Brasil 2003|2019: da criação da Secretaria de Vigilância em Saúde aos dias atuais. Boletim epidemiológico [Internet]. 2019 [cited 2020 Apr 02];50(esp.):1-154. Available from: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/setembro/25/boletim-especial-21ago19-web.pdf
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A política do controle da tuberculose, tanto em âmbito global quanto nacional, tem sido vista com mais prioridade nas últimas décadas, desde o surgimento da Estratégia de Tratamento Diretamente Observado (DOTs - Direct Observed Treatment Strategy), em 1993, posteriormente com a estratégia Stop TB e, atualmente, com a Estratégia pelo Fim da Tuberculose33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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).

Uma das medidas estratégicas recomendadas para controlar a TB é a realização do tratamento diretamente observado (TDO) em 90%, como importante ação de apoio que contribui no monitoramento do tratamento dos doentes e no fortalecimento da adesão à terapêutica, o que implica o comprometimento de todos os profissionais envolvidos33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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O TDO tem propiciado um progresso importante na taxa de cura e uma redução na taxa de abandono da TB11. World Health Organization (WHO). Global tuberculosis report 2020 [Internet]. Geneva: WHO; 2020. [cited 2020 Apr 02]. Available from: https://apps.who.int/iris/bitstream/handle/10665/336069/9789240013131-eng.pdf
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na Atenção Primária à Saúde (APS). Entretanto, o modo como é operacionalizado e o cenário geopolítico têm influenciado a forma de descentralizar essas ações em diferentes contextos territoriais e modelos assistenciais presentes na APS44. Shuhama BV, Silva LMC, Andrade RLP, Palha PF, Hino P, Souza KMJ. Evaluation of the directly observed therapy for treating tuberculosis according to the dimensions of policy transfer. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03275. doi: http://doi.org/10.1590/S1980-220X2016050703275
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, que podem interferir nos indicadores de controle da TB.

A descentralização das ações técnicas de controle da TB tem sido feita de forma diversa, não homogênea, a depender do contexto e dos cenários apresentados, exigindo da gestão a formulação de estratégias inovadoras e decisivas para o estabelecimento de um processo eficiente de Transferência de Política do Programa de Controle da Tuberculose que objetivasse o compromisso com a sustentabilidade e a articulação das ações entre os distintos níveis de atenção e de gestão do sistema de saúde, tendo como base as prioridades elencadas em cada contexto55. Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers’ discourse about information and knowledge related to directly observed treatment of tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e3210015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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A TP é compreendida como um movimento em que o conhecimento, as ideias, as instituições, as políticas e os programas, em um tempo ou espaço, são colocados na arena de decisões para o desenvolvimento de políticas e programas em outro tempo e contexto, sendo, portanto, resultado das decisões estratégicas tomadas por indivíduos dentro e fora do governo e/ou entre os diferentes níveis de governo de um mesmo país66. Oliveira RCC, Sá LD, Dias DCB, Pinheiro PGOD, Palha PF, Nogueira JA. Speeches of managers about the policy of the directly observed treatment for tuberculosis. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):761-8. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167.2015680611i
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. Ela pressupõe um processo participativo, contínuo e de envolvimento efetivo entre a gestão e os trabalhadores no processo de construção, operacionalização e avaliação da transferência de determinadas políticas públicas, nos mais variados cenários, com destaque para as ações inovadoras voltadas para melhorar os serviços e pode ser experimentada efetivamente por profissionais, gestores e usuários do sistema de saúde55. Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers’ discourse about information and knowledge related to directly observed treatment of tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e3210015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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Partindo-se do pressuposto de que é preciso haver uma aproximação entre a transferência das ações de controle da TB e a APS, do compromisso político dos gestores e do contexto de cada cenário envolvido para efetivar o processo de transferência de política do TDO, questiona-se: Quais são os efeitos de sentidos produzidos pelos discursos de gestores sobre a transferência de política do TDO da TB em municípios prioritários para o controle da doença na região da grande João Pessoa - Paraíba (PB).

Considera-se relevante compreender os sentidos produzidos pelos gestores sobre o processo de transferência do TDO a partir das condições de cada cenário apresentado, visto que sua análise poderá favorecer o desenvolvimento das diferentes fases do planejamento do TDO e repensar as políticas públicas de controle da doença.

O estudo objetivou analisar os efeitos de sentidos produzidos pelos discursos de gestores em saúde sobre a Transferência de Política do Tratamento Diretamente Observado da Tuberculose.

MÉTODO

Estudo de abordagem qualitativa, desenvolvido em serviços de saúde de três municípios prioritários para o controle da TB - Bayeux, Cabedelo e Santa Rita situados na região da Grande João Pessoa - PB. Esses municípios têm área geograficamente delimitada, com equipes de Saúde da Família; Programa de Agentes Comunitários de Saúde; Unidade Básica de Saúde; DOTS implementado no sistema de saúde e o envolvimento entre a Academia/serviços de saúde e os gestores/equipes do Programa de Controle da Doença e da Estratégia Saúde da Família/Vigilância Epidemiológica.

Os participantes, aqui denominados de enunciadores, foram seis gestores que ocupavam cargos de gestão em serviços de saúde nos três municípios do estudo: um coordenador do Programa de Controle da Tuberculose, um coordenador de doenças transmissíveis, um chefe de Divisão da Vigilância Epidemiológica e três secretários de Saúde. Cinco têm formação acadêmica na área da Saúde, e um é graduado em Administração e Economia, com Mestrado na área de Saúde.

Os depoentes foram selecionados por conveniência, por meio do seguinte critério de inclusão: ter experiência mínima de seis meses no cargo de gestor em saúde, no momento da entrevista. Foram excluídos os que estavam afastados de suas atividades quando da realização da coleta dos dados por motivos de férias e/ou licença médica.

A coleta do material empírico, denominado de corpus discursivo, foi obtida entre os meses de agosto e novembro de 2017, nos locais de trabalho dos depoentes, contatados por telefone para participar das entrevistas individuais, que foram audiogravadas com o auxílio de dispositivo de áudio portátil.

A entrevista foi guiada por um roteiro previamente testado e adequado ao cenário da pesquisa e registrou-se uma média de 30 minutos de duração. Como recurso para registrar as condições de produção do corpus e a durabilidade das entrevistas, utilizou-se o diário de campo, cujas anotações foram tecidas depois de seu término.

Os enunciadores foram motivados a falar sobre o processo de Transferência de Política, a partir de alguns questionamentos como estes: 1. Como tem sido a experiência da implantação/implementação da transferência da política do TDO com os profissionais de saúde da Atenção Básica ou Unidades de Referência? 2. Como as informações do TDO vêm sendo discutidas com os diferentes níveis de coordenação e com os profissionais atuantes na Atenção Básica ou nas Unidades de Referência? 3. Que estratégias vêm sendo utilizadas para envolver/motivar os profissionais atuantes no TDO no âmbito municipal? 4. Que facilidades e barreiras têm sido encontradas na implantação/implementação do TDO? 5. Que adequações têm sido necessárias para efetivar a transferência da política do TDO? 6. O que você destacaria como inovador em relação à implantação/implementação do TDO?

Visando garantir o anonimato dos enunciadores, as entrevistas foram codificadas com as letras GS (Gestor em Saúde), seguidas de algarismos arábicos, de acordo com a ordem das entrevistas (GS1 a GS6).

Como referencial teórico-analítico do corpus discursivo, foi utilizada a Análise de Discurso (AD) de matriz francesa, proposta por Michel Pêcheux, devido à possibilidade de identificar a posição-sujeito ocupada pelo enunciador e por estar ancorada na junção da história, da Psicologia e da ideologia, assim como pela possibilidade de evidenciar a filiação dos sujeitos e a produção de sentidos77. Orlandi EP. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes; 2012..

O corpus foi previamente organizado e alinhado com o objetivo do estudo, as condições de produção e a percepção ideológica identificadas nas falas, compreendendo a passagem do material empírico para o objeto discursivo por meio destas etapas do dispositivo de análise: 1. da superfície linguística (texto) para o objeto discursivo (discurso); 2. do objeto discursivo para a formação discursiva (FD); e 3. do processo discursivo para a formação ideológica (FI)77. Orlandi EP. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes; 2012..

Depois de feita a leitura em profundidade, na etapa 1, que se refere a passagem do texto para o discurso, foram reconhecidas as ideias, as tendências e as posições dos discursos dos gestores em uma conjuntura social, histórica e ideológica. Em seguida, identificou-se quem disse, o que e como foi dito e quais circunstâncias discursivas contribuíram para as FDs88. Souza SAF. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. 2. ed. Manaus: EDUA; 2021..

Na etapa 2 que consiste na passagem do objeto discursivo para a Formação Discursiva, buscou-se identificar as semelhanças de sentido construídas pelo texto. Foram recortadas e definidas as marcas linguísticas, a fim de verificar o que ampara o discurso sob os aspectos ideológicos e agrupá-los em oito FDs, conforme demonstrado nos Quadros 1 e 2.

Na etapa 3 que diz respeito à passagem do processo discursivo para a Formação Ideológica, observou-se como a ideologia permeou a textualização, porque a FD normalmente articula o discurso para o contexto ideológico, que passa do empírico para tornar-se sujeito discursivo88. Souza SAF. Análise de discurso: procedimentos metodológicos. 2. ed. Manaus: EDUA; 2021..

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Centro de Ciências da Saúde da Universidade Federal da Paraíba, sob o protocolo de nº 0193/2017/CEP/CCS/UFPB, observando-se as questões éticas a partir da Resolução nº 466/2012 do Conselho Nacional de Saúde (CNS). Todos os participantes da pesquisa assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido (TCLE).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

Depois de se proceder à leitura analítica dos discursos, identificaram-se dois blocos discursivos: (I) Aspectos favoráveis à Transferência da Política do TDO da Tuberculose e (II) Barreiras na operacionalização da Transferência da Política do TDO da Tuberculose.

Aspectos favoráveis à Transferência de Política do TDO da Tuberculose

Nesse primeiro bloco discursivo, as marcas linguísticas sublinhadas nos fragmentos discursivos possibilitaram construir três formações discursivas que traduziram os discursos dos enunciadores quanto aos aspectos favoráveis para operacionalizar a TP, a saber: investimento em recursos humanos, tecnológicos, físicos e materiais; articulação da gestão na organização da rede e sensibilização, bem como participação dos profissionais de saúde envolvidos.

No Quadro 1, a seguir, foram apresentadas as marcas linguísticas que evidenciaram a produção de sentidos a partir do que os gestores perceberam como elementos facilitadores do processo de trabalho e de articulação com os outros níveis de gestão, aspectos que impulsionaram o processo de transferência do TDO no e para os municípios.

Quadro 1 -
Aspectos favoráveis à transferência de política do TDO da Tuberculose nos municípios prioritários da Grande região de João Pessoa-PB, Brasil - 2017

Na primeira formação discursiva que trata do investimento em recursos humanos, tecnológicos, físicos e materiais; os enunciadores consideraram o investimento realizado como um elemento facilitador do processo de consolidação da transferência de política para o controle da TB. No enunciado do GS1, identificou-se como recurso agregador a duplicação de seus vínculos laborais ao desempenhar também a assistência ao doente na Unidade de Referência do âmbito estadual, que permite o acesso direto à unidade de referência terciária para os casos de TB e auxilia a identificar os doentes que chegaram a essa unidade, oriundos da localidade onde desempenha a função de gestor municipal.

As diferentes posições ocupadas pelo sujeito, como profissional e gestor, foram compreendidas para ele como um aspecto positivo, ao facilitar as articulações relacionadas ao processo de controle da TB nas diferentes instituições. No entanto pode ter havido aspectos que não contribuíram para controlar a TB, como no caso de atribuir a uma única pessoa responsabilidades pelos fluxos, processo institucionalizado previamente no sistema da rede de atenção, que deveriam seguir o curso sem a presença de um elemento mediador, o que se contrapõe às diretrizes do sistema de saúde e às prerrogativas das Redes de Atenção à Saúde (RAS).

Tais aspectos conduziram a uma melhor compreensão dos efeitos dos sentidos produzidos pelo discurso onipotente, gerado pelas condições de produção estritas ao ocupar papéis diferentes e que determinaram certa filiação ideológica, ou seja, “eu falo do que eu vivo, eu falo do que eu sou” (99. Pinheiro PGOD, Sá LD, Palha PF, Oliveira RCC, Nogueira JA, Villa TCS. Critical points for the control of tuberculosis on primary health care. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1227-34. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0467
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Em seu enunciado, ao afirmar a importância de um médico especialista na área, GS4 produziu um efeito de sentido como facilitador do processo, no que se refere à elucidação diagnóstica, à adesão à terapêutica instituída e ao seguimento dos doentes; uma realidade que, nem sempre, é apresentada nos municípios estudados.

A estrutura de atenção à TB tem como porta de entrada a Atenção Básica, na qual a equipe de saúde é formada por profissionais de saúde e generalistas. Já as unidades secundárias são constituídas de equipe multiprofissional cujo médico é especialista na área ou tem experiência no tema em razão de ser uma unidade de referência para os casos que necessitam de mais esclarecimentos sobre o diagnóstico; manejo de intolerância aos fármacos e efeitos adversos “maiores”. No que diz respeito às unidades terciárias, os profissionais devem ter capacitação e experiência no manejo de casos de TB com elevada complexidade clínica relacionada à resistência aos fármacos33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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As equipes de saúde devem estar inseridas em um programa de educação permanente, porque muitas das ações para o manejo da TB não são, necessariamente, da competência de especialistas, mas de profissionais com singular conhecimento técnico-científico, aspecto que requer atualização constante e, quando possível, supervisão ou matriciamento. Assim, uma proposta centrada na aprendizagem significativa produz sentidos que transformam práticas profissionais a partir da reflexão crítica, ressignificando-as e qualificando a todos os envolvidos para fortalecer a política do TDO no município1010. Silva CM. Educação permanente na atenção à tuberculose: desencadeando processos de mudanças [Projeto de intervenção]. Natal: Universidade Federal do Rio Grande do Norte; 2017. [cited 02 Apr 2020]. Available from: https://monografias.ufrn.br/jspui/bitstream/123456789/6533/1/PI%20Cristiane%20Moraes%20da%20Silva%20final%20%281%29.pdf
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Em um fragmento discursivo, o enunciador GS4 reconheceu que o Ministério da Saúde tem se preocupado com o repasse de informações por meio de protocolos estabelecidos para o controle da TB. Esse manual, com suas atualizações, é considerado uma ferramenta norteadora para qualificar e organizar os serviços de saúde e as ações preventivas e de vigilância, elucidar o diagnóstico e instituir a terapêutica nos casos de adoecimento por TB, especialmente os presentes na APS33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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O discurso do enunciador GS3 produziu sentidos sobre a importância dos recursos tecnológicos, como, por exemplo, a oferta dos exames de baciloscopia e de imagens à disposição na rede municipal. De fato, esse tipo de investimento vem sendo enfatizado pelo Ministério da Saúde quando reitera a importância de estruturar a rede de atenção à saúde no âmbito municipal e a rede de suporte laboratorial como grandes aliados na identificação dos sintomáticos respiratórios, na elucidação diagnóstica e no início precoce do tratamento33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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Já no fragmento de GS2, foi evidenciado, como uma ferramenta tecnológica aliada aos profissionais, o uso do WhatsApp® Messenger, que tem facilitado o trabalho cotidiano da gestão com as equipes de saúde e delas com a comunidade. Esse aplicativo possibilita a comunicação rápida por meio de mensagens de texto, de voz, de imagens, de músicas e de vídeos através da Internet. Apesar de seu uso na área da Saúde ter ganhado cada vez mais espaço e demonstrado resultados satisfatórios1111. Lima ICV, Galvão MTG, Pedrosa SC, Cunha GH, Costa AKB. Use of the WhatsApp application in health follow-up of people with HIV: a thematic analysis. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170429. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0429
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, pesquisas vêm registrando a necessidade de ampliar estudos que abordem normativas com os cuidados de segurança e as responsabilidades éticas no compartilhamento de informações de pacientes via WhatsApp1111. Lima ICV, Galvão MTG, Pedrosa SC, Cunha GH, Costa AKB. Use of the WhatsApp application in health follow-up of people with HIV: a thematic analysis. Esc Anna Nery. 2018;22(3):e20170429. doi: https://doi.org/10.1590/2177-9465-ean-2017-0429
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-1212. Leão CF, Coelho MES, Siqueira AO, Rosa BAA, Neder PRB. The use of WhatsApp in the physician-patient relationship. Rev Bioét. 2018;26(3):412-9. doi: https://doi.org/10.1590/1983-80422018263261
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Outro sentido emanado dos discursos dos enunciadores fez referência à formação discursiva que tratou da articulação da gestão na organização da rede. Tais atores sinalizaram referências promissoras no município, bem como nas relações deste com o Estado e as universidades. Evidenciou-se a importância da cooperação entre os sujeitos tomadores de decisão e os laboratórios de referência do estado da Paraíba, com vistas a facilitar a descentralização das políticas e das ações do manejo da TB. Os discursos revelaram ainda um sentido de desafio em relação ao fortalecimento da política da TB.

Ao compreender os sentidos do discurso do enunciador GS6, as relações entre os serviços de saúde locais foram marcadas pelo uso de uma metáfora na marca textual - temos um laço bem estreito - que definiu discursivamente a ótima relação com outras gerências da própria gestão. A metáfora, por sua vez, é constitutiva da produção de sentidos do enunciador e da própria constituição do sujeito. É um recurso usual presente na comunicação, e muitas vezes se relacionam pelo deslize (à deriva) de sentidos, em que há uma transferência do significado de uma palavra para outra, o que pode causar acontecimentos diferentes, por meio da interpretação, da ideologia e da historicidade que circundam o enunciador77. Orlandi EP. Análise do discurso: princípios e procedimentos. 10. ed. Campinas: Pontes; 2012..

Os sentidos produzidos pelo discurso do enunciador GS3 encontraram indícios de outra tipologia, o discurso político, que pode ser explicado pela posição que ocupavam como gestor, assujeitando-se ideologicamente ao gestor municipal. Esse assujeitamento propicia condições imprescindíveis para que o enunciador se torne sujeito do seu discurso ao se submeter livremente às condições de produção impostas pela ordem superior estabelecida, ainda que tenha a ilusão de autonomia1313. Ferreira MCL. Glossário de termos do discurso. Porto Alegre: UFRGS; 2001..

No que concerne à formação discursiva que tratou da sensibilização e da participação dos profissionais de saúde envolvidos no processo de transferência de política, observou-se, no discurso solidário do GS4, a ideia de que a sensibilidade em relação aos doentes da TB é um aspecto facilitador desse processo. Afirmou a importância de se ter “vontade” de buscar, de “estar sensível” e de “olhar” para o agravo saindo da “zona de conforto”, seja por parte dos gestores ou dos profissionais envolvidos no processo de cuidado do doente.

É possível considerar que ter sensibilidade e compromisso não diz respeito à posição ocupada pelo enunciador, mas está circunscrita ao interesse pelo bem comum, pelo “olhar” diferenciado e individualizado e o que a doença representa simbolicamente para ele, a população e, em especial, para o adoecido pela TB - o Outro.

Estudo sobre a comunicação e a ética da Alteridade, a partir do pensamento levinasiano, convida o sujeito a refletir para além das responsabilidades éticas com o Outro, cuja existência, as demandas e seus sofrimentos não implicarão apenas a necessidade de ajudar e de atender ao seu apelo, mas também de compreender que o outro afirma e torna humana a própria existência do sujeito1414. Martino LMS, Marques ACS. Communication as alterity’s ethics: explorations with Lévinas. Intercom. Rev Bras Ciênc Comum. 2019;42(3):21-39. doi: https://doi.org/10.1590/1809-5844201931
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Quando o GS6 comenta que “eles vêm absorvendo tudo”, o que, para ele, é considerado um aspecto favorável, o discurso remete à imagem de uma gestão verticalizada, em que os profissionais das equipes de saúde passaram a ser somente receptores de informações. Por meio da análise discursiva, foi possível constatar, em paráfrase, que, se “estão absorvendo”, é porque alguém está repassando informações e, sob o aspecto da transferência de política, o discurso, além de revelar um sentido de transferência de informações, pôde manifestar o sentido mais amplo, em processos de transformação de informações em conhecimento.

Ao longo das discussões sobre os aspectos favoráveis à transferência de política do TDO da tuberculose, percebe-se que a maioria dos gestores identificou alguns recursos já existentes nos respectivos municípios como facilitadores do processo de controle da TB, sem enfatizar aspectos que porventura fossem favoráveis especificamente ao processo de transferência do TDO.

Barreiras na operacionalização da Transferência da Política do TDO da Tuberculose

Nesse bloco discursivo, construíram-se cinco formações discursivas, conforme mostra o Quadro 2. Os sentidos evidenciaram as barreiras para revigorar o processo de transferência de política e do controle da TB, tais como: casos diagnosticados e tratados na Unidade de Referência; rotatividade de profissionais; preconceito e vulnerabilidade social; dificuldade de aderir ao tratamento e fragilidade no conhecimento dos profissionais. Observou-se um silenciamento, do ponto de vista discursivo, dos GS quanto à operacionalização do processo de transferência do TDO propriamente dito.

Quadro 2 -
Barreiras na operacionalização da transferência de política do TDO da tuberculose em municípios prioritários da Grande João Pessoa-PB, Brasil - 2017

Os casos diagnosticados e tratados na Unidade de Referência, na capital paraibana, foram considerados um problema para revigorar a política de controle da TB, uma vez que a maioria dos doentes, tradicionalmente, busca essa unidade hospitalar como primeira opção para a elucidação diagnóstica e a instituição do tratamento da doença. No discurso do GS1, os sentidos evidenciaram que o gestor, ao assumir o mandato, encontrou um cenário crítico que limitou a expansão da política de controle da TB, devido à falta de acompanhamento aos doentes, às altas taxas de tratamento inconclusivos e a um sistema de informação pouco eficiente.

Os GS2 e GS4 apresentaram um discurso caracterizado como contraditório, pois atribuíram, ao mesmo tempo, a não procura pelos serviços locais pelo doente a um “vício”, que é pautado pela própria memória discursiva do sujeito - efeito de um modelo centralizado, e por acreditar que essa “não procura” fosse decorrente da não resolutividade da unidade hospitalar do seu município, o que levou à busca da Unidade de Referência Estadual.

Estudo sobre os pontos de estrangulamento do sistema de saúde que produzem consequentes efeitos sobre o modelo da APS identificou limitações da rede de serviços quanto à elucidação diagnóstica e ao seguimento das pessoas adoecidas pela TB na APS. Dentre elas, ressaltam as atitudes sugestivas de preconceito dos próprios profissionais das equipes de saúde; limites quanto ao acesso a exames e consultas de rotina e dificuldades no sistema de referenciamento e da contrarreferência de pessoas adoecidas por TB99. Pinheiro PGOD, Sá LD, Palha PF, Oliveira RCC, Nogueira JA, Villa TCS. Critical points for the control of tuberculosis on primary health care. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1227-34. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0467
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Tais aspectos podem criar no imaginário coletivo a ideia da pouca resolubilidade dos sistemas locais de saúde que, em parte, colaborou com a memória discursiva do GS4 sobre o descrédito da APS. No entanto, sua fala silenciou a forte presença da Unidade de Referência, ao longo dos anos, na organização regional dos serviços de saúde para a assistência à TB, que reverbera na memória das pessoas e de profissionais como local prioritário para o tratamento da doença.

Compreende-se que a organização e a efetividade da APS, em diferentes municípios brasileiros, refletem a forma como o modelo hegemônico de atenção à saúde continua sendo perpetuado, que culmina em práticas de cuidado descontinuadas, não dialógicas e atemporais, descaracterizando a formação de redes de saúde fortes e idealizadas pelo sistema de saúde1515. Peruhype RC, Mitano F, Hoffmann JF, Surniche CA, Palha PF. Planning pathways in the transfer of directly observed treatment of tuberculosis. Rev Latino-Am Enfermagem. 2018;26:e3015. doi: https://doi.org/10.1590/1518-8345.2213.3015
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Quanto à formação discursiva relacionada à rotatividade de profissionais, pesquisas desenvolvidas na Paraíba sobre a TB destacaram que esse tem sido um dos principais problemas do planejamento das ações de assistência e seguimento dos doentes na APS66. Oliveira RCC, Sá LD, Dias DCB, Pinheiro PGOD, Palha PF, Nogueira JA. Speeches of managers about the policy of the directly observed treatment for tuberculosis. Rev Bras Enferm. 2015;68(6):761-8. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167.2015680611i
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Situações de alta rotatividade de pessoal têm sido percebidas nas equipes de saúde e nos gestores municipais responsáveis pelo Programa de Controle da Tuberculose. Essa realidade tem contribuído para a descontinuidade dos processos de trabalhos já iniciados99. Pinheiro PGOD, Sá LD, Palha PF, Oliveira RCC, Nogueira JA, Villa TCS. Critical points for the control of tuberculosis on primary health care. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1227-34. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0467
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e influenciando de forma negativa o processo de TP, pois as informações e os conhecimentos se dissipam quando existem mudanças constantes nas equipes de saúde, o que é ainda mais complexo quando se trata do cuidado dispensado às populações com mais vulnerabilidade social, como os doentes de TB.

Portanto, essa rotatividade tem elevado o processo de precarização das relações trabalhistas, já que é inversamente contrária aos princípios fundamentais do sistema de saúde, como a equidade e a longitudinalidade, por exemplo, que poderiam ser asseguradas por meio de concursos públicos e da instituição de uma política de cargos e salários.

Em relação ao preconceito, identificado como barreira no controle da TB, o GS5 referiu que essa doença “gera esse tipo de afastamento das pessoas” e revela um sentido natural percebido tanto pelos profissionais quanto pelos familiares do doente e da população em geral.

Atitudes naturalizadas e acompanhadas de processos discriminatórios geram fortes reações negativas nos doentes de TB, que têm contribuído substancialmente para o isolamento social, baixa autoestima e dificuldades de aderir à terapêutica que levam ao abandono do tratamento99. Pinheiro PGOD, Sá LD, Palha PF, Oliveira RCC, Nogueira JA, Villa TCS. Critical points for the control of tuberculosis on primary health care. Rev Bras Enferm. 2017;70(6):1227-34. doi: http://doi.org/10.1590/0034-7167-2016-0467
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. Esses aspectos discriminatórios devem ser (auto) monitorados pelas equipes de saúde, a fim de melhorar um dos fundamentos da transferência de política - manter e expandir as políticas de controle da TB no âmbito da APS.

Ainda nessa formação discursiva, no que diz respeito à vulnerabilidade social, outros determinantes sociais foram apontados por GS1 e GS4 como barreiras para o sucesso do controle da TB e envolveram os indicadores sociais, econômicos, as comorbidades pelo HIV/Aids, além da adoção de um estilo de vida que favorece o adoecimento e a mortalidade, como a exemplo do alcoolismo e da dependência química.

Esses e outros fatores têm mostrado o quão complexo é o manejo da transferência de política do TDO e reverberam a necessidade de novos modelos organizacionais para o enfrentamento da TB55. Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers’ discourse about information and knowledge related to directly observed treatment of tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e3210015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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, com equipes qualificadas para o acolhimento e estratégias voltadas para as singularidades dos cuidados33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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. Destarte, as inovações esperadas por esse processo, no âmbito da APS, poderão ser inspiradas em outras experiências e influenciar positivamente outras políticas de saúde.

Observou-se ainda nesse contexto que, dentre os enunciadores, apenas o GS4 cita a AIDS como determinante social. Sua memória discursiva foi interpelado pela ideologia ao se remeter às épocas passadas, quando exerceu suas atividades profissionais, proferindo um discurso sanitário que identificava o município portuário como prioridade para a comorbidade TB/HIV. Chama a atenção o silenciamento nos discursos por parte dos dois gestores pertencentes a esse município sobre a zona portuária como prioridade para o controle sanitário dessas doenças. Esse silenciamento ratificou a preocupante realidade, devido ao alastramento da infecção pelo HIV no âmbito mundial1616. Nogueira JA, Rodrigues JA, Silva RP, Ferreira GM, Alencar JMN, Rodrigues NR, et al. Vulnerabilidade feminina ao vírus da imunodeficiência humana - HIV: perfil sociodemográfico e comportamental sexual de jovens. Adolesc Saúde. 2017 [cited 02 Apr 2020];14(1):45-54. Available from: https://cdn.publisher.gn1.link/adolescenciaesaude.com/pdf/v14n1a07.pdf
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Tal problemática se acentua pelo fato de a TB ser uma doença oportunista, que tem causado as maiores taxas de óbito por doença infecciosa em pessoas infectadas pelo HIV/AIDS, mesmo com a redução da mortalidade pelo HIV/AIDS, quando do uso da terapia antirretroviral44. Shuhama BV, Silva LMC, Andrade RLP, Palha PF, Hino P, Souza KMJ. Evaluation of the directly observed therapy for treating tuberculosis according to the dimensions of policy transfer. Rev Esc Enferm USP. 2017;51:e03275. doi: http://doi.org/10.1590/S1980-220X2016050703275
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. O Ministério da Saúde enfatiza que o diagnóstico precoce de infecção pelo HIV em pessoas com tuberculose tem importante impacto no curso clínico das duas doenças e recomenda o fortalecimento do sistema de monitoramento da TB articulando diferentes áreas estratégicas, como a vigilância da saúde, o monitoramento da AIDS e a APS22. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Vigilância em saúde no Brasil 2003|2019: da criação da Secretaria de Vigilância em Saúde aos dias atuais. Boletim epidemiológico [Internet]. 2019 [cited 2020 Apr 02];50(esp.):1-154. Available from: https://portalarquivos2.saude.gov.br/images/pdf/2019/setembro/25/boletim-especial-21ago19-web.pdf
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-33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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No tocante aos fragmentos da formação discursiva que trataram das dificuldades de aderir ao tratamento, o GS2 problematizou aspectos com efeitos negativos sobre o controle da TB, como as dificuldades de acesso à unidade de saúde em relação à incompatibilidade no horário de atendimento para o doente de TB, bem como, em relação ao distanciamento entre a unidade de saúde e a residência dos doentes.

A ênfase discursiva reuniu vários elementos de contexto e de estilo de vida dos doentes, considerados como barreiras para operacionalizar o TDO, mas silenciou negociações para possíveis mudanças. Essas marcas linguísticas são recorrentes nas falas de profissionais, gestores e demais membros da sociedade civil que se distanciam das recomendações do protocolo do TDO, o qual ressalta a redução do distanciamento físico entre a unidade de saúde e o doente, considerando o tempo, o transporte e os gastos financeiros para receber o tratamento supervisionado55. Oliveira RCC, Adário KDO, Sá LD, Videres ARN, Souza SAF, Pinheiro PGOD. Managers’ discourse about information and knowledge related to directly observed treatment of tuberculosis. Texto Contexto Enferm. 2016;25(2):e3210015. doi: https://doi.org/10.1590/0104-07072016003210015
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, aspectos vastamente discutidos no modelo de transferência de política por meio da inovação, mas esquecidos pelas políticas públicas.

Quanto à adesão à terapia medicamentosa, a Organização Pan-americana em Saúde (OPAS) recomenda fortemente que a assistência esteja ancorada no princípio da integralidade, por meio de uma equipe multiprofissional qualificada que invista em estratégias de corresponsabilidades dos adoecidos por TB, envolvendo acolhimento, vínculo, confiança e escuta, visando fortalecer o processo de adesão ao tratamento1717. Organização Pan-americana da Saúde. Direitos humanos, cidadania e tuberculose na perspectiva da legislação brasileira [Internet]. Brasília (DF): OPAS; 2015. [cited 02 Apr 2020]. Available from: https://iris.paho.org/bitstream/handle/10665.2/7679/9788579670909_por.pdf;jsessionid=FA6FEB3F90182EFFB40B109E626B7E7D?sequence=1
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No que diz respeito ao TDO, além da construção do vínculo, recomenda-se que o profissional de Saúde ou outros profissionais capacitados observem diariamente a ingestão dos medicamentos com a supervisão do profissional da saúde. Essa é uma condição para fins de notificação. Nos dias em que o tratamento não for observado, como os finais de semana e os feriados, orienta-se que sejam dadas sucessivas explicações na tentativa de assegurar que as medicações sejam autoadministradas diariamente33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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Sobre a formação discursiva referente à fragilidade no conhecimento da TB pelos profissionais, o discurso do GS2 denotou a transferência de responsabilidade para os membros da equipe, quando afirma que, além de não compreender essa política, eles não participam das agendas de treinamento ofertadas pela gestão na área da TB, por acreditarem que já conhecem muito bem os aspectos que circundam o controle da doença. Entretanto esse enunciador silencia sobre as possíveis causas da desmotivação desses profissionais ou sobre o modelo de educação permanente presente naquele cenário.

Utilizar o TDO como ferramenta nas ações de controle da TB aproxima a equipe de saúde do contexto social dos usuários dos serviços, minimiza os efeitos estigmatizantes da doença, facilita a identificação de vulnerabilidades e cria uma ligação entre a equipe, o indivíduo e a família. Essa aproximação humanizada por parte dos profissionais de saúde, além de contribuir para a adoção de medidas que previnem o abandono ao tratamento, considerando, inclusive, os meios que facilitam os deslocamentos do paciente, empodera o sujeito a participar diretamente da construção do cuidado, por meio de uma educação dialogada e peculiar33. Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Vigilância em Saúde. Departamento de Vigilância das Doenças Transmissíveis. Manual de recomendações para o controle da tuberculose no Brasil. Brasília (DF): Ministério da Saúde; 2019 [cited 31 Jan 2021]. Available from: https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/manual_recomendacoes_controle_tuberculose_brasil_2_ed.pdf
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Assim, no modelo de transferência de políticas, importa ampliar o olhar para o cuidado, comprometer-se com as responsabilidades com o outro, investir em estratégias efetivas que busquem elevar o “Outro” à condição de sujeito, buscar conexões e fluxos para se inspirar nas experiências inovadoras ou fazer com que as inovações locais possam servir de inspiração para um novo circuito efetivo das políticas públicas de atenção à TB.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A Transferência de Política relacionada ao TDO da TB não foi evidenciada com expressividade nos discursos, o que aponta uma notória fragilidade na implantação e na implementação desse tratamento e indicia que essa estratégia seria discutida com os profissionais da APS em um segundo momento, em razão da maioria dos municípios apresentar cenários críticos que comprometeram o processo de cuidado dos doentes e, portanto, a efetividade do TDO.

Pela análise de discurso, os efeitos de sentidos dos enunciadores foram influenciados também pelas condições de produção, ou seja, as restritas à pessoa e as relacionadas ao âmbito macro por onde circulam. Esses efeitos de sentidos são marcados pela individualidade que carreia sua historicidade, como sujeito social, associado às suas memórias e ideologias. Também foram refletidas pelo não dito, pelo contraditório, pelas paráfrases, pelas metáforas, pelos assujeitamentos, pelos silenciamentos e pelas dimensões da Transferência de Políticas para além do TDO, o que ressalta a variabilidade de transferências com base na singularidade de cada espaço.

O estudo apresenta implicações importantes em relação à melhoria da gestão da prática clínica na APS, quando possibilita aos gestores em saúde reflexões acerca da necessidade de priorizar as políticas de combate à TB e de estimular a efetivação do TDO - é uma estratégia (ferramenta) com potencial para controlar a TB se for articulado em rede, com a assistência social, com um cuidado centrado na pessoa, e não, isoladamente.

Ademais, propicia reflexões sobre a indigência de investimentos em todos os tipos de recursos; o fortalecimento do vínculo na APS, a referência e a contrarreferência; a avaliação e o monitoramento dos indicadores de TB; a reorganização da rede sob a perspectiva das redes de atenção e a proposta de educação permanente, a partir da especificidade local, além de refletir sobre a responsabilidade e o olhar comprometido com o outro para além da doença.

Quanto às limitações, a pesquisa só contemplou um pequeno quantitativo de entrevistados e não incluiu outros municípios e estados. Por isso, é necessário desenvolver outros estudos, a fim de ampliar o conhecimento acerca da transferência de políticas do TDO.

Agradecimentos:

Ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq).

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Editado por

Editor associado:

Carlise Rigon Dalla Nora

Editor-chefe:

Maria da Graça Oliveira Crossetti

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    06 Dez 2021
  • Data do Fascículo
    2021

Histórico

  • Recebido
    11 Nov 2020
  • Aceito
    31 Maio 2021
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