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Concepções produzidas pelos agentes de enfermagem sobre o trabalho em saúde mental com sujeitos psicóticos em um centro de atenção psicossocial

Resumos

Este estudo objetivou analisar as concepções dos trabalhadores de enfermagem sobre a finalidade, o objeto e os instrumentos de trabalho utilizados para desenvolver os cuidados aos sujeitos psicóticos num Centro de Atenção Psicossocial-III (CAPS), no Brasil. Trata-se de estudo exploratório descritivo, de abordagem qualitativa, que usou como procedimentos a pesquisa documental, a observação participante e entrevistas. Os resultados mostram diversidade no modo de conceber as finalidades e as características do objeto, ligadas aos saberes que embasam a formação de cada concepção. Observou-se que, a primeira, se inspira na Atenção, na Reabilitação Psicossocial e na Psicanálise; a segunda, ressignifica princípios de vertentes da Reabilitação e resgata aspectos do tratamento moral; a terceira traduz a idéia de núcleo e campo profissional. Conclui-se pela necessidade de investimento na produção de um corpus conceitual e de práticas que possibilitem mudanças de posição dos trabalhadores na produção de serviços dos CAPSs.

saúde mental; serviços de saúde; equipe de assistência ao paciente; serviços de saúde mental


This study aimed to analyze nursing workers' concepts on the purpose, object and tools used to provide care to psychotic patients in a Psychosocial Community Center - III, Brazil. This qualitative, descriptive and exploratory study used document research, participant observation and interviews. Results reveal diverse concepts regarding the purposes and characteristics of the object, linked to the knowledge each concept is based on. We observed that the first is inspired on Care, Psychosocial Rehabilitation and Psychoanalysis; the second re-signifies principles of Rehabilitation and recovers aspects of moral treatment, and the third translates the idea of professional core and field. We conclude that there is a need for investments in the production of a conceptual corpus and practices that permit changing workers' position on the production of services at CAPS.

mental health; health services; patient care team; mental health services


Se analizaron conceptos de trabajadores de enfermería sobre: finalidad, objeto e instrumentos de trabajo utilizados para prestar cuidados a sujetos sicóticos en un Centro de Atención Psicosocial-III(CAPS), en Brasil. Estudio exploratorio descriptivo, de abordaje cualitativo, que utilizó procedimientos de investigación documental, de observación participante y de entrevistas. Los resultados muestran diversidad en el modo de concebir las finalidades y las características del objeto, relacionados a los conocimientos que fundamentan la formación de cada concepto. Se observó que, la primera, se inspira en Atención en Rehabilitación Psicosocial y en Psicoanálisis; la segunda, da nuevos significados a principios provenientes de Rehabilitación y rescata aspectos del tratamiento moral; la tercera traduce la idea de núcleo y campo profesional. Se concluye que es necesario invertir más en la producción de un corpus conceptual y de prácticas que posibiliten cambios en la posición de los trabajadores en la producción de servicios de los CAPS.

salud mental; servicios de salud; grupo de atención al paciente; servicios de salud mental


ARTIGO ORIGINAL

Concepções produzidas pelos agentes de enfermagem sobre o trabalho em saúde mental com sujeitos psicóticos em um centro de atenção psicossocial

Debora Isane Ratner Kirschbaum

Doutor em Saude Mental, Professor Associado da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Estadual de Campinas, Brasil, e-mail: debora.kirschbaum@gmail.com

RESUMO

Este estudo objetivou analisar as concepções dos trabalhadores de enfermagem sobre a finalidade, o objeto e os instrumentos de trabalho utilizados para desenvolver os cuidados aos sujeitos psicóticos num Centro de Atenção Psicossocial-III (CAPS), no Brasil. Trata-se de estudo exploratório descritivo, de abordagem qualitativa, que usou como procedimentos a pesquisa documental, a observação participante e entrevistas. Os resultados mostram diversidade no modo de conceber as finalidades e as características do objeto, ligadas aos saberes que embasam a formação de cada concepção. Observou-se que, a primeira, se inspira na Atenção, na Reabilitação Psicossocial e na Psicanálise; a segunda, ressignifica princípios de vertentes da Reabilitação e resgata aspectos do tratamento moral; a terceira traduz a idéia de núcleo e campo profissional. Conclui-se pela necessidade de investimento na produção de um corpus conceitual e de práticas que possibilitem mudanças de posição dos trabalhadores na produção de serviços dos CAPSs.

Descritores: saúde mental; serviços de saúde; equipe de assistência ao paciente; serviços de saúde mental

INTRODUÇÃO

A consolidação da Reforma Psiquiátrica brasileira, iniciada nos anos noventa, possibilitou a organização de uma rede de serviços que atualmente tem nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS) sua formalização como instrumento nuclear da tecnologia do processo de trabalho(1). Essa trouxe consigo rearticulação do processo de trabalho dos agentes de enfermagem em tais serviços. Tal reformulação acarretou a assunção de responsabilidades pela direção de casos pelos enfermeiros e maior participação nas atividades de reabilitação psicossocial por parte, também, dos trabalhadores de nível médio(2-3), em detrimento da posição que ocupavam no modelo assistencial anterior. Nesse, cabia-lhes exclusivamente vigiar e controlar o comportamento dos pacientes, especialmente na realização do cuidado aos sujeitos psicóticos.

No contexto da Reforma, tornou-se desejável que o trabalho, desenvolvido pelos enfermeiros, técnicos e auxiliares de enfermagem em saúde mental, passasse a ser realizado sob perspectiva interdisciplinar, acompanhada de horizontalização das funções dos profissionais da equipe multiprofissional, independentemente da formação original ou específica de cada profissional. Essa forma de organização do processo de trabalho, prevista e preconizada na Lei 10216, de 6 de abril de 2001, é favorecida não só pelas recomendações constantes das Portarias 336/02 e 189/02, mas também por ser contemplada por mecanismos de financiamento das ações de saúde mental(4).

A consolidação dessas proposições decorreu também de movimentação empreendida ao longo da década de noventa, em que foram experimentadas formas de organização de trabalho em equipe nos primeiros serviços substitutivos, dentre as quais aquela formalizada teoricamente sob a denominação de equipes de referência(5). Nesse modelo, propõe-se que uma equipe de saúde se responsabilize por uma população adscrita e estabeleça com ela vínculos terapêuticos. As questões provenientes da multidisciplinaridade podem ser resolvidas mediante o estabelecimento do campo e do núcleo de cada profissional. No primeiro, estarão contidas as intervenções que podem ser compartilhadas por todos os trabalhadores da equipe, independentemente de sua formação específica, enquanto, no segundo, são abrangidas as ações próprias a cada categoria profissional e que exigem preparo formal específico para sua realização. Isso contribuiria para a realização da clínica ampliada e permitiria a elaboração de projetos terapêuticos individualizados(5).

O pressuposto teórico desta investigação era de que, sob essa lógica, o trabalho desenvolvido pelos agentes de enfermagem requereria de cada profissional a ressignificação das finalidades, do objeto e dos instrumentos de trabalho delegados ao pessoal de enfermagem nas instituições psiquiátricas e investimento na construção de outros instrumentos, apropriados ao processo de trabalho, estabelecido nos serviços de Atenção Psicossocial(6), contribuindo para uma clínica de enfermagem psiquiátrica(7).

A questão que motivou a realização da presente investigação foi de que modo se deu essa ressignificação do cuidado de enfermagem e do tratamento em saúde mental no cotidiano dos serviços, em consonância com as diretrizes da Reforma Psiquiátrica, de modo a conformar esse novo objeto de trabalho, assim como os instrumentos mobilizados para transformá-lo.

O objetivo foi identificar as características do trabalho realizado pelos agentes de enfermagem, junto aos sujeitos psicóticos, usuários do primeiro CAPS-III, inaugurado no município de Campinas, SP, e dos Serviços Residenciais Terapêuticos (SRTs)(8) sob sua responsabilidade, como também as práticas adotadas por esses trabalhadores no manejo de situações que envolviam a realização do cuidado em saúde mental, quais as explicações que produziam sobre ele e sobre os efeitos dele decorrentes.

Neste artigo, são enfatizadas as concepções produzidas pelos agentes de enfermagem sobre a finalidade e as características do objeto de trabalho do CAPS, depreendidas da caracterização que faziam de sua inserção no conjunto do processo de trabalho ali realizado.

METODOLOGIA

Trata-se de pesquisa de natureza qualitativa(9), descritivo-exploratória, em que se procurou apreender as representações que enfermeiros, auxiliares e técnicos de enfermagem de um CAPS produziam sobre o trabalho desenvolvido junto aos sujeitos psicóticos, clientela preferencial desse serviço, com o intuito de caracterizá-lo. Para apreender teoricamente o trabalho significado pelos agentes de enfermagem, assumiu-se como referencial teórico a concepção de organização tecnológica do trabalho em saúde(1). Nessa, ele pode ser captado em três níveis: a elaboração de suas finalidades, as características de seu objeto de trabalho, e as articulações existentes entre os instrumentos empregados e as ações que produzem sobre o objeto(10).

Escolheu-se o estudo de caso como estratégia de investigação, pois possibilita apreender os elementos constituintes de uma dada experiência em sua particularidade.

O campo de pesquisa escolhido foi um CAPS do município de Campinas, SP, transformado em CAPS-III, em 2001, após ter sido inaugurado em 2000, como resultado da descentralização da Unidade de Reabilitação de Moradores de um Serviço de Saúde Mental, que vinha passando por processo de desinstitucionalização desde 1992(8). Tal escolha deveu-se à relevância e ao pioneirismo do trabalho ali desenvolvido, à inserção da pesquisadora nesse serviço em virtude de um projeto de Integração Docente-Assistencial e ao fato de constituir importante campo de formação de profissionais de saúde mental e de práticas de investigação nesse campo.

Como procedimentos de coleta de dados foram empregados a pesquisa documental, a observação participante e as entrevistas não diretivas. Na pesquisa documental foram levantados documentos que forneciam informações sobre a concepção e a organização do serviço: missão do CAPS, livro de atas de reuniões de equipe, livro de registros diários, escalas de plantão e legislação que regulamenta o credenciamento do CAPS e suas formas de financiamento. A observação participante foi realizada de janeiro a junho de 2003, durante os três turnos de trabalho existentes (manhã, tarde, noite), e possibilitou identificar as rotinas existentes no serviço, que forneceram importantes subsídios para posterior realização e análise das entrevistas. Essas foram realizadas com sujeitos escolhidos dentre os auxiliares, técnicos de enfermagem e enfermeiros dos três diferentes turnos. Os mesmos concordaram em ter suas entrevistas gravadas, após a assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido, submetido e aprovado pelo Comitê de Ética da instituição estudada, como também aprovado pelo Comitê da instituição à qual pertence a pesquisadora. As entrevistas foram orientadas por questões abertas, nas quais a pesquisadora dirigia sequencialmente as seguintes questões ao entrevistado: fale-me sobre o que caracteriza o trabalho no CAPS e fale-me sobre o seu trabalho no CAPS, a partir de um caso que você considera exemplar ou ilustrativo desse trabalho. Os critérios utilizados para a seleção dos sujeitos foram: a concordância em participar da pesquisa; estar em atividades no CAPS há pelo menos três meses; desenvolver atividades de coordenação de grupos, oficinas, ateliers ou acompanhamento terapêutico com sujeitos psicóticos que frequentavam o CAPS; ter participado de sessões de supervisão clínica nos três meses anteriores à entrevista; ter participado das atividades de capacitação em serviço, oferecidas ao ingressar na instituição. Optou-se por trabalhar com amostragem intencional por variedade de tipos, pois, para definir o tamanho da amostra em pesquisas qualitativas, é necessário incluir número suficiente de informantes que favoreça "uma certa reincidência das informações", sem que se despreze informações ímpares, cujo potencial explicativo tem que ser levado em conta(7).

A análise dos dados seguiu os passos propostos para a abordagem qualitativa, que consistem na ordenação dos dados, na sua classificação, na síntese dos dados e sua interpretação(9), baseada na experiência da autora, na literatura e no referencial teórico.

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A caracterização do trabalho desenvolvido pelos agentes de enfermagem do CAPS, realizada a partir do discurso que elaboravam para expor sua prática, junto aos sujeitos psicóticos atendidos em diferentes momentos do processo de trabalho, possibilita apreender distintas concepções acerca da finalidade e das características do objeto de trabalho em saúde mental e de seus instrumentos(10). Elas revelam a coexistência de diferentes e, às vezes, contraditórias concepções acerca de sofrimento psíquico, de sujeito, na qual se embasa a clínica, e de abordagens terapêuticas e modelos tecnológicos então existentes no serviço.

Quando o CAPS foi transformado em um CAPS de tipo III, sua missão foi reelaborada a partir de uma discussão feita pelo conjunto da equipe e as finalidades do trabalho foram explicitadas assim: O CAPS fará uso prioritário de tecnologia fundada no atendimento singularizado, baseado na clínica e na reabilitação psicossocial. Nas situações de crise, sempre que possível, procurar-se-á soluções alternativas à internação psiquiátrica. As ações do CAPS terão ainda qualidade e intensidade condizentes com as demandas e serão voltadas para o desenvolvimento da autonomia e da qualidade de vida dos usuários, familiares e outras pessoas envolvidas. Essas ações serão desenvolvidas através de um processo de trabalho interdisciplinar e articuladas com outros serviços e instituições (sejam da área da saúde ou não).

Isso supostamente deveria acarretar rearticulação no modo de conceber o objeto de trabalho em saúde mental e, consequentemente, os instrumentos de trabalho específicos à Enfermagem no modelo anterior. Em tese, vigilância, disciplinamento e tutela não coadunavam com promover autonomia e melhoria da qualidade de vida, por exemplo. Eles deveriam ser substituídos por instrumentos de trabalho denominados, no discurso institucional, escuta, acompanhamento terapêutico, estações (dispositivos criados nos moldes de grupos operativos e oficinas), Atenção Diária por Plantão (ADP) coletiva ou individualmente, além das chamadas atividades de referência, que deveriam se pautar pela singularização da atenção.

A análise das entrevistas revela que a descrição da atitude que assumem na operacionalização dos instrumentos de trabalho e a problemática que envolve o trabalho em equipe são temas predominantes no discurso dos entrevistados. Dele se depreende o que concebem como a finalidade e as características do objeto de trabalho.

Os entrevistados problematizam-na em, fundamentalmente, três eixos.

O primeiro é uma concepção que alude à noção de autonomia(11-12) como finalidade do cuidado em saúde mental. Solicitado a falar sobre o que caracterizava o seu trabalho no CAPS, um dos entrevistados explicava que ... o meu trabalho, aqui, é incentivar as pessoas. Incentivar elas a fazer as coisas para elas mesmas, ajudar assim. Mas fornecer o material necessário para que elas possam elas mesmas realizar.

O esclarecimento desse "incentivar, ajudar a fazer as coisas por elas mesmas" é efetuado em momento posterior no depoimento, quando ele explica ... mas as pessoas que têm condição de ir, eu vou ajudar até certo ponto, eu vou dar o material, vou fornecer o que for necessário, vou até acompanhar, mas eu vou deixar que eles façam por eles mesmos porque se eu tirar isso deles, eu acho que eles já têm perdas demais e se eu tiro as chances deles... .O que eles precisam mesmo é serem incentivados e acho que é esse o nosso trabalho, é incentivá-los, sabe? A fazer por eles mesmos.

A ideia de que a finalidade do trabalho em um Centro de Atenção Psicossocial é incentivar as pessoas a fazer algo por si mesmas pode estar ligada à maneira de conceber o tratamento e a cura, elaborada pela Atenção Psicossocial(6,11) e pela Reabilitação Psicossocial(12-13). Mas, talvez, possa ser também uma representação produzida a partir da Psicanálise em instituição, que embasava a supervisão clínica existente no serviço(8).

No mesmo sentido, observa-se a presença dos saberes da Atenção Psicossocial e da Reabilitação Psicossocial subsidiando a concepção das características do objeto de trabalho formulada pela entrevistada, mas não exclusiva ao seu depoimento, do usuário como uma pessoa que já teve perdas demais. Entretanto, dado que não há uma adjetivação da natureza das perdas, pode-se supor que aquelas de caráter social e as subjetivas ocupem uma mesma posição hierárquica para os trabalhadores. Em vista disso, supõe-se que o termo incentivar, escolhido pela entrevistada para expressar sua visão da finalidade do trabalho em um CAPS, esteja articulado à concepção de sujeito social, que pode "gerar normas, ordens para sua vida, conforme as diversas situações que enfrente"(11). Ou, ainda, trata-se de situar o sofrimento mental como questão afeita ao incentivo, ou seja, à presença ou ausência seja de um suporte social, jurídico ou institucional seja de alguém que o encoraje, que possibilite a superação de suas perdas. A relevância dada a esse modo de apreender e ressignificar os discursos institucionais, deve-se ao fato de que era a partir dele que os agentes tendiam a orientar suas ações, cuja discussão não pode ser detalhada aqui.

O segundo eixo baseia-se na concepção de reabilitar e superar a crise como finalidade do trabalho e traz à tona questões relacionadas a uma suposta cisão entre clínica e reabilitação, também presente na missão do serviço. Na busca para explicar as características de seu trabalho, um entrevistado explica que ... é muito importante você trabalhar aqui no CAPS com um núcleo de enfermagem né? Você ajuda tanto a sua equipe de enfermagem quanto a outra equipe que é a das psicólogas. Mas sempre que trabalho aqui no CAPS eu sei fazer as duas coisas que é a reabilitação e superar a crise.

Para esclarecer o que entendia pelas últimas, ele recorre a uma situação prática que exemplificaria atitudes que lhes são concernentes, na qual um paciente em crise, com alucinações e ideias delirantes, se recusava a acompanhá-lo até outro cômodo da casa. ...Você tem que explicar para ele se ele não...Entendeu ? Chamar atenção dele que é verdade, que ele está vendo, mas, não tem uma realidade, né? Tudo tem um mundo só... está certo que para ele tem dois mundos aí. Mas, temos que trabalhar isso da forma mais terapêutica possível, né? Explicar que tem um mundo só.

A ideia de que reabilitar e superar a crise significa assumir uma posição pedagógica e que a finalidade do trabalho seja uma espécie de reeducação, visando normalizar o usuário, ou seja, adaptá-lo a uma norma estabelecida exteriormente a ele, ao contrário do que preconizam alguns formuladores da Reabilitação Psicossocial no Brasil(11-12), também está presente em outros depoimentos. Evocando a experiência adquirida no cuidado aos moradores dos Serviços Residenciais Terapêuticos, ligados ao CAPS, outra entrevistada relata que ... vários casos que eu já tive, eu tenho muita experiência em moradia porque a gente está muito direto com o paciente e quando eu entro na moradia parece que eu entro na minha casa e aquela é a minha família, né? Então, muitas vezes assim pra você dar uma orientação... Muito mais prático a gente dar uma sugestão, pedir do que dar uma ordem para o paciente. Se você dá uma ordem ele acaba... é diferente. Oh! Tô na minha casa, você está mandando em mim! Eu tenho muito isso lá na moradia: olha! Não faz isso, você pode se queimar, você pode se machucar. Nunca falo: não faz isso porque é perigoso, né? Então sempre com jeitinho, né? Então, assim, eu acho que ter nossas intervenções, mas não deixar eles pensarem que a gente manda mais do que eles na casa deles, eu acho que isso é muito importante.

Ou seja, esse levar a pensar é produzido numa direção coincidente com o modo de pensar do profissional que se coloca como o modelo a ser seguido pelo paciente, em outras palavras, o parâmetro ao qual ele deverá se equiparar. Pode-se dizer que se trata de uma ressignificação dos modelos de reabilitação psicossocial que transitam de uma perspectiva comportamental a outra psicoeducativa, criticados(11-13) pelo potencial adaptativo, e, ao mesmo tempo, reducionista de ver o homem.

Chama a atenção que, para além do caráter pedagógico atribuído à reabilitação, os agentes de enfermagem também preservem uma concepção infantilizada de seu objeto de trabalho, semelhante à existente no tratamento moral. Esse foi o primeiro saber que sustentou a organização do hospital psiquiátrico como instrumento terapêutico, para a qual foi fundamental a participação dos enfermeiros, que lançavam mão da persuasão como forma de obter a cooperação dos internados e manter a ordem no espaço asilar(14). Nota-se, na continuidade da narração desse entrevistado sobre seu cotidiano de trabalho, a ressignificação dada à reabilitação que remete às concepções que permeavam o trabalho de enfermagem, fundado no tratamento moral, ilustrado pelo trecho a seguir: Mas, assim, ela tem a liberdade no plantão de preparar o café, então assim, a gente está ali mais pra cuidado mesmo, né? Por uma intercorrência, alguém passa mal, dá uma orientação porque a gente não pode esquecer que eles são doentes, né? Porque a gente tem que dar liberdade, né? Iniciativa... mas não pode esquecer também que eles são doentes.

O ser doente é novamente explicado como alguém que sofre perdas em termos de relações sociais como não ter amigos, não ter família, não ter emprego, estando parcialmente em consonância com algumas vertentes da Reabilitação e a Atenção Psicossocial. Mas é interessante notar que, apesar da opção da equipe por buscar supervisão em psicanálise para discussão de casos, não haja nos depoimentos referências a formas de abordar a psicose, por exemplo, como um fracasso parcial da operação simbólica que possibilita a constituição de um sujeito, denominada laço social. Talvez, isso lhes permitisse problematizar a ideia de que existe relação entre ser doente e fazer escolhas sobre questões que afetam atividades de vida diária, inclusive aquelas relacionadas aos limites entre o corpo e o ambiente externo. Mesmo considerando que a manutenção dessa concepção possa estar ligada às representações sociais da loucura, ainda predominantemente presentes na nossa sociedade, e que encontram ancoragem em discursos psiquiátricos, outra possibilidade é que sejam consequência da separação entre clínica e reabilitação, na medida em que, ao identificar a primeira erroneamente com a clínica psiquiátrica organicista, e ao querer se descartar dela, termina-se transformando a reabilitação em uma tecnologia que prescinde dos saberes da clínica e a transforma num saber ao qual se recorre exclusivamente quando a crise se instala, em vez de tomá-la como um saber que permita esclarecer o que é se reabilitar para aquele sujeito, conforme propunham seus fundadores(11-12). Conforme alguns autores advertem(15), a consequência dessa cisão é a retomada do caráter pedagógico prescritivo e normalizador das práticas psiquiátricas que se pretende superar, em detrimento de reabilitação no sentido proposto por seus idealizadores.

O terceiro eixo é o cuidar como finalidade do trabalho e o usuário em crise e em reabilitação como características do objeto de trabalho em saúde mental. Uma das maneiras de representar essa finalidade é exemplificada pelo trecho a seguir. ... Não existe assim uma receita. Falo assim: eu chego, eu vou dar remédio... Acho que tem coisas que o núcleo da enfermagem faz que é dar medicação, do cuidado mais da higiene do paciente e o resto eu acho que é... vai depender assim de cada dia, de cada período, de cada usuário, de cada projeto que a gente trabalha aqui. Não é assim... não tem muita ordem... O que caracteriza para mim um trabalho de enfermagem no CAPS, eu , aí sim. Seria cuidar... administração de medicação, banho... Eu incluiria estação beleza, organização do ambiente, acompanhamento terapêutico, acompanhamento na casa, em casa, e por aí vai.

A concepção dessa entrevistada mostra que, ao contrário do que se poderia esperar, a convivência de duas perspectivas de realização do cuidado, que poderiam ser consideradas inconciliáveis ou contraditórias num trabalho em saúde mental, se levados em conta os saberes que basearam a sua construção, é possível. É interessante notar como a ideia de núcleo e campo é ressignificada de modo a preservar a operacionalização dos instrumentos de trabalho enumerados como do núcleo da enfermagem, sem proceder a uma rearticulação desses com a ideia de singularização da atenção, ao mesmo tempo em que se incorpora, ou pelo menos se fala dela, a ideia de imprevisibilidade, de incerteza e da importância de tomar cada caso como uma particularidade na operacionalização dos demais instrumentos, identificados como do campo profissional. Cuidar, nesse contexto, é concebido como acolher com garantias(7) e seu objeto é o homem concebido como ser biopsicossocial, ou em dimensão predominantemente biológica. Não se trata de um trabalho que implica uma produção de serviços orientada pelo saber da clínica(2,7), o que significa que a realização do cuidado de higiene não é uma ação mecânica e desprovida de consequências, mas que precisa levar em conta o significado do corpo para aquele sujeito e o lugar que o cuidado corporal adquire na sua existência. Particularmente, no caso dos sujeitos psicóticos, é um aspecto muito importante, dada a sua relação direta com a produção de fenômenos elementares, em alguns casos, inclusive, relatados pelos entrevistados.

Essa perspectiva do acolhimento com garantias e da automatização dos instrumentos do trabalho(2,7) aparece de novo no relato a seguir. É tão automático o que a gente faz que quando a gente para pra falar, a gente perde, né? Aí a gente fala assim: nossa! Eu podia ter falado isso e aquilo. Mas assim, é tudo muito automático. Que nem agora, eu vou sair do meu trabalho aqui no CAPS, eu vou chegar lá na moradia e perguntar: olha, [fulano], tomou banho? Aí, tem alguém pra fazer a barba? Estar orientando para estar fazendo... aí, eu vou nas outras moradias, faço as medicações, volto, ajudo no preparo dos lanches e aí assim sabe, foi o plantão. E aí, às vezes, pra você relatar o que você faz é tão complicado... (Entrevistado 4).

Sendo assim, é provável que a concepção da finalidade do trabalho que origina o terceiro eixo esteja associada também a aspectos distintos das condições de trabalho exclusivamente. Suas raízes podem ser relacionadas com saberes que subsidiam a conformação das práticas existentes no CAPS e que são explicados da seguinte maneira por alguns agentes: ... porque assim, eu, como técnico de enfermagem... a gente não consegue entender sofrimento. O primeiro ato da gente é acabar com o sofrimento chamando um médico, medicando, alguma coisa... eu não entendia muito isso, eu achava que não acabava, eu achava que tinha uma certa demora, este tipo de coisa... .hoje eu tenho uma visão bem mais dentro da realidade... não é isso ... é uma outra maneira de se lidar com o problema em si porque tanto na clínica quanto no hospital a resposta é mais imediata. Você tem uma crise, você medica, toma uma outra atitude que estava prescrita e tal. Aqui, você tem que ter tato em conversar, o contato é maior... vamos dizer assim que tem uma maneira diferente de abordar uma crise. Isso foi muito difícil para mim no começo sabe... para eu entender que alguém que está agressivo, batendo e se machucando eu tinha que levar para um canto e tentar conversar, tentar entender aquela crise dele e não eliminar logo o problema para que ele não se machuque (Entrevistado 5).

Os achados obtidos na presente pesquisa contribuem para ampliar e aprofundar a discussão de resultados de trabalhos anteriores(16-18), ao problematizar o atual processo de trabalho nos Centros de Atenção Psicossocial e suas vicissitudes no que diz respeito à construção de saberes e práticas interdisciplinares, que tenham como foco a clínica, a reabilitação e a inclusão social de sujeitos psicóticos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As características do trabalho de enfermagem, desenvolvido junto aos sujeitos psicóticos no CAPS e SRTs, são marcadas pela construção de conexões às vezes pouco claras entre a finalidade, o objeto e os instrumentos de trabalho devido à multiplicidade de saberes e concepções de sujeito e de clínica que sustentam as distintas tecnologias de processo de trabalho, convivendo num mesmo espaço institucional. Fica a interrogação sobre as consequências desse modo de organizar o processo de trabalho para os cuidados voltados aos sujeitos psicóticos e sobre quais as contribuições que o ensino de enfermagem de nível universitário e médio poderiam trazer para que os profissionais possam redirecionar suas práticas. Considerando a coexistência de diferentes maneiras de caracterizar a finalidade e as características do objeto de trabalho nos serviços de atenção psicossocial, sugere-se investimento maior na produção de um corpus conceitual e de práticas que possibilitem mudança de posição dos trabalhadores na produção de serviços dos CAPSs.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Ago 2009
  • Data do Fascículo
    Jun 2009

Histórico

  • Aceito
    10 Fev 2009
  • Recebido
    28 Abr 2008
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