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O cotidiano de enfermeiras e enfermeiros: relações de gênero, a partir do tempo no hospital1 1 Artigo extraído da tese de doutorado "Os tempos e relações de gênero: o cotidiano de enfermeiras e enfermeiros a partir do tempo de trabalho no hospital", apresentada à Escola Nacional de Saúde Pública, Fundação Oswaldo Cruz, Rio de Janeiro, RJ, Brasil. Apoio financeiro da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES), Brasil, processo nº 2518-12-0.

Resumos

Objetivo:

analisar os tempos da vida cotidiana de enfermeiras e enfermeiros, através da divisão sexual do trabalho e das relações de interdependência, a partir do tempo no hospital.

Método:

estudo quantiqualitativo, embasado em pesquisas de Usos do Tempo e na Teoria da Configuração de Interdependências de Norbert Elias. Registro da distribuição dos tempos diários, realizado por 42 participantes, com autoconfrontação, por meio de entrevistas que suscitavam diálogos sobre os aspectos subjetivos das experiências cotidianas relacionadas aos usos do tempo, a partir do trabalho num hospital universitário. O aporte teórico que fundamentou a análise dos dados foi embasado em conceitos de conflitos de interesses, disputas de poder, divisão sexual do trabalho, monocronia e policronia.

Resultados:

os registros dos tempos permitiram observar diferenças entre os grupos estudados, sendo úteis para identificação de conflitos, tensões, disputas de poder e desigualdades de gênero nas relações cotidianas das(os) entrevistadas(os), que afetam não apenas a saúde física e mental, mas os modos de vida.

Conclusão:

O percurso analítico apontou a necessidade de políticas públicas que promovam equidade nas relações de gênero, com vistas ao exercício de posturas tolerantes e discursos plurais capazes de respeitar as diferenças entre os tempos individuais e coletivos.

Gerenciamento do Tempo; Carga de Trabalho; Trabalho; Enfermeiras; Enfermeiros


Objective:

to analyze the everyday life of nurses through the sexual work division as well as through interdependence relations and the time in hospital.

Method:

quanti-qualitative study, based on the Time Use Survey and in Norbert Elias's Configuration Theory of Interdependencies. Daily shifts distribution record, directed by 42 participants - with self-confrontation - by interviews which drew dialogues on subjective aspects of the everyday experiences related to use of time, based on a job at a university hospital. The theoretical intake that founded data analysis was based on concepts of conflicts of interest, power struggles, sexual work division and polychronic-monochronic concepts - whether the work environment demands multitasking nurses or not.

Results:

time records allowed to observe differences between the groups studied, useful to identify conflicts, tensions, power struggles and gender inequalities in interviewees' everyday affairs that do not only affect physical and mental health, but also their way of life.

Conclusion:

the analytical path pointed out the need for public policies that promote equity in gender relations, keeping at sight the exercise of plural discourses and tolerant stances capable to respect differences between individual and collective time.

Time Management; Workload; Work; Nurses; Nurses; Male


Objetivo:

analizar los tiempos de la vida cotidiana de enfermeras y enfermeros, a través de la división sexual del trabajo y de las relaciones de interdependencia, a partir del tiempo en el hospital.

Método:

estudio cuantitativo y cualitativo, basado en investigaciones de Usos del Tiempo y en la Teoría de la Configuración de Interdependencias de Norbert Elias. Registro de la distribución de los tiempos diarios, realizado por 42 participantes, con autoconfrontación, por medio de entrevistas que suscitaban diálogos sobre los aspectos subjetivos de las experiencias cotidianas relacionadas a los usos del tiempo, a partir del trabajo en un hospital universitario. El aporte teórico que fundamentó el análisis de los datos fue basado en conceptos de conflictos de intereses, disputas de poder, división sexual del trabajo, monocronía y policronía.

Resultados:

los registros de los tiempos permitieron observar diferencias entre los grupos estudiados, siendo útiles para identificación de conflictos, tensiones, disputas de poder y desigualdades de género en las relaciones cotidianas de los entrevistados, que afectan no apenas la salud física y mental, pero también a los modos de vida.

Conclusión:

El recorrido analítico apuntó la necesidad de contar con políticas públicas que promuevan equidad en las relaciones de género, con el objetivo de obtener posturas tolerantes y discursos plurales capaces de respetar las diferencias entre los tiempos individuales y colectivos.

Administración del Tiempo; Carga de Trabajo; Trabajo; Enfermeras; Enfermeros


Introdução

Os tempos da vida cotidiana de enfermeiras e enfermeiros, a partir da divisão sexual do trabalho e das interdependências existentes na interface público-privada foi o objeto de investigação referente à tese de doutorado em Saúde Pública, cuja construção ocorreu através de análises sobre as relações de gênero, a partir do âmbito do trabalho, considerando a Teoria da Configuração de Interdependências( 1. Hunger D, Rossi F, Neto SS. A teoria de Norbert Elias: uma análise do ser professor. Educ Pesqui. 2011;37(4):697-710. - 2. Pereira AV, Rotenberg L, Oliveira SS. Relações de Gênero e Interdependências: reflexões a partir de mudanças na configuração hospitalar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 2013;20(3):1007-24. ) e as categorias divisão sexual do trabalho( 3. Hirata H, Kergoat D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad Pesqui. 2007;37(132):595-609. ), monocronia e policronia( 4. Lindquist JD, Kaufman-Scarborough CF. Polychronic tendency analysis: a new approach to understanding women's shopping behaviors. J Consumer Market. [Internet]. 2004 [acesso15 nov 2013];21(5):332-42. Disponível em: http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplus/10.1108/07363760410549159• ISSN 0736-3761 DOI 10.1108/07363760410549159
http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplu...
- 5. Bluerdorn AC, Kaufman CF, Lane PM. How many things do you like to do at once? An introduction to monochronic and polychronic time. Acad Manage Exec. 1992;6(4):17-26. ).

Empiricamente, tanto os aspectos da vida pessoal, quanto do exercício profissional da categoria de enfermeiras e enfermeiros contribuíram, ao longo dos anos, para reflexão do quanto estes(as) trabalhadores(as) convivem com múltiplos vínculos empregatícios e escalas noturnas e de fins de semana, caracterizando rotinas aceleradas e ações sobrepostas entre espaços e tempos dos trabalhos remunerados e demais atividades cotidianas.

Ao realizar a pesquisa, a partir dos descritores enfermagem e tempo, foi possível assinalar inúmeras publicações referentes à valorização do tempo de trabalho remunerado. A literatura que conjuga os respectivos conceitos, no momento de revisão, abordava conceitos como: horas diárias de assistência, duração para procedimentos, tempo da consulta de enfermagem, tempo de atuação profissional e absenteísmo. Em contrapartida, constatou-se uma lacuna na produção científica da área da enfermagem, em relação aos tempos relativos às atividades não remuneradas, ou seja, atividades domésticas, lazer e tempo livre.

O predomínio de estudos sobre o tempo associado ao exercício profissional, provavelmente relaciona-se ao uso do termo enfermagem, referindo-se a uma profissão. Todavia, a revisão da literatura contribuiu para ratificar a importância de se investigar as relações entre os tempos e espaços, com destaque para as questões de gênero na vida desses(as) trabalhadores(as), extrapolando o âmbito do trabalho remunerado.

Deste modo, cabe compartilhar alguns questionamentos sobre a relação entre a profissão de enfermeiras e enfermeiros e a divisão sexual do trabalho, a partir dos usos do tempo: até que ponto os horários de forma ininterrupta na realização do trabalho no hospital interferem no uso cotidiano do tempo desses(as) profissionais?; as enfermeiras, apesar de terem sofrido influência de uma formação feminina, mediante inserção posterior e progressiva em espaços de gerência no hospital, têm conseguido ocupar o tempo de modo que realmente modifiquem as relações tradicionais de gênero na vida privada?; e os enfermeiros, apesar de se aproximarem dos espaços de poder no hospital, por se formarem e permanecerem atuando numa profissão tida historicamente como feminina, estão ocupando os tempos no âmbito privado, de modo que contribuam para minimizar as assimetrias de gênero?.

O recorte do presente ensaio, levando-se em conta as respectivas indagações, teve como objetivo: analisar os tempos da vida cotidiana de enfermeiras e enfermeiros, através da divisão sexual do trabalho e das relações de interdependência, a partir do tempo no hospital. Para isso, foi necessário descrever os usos cotidianos do tempo de enfermeiras e enfermeiros, ao longo de uma semana; identificar as experiências de ações simultâneas nos usos do tempo; identificar conflitos e disputas de poder nas experiências de usos do tempo; e refletir sobre relações de tensões e conflitos e a interferência nas condições de saúde.

Métodos

Estudo embasado em pesquisas de Usos do Tempo( 6. Aguiar NF. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Rev Econômica. 2010;12(1):64-82.

. Rotenberg L. Relações de gênero e gestão dos tempos - a articulação entre o trabalho profissional e doméstico em equipes de enfermagem no Brasil. Laboreal. 2012;8(1):72-84.

. Cyrino R. A gestão do trabalho doméstico entre mulheres executivas: um exemplo de combinação de dados de uma pesquisa de Usos do Tempo com metodologia qualitativa. Política e Trabalho. 2011;34:145-62.

. Dedecca CS, Ribeiro CSMF, Ishii FH. Gênero e jornada de trabalho: análise das relações entre mercado de trabalho e família. Trab Educ Saúde. 2009;7(1):65-90.

10 . Ramos DP. Pesquisas de usos do tempo: um instrumento para aferir as desigualdades de gênero. Estud Feministas. 2009;17(3):861-70.

11 . Chenu A, Lesnard L. Time Use Surveys: a Review of their Aims, Methods, and Results. Eur J Sociol. 2006;47(3):335-59.

12 . Harvey A, Spinney J. Activity and contextual codes - Implications for time-use coding schemes. eIJTUR. [Internet]. 2011 [18 dez 2013]; 8(1):110-35. Disponível em: http://www.eijtur.org/pdf/volumes/eIJTUR-8-1.pdf. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.8.1.110-135.
http://www.eijtur.org/pdf/volumes/eIJTUR...

13 . Österbacka E, Merz J, Zick CD. Human capital investments in children - A comparative analysis of the role of parent-child shared time in selected countries. eIJTUR. [Internet]. 2012 [18 dez 2013]; 9(1):120-43. Disponível em: http://www.eijtur.org/pdf/volumes/eIJTUR-9-1.pdf. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.9.1.120-143
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14 . Robinson JP, Gershuny J. Visualizing multinational daily life via multidimensional scaling (MDS). eIJTUR. [Internet]. 2013 [18 dez 2013]; 10(1):76-90. Disponível em: http://www.eijtur.org/pdf/volumes/eIJTUR-10-1-2_Chapela.pdf dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.10.1.76-90
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15 . Stinson LL. Measuring how people spend their time: a time-use survey design. Monthly Labor Rev. 1999;122(8):12-9.

16 . Deding M, Lausten M. Choosing between his time and her time? Paid and unpaid work of Danish couples. eIJTUR. [Internet]. 2006 [19 dez 2013]; 3(1):28-48. Disponível em: http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/volumes/eIJTUR-3-1.pdf#page=29. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.3.1.28-48
http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/v...

17 . Fisher K, Layte R. Measuring Work-Life Balance Using Time Diary Data. eIJTUR. [Internet]. 2004 [19 dez 2013]; 1(1):1-13. Disponível em: http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/volumes/eIJTUR-1-1.pdf#page=8. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.1.1.1-13
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- 1818 . Schulz F, Grunow D. Comparing Diary and Survey Estimates on Time Use. Eur Soc Rev. 2012;28(5):622-32. ) e na Teoria da Configuração de Interdependências( 1. Hunger D, Rossi F, Neto SS. A teoria de Norbert Elias: uma análise do ser professor. Educ Pesqui. 2011;37(4):697-710. - 2. Pereira AV, Rotenberg L, Oliveira SS. Relações de Gênero e Interdependências: reflexões a partir de mudanças na configuração hospitalar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 2013;20(3):1007-24. ). Ancorou-se na proposta de triangulação de métodos quantiqualitativos, sendo uma dinâmica de investigação que integra análises objetivas, compreensão das relações e visão diferenciada das(os) participantes do trabalho de campo. A opção pela triangulação das informações está relacionada ao caráter do objeto, pois os fenômenos sociais relacionados aos usos do tempo suscitam análises de cunho qualitativo e quantitativo, com vistas a tornar claros os aspectos objetivos e subjetivos dos tempos cotidianos( 6. Aguiar NF. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Rev Econômica. 2010;12(1):64-82.

. Rotenberg L. Relações de gênero e gestão dos tempos - a articulação entre o trabalho profissional e doméstico em equipes de enfermagem no Brasil. Laboreal. 2012;8(1):72-84.
- 8. Cyrino R. A gestão do trabalho doméstico entre mulheres executivas: um exemplo de combinação de dados de uma pesquisa de Usos do Tempo com metodologia qualitativa. Política e Trabalho. 2011;34:145-62. ). Assim, correlacionar classificações e cômputos do tempo diário aos aspectos subjetivos, assegura à pessoa a possibilidade de olhar para o próprio tempo quantificado e refletir sobre as experiências cotidianas.

A pesquisa de campo foi realizada em um hospital localizado em um centro urbano metropolitano no estado do Rio de Janeiro, durante os meses de janeiro e fevereiro de 2012. A escolha deste local ocorreu pelas possibilidades de observação das experiências de ações sobrepostas e usos constrangidos do tempo, mediante as complexidades e especificidades que ocorrem em grandes cidades, principalmente pela organização temporal do trabalho, já que inclui setores que adotam um modus operandi a fim de atender à necessidade de manutenção das atividades, de forma ininterrupta, 24 horas por dia, nos sete dias da semana.

A coleta de dados foi realizada em duas etapas sucessivas e complementares. A primeira, através do registro quantitativo do tempo, despendido em diferentes atividades do dia a dia, ao longo de uma semana, possibilitando a observação da organização cotidiana da vida desses(as) enfermeiros(as). Já a segunda etapa abordou, por meio de entrevistas, aspectos subjetivos das experiências de usos dos tempos. Os(as) participantes foram incluídos(as) intencionalmente, a partir das seguintes variáveis: preenchimento correto do instrumento quantitativo de coleta de dados, denominado caderneta de atividades; acúmulo de mais de um vínculo de trabalho; ocupação de cargos na gerência; presença de filhos pequenos ou idosos na família; e realização de pós-graduação. Foram excluídos(as) aqueles(as) com apenas um vínculo de trabalho, que não preencheram a caderneta de atividades no período acordado, não moravam com companheiros(as), sem filhos ou idosos no domicílio, e não cursavam pós-graduação. Após os critérios estabelecidos, 42 enfermeiros(as) participaram de todas as etapas do estudo.

A execução da etapa quantitativa baseou-se em registros das atividades ao longo de uma sequência de dias, inclusive no período noturno e fim de semana. A obtenção destes registros era efetuada em uma caderneta de atividades, elaborada pelo autor, composta por folhas com quadros de horários equivalentes a sete dias, nas quais os(as) enfermeiros(as) assinalavam o tempo dedicado às atividades durante a semana. Com traços vermelhos indicavam a hora de início e término, referentes aos intervalos de hora em hora e, ainda, de 15 em 15 minutos, perfazendo as 24 horas do dia. A fim de tornar os resultados mais próximos da realidade expressada pelas(os) enfermeiras(os), ao ocuparem o tempo no dia a dia, foi assegurada a possibilidade do registro de atividades executadas ao mesmo tempo. Estas situações foram denominadas ao longo do estudo como atividades simultâneas.

Torna-se necessário pontuar que a caderneta de atividades foi elaborada a partir dos chamados diários de uso do tempo, um instrumento específico de pesquisas de Usos do Tempo, cujo fim é protocolar as atividades e os tempos para posterior codificação( 6. Aguiar NF. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Rev Econômica. 2010;12(1):64-82. , 1212 . Harvey A, Spinney J. Activity and contextual codes - Implications for time-use coding schemes. eIJTUR. [Internet]. 2011 [18 dez 2013]; 8(1):110-35. Disponível em: http://www.eijtur.org/pdf/volumes/eIJTUR-8-1.pdf. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.8.1.110-135.
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). No Brasil, uma pesquisa pioneira realizada em Belo Horizonte (MG)( 6. Aguiar NF. Metodologias para o levantamento do uso do tempo na vida cotidiana no Brasil. Rev Econômica. 2010;12(1):64-82. ), suscitou a organização de um livro de códigos com base naInternational Classification of Activities for Time-Use Statistics(ICATUS). Esta codificação foi fundamental para direcionar a classificação das atividades que constaram na caderneta (trabalho remunerado, atividades de lazer, estudos, cuidados de si, cuidados de outros, atividades domésticas, deslocamentos, sono e descanso).

O primeiro contato com cada enfermeiro(a) foi feito durante a jornada de trabalho, averiguando-se a possibilidade de participação e adesão. Eram apresentados os objetivos da pesquisa e a caderneta, sendo informado o passo a passo para o registro dos tempos. Como treinamento, o pesquisador preenchia, junto a cada profissional, as informações sobre as atividades realizadas no dia anterior, esclarecendo possíveis dúvidas. No caso de aceitação, era assinado o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido. A caderneta era, então, disponibilizada para cada entrevistado, para preenchimento ao longo de sete dias. Neste momento, agendava-se a data de retorno para um segundo encontro (etapa qualitativa da pesquisa). A finalidade era assegurar data próxima ao término dos registros, pegar o instrumento preenchido, quantificar o tempo por cada categoria, elaborar um esquema visual que foi intitulado mapa de horários e realizar uma entrevista recordatória para confrontar os dados compilados, a partir da distribuição temporal das atividades registradas na caderneta.

Em relação à etapa qualitativa, eram realizadas entrevistas, em locais reservados, conforme horário acordado previamente com cada participante. No início, eram verificadas as ausências de informações e possíveis equívocos no preenchimento da caderneta. A fim de propiciar o diálogo, adotou-se um roteiro com perguntas abertas relacionadas às informações produzidas pelas próprias pessoas durante o registro dos usos do tempo. Constaram neste roteiro questões relacionadas a acontecimentos e experiências realizadas no dia a dia ou eventos compartilhados com a família, assim como, episódios de situações ocorridas durante o tempo de trabalho remunerado, provocando diálogos que integrassem as duas dimensões. Foram abordadas temáticas como: organização do próprio tempo; preocupações e conflitos relacionados à esfera doméstica e ao trabalho profissional; divisão do trabalho doméstico; relação entre tempo usado para si e para os outros; e realização de atividades simultâneas.

As entrevistas ocorriam a partir da confrontação com o mapa de horários no próprio computador, buscando-se promover autoconfrontação simples. Esta atividade discursiva, compreendida como um processo ativo e inter-relacionado, permite autorreflexões. Oriundo de estudos sobre o contexto da atividade de trabalho, o termo autoconfrontação objetiva promover um diálogo interior ao participante, que durante a entrevista teria dificuldade de destravar sem a presença de um texto (esquema) visualizável na forma de imagem ou fala( 1919 . Faïta D, Vieira M. Réflexions méthodologiques sur l'autoconfrontation croisée. D.E.L.T.A. 2003;19(1):123-54. ).

Neste sentido, buscou-se fazer deste entrecruzamento de técnicas, um momento para reflexões sobre as diferentes temporalidades e as possíveis expressões contraditórias das relações cotidianas. Ou seja, para identificar desigualdades de gênero, conflitos a partir da realização de ações simultâneas, tensões nas relações entre vida pública e privada, além das condições de saúde e doença do(a) trabalhador(a).

O tratamento dos dados quantitativos ocorreu por meio de comparações entre os tempos despendidos em atividades por gênero, a partir do teste de Mann-Whitney, sendo adotado o nível de significância de 5%. Cabe destacar que, as comparações foram realizadas a fim de propiciar uma exploração inicial dos dados, tendo em vista as limitações das análises estatísticas, em função da amostra reduzida.

Para análise das entrevistas, optou-se pela técnica de análise temática, como uma das formas que têm como finalidade obter informações que expressem de modo mais fidedigno o que pensa(m) o(s) grupo(s) investigado(s) sobre determinado tema( 2020 . Câmara RH. Análise de Conteúdo: da teoria à prática em pesquisas sociais aplicadas às organizações. Gerais: Rev Interinstitucional Psicol. 2013;6(2):179-91. ).

As narrativas foram analisadas a partir de diálogos entre múltiplos referenciais teóricos, sendo neste estudo, identificados através de categorias, como conflitos de interesses, disputas de poder( 1. Hunger D, Rossi F, Neto SS. A teoria de Norbert Elias: uma análise do ser professor. Educ Pesqui. 2011;37(4):697-710. - 2. Pereira AV, Rotenberg L, Oliveira SS. Relações de Gênero e Interdependências: reflexões a partir de mudanças na configuração hospitalar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 2013;20(3):1007-24. ), divisão sexual do trabalho( 3. Hirata H, Kergoat D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad Pesqui. 2007;37(132):595-609. ), monocronia e policronia( 4. Lindquist JD, Kaufman-Scarborough CF. Polychronic tendency analysis: a new approach to understanding women's shopping behaviors. J Consumer Market. [Internet]. 2004 [acesso15 nov 2013];21(5):332-42. Disponível em: http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplus/10.1108/07363760410549159• ISSN 0736-3761 DOI 10.1108/07363760410549159
http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplu...
- 5. Bluerdorn AC, Kaufman CF, Lane PM. How many things do you like to do at once? An introduction to monochronic and polychronic time. Acad Manage Exec. 1992;6(4):17-26. ).

O estudo foi aprovado pelo Comitê de Ética da Faculdade de Medicina/Hospital Universitário Antônio Pedro/Universidade Federal Fluminense (parecer nº 249/2011) e Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz (parecer nº 205/2011). A fim de respeitar todos os preceitos éticos da pesquisa com seres humanos, a manutenção do sigilo das(os) entrevistadas(os) foi garantida, a partir da identificação dos depoimentos por números que aparecem após a palavra enfermeira(o), no fim de cada recorte das falas.

Resultados

O registro do cômputo de tempo dedicado aos grupos de atividades (Tabela 1), ao ser apresentado por gênero, sendo 57,1% de enfermeiras e 42,9% de enfermeiros, possibilitou a observação de diferenças significativas em relação ao trabalho remunerado, atividades domésticas, cuidados de outros e de si.

Estes dados também foram agrupados considerando categorizações que propõem classificação a partir de: tempo contratado, indicado pela soma do tempo ocupado com o trabalho remunerado e estudos; tempo comprometido, designado pela soma do tempo de trabalho doméstico e cuidados de outros; tempo pessoal, apontado pela soma dos tempos ocupados com os cuidados de si e sono; e tempo livre,como aquele mostrado a partir do cômputo de horas das atividades que não foram contempladas nos itens anteriores, ou seja, podendo remeter às atividades relacionadas à vida social e deslocamento( 1515 . Stinson LL. Measuring how people spend their time: a time-use survey design. Monthly Labor Rev. 1999;122(8):12-9. ).

Visualizar os usos do tempo, a partir da categorização das atividades agrupadas em blocos (Tabela 2) também permitiu a realização de comparações por gênero.

Tabela 1
- Tempo médio dedicado aos grupos de atividades por gênero e resultados das comparações estatísticas. Rio de Janeiro, Brasil, 2012
Tabela 2
- Média dos tempos agrupados em blocos, por grupo estudado, e resultados das comparações estatísticas. Rio de Janeiro, Brasil, 2012

O registro referente ao tempo simultâneo (Tabela 3), que reflete as atividades realizadas de maneira sobreposta, ao considerar o tempo total despendido com as respectivas atividades, foi outro modo de observar comparações por gênero, sobretudo quando se associou à vinculação, segundo as médias de tempo contratado e tempo comprometido.

Tabela 3
- Tempo médio (horas: minutos) despendido em atividades simultâneas, ao longo de uma semana, segundo sua vinculação com tempo contratado ou tempo comprometido e resultados das comparações estatísticas por gênero. Rio de Janeiro, Brasil, 2012

A constatação de um tempo excessivo de trabalho profissional, inferindo centralidade do trabalho na vida e sobreposição de ações atreladas à vida em família, suscitando a realização de ações simultâneas, aparece como fator comum na fala da maioria das(dos) participantes, denunciando incômodo e preocupação com a rotina. Essa questão pode ser observada quando um enfermeiro refere queo resultado que chegou pra mim foi um pouco assustador... de como é rotineiro nosso dia a dia... realmente você faz tudo muito no automático...(enfermeiro 17), ou a partir do exemplo de uma enfermeira que, ao visualizar o mapa de horários, comenta que não sabia que era tão grave, não sabia que era tão sério [...] a coisa assim ao vivo e a cores... (enfermeira 61).

Mesmo que a confrontação, a partir dos registros dos tempos, possibilite identificar inquietações nas falas das enfermeiras e dos enfermeiros, pode-se observar que a maioria das entrevistadas, ao dialogar sobre a realização de atividades simultâneas, expressa aceitação naturalizada para o sexo feminino. Esta questão pode ser exemplificada quando observa-se um relato apontandoque isso aí é de personalidade... eu adoro poder fazer várias coisas ao mesmo tempo... chega uma hora que eu estou no meu limite, mas eu tenho que fazer... (enfermeira 53); ou uma referência de que temuma vida muito louca [...] tudo ao mesmo tempo[...] mas lido bem com isso... talvez até por exercitar isso diariamente [...] por vezes é estressante, mas eu lido bem... (enfermeira 08).

Já os homens, a maioria refere que a sobreposição de ações tende a se afastar do dia a dia de suas vidas, tendo em vista a afirmativa, categórica, de um enfermeiro que nunca faz várias coisas ao mesmo tempo[...] acho horrível... acho isso uma atitude patológica... organizo o meu tempo de maneira que eu possa dar atenção exclusiva para aquilo que eu estou me focando... (enfermeiro 68).

Quando destacam-se situações referentes às desigualdades de gênero, a partir da realização de atividades simultâneas no âmbito do trabalho, é possível observar a presença de conflitos e desigualdades nas relações de poder, que se tensionam no dia a dia. Estes conflitos aparecem na entrevista de uma enfermeira, ao comentar que atrapalham a sintonia do casal... aí, às vezes a gente não está sintonizando na mesma estação... um está ouvindo pagode, o outro está ouvindo xaxado... fica meio complicado... (enfermeira 61); e também de uma outra participante, ao compartilhar que a culpa também é minha[...] tem um certo momento que estou cansada, mas acho que ele (companheiro) está mais do que eu... ele cuida dos meus filhos tocando violão, que é o hobby dele [...] fica na internet... eu não tenho... não dá tempo... e isso entra no meu cotidiano como normal... (enfermeira 05).

Ainda existem desdobramentos provenientes da divisão desigual do trabalho doméstico e invisibilidade do mesmo. Quando a mesma trabalhadora expressa que tem dia que eu acho que vou ficar louca [...]me sinto sobrecarregada... extremamente irritada... estressada[...] tenho sensação de que trabalho mais do que todo mundo[...] estou sempre cansada... (enfermeira 05), pode-se observar que usos desiguais dos tempos afetam, negativamente, as condições de saúde.

Discussão

Em relação ao tempo médio ocupado por grupos de atividades (Tabela 1), além do período dedicado ao sono/descanso, o tempo dispensado ao trabalho remunerado é o que mais ocupa o dia a dia dos participantes. Os resultados indicam diferença significativa em relação ao tempo dedicado ao trabalho remunerado, sendo maior entre os enfermeiros, com média de 52 horas, quando comparados às enfermeiras, com média de 39 horas, sendo a diferença em torno de 13 horas. Quanto ao tempo voltado para atividades domésticas, o valor observado entre as enfermeiras, em geral 16 horas ao longo da semana, correspondeu ao dobro daquele observado entre os enfermeiros, ou seja, em média 8 horas. Em relação aos cuidados de outros, a diferença também é significativa, de aproximadamente 9 horas a mais entre as enfermeiras.

Comparações entre homens e mulheres sobre os usos desiguais do tempo ocupado com o trabalho remunerado, atividades domésticas e cuidados de outros (crianças ou idosos) podem ser encontradas em estudos nacionais( 7. Rotenberg L. Relações de gênero e gestão dos tempos - a articulação entre o trabalho profissional e doméstico em equipes de enfermagem no Brasil. Laboreal. 2012;8(1):72-84.

. Cyrino R. A gestão do trabalho doméstico entre mulheres executivas: um exemplo de combinação de dados de uma pesquisa de Usos do Tempo com metodologia qualitativa. Política e Trabalho. 2011;34:145-62.

. Dedecca CS, Ribeiro CSMF, Ishii FH. Gênero e jornada de trabalho: análise das relações entre mercado de trabalho e família. Trab Educ Saúde. 2009;7(1):65-90.
- 1010 . Ramos DP. Pesquisas de usos do tempo: um instrumento para aferir as desigualdades de gênero. Estud Feministas. 2009;17(3):861-70. ) e internacionais( 1616 . Deding M, Lausten M. Choosing between his time and her time? Paid and unpaid work of Danish couples. eIJTUR. [Internet]. 2006 [19 dez 2013]; 3(1):28-48. Disponível em: http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/volumes/eIJTUR-3-1.pdf#page=29. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.3.1.28-48
http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/v...
- 1717 . Fisher K, Layte R. Measuring Work-Life Balance Using Time Diary Data. eIJTUR. [Internet]. 2004 [19 dez 2013]; 1(1):1-13. Disponível em: http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/volumes/eIJTUR-1-1.pdf#page=8. dx.doi.org/10.13085/eIJTUR.1.1.1-13
http://ffb.uni-lueneburg.de/eijtur/pdf/v...
).

Direta ou indiretamente, os usos do tempo na esfera doméstica das enfermeiras mostram-se distantes de usos do tempo de outras mulheres, com nível de escolaridade e tempo de trabalho remunerado semelhantes. Um exemplo é o estudo realizado com mulheres executivas, que possuem nível de escolaridade elevado (68% com pós-graduação) e que dizem empregar 45 minutos/dia com o trabalho doméstico durante os dias de semana e média de 103 minutos/dia com o trabalho doméstico nos fins de semana( 8. Cyrino R. A gestão do trabalho doméstico entre mulheres executivas: um exemplo de combinação de dados de uma pesquisa de Usos do Tempo com metodologia qualitativa. Política e Trabalho. 2011;34:145-62. ). Estes dados contrastam com os tempos relatados pelas enfermeiras desta pesquisa, pois mesmo compondo um grupo com 92% de pós-graduadas (especialização e mestrado), relatam que ocupam cerca de 700 minutos com trabalho doméstico durante a semana e média de 270 minutos de trabalho doméstico, nos finais de semana. Como visto, as enfermeiras apresentam maiores usos do tempo em atividades domésticas, tanto em comparação com outro grupo de mulheres, quanto com os enfermeiros deste estudo.

Além disso, as enfermeiras também apresentaram diferenças significativas em relação aos tempos de cuidados de si, cerca de 18 horas, quando comparadas aos enfermeiros, cuja média perfaz 15 horas. As demais atividades como sono/descanso, lazer/vida social, estudos e deslocamentos não diferiram significativamente.

Quanto aos dados analisados a partir da média dos tempos agrupados em blocos por grupos estudados (Tabela 2), pode-se observar diferenças significativas entre enfermeiras e enfermeiros sobre os tempos contratado, comprometido e pessoal( 1515 . Stinson LL. Measuring how people spend their time: a time-use survey design. Monthly Labor Rev. 1999;122(8):12-9. ). Em relação ao tempo contratado, o tempo médio difere em cerca de 14 horas entre homens e mulheres, com valores de 56 e 42 horas semanais, respectivamente. Quanto ao tempo comprometido, a diferença corresponde ao dobro, sendo 16 horas para os enfermeiros e 32 horas para as enfermeiras. Já no tempo pessoal, a diferença cai para, aproximadamente, 9 horas, apresentando-se estatisticamente significativa, o que não foi observado no tempo livre.

Assim, pode-se ratificar que, os enfermeiros ocupam mais o tempo na esfera pública e as enfermeiras a atividades relacionadas à esfera privada. Apesar de observar o aumento da participação feminina no mercado de trabalho, os homens não têm efetuado o aumento proporcional da participação no âmbito da vida privada( 9. Dedecca CS, Ribeiro CSMF, Ishii FH. Gênero e jornada de trabalho: análise das relações entre mercado de trabalho e família. Trab Educ Saúde. 2009;7(1):65-90. ).

Quanto às atividades simultâneas (Tabela 3), realizadas de maneira sobreposta, entre as enfermeiras, o tempo total médio despendido ao longo de uma semana foi superior a 16 horas, equivalendo a mais que o dobro do valor observado entre os enfermeiros (diferença estatisticamente significativa, p=0,011). As diferenças entre os grupos masculino e feminino também se expressam nas atividades simultâneas durante o tempo comprometido (p=0,013), isto é, envolvido com as atividades domésticas e cuidados de outros. Porém, estes mesmos grupos não diferiram estatisticamente durante o tempo contratado (p=0,683). Assim, entre as enfermeiras, as atividades simultâneas predominam no universo privado, podendo-se inferir que tendem a realizar de maneira sobreposta as atividades domésticas e cuidados de outros, com média de 10 horas ao longo da semana. Já entre os enfermeiros, as atividades simultâneas vinculam-se mais ao tempo contratado, sendo menor a diferença ocorrida entre o tempo contratado e o tempo comprometido (em torno de 1 hora), em comparação com as enfermeiras (em torno de 6 horas).

Vale destacar que, o esforço para incluir a possibilidade de registro das situações simultâneas na caderneta de atividades foi um desafio, tendo em vista apontamentos referentes às dificuldades enfrentadas pelos estudiosos dos usos do tempo na coleta de dados precisos e completos, frente ao dinamismo cotidiano da atividade humana( 1515 . Stinson LL. Measuring how people spend their time: a time-use survey design. Monthly Labor Rev. 1999;122(8):12-9. , 1818 . Schulz F, Grunow D. Comparing Diary and Survey Estimates on Time Use. Eur Soc Rev. 2012;28(5):622-32. ). Todavia, o retorno expressivo das enfermeiras caracterizou-se como êxito, possibilitando mais um modo de identificação de usos desiguais do tempo quanto ao gênero.

Desta forma, embasando-se em modelos de orientação individual ou organização ocidental do tempo, em termos de monocronia ou policronia( 4. Lindquist JD, Kaufman-Scarborough CF. Polychronic tendency analysis: a new approach to understanding women's shopping behaviors. J Consumer Market. [Internet]. 2004 [acesso15 nov 2013];21(5):332-42. Disponível em: http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplus/10.1108/07363760410549159• ISSN 0736-3761 DOI 10.1108/07363760410549159
http://www.emeraldinsight.com/doi/pdfplu...
- 5. Bluerdorn AC, Kaufman CF, Lane PM. How many things do you like to do at once? An introduction to monochronic and polychronic time. Acad Manage Exec. 1992;6(4):17-26. ), foi possível identificar os tipos de tempo que predominam no cotidiano de enfermeiras e enfermeiros. A partir do registro das atividades simultâneas, as diferenças que surgiram por grupo permitiram sinalizar desigualdades de gênero. De maneira geral, os registros dos enfermeiros permitiram identificar uma organização que se aproxima da abordagem monócrona, isto é, representada por um tempo linear, sequencial, disciplinado, controlado e marcado por eventos executados cada um em seu tempo. E o grupo das enfermeiras encontrou-se, tendenciosamente, associado a uma organização polícrona, representada por vários eventos ocorrem ao mesmo tempo, pela aproximação com a possibilidade de transgredir horários e visão tradicional feminina em relacionar-se com o acúmulo de funções na vida privada.

Através da autoconfrontação, realizada durante as entrevistas, pode-se observar que, as experiências registradas nos mapas de horários, que caracterizam usos constrangidos dos tempos por meio de sobreposição de ações( 9. Dedecca CS, Ribeiro CSMF, Ishii FH. Gênero e jornada de trabalho: análise das relações entre mercado de trabalho e família. Trab Educ Saúde. 2009;7(1):65-90. ), também encontram-se mais presentes nos discursos das enfermeiras. Vale destacar que, as enfermeiras, em geral, sinalizavam a necessidade de realização de mais ações simultâneas durante um período limitado, com destaque para as sobreposições existentes no tempo comprometido no âmbito doméstico. Este movimento aparece de modo naturalizado na maioria das falas femininas, mesmo que esteja destacada a presença de conflitos de interesses e tensões, tomando-se por base a Teoria das Configurações de Interdependência( 1. Hunger D, Rossi F, Neto SS. A teoria de Norbert Elias: uma análise do ser professor. Educ Pesqui. 2011;37(4):697-710. - 2. Pereira AV, Rotenberg L, Oliveira SS. Relações de Gênero e Interdependências: reflexões a partir de mudanças na configuração hospitalar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 2013;20(3):1007-24. ).

No entanto, observa-se que, as experiências simultâneas, de alguma forma afetavam as relações de dependência, tanto na vida das enfermeiras quanto na dos enfermeiros, provocando, em muitas situações, desgastes e tensões. Registrar os tempos e confrontá-los, numa relação de contradições entre excessos e falta de tempo, suscitou a possibilidade de observação de situações de espanto, cansaço e tristeza, associadas ao estresse. Assim, pode-se constatar que, as relações de interdependências presentes nos modos de organização do próprio tempo permitiram identificar conflitos, tensões e disputas de poder( 1. Hunger D, Rossi F, Neto SS. A teoria de Norbert Elias: uma análise do ser professor. Educ Pesqui. 2011;37(4):697-710. - 2. Pereira AV, Rotenberg L, Oliveira SS. Relações de Gênero e Interdependências: reflexões a partir de mudanças na configuração hospitalar. História, Ciências, Saúde - Manguinhos. 2013;20(3):1007-24. ), que caracterizam, para este grupo de profissionais, não apenas desigualdades relacionadas à divisão sexual do trabalho( 3. Hirata H, Kergoat D. Novas configurações da divisão sexual do trabalho. Cad Pesqui. 2007;37(132):595-609. ), mas também, condições de saúde física e mental afetadas( 7. Rotenberg L. Relações de gênero e gestão dos tempos - a articulação entre o trabalho profissional e doméstico em equipes de enfermagem no Brasil. Laboreal. 2012;8(1):72-84. ).

A confrontação realizada pelo(a) próprio(a) participante, através da imagem do mapa de horários, utilizada durante as entrevistas, sobre o tempo catalogado nas cadernetas ao longo de uma semana, parece ter promovido em alguns casos, oportunidade para reflexões sobre o desenrolar do próprio cotidiano. Um olhar diferenciado sobre suas relações consigo e com outras pessoas no dia a dia possibilitou reações diversificadas, traduzindo-se em uma oportunidade de olhar para a vida, no sentido de autoanalisar-se além de pensar sobre a própria saúde. Desta forma, a desproporção entre tempo disponibilizado para si e para os outros, levando-se em consideração a realização das atividades simultâneas e centralidade do trabalho remunerado na vida, provoca, além de cansaço cumulativo que afeta a saúde emocional e física, disputas de poder e conflitos, que tensionam as relações de gênero.

Em relação à contribuição do presente estudo, cabe apontar algumas limitações, como: resistência à participação, por se tratar de pesquisa relacionada à exposição da vida privada; dificuldade de adesão da(o) participante, mediante prolongado compromisso no registro durante sete dias; atitude recordatória para o registro na caderneta, apresentando risco de subestimar a precisão do tempo mediante dinamismo da vida; e ausência de aspectos relacionados ao contexto e às pessoas que compartilharam os tempos investigados.

Conclusão

As análises advindas da temática investigada abordam um caráter relacional, permitindo reflexões sobre as fronteiras entre os espaços e tempos do dia a dia de enfermeiras e enfermeiros. Por um lado, pode-se observar a presença de movimentos, que apontam modificações nas relações tradicionais entre os sexos, tanto na vida privada, quanto na pública. Mas por outro lado, são muitos os entraves que dificultam o processo de mudança das posições naturalizadas, através dos aspectos biológicos, por influências histórico-culturais. O cotidiano destes(as) profissionais, a partir do tempo no hospital, em geral, tem sido perpassado por conflitos de interesses e disputas de poder, sendo possível sinalizar diferenças quanto à realização do trabalho doméstico e atividades simultâneas, uso do tempo para si e para os outros e a maneira como os(as) entrevistados(as) percebem a saúde e as tensões advindas das relações e dos usos desiguais do tempo. Todavia, quando se trata de vida corrida, sobreposição de ações e sobrecarga nos trabalhos remunerado e não remunerado, evidencia-se para ambos os grupos, uma relação tensa entre os tempos, cuja repercussão afeta as relações de gênero, condições de saúde e modos de vida.

Quanto ao processo saúde-doença, ambos os grupos parecem afetados por essas formas de relação com os tempos. As enfermeiras expressam maiores níveis de desgaste, mediante experiências que destacam a presença de cansaço e sobrecarga, relacionados às jornadas de trabalho ininterruptas e usos dos tempos constrangidos, caracterizando maior uso do tempo comprometido com os outros do que disponibilidade de tempo para si. E os enfermeiros, embora relatando experiências simultâneas, apresentam tendência de preservar um pouco mais de tempo para si. E mesmo referindo mais tempo ocupado com o trabalho remunerado, procuram evitar ou até controlar os usos sobrepostos dos tempos.

Deste modo, os resultados apontaram para a necessidade de políticas públicas, que promovam equidade nas relações de gênero, com vistas às posturas mais tolerantes e discursos plurais que respeitem as diferenças entre os tempos individuais e coletivos.

Agradecimentos

As Professoras Drª Lucia Rotenberg, do Instituto Oswaldo Cruz/Fundação Oswaldo Cruz) e Drª Simone Santos Oliveira, da Escola Nacional de Saúde Pública/Fundação Oswaldo Cruz), pelas importantes reflexões e orientações compartilhadas durante o tempo de elaboração da tese de doutorado.

Às enfermeiras e aos enfermeiros, que anonimamente disponibilizaram o próprio tempo para participarem desta pesquisa.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2015

Histórico

  • Recebido
    20 Set 2014
  • Aceito
    04 Abr 2015
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