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A família e o doente mental usuário do hospital-dia: estudo de um caso

La familia y el enfermo mental usuário del hospital/día: estudo de un caso

The family and the mentally-ill user of day-hospitals: a case study

Resumos

O hospital-dia, como modalidade de assistência psiquiátrica, proporciona a família a possibilidade de vivenciar junto ao seu familiar doente uma maior convivência durante o tratamento, e a leva a buscar junto a esse familiar formas de facilitar o processo adaptativo de interação na família. A proposta deste estudo se configura na busca de compreender de que modo a família e o usuário do hospital-dia interagem no recesso do lar e descrever a experiência narrada por uma família. A família deste estudo foi selecionada a partir de um usuário do hospital-dia que possuísse ou possua história anterior de internações psiquiátricas. Foram entrevistados cinco membros da família em estudo. A partir das experiências descritas pelos sujeitos emergiram duas grandes categorias temáticas: A família vivenciando junto ao seu familiar o hospital-dia , A convivência família ¾ usuário. As experiências relatadas pelos sujeitos neste estudo são bastante significativas para a construção de novas possibilidades na assistência à família do doente mental.

família; relações interpessoais; hospitais-dia


El hospital-día como modalidad de atención psiquiátrica, proporciona a la familia la posibilidad de tener una mayor convivencia con su familiar enfermo durante el tratamiento y la lleva a buscar de forma conjunta con éste, formas para facilitar el proceso de adaptación e interacción en la familia. El estudio pretende comprender la manera como la familia y usuario del hospital-día interactuan en el ambiente del hogar y describir la experiencia narrada por una familia. La familia de este estudio fue seleccionada de un usuario del hospital-día que tuviese historia anterior de hospitalizaciones psiquiátricas. Fueron entrevistados cinco familiares. A partir de las experiencias descritas por los sujetos se formaron dos grandes categorías temáticas: La familia conviviendo con su familiar en el hospital-día y la convivencia familia/usuario. Las experiencias relatadas por los sujetos en este estudio son bastante significativas para la construcción de nuevas posibilidades en la atención a la familia del enfermo mental.

familia; relación interpersonal; hospital/día


The day-hospital, as a modality of psychiatric care, provides families with the possibility to experience greater contact with their mentally-ill relative during treatment and leads them to searching, together with such relative, for ways to facilitate the adaptation process of interaction in the family. This study aims at understanding how families and the users of day-hospitals interact out of their homes and at describing the experience narrated by a family. The family in this study was selected from one of the users of a day-hospital who had a previous history of hospital admissions for psychiatric treatment. Five members of the family under study were interviewed. Based on the experiences described by the subjects, two great thematic categories emerged: the family experiencing the day-hospital with its family member and the family-user relationships. The experiences narrated by the subjects in this study are rather significant for the construction of new possibilities in caring for the mentally-ill person's family.

family; interpersonal relations; day-hospital


Artigo Original

A FAMÍLIA E O DOENTE MENTAL USUÁRIO DO HOSPITAL-DIA – ESTUDO DE UM CASO

Ana Ruth Macêdo Monteiro1 1 Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem/UFC, Docente da Universidade Estadual do Ceará, Enfermeira do Hospital de Messejana/SUS, membro do GRUPESS, bolsista da FUNCAP. Endereço: Rua: Queiroz Ribeiro, 926 - Montese - 60410-070 - Fortaleza - Ceará - Brasil; 2 Enfermeira, Livre-Docente, Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará

Maria Grasiela Teixeira Barroso2 1 Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem/UFC, Docente da Universidade Estadual do Ceará, Enfermeira do Hospital de Messejana/SUS, membro do GRUPESS, bolsista da FUNCAP. Endereço: Rua: Queiroz Ribeiro, 926 - Montese - 60410-070 - Fortaleza - Ceará - Brasil; 2 Enfermeira, Livre-Docente, Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará

O hospital-dia, como modalidade de assistência psiquiátrica, proporciona a família a possibilidade de vivenciar junto ao seu familiar doente uma maior convivência durante o tratamento, e a leva a buscar junto a esse familiar formas de facilitar o processo adaptativo de interação na família. A proposta deste estudo se configura na busca de compreender de que modo a família e o usuário do hospital-dia interagem no recesso do lar e descrever a experiência narrada por uma família. A família deste estudo foi selecionada a partir de um usuário do hospital-dia que possuísse ou possua história anterior de internações psiquiátricas. Foram entrevistados cinco membros da família em estudo. A partir das experiências descritas pelos sujeitos emergiram duas grandes categorias temáticas: A família vivenciando junto ao seu familiar o hospital-dia , A convivência família — usuário. As experiências relatadas pelos sujeitos neste estudo são bastante significativas para a construção de novas possibilidades na assistência à família do doente mental.

UNITERMOS: família, relações interpessoais, hospitais-dia

THE FAMILY AND THE MENTALLY-ILL USER OF DAY-HOSPITALS - A CASE STUDY

The day-hospital, as a modality of psychiatric care, provides families with the possibility to experience greater contact with their mentally-ill relative during treatment and leads them to searching, together with such relative, for ways to facilitate the adaptation process of interaction in the family. This study aims at understanding how families and the users of day-hospitals interact out of their homes and at describing the experience narrated by a family. The family in this study was selected from one of the users of a day-hospital who had a previous history of hospital admissions for psychiatric treatment. Five members of the family under study were interviewed. Based on the experiences described by the subjects, two great thematic categories emerged: the family experiencing the day-hospital with its family member and the family-user relationships. The experiences narrated by the subjects in this study are rather significant for the construction of new possibilities in caring for the mentally-ill person's family.

KEY WORDS: family, interpersonal relations, day-hospital

LA FAMILIA Y EL ENFERMO MENTAL USUÁRIO DEL HOSPITAL/DÍA- ESTUDO DE UN CASO

El hospital-día como modalidad de atención psiquiátrica, proporciona a la familia la posibilidad de tener una mayor convivencia con su familiar enfermo durante el tratamiento y la lleva a buscar de forma conjunta con éste, formas para facilitar el proceso de adaptación e interacción en la familia. El estudio pretende comprender la manera como la familia y usuario del hospital-día interactuan en el ambiente del hogar y describir la experiencia narrada por una familia. La familia de este estudio fue seleccionada de un usuario del hospital-día que tuviese historia anterior de hospitalizaciones psiquiátricas. Fueron entrevistados cinco familiares. A partir de las experiencias descritas por los sujetos se formaron dos grandes categorías temáticas: La familia conviviendo con su familiar en el hospital-día y la convivencia familia/usuario. Las experiencias relatadas por los sujetos en este estudio son bastante significativas para la construcción de nuevas posibilidades en la atención a la familia del enfermo mental.

TÉRMINOS CLAVES: familia, relación interpersonal, hospital/día

INTRODUÇÃO

Uma das propostas de atendimento da reforma psiquiátrica é o hospital-dia, que vem se distribuindo por todo o País, como forma de melhorar o padrão assistencial na psiquiatria, com o apoio das leis estaduais que dispõem sobre a extinção progressiva dos manicômios e sua substituição por outros recursos assistenciais, recebendo também, a aprovação da Secretaria Nacional de Assistência á Saúde.

A proposta de hospital-dia está relacionada com a possibilidade de se alcançar maior espaçamento entre as internações com menor duração destas. Todavia, essa proposta, que se apresenta como uma salvação para o estado caótico em que se encontra a psiquiatria no Brasil, já se mostra em declínio no cenário internacional (ZUSMAN,1992, p.393).

A família, nessa modalidade de assistência psiquiátrica, terá que vivenciar junto ao seu familiar o seu ir-e-vir ao (do) hospital-dia, como forma de facilitar esse processo adaptativo de interação familiar.

A família é um núcleo com pessoas que convivem em determinado lugar, durante um espaço de tempo mais ou menos longo e que se acham unidas ou não por laços de consangüinidade. Essa família recebe influência da sociedade a que está relacionada, no que diz respeito à cultura e ideologia particulares, como também tem sobre ela influências específicas. (SOIFER, 1982, p. 22).

Uma forma de família é aquele conjunto de pessoas que moram sob o mesmo teto, não importando o número de gerações. Porém, muitas vezes ascendentes, descendentes e colaterais que moram em um outro domicílio, exercem influência na dinâmica familiar, como também, há outras pessoas que nem moram na mesma casa, nem tem laços consangüíneos, mas exercem também influência na mesma família (BASSIT,1992, p.278).

Consoante tais conceitos, percebe-se que a família não é aquela formada necessariamente apenas pelos unidos por consangüinidade. São todos aqueles que estão próximos a ela e que exercem influência direta, negativa ou positiva sobre os seus membros.

Com isso, entende-se que o doente mental terá uma gama de pessoas com quem se relacionar nessa forma de atendimento psiquiátrico, tendo que buscar adaptação junto a eles para superarem juntos os obstáculos que surgirão.

Várias outras situações de adaptação, a família do doente mental já vivenciou, experienciando bem o peso das pressões psicológicas desenvolvidas pelas interações familiares, como no caso do regresso do seu familiar que esteve hospitalizado. Nos casos em que a família mostra-se flexível, propiciando uma comunicação mais direta, a adaptação será facilitada. Tal situação não ocorre quando a família está desequilibrada e desgastada em seus esforços para controlar os conflitos internos que são conseqüentes de uma crise mal elaborada (SORDI,1980, p.223).

Uma maior convivência familiar é conseqüência do processo de ir-e-vir do ser doente mental. Essa interação deve, pois, ser trabalhada, porquanto estando a família em estado de desequilíbrio e desgaste, a dinâmica familiar, decerto, estará alterada, sendo fonte de conflitos para os envolvidos.

Quando aparece um membro da família com distúrbio mental, os outros elementos definem-se como sadios, colocando-se em posição oposta ao integrante doente, considerando o seu código de valores como absoluto e natural, sendo o ponto de partida dessa atitude o meio social que influencia na definição de quem é doente mental, e quem precisa de ajuda de um profissional (BERENSTEIN,1988, p.79 e 81)

Essa ajuda à família, em busca da saúde dos seus membros, é um grande desafio para a enfermagem: o de 'cuidar de quem cuida', ou seja, ir ao encontro da família, conhecendo como cuida, identificando suas dificuldades e suas forças para melhor atuação profissional atendendo às suas necessidades (ELSEN,1994, p.72).

Com esse grande desafio, a enfermagem psiquiátrica poderá trazer grandes contribuições para o processo de reforma psiquiátrica, que conta com a família como partícipe no tratamento do seu familiar, buscando a adaptação deste à sua nova experiência domiciliar, vivenciando cada um a sua subjetividade numa relação de co-existência.

Com efeito, a proposta deste estudo se configura na busca de compreender o modo como familiares e usuário do hospital-dia interagem no lar. Para se alcançar tal proposta, é descrita e analisada criticamente a experiência narrada por uma família. Trata-se de estudo de um caso — família, já que se constitui um caso único, a partir do interior de uma família.

A família foi selecionada a partir de um usuário de um hospital-dia, na cidade de Fortaleza-Ce. A seleção ocorreu a partir dos seguintes critérios: que aceitasse participar desse estudo, que residisse próximo ao hospital, que o membro familiar que freqüentasse o hospital-dia possuísse uma história anterior de internações psiquiátricas e, que existisse mais de três pessoas morando com o doente mental.

Após a identificação e seleção do grupo familiar a ser investigado foram realizadas visitas à família, sendo esclarecido o interesse do trabalho, bem como, solicitada colaboração e sua autorização para serem incluídos na presente pesquisa.

Para compreeender o modo como os familiares e usuário do hospital-dia interagem no lar foram realizadas entrevistas semi-estruturadas com seus integrantes, sendo marcado antecipadamente o horário e local de acordo com o entrevistado, e que fosse preferencialmente em sua residência, para que acontecesse, concomitantemente, a observação da dinâmica familar. Participaram da pesquisa cinco membros (pai, mãe, irmãs e cunhado).

As entrevistas foram gravadas, com o consentimento dos sujeitos participantes desta pesquisa, que foram esclarecidos quanto a importância do uso do gravador para a fidedignidade dos seus depoimentos no decorrer da transcrição. Foi também informado aos sujeitos que eles não seriam identificados, sendo mantidos em sigilo suas identidades. Foram seguidas as normas legais e a ética da pesquisa com seres humanos estabelecidas pela RESOLUÇÃO No. 196 de 10 de outubro de 1996 (BRASIL, 1996).

Finalizou-se a coleta dos dados quando todos os membros da família do doente mental, usuário do hospital-dia, foram entrevistados. A partir das convergências e divergências encontradas nos depoimentos buscou-se apreender o significado subjetivo da ação pesquisada e captar as categorias concretas a partir das experências vivenciadas pela família.

Para compreensão da ação vivenciada pela família em estudo foram seguidos os seguintes passos: descrição das vivências a partir dos depoimentos obtidos por meio da entrevista; interpretação e compreensão das vivências. Para tanto, foram feitas leituras atentas dos depoimentos transcritos para se poder captar aspectos gerais da situação vivenciada; identificação de categorias temáticas, a partir dos depoimentos para extração e registro de trechos das falas.

A identificação das falas está apresentada pelo grau de parentesco com o doente mental (usuário do hospital-dia). Algum nome que tenha sido mencionado é fictício.

APRESENTAÇÃO DA FAMÍLIA

Morando em um terreno onde as casas são construídas em círculo, ficando a convivência bem mais próxima, praticamente como se morassem em um mesmo domicílio, esta família é composta pelos pais do usuário, cinco irmãos, três cunhados e vários sobrinhos, ainda crianças. Dos irmãos, foram entrevistados apenas dois, pois outros dois também apresentam distúrbio mental, um freqüentando o hospital-dia, enquanto a outra se encontra um pouco deprimida pela recente morte da filha. Dos cunhados, foi entrevistado somente um, porque os outros dois não foram encontrados, quando das várias visitas realizadas. O número de entrevistados totaliza cinco pessoas da família do doente.

A descrição do pai é feita evocando, de início, momentos anteriores em que as crises aconteciam e a maneira como agia nesses momentos, suportados apenas pelos pais. A melhora, em decorrência da medicação e da freqüência com que vai ao hospital-dia faz parte do seu relato, que inclui, também a dificuldade de relacionar-se com esse filho doente, pois este se aborrece com facilidade. Nessa ocasião ele estabelece a comparação do louco com o bêbado, mostrando a forma como deve ser tratado. Ele refere também que o filho doente não terá mais a capacidade de trabalhar, como antigamente, e estabelece o tipo de trabalho que pode ser por ele desempenhado, qualificando como leve e que não exija esforço.

A mãe relata vários momentos de dificuldade enfrentados anteriormente com seu filho doente, tendo alívio quando este era internado em hospital mental, apesar do sentimento de angústia ao ouvi-lo descrever o que vivenciava lá dentro. É mencionado o grande sofrimento que ela enfrenta com três filhos com distúrbio mental, como também diz da resignação encontrada para superar tais dificuldades. O relato é feito com muita emoção, acompanhado de pausas para poder continuar a narração da sua experiência. Ela também refere que com o início do tratamento no hospital-dia, desaparecem as crises, e há a melhora de comportamento. Apenas a aceitação da alta paulatina, como o sistema impõe, é referida com resistência, pois a ida do seu doente ao hospital-dia traz a sensação de alívio do sentimento de angústia, antes relatado na experiência com a internação integral.

A irmã coloca-se de forma muito próxima ao seu irmão doente, numa ligação de muita interação. Seu relato foi emocionante, como se cada momento anteriormente vivido, estivesse sendo presente. Ao falar sobre o hospital-dia, são postas as novas possibilidades que surgiram para o seu irmão, que não passa mais por situações de total abandono, como ocorria no sistema de hospitalização integral, de onde o doente após esse período de internação, voltava todo sujo e infestado de pedículos. Nessa narrativa, aconteceram várias interrupções, por causa das lágrimas, que eram freqüentes. Sua preocupação com a possibilidade de ele ficar ocioso é evidente, porque estando ocioso, a sua mente está livre para pensamentos os mais variados possíveis, prejudicando o tratamento.

No discurso, percebe-se a visão que o cunhado tem a respeito da crise, entendendo-a como de surgimento inesperado, não tendo o doente mental, por esse motivo, condições de exercer atividades antes desenvolvidas. Nessas circunstâncias, fica difícil para o doente trabalhar, pelo fato de não poder se envolver em nenhum tipo de conflito, já que isto pode desencadear uma crise. Relata também a modificação no seu comportamento antes agressivo, apesar da variação de humor ainda ser presente.

No depoimento de outra irmã há menção à mudança de comportamento, após o início do tratamento no hospital-dia, onde há atividades que distraem e a vantagem de se relacionar com os outros. O relato faz alusão à sua conduta em casa, onde se apega ao cigarro em razão da sua inatividade, que pode leva-lo à depressão ou a situações de irritação.

A FAMÍLIA VIVENCIANDO JUNTO AO SEU FAMILIAR O HOSPITAL-DIA

Ao estabelecer comparação com a experiência anterior, a família percebe como uma possibilidade de solução para o seu problema, no qual o doente se ocupa, realizando atividades diversificadas, evitando a ociosidade.

Lá eu tô achando que... é uma grande vantagem... publicaram pra ele um negócio de ter uma... distraçãozinha. Quando chega lá tem um trabalho pra eles fazerem. Eu acho que isso aí ajudou muito a ele, não sabe. (mãe)

Pra mim foi uma boa, uma ótima...É melhor do que o hospital mental...Eles conversam, fazem palestras com eles, tem aquele trabalhozinho pra eles se interterem...É uma folgazinha pra mim, é um descanso. (irmã 1)

Eu tô adorando, porque realmente lá ele se distrai mais um pouco né, vendo o movimento dos outros, tá conversando, tá fazendo o trabalho dele lá...Eu tô achando ótima a convivência dele lá... Lá ele não tá esquentando a cabeça, não tá pensando motivo ruim. (pai)

O hospital-dia tem sido experimentado pela família como um local especial que lhe ajuda na relação com o seu doente mental, ao mesmo tempo que o mantém no interior familiar.

A família, ao experienciar sentimentos ambíguos, como o de não suportar mais o doente em casa, ao mesmo tempo que acha a hospitalização integral agressiva, percebe o sistema de semi-internação como solucionador para essa contraposição de valores provocada pela internação hospitalar integral, levando-a a uma satisfação interna, acompanhada de uma consciência tranqüila.

...O alimento de lá é melhor e, no meio dos outros parece que ele come melhor. (irmã 1)

...Lá tem o que ele se alimentar. É umas comidinhas mais temperadinhas, mais jeitosa, né. Aqui a gente não pode dar o que eles dão lá. (irmã 2)

Com isso, a alimentação fornecida pelo hospital-dia, como parte do seu programa de atendimento, é considerada importante para a família dos assistidos, pois há a redução no número dos que terão que ser alimentados no ambiente domiciliar, com a conseqüente redução dos gastos domésticos.

Percebe-se, portanto, que o hospital-dia apresenta-se para a família como diferentes opções de resolução para os seus mais variados problemas na relação com o doente mental.

Questiona-se porém, diante das falas apresentadas, se a família realmente está percebendo a real função do hospital-dia, que tem a função terapêutica de inclusive (re)inserir o doente mental na sua família, na sua comunidade e, se realmente ela está sendo preparada para enfrentar junto ao seu doente mental esse desmame da internação parcial.

Agora eu sei que ele não está como antigamente... Pode-se dizer que ele está quase bom. (cunhado)

...Mas agora a vista que ele tava...eu acho que ele melhorou muito. (pai)

A mudança de comportamento percebida pela família é bem evidente nas entrevistas, retratando toda uma nova modalidade de experiência, com o seu familiar, já então modificado o seu quadro anterior.

O relembrar de momentos anteriores de crise do seu familiar, e não mais querer vivenciá-los, faz a família apegar-se a possibilidade real de melhora por ela experienciada, estabelecendo como necessária a dependência sua e de seu doente mental ao hospital-dia.

Ajudou muito a ele porque acabou a agressão dele. Ele não tem mais agressão. (mãe)

A gente pode brincar, pode conversar. A gente tá vendo, né, que a gente brincando com ele tá acreditando que não tá arriscando levar um murro dele, uma pancada, né, porque a gente tá vendo que ele tá mais melhor. (irmã 2)

O hospital-dia visa a fornecer ao que utiliza o serviço uma independência paulatina do mesmo, onde sua alta vai acontecendo de forma crescente até se tornar definitiva.

A esse sistema, nem sempre, a família se adapta. Muitas vezes, antepõe barreiras para aceitar a redução do número de dias a serem freqüentados pelo seu doente, opinando pela necessidade da continuação do usuário como freqüentador diário.

Eu achava bem quando ele estava indo todo dia. Para mim era ótimo, mas também, não era só o meu que ia precisar do hospital dia-a-dia, os outros também são necessitados para precisar, ai eu concordei...Essas duas folgas, esses dois dias...é uma boa...Eu acho que é uma folga porque já diminui aquele dia de trabalho dele.(mãe)

A justificativa para a continuação do tratamento no hospital-dia, como diarista, incide principalmente na ocupação, na não ociosidade, pois lá existem atividades programadas e voltadas especificamente para a clientela, o que não acontece em casa.

...E tando lá, ninguém tá se preocupando. Ele fica conversando, fica fazendo uma coisa e outra. (irmã)

A ociosidade é um problema real enfrentado tanto pela família como pelo próprio doente mental. Fica difícil para a família, não trabalhada incorporar essa nova proposta de reforma psiquiátrica, aceitar convictamente que, ao sair do hospital-dia, ele possa ser capaz de desenvolver atividades.

Com isso, a família passa a enfrentar momentos de insegurança quanto às novas possibilidades de o seu familiar vivenciar novas crises, pois nessas há o envolvimento de todos os que formam o ambiente domiciliar. E muitas vezes a família não se sente preparada para essa nova experiência de lidar com o seu familiar, sentido-se chamada a participar do seu tratamento.

A CONVIVÊNCIA FAMÍLIA E USUÁRIO

A relação com o portador de distúrbio mental é percebida pela família como difícil e nem sempre, todos mantêm o mesmo nível de interação com o paciente.

A incompreensão sobre a maneira de se comportar, o não discernimento de como agir, a falta de conhecimento dos possíveis comportamentos adotados por ele, o estabelecimento para ele de limites de ações são fatores encontrados nos depoimentos da família, ao retratar o seu cotidiano.

Ele vive aqui dentro de casa, aqui ele não se aborrece com ninguém. Brinca com esses meninos. Quando chega o dia dele ir para o hospital ele vai. De manhã lava a boca dele, toma a roupinha dele e vai. (irmã)

...Ele fica de dentro de casa pra fora. É pedindo dinheiro pro cigarro. É nas calçadas, nas ruas. Eu tenho medo...Andando muito. À vezes dorme muito, outro dia não dorme muito não, porque quando é de noite às vezes ele fica andando pra riba e pra baixo. E eu passo o dia nessa luta e, de noite eu quero ter uma tranqüilidade de dormir...e ele não pode dormir, ou fica me chamando. (mãe)

...Quando ele tá em casa, ele se apura muito no cigarro, e quando dá fé ele tá assim meio se enfezando, se fazendo pra baixo, desinquietado. (pai)

A relação com o doente mental é dificultosa, porque há um certo grau de dependência que este desenvolve em relação à família. Com a melhora do seu estado de saúde mental a família passa a querer cobrar a resposta adequada a essa melhoria.

No entanto, essa resposta almejada nem sempre é obtida, pois o doente mental, não só no domicílio, como também no hospital psiquiátrico, onde passou grande parte do seu período de vida, não foi solicitado a dar respostas, mas sim a receber ordens, sem oportunidade de desenvolver iniciativas ou demonstrar seus interesses, pois estes, na visão dos que conviviam com ele, não existiam.

O retorno ao lar, para experienciar maior convivência familiar, pode e permite que família e doente mental caminhem rumo a uma tentativa de adaptação nas relações interpessoais.

Tem dia que ele tá assim meio enraivado, sem falar com a gente, no outro dia já fala com a gente. Tudinho isso aí é problema da doença mesmo, né. (cunhado)

Nesse depoimento, compreende-se a realidade vivenciada tanto pela família quanto pelo doente mental, cada um na sua subjetividade, tentando a adaptação a esse novo momento. Esta adaptação está cercada de conflitos e entraves.

Nesse impasse, a família parece estar sozinha, sem possibilidades de escolha de auxílio para a sua relação com o doente e procura, então, ela mesma agir, com atitudes assim relatadas:

Quando ele fica agressivo, às vezes eu digo: Cezário, não fique assim não, porque se não você vai ter uma crise e é pior, e a gente tem que internar você, porque é muita gente aqui, tem menino pequeno, você bate nos meninos e assim não dá. Aí ele modera mais um pouco. Me parece que ele entende. (irmã)

A família procura agir da forma que mais facilite o seu ajustamento à situação que está vivenciando, procurando medidas de solução para os problemas que vão surgindo, ou tentando preveni-los, como forma de amenizar um sofrimento.

Num desabafo, após tantos relatos de momentos difíceis, tem-se o seguinte:

...Nos dias que ele tá aqui, eu suporto ele também. Agora eu faço assim, todos nós temos uma cruz, umas mais pesadas e outras menos. Eu sou das que trouxe mais pesada, mas tem que fazer com fé e força em Deus pra resistir, por causa da minha luta com ele. (mãe)

Esse relato de mãe mostra o quanto a família se encontra sem suporte para receber o seu doente em casa, pois o grupo familiar já vem carregado de sofrimento, sem ter recebido nenhum tipo de apoio. E mesmo não aceitando mais a internação hospitalar como forma de tratamento, conforme descrição anteriormente citada, a família necessita de um atendimento especial, com apoio nas suas dificuldades, para poder superá-las.

Ao relatar a sua experiência, a família se reporta a convivência proporcionada pelo ir e vir, incluindo como parte dessa experiência a sua interação com o seu familiar doente.

Cansei de as vezes eu tá conversando assim, nós tá conversando assim, e eu as vezes falar e ele ficar aborrecido e se levantar...Eu trato ele muito bem, eu quero muito bem a meu filho...eu sinto a falta dele sempre na hora do almoço. (irmã 1)

Mas tem dia que ele mesmo brinca com a gente, tira prosa com a gente, a gente fala com ele, brinca com ele, interte ele...Às vezes ele me pede as coisas e eu dou. (irmã 2)

Aqui comigo, com nós aqui, eu tô achando ele super legal, não tem mais as crises que ele tinha uns tempos atrás. (cunhado)

Nesse novo processo, a família busca estratégias de solução para superar as dificuldades que encontra na interação com o seu doente. De forma correta ou não, ela está agindo, usando de tentativas nem sempre solucionadoras, mas tentativas, na busca de melhor qualidade de vida.

Nesse processo, também, está o doente mental que, de um lado, vivencia o estigma de ser mental e do outro sua família, com suas tentativas de erros e acertos, buscando adaptar-se a essa nova fase na sua vida, um tanto quanto sozinha, sem referência.

De acordo com as descrições, enxergam-se espaços a serem conquistados. Este espaço, a enfermagem deverá ocupar com atuação voltada para a família e sua relação de convivência com o doente mental, numa contribuição ao processo de mudança na assistência que contribui para a reforma psiquiátrica.

Em razão de estar a enfermagem comprometida com o cuidado, necessita ao trabalhar com famílias, levar em consideração que está no seu mister e consta de sua praxes a ação de cuidado, com base na visão de saúde e doença. Para tanto, a enfermagem precisa utilizar sua percepção, tendo a habilidade de fazer a leitura das crenças, valores e práticas de que a família se utiliza para realizar o cuidado. Então, essa percepção popular de cuidado deve ser considerada pois a família, no seu mundo-vida, vive momentos diferentes em cada fase da relação com o ser-doente (PATRÍCIO,1994, p.127 e 130).

A família percebe o seu doente como um indivíduo que jamais retornará ao seu estado anterior, em tempo algum se comportará mais como antes, devendo ser tratado de maneira diferente dos outros com quem convive.

Essa diferença, divisada pela própria família como necessária, é vivenciada de forma bem distinta pelos demais membros que a formam.

Eu acho que ele não tem condição de chegar aquele ponto mais não. (mãe)

A família percebe o seu doente como uma pessoa que não é normal e, por isso, deverá ser tratado diferentemente dos demais, achando, também, que o seu comportamento não será jamais aquele anteriormente vivido.

Sob esta óptica, a própria família estigmatiza o seu doente. Este fenômeno sucede a partir do momento em que ela acha que ele é diferente e, por isso, deve ser tratado de forma diferente.

REFLETINDO O ESTUDO

As experiências da família relatadas neste estudo são bastante significativas para a construção de novas possibilidades na assistência à família do doente mental, que se mostra suscetível a essas mudanças no atendimento em saúde mental, ainda sem estrutura suficientemente ampla para superar os possíveis obstáculos.

Aceitando a família esse novo momento que está vivenciando, com o seu familiar indo e vindo ao hospital-dia, a enfermagem sente-se impulsionada a investir nesse campo da interação família x doente mental, contribuindo de forma significativa para o sucesso dessa experiência inovadora e que abrirá novas possibilidades para o atendimento psiquiátrico.

No seu mundo-vida, a família exprime pelos discursos, sentimento de conformação com a situação do seu familiar doente, o qual concebe como se lhe tenha sido imposto, vivenciando momentos descritos como árduos, penosos e obscuros.

A família percebe-se como vítima de todo esse processo de doença, passando a buscar ajuda para superar tais dificuldades, suportando toda essa situação com renúncia, como se fosse uma forma de sacrifício, castigo ou punição.

É nesse momento que profissionais de saúde poderiam refletir se em algum momento de sua prática estão ou não contribuindo com esse pensar da família na sua relação com a doença mental.

A partir dessas experiências a enfermagem psiquiátrica precisaria rever toda a sua prática e propor estratégias em busca da construção de novo paradigma na assistência em saúde mental, pautado nas necessidades da família que interage com o doente mental. Isso pode contribuir, para que o exercício caótico e obsoleto das práticas anteriores, ao entrar em metamorfose, possibilite novo caminhar rumo à cidadania do doente mental.

Recebido em: 4.8.1999

Aprovado em: 20.9.2000

  • 01. BASSIT, W. A família e a doença mental. In: D' INCAO, M. A.(Org.). Doença mental e sociedade: uma discussão interdisciplinar. Florianópolis: Graal, 1992. p. 128-135
  • 02. BERENSTEIN, I. Família e doença mental São Paulo: Escuta, 1988.
  • 03. BRASIL. Resolução n 196 de 10 de outubro de 1996. Aprova diretrizes e normas regulamentadoras de pesquisa envolvendo seres humanos. Diário Oficial da União, Brasília, n. 201, p. 21082-21085, 16 de outubro de 1996.
  • 04. ELSEN, I. Saúde familiar: a trajetória de um grupo. In: ELSEN, I. Marcos para a prática de enfermagem com famílias Florianópolis: UFSC, 1994. p. 19-60.
  • 05. PATRÍCIO, Z. O cuidar/cuidado com família de adolescentes grávidas - aplicação de um marco conceitual de enfoque sócio-cultural. In: ELSEN, I. et al. Marcos para a prática de enfermagem com famílias Florianópolis: UFSC, 1994. p. 93-120.
  • 06. SOIFER, R. Psicodinamismos de família com crianças: terapia familiar com técnicas de jogo. Petrópolis: Vozes, 1982.
  • 07. SORDI, R.E. Reação da família ao retorno de um de seus membros após uma primeira internação psiquiátrica: estudo de dez casos. In: ZIMMERMANN, D. (coord.). Temas de psiquiatria Porto Alegre: Artes Médicas, 1980. p. 205-228.
  • 08. ZUSMAN, J.A. Hospital-dia: uma perspectiva histórico-crítica. J. Bras. Psiq., v. 41, n. 8, p. 393-398, 1992.
  • 1
    Enfermeira, Doutoranda em Enfermagem/UFC, Docente da Universidade Estadual do Ceará, Enfermeira do Hospital de Messejana/SUS, membro do GRUPESS, bolsista da FUNCAP. Endereço: Rua: Queiroz Ribeiro, 926 - Montese - 60410-070 - Fortaleza - Ceará - Brasil;
    2
    Enfermeira, Livre-Docente, Professor Emérito da Universidade Federal do Ceará
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      20 Abr 2005
    • Data do Fascículo
      Dez 2000

    Histórico

    • Aceito
      20 Set 2000
    • Recebido
      04 Ago 1999
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