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Uma proposta de construção da base operacional do processo de trabalho educativo em saúde coletiva

Resumos

Este estudo buscou construir a base operacional do trabalho educativo em saúde, a partir da vertente marxista. Teve como base empírica os relatos de experiência da enfermagem na rede básica de serviços de saúde, publicados entre 1988 e 2003. O objeto foi capturado a partir dos sujeitos dos agentes da ação, do objetivo, das concepções de saúde e de educação - saber fazer; e da necessidade geradora. Os meios/instrumentos foram identificados por meio do espaço físico, dos recursos didáticos, da freqüência dos encontros e da concepção de educação em saúde - saber operante. Para captar a finalidade identificou-se o tipo de avaliação, a quem foi dirigida, a meta a ser alcançada, a articulação do saber fazer e do saber operante. O trabalho educativo em saúde coletiva será um potencial de fortalecimento aos grupos sociais quando se constituir em uma práxis que assume o sujeito como co-produtor dialógico do trabalho em saúde.

educação em saúde; trabalho; enfermagem em saúde pública


This study aimed to construct the operational base of the educative work in health from a Marxist perspective. Reports of nursing experiences in the basic health services, published between 1988-2003, served as empirical base. The object was captured from: the participants; the action agents; the objective; health and education conceptions; and the generating necessity. The means/instruments were identified through: physical space; didactic resources; frequency of meetings; and the conception of health education. The type of evaluation; to whom it was directed; the goal to be reached and articulation between the theoretical and operational knowledge were identified in order to capture the purpose. The educative work in collective health can strengthen social groups when it becomes praxis that assumes the participant as a dialogical co-producer of the work in health.

health education; work; public health nursing


El presente estudio tuvo como objetivo construir la base operacional del trabajo educativo en salud a partir de la vertiente marxista. Los relatos de experiencia de enfermeras que laboraron en la red básica de servicios de salud, publicados entre 1988-2003, fueron utilizados como base empírica. El objetivo fue capturado a partir: de los sujetos, de los agentes de acción, del objetivo, de las concepciones de salud y de educación - saber hacer, y de la necesidad generadora. Los medios/instrumentos fueron identificados por medio: del espacio físico, de los recursos didácticos, de la frecuencia de sesiones, y de la concepción de educación en salud - saber operante. Para captar la finalidad se identificó: el tipo de evaluación, a quien fue dirigida, la meta a ser alcanzada, la articulación entre el saber hacer y el saber operante. El trabajo educativo en salud colectiva será un potencial de fortalecimiento para los grupos sociales cuando se constituya en una praxis que asume el sujeto como co-productor dialógico del trabajo en salud.

educación en salud; trabajo; enfermería en salud pública


ARTIGOS ORIGINAIS

Uma proposta de construção da base operacional do processo de trabalho educativo em saúde coletiva1 1 Trabalho extraído de Dissertação de Mestrado

Érica Gomes PereiraI; Cássia Baldini SoaresII; Célia Maria Sivalli CamposII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Especialista de Laboratório, e-mail: egpereira@usp.br

IIEnfermeira, Professor Doutor, e-mail: cassiaso@usp.br, celiasiv@usp.br. Escola de Enfermagem, da Universidade de São Paulo, Brasil

RESUMO

Este estudo buscou construir a base operacional do trabalho educativo em saúde, a partir da vertente marxista. Teve como base empírica os relatos de experiência da enfermagem na rede básica de serviços de saúde, publicados entre 1988 e 2003. O objeto foi capturado a partir dos sujeitos dos agentes da ação, do objetivo, das concepções de saúde e de educação - saber fazer; e da necessidade geradora. Os meios/instrumentos foram identificados por meio do espaço físico, dos recursos didáticos, da freqüência dos encontros e da concepção de educação em saúde - saber operante. Para captar a finalidade identificou-se o tipo de avaliação, a quem foi dirigida, a meta a ser alcançada, a articulação do saber fazer e do saber operante. O trabalho educativo em saúde coletiva será um potencial de fortalecimento aos grupos sociais quando se constituir em uma práxis que assume o sujeito como co-produtor dialógico do trabalho em saúde.

Descritores: educação em saúde, trabalho, enfermagem em saúde pública

INTRODUÇÃO

Este estudo trata da construção de uma base operacional para o processo de trabalho educativo em saúde a partir do arcabouço teórico-metodológico da Saúde Coletiva. A história da educação em saúde no Brasil pautou-se, até recentemente, por desenvolver-se sob o arcabouço teórico-metodológico da Saúde Pública tradicional, tendo sido somente com o movimento da Reforma Sanitária, dos anos 70, e com a constituição do campo da Saúde Coletiva que a educação em saúde passou a sofrer influência de autores que preconizam o caráter emancipatório da educação(1).

Neste trabalho, parte-se da consideração teórica de que o processo educativo em saúde se constitui em processo de trabalho, ou seja, de que as práticas sociais em saúde constituem-se em trabalho(2-3). Sob a análise marxista, o trabalho em saúde se define como um conjunto de práticas sociais e saberes específicos que se realizam em sua relação com a totalidade social e com cada uma das instâncias que a integram(2). Esse conceito foi utilizado na área da saúde para decodificar os elementos constitutivos do processo de trabalho em saúde(3).

Durante toda a história das sociedades ocidentais, até há cerca de dois séculos, os objetos dos processos de trabalho em saúde foram representados por "entidades". Um único período importante constituiu-se exceção e, por isso, quando a medicina moderna se revelou como prática social, a partir do fim do século XVIII, tendeu a buscar na Grécia clássica seus símbolos(3). Assim foi que a medicina hipocrática empreendeu uma classificação, pela observação do conjunto de alterações naturais que causam sofrimento ao homem, chamando de clínica esse processo. A finalidade do trabalho médico passou a ser a de imitar e favorecer a natureza a encontrar o caminho do esforço bem-sucedido, ou mesmo, evitar seus fracassos, transformando um esforço malsucedido em seu oposto. O ato de reconhecer o tipo de desequilíbrio presente passou a chamar-se diagnóstico e o de saber para onde o conjunto de processos de reequilíbrio se encaminhava designou-se como prognóstico(3).

Essa estrutura, assim reconhecida, legitimou daí por diante o trabalho médico e, por conseguinte, a produção de serviços de saúde nele centralizada. Tomando como foco a doença e a doença do indivíduo, preencheu a literatura especializada e, por conseqüência, as práticas de intervenção em saúde.

Alguns estudiosos se confrontaram com essa concepção, postulando que o processo saúde-doença assume características heterogêneas, conforme o modo como cada grupo social se insere na produção da vida material e se relaciona com os outros grupos sociais constitutivos da sociedade(4). É por isso que o caráter social do processo saúde-doença se manifesta empiricamente com mais clareza na coletividade do que no indivíduo. Ao reconhecer o processo saúde-doença coletivo interessa saber como o processo biológico ocorre socialmente readquirindo, então, a unidade entre a doença e a saúde, dicotomizada no pensamento médico clínico. Visto como processo da coletividade, o preponderante é o modo biológico de viver em sociedade, que expressa, por sua vez, os transtornos biológicos característicos - a doença - que não aparecerá separada daquele: ambos ocorrem como momentos de um mesmo processo, porém, diferenciáveis(5).

Tais formulações encontram-se na base da origem do campo da Saúde Coletiva, na América Latina, a partir dos anos 80. Diferentemente da Saúde Pública tradicional, esse campo toma a saúde-doença como um processo histórico e dialético. A "salud pública convencional conceptualiza la salud-enfermedad empíricamente, reduciéndola al plano fenomênico e individualizado de la causalidad etiológica, la salud colectiva plante ala determinación histórica del proceso colectivo de producción de estados de salud-enfermedad. Mientras la salud pública acoge los métodos empírico-analítico (estructural funcionalista), popperiano o fenomenológico, la salud colectiva incorpora el método materialista dialéctico"(6).

Assim, o modelo da determinação social do processo saúde-doença "propõe que, dado um determinado modo de produção, situa-se um processo de reprodução social que se concretiza em uma dada formação social. Essa formação determina a existência de uma estrutura de classes sociais e suas relações. A dinâmica de classe implica em uma relação unitária entre produção e consumo. Nessa dialética, a produção não ocorre na ausência do consumo e o consumo depende da produção. A determinação do processo biopsicossocial do coletivo nas diferentes classes sociais é mediado, assim, pelos processos de produção e de consumo. No tocante à produção, a inserção dos agentes sociais em processos concretos de trabalho determina não somente sua própria exposição a riscos ocupacionais específicos como também seu acesso à riqueza ali produzida, através de seus rendimentos. Esses rendimentos, por sua vez, determinam os níveis de consumo e, portanto, o acesso a bens materiais de vida que incluem, entre outros, alimentação, moradia, saneamento, assistência médica, escolaridade etc. Assim, através da dialética produção-consumo, é possível entender os diferenciais de saúde entre os grupos sociais e dentro de cada grupo"(7).

O marco conceitual da Saúde Coletiva "permite uma delimitação compreensivelmente provisória desse campo científico, enquanto campo de conhecimento e âmbito de práticas"(8). Como campo de conhecimento, a Saúde Coletiva propõe "o estudo do fenômeno saúde/doença em populações enquanto processo social, investiga a produção e a distribuição das doenças na sociedade como processos de produção e reprodução social; analisa as práticas de saúde (processo de trabalho) na sua articulação com as demais práticas sociais, procura compreender, enfim, as formas com que a sociedade identifica suas necessidades e problemas de saúde, busca sua explicação e se organiza para enfrentá-los"(8). E, ainda, como âmbito de práticas, a Saúde Coletiva "envolve determinadas práticas que tomam como objeto as necessidades sociais de saúde, como instrumentos de trabalho distintos saberes, disciplinas, tecnologias materiais e não materiais, e, como atividades, intervenções centradas nos grupos sociais e no ambiente, independentemente do tipo de profissional e do modelo de institucionalização"(8) .

No campo da Saúde Coletiva a unidade básica de saúde é concebida como porta de entrada para o sistema de assistência à saúde, devendo responder ao conjunto de necessidades de saúde com práticas que extrapolem a dimensão curativa individual(9). Nesse sentido, caberá à educação em saúde a transformação das necessidades não sentidas em necessidades reconhecidas, tanto pela população quanto pelos trabalhadores, que respondem pela atenção à saúde no âmbito da unidade básica(6).

O PROCESSO DE TRABALHO EDUCATIVO EM SAÚDE

O presente estudo enfatiza a discussão acerca da educação como parte indissociável das relações de produção, já que perpassa a atividade do trabalhador quando ele, de algum modo, se vale de seus conhecimentos técnicos específicos ao interferir no mundo, transformando a natureza e se transformando nesse processo. A educação pode ser compreendida como a apropriação do saber historicamente produzido e é o recurso de que as sociedades dispõem para que a cultura não se perca, passando de geração a geração e garantindo a perpetuação do seu caráter histórico(10).

A reprodução, através da educação, do saber historicamente produzido não se restringe ao ato de consumo imediato e completo. Nesse ato, o educando apropria-se de um saber que a ele é incorporado e se prolonga para além do ato de produção, por toda a vida do indivíduo. Nesse sentido, o educando não se apresenta unicamente como consumidor do produto, mas também como objeto e produtor da prática educativa(10).

Inspirando-se nas proposições da área da educação(10) e transportando-as para a educação em saúde, pode-se afirmar que os usuários dos serviços de saúde não são apenas consumidores de uma dada orientação individual ou de grupo, além disso, agem no processo educativo em curso com vistas à consecução de um fim educativo, revelando sua dimensão de co-produção, juntamente com as outras pessoas envolvidas ativamente no processo pedagógico. Assim, a participação dos usuários dos serviços de saúde na atividade educativa configura-se não só como objeto, mas igualmente enquanto sujeito.

Na prática problematizadora da realidade, os sujeitos desenvolvem o poder de captação e de compreensão do mundo que lhes aparece, em suas relações com ele, não mais como realidade estática, mas como uma realidade em transformação, em processo. Aprofundando a tomada de consciência da situação, os homens se apropriam dela como realidade histórica, por isso mesmo, capaz de ser transformada por eles(11).

De acordo com pesquisa de 2003(12), que propõe uma leitura histórico-crítica da educação, o ponto de partida da educação para a compreensão da realidade é a contextualização da prática social que é comum, tanto para o agente, como para o sujeito da atividade educativa, cada qual trazendo diferentes experiências e conhecimentos. O passo seguinte do processo educativo é a problematização e identificação dos temas centrais que precisam ser resolvidos no âmbito da prática social e, em conseqüência, a definição dos conhecimentos que necessitam ser dominados. O terceiro passo trata da instrumentalização teórica e prática necessária aos sujeitos da atividade educativa para a apropriação e compreensão dos problemas detectados na prática social por meio de ferramentas culturalmente disponíveis. O quarto passo trata de construir uma nova forma de entendimento da prática social a que se chegou a partir da incorporação dos instrumentos culturais, transformados agora em elementos ativos de transformação social. E, finalmente, o quinto passo constitui a própria prática social.

Partindo então do pressuposto que o objeto da produção de serviços em saúde são os perfis de reprodução social e de saúde-doença, evidenciados no território geossocial, e a finalidade é a sua transformação, visando o aperfeiçoamento dos processos saúde-doença de todos os habitantes, o trabalho em si das distintas práticas sociais corresponderá aos processos de trabalho necessários para tal produção e a educação em saúde estará inserida como instrumento, por exemplo, do processo de trabalho da assistência à saúde, a fim de criar possibilidades concretas para que a população participe como sujeito histórico co-produtor ativo da transformação de seus perfis(13).

Nesse sentido, a ação educativa em saúde possui interdependência com a formação acadêmica de cada trabalhador, com o contexto histórico vivenciado e com a instituição em que essa prática se concretiza(1, 10).

A CONSTRUÇÃO DA BASE OPERACIONAL

O objeto do processo de trabalho educativo em saúde

O objeto de trabalho não se delimita por si mesmo, é delimitado pelo olhar de um sujeito que antevê em um certo fragmento da natureza um resultado potencial, esboçado num projeto subjetivo. O processo de evidenciar algo na natureza como um objeto de transformação para satisfazer necessidades decorre da presença de um sujeito. Se o sujeito transformar a si próprio, enquanto se reproduz às custas da transformação da natureza, ambos se tornarão históricos(3). O trabalho da educação em saúde terá como objeto a práxis humana, entendida como articulação pensamento-ação e possibilidade de transposição do cotidiano a partir dele próprio(14). Assim, o trabalho educativo em si, que pode ser planejado e executado "pelo conjunto de trabalhadores da saúde orientados por um projeto que articula clínica e epidemiologia, sob a perspectiva do pensamento social em saúde, na sua articulação, produzem a transformação no objeto"(13).

Pode-se depreender que o objeto do trabalho educativo em saúde coletiva, parte integrante do processo de construção do objeto da produção dos serviços de saúde e das práticas em saúde coletiva, será, portanto, a práxis humana, isto é, a articulação entre ação sobre a vida material e reflexão sobre a prática no cotidiano do trabalho. Para tanto, existem diferentes níveis de práxis, que variam de acordo com o grau de penetração da consciência do sujeito ativo no processo prático e com o grau de criação ou humanização da matéria transformada evidenciado no produto de sua atividade prática(15).

Os trabalhadores coletivos em saúde têm na expressão do objeto do seu trabalho educativo o conhecimento acerca de algum aspecto da realidade social e de saúde a ser transformado que se exterioriza nos usuários dos serviços de saúde. Todavia, enquanto o objeto de trabalho material impõe oposição à sua transformação passiva, a resposta do usuário "se dá de acordo com sua especificidade humana, que é ao mesmo tempo natural e transcendência do natural. É, pois, uma participação ativa, enquanto ser histórico"(10).

Por isso, conclui-se que o objeto do trabalho educativo em Saúde Coletiva somente atingirá a práxis humana quando o trabalhador assumir o usuário como objeto e co-produtor do seu trabalho, uma vez que, "num processo pedagógico legítimo, o educando não apenas está presente, mas também participa das atividades que aí se desenvolvem. A própria necessidade da participação ativa do aluno só se faz presente porque a educação supõe uma modificação na natureza do seu objeto"(10).

A especificidade do trabalho pedagógico pressupõe que o saber envolvido no processo educativo não pode ser expropriado do agente da atividade educativa sob pena de descaracterizar-se o próprio processo pedagógico, já que é o trabalhador que realiza o trabalho em si(10). Caso o trabalhador acredite que o usuário é apenas o objeto do seu trabalho, a atividade não potencializará sua participação ativa como sujeito co-produtor da atividade pedagógica. Enquanto objeto, será consumidor do produto no momento da sua produção e como sujeito, portador de um saber - matéria-prima do processo, que dará substância e conteúdo à própria relação educador-educando(10).

Por isso, o conhecimento do trabalhador coletivo de saúde acerca do objeto de trabalho educativo será esquadrinhado por sua concepção de saúde e de educação. Esse conhecimento, que captura a partir da natureza aquilo que será objeto de trabalho educativo, subordina os saberes operantes/instrumentais* * O saber fazer é o conhecimento que articula todos os elementos constitutivos do trabalho pedagógico e o saber que se passa é aquele que instrumentaliza a transformação do tema para os sujeitos do processo de trabalho pedagógico (10) , por exemplo, a concepção de educação em saúde nos próximos passos constitutivos do processo de trabalho educativo em saúde.

Os meios e instrumentos do processo de trabalho educativo em saúde

Os instrumentos de trabalho correspondem à maneira como os saberes operantes/instrumentais, recursos materiais e a força de trabalho constitutivos do trabalho concreto - que só se transforma em trabalho abstrato por intermédio da troca como forma social de produção - se incorporam no processo de trabalho e sintetizam num "produto um valor de uso, um material da natureza adaptado às necessidades humanas por meio da mudança de forma"(16).

Já os meios de trabalho dirigem a síntese da qualidade/utilidade do objeto e o projeto da finalidade, no sentido de que "são uma coisa ou um complexo de coisas que o trabalhador insere entre si mesmo e o objeto de trabalho e lhe serve para dirigir sua atividade sobre esse objeto. Além disso, medem o desenvolvimento da força humana de trabalho e indicam as condições sociais em que se realiza o trabalho"(16).

Ao integrar o processo de trabalho educativo, os instrumentos correspondem ao trabalho morto incorporado ao objeto para atingir a finalidade - produto do processo de trabalho. E é preciso lembrar que, desse modo, os instrumentos de trabalho por si só não garantirão o bom encaminhamento do processo de trabalho. A continuidade do processo de consumo dos instrumentos para a transformação do objeto dependerá da maneira como é recortado esse mesmo objeto, já que será o trabalho vivo do trabalhador de saúde dirigido ao recorte da natureza em que visualiza o objeto de trabalho que dará as diretrizes para uso dos instrumentos de trabalho(3,16). Por isso, algo só se tornará instrumento de trabalho quando o sujeito, dotado de um projeto, o utilizar, mas apenas enquanto se utilizar dele, valer-se de suas qualidades, de seu valor de uso, para transformar o objeto(3).

Quando o trabalhador assume indiscriminadamente os instrumentos de trabalho sem considerar o recorte da natureza a ser transformada - objeto de trabalho - os instrumentos não são utilizados em toda sua potencialidade. E, então, os trabalhadores "se tornarão complementos vivos de um mecanismo morto que existirá independente deles"(16).

A finalidade do processo de trabalho educativo em saúde

A atividade do trabalho humano está vinculada à finalidade sempre presente antes e durante o processo de trabalho. No fim do processo de trabalho aparece um resultado que já existia antes - subjetivamente - na imaginação do trabalhador. "Ele não transforma apenas o material sobre o qual opera; ele imprime ao material o projeto que tinha conscientemente em mira, o qual constitui a lei determinante do seu modo de operar e ao qual tem de subordinar sua vontade"(16).

A finalidade do trabalho educativo em Saúde Coletiva depende do recorte do objeto a ser transformado e uma vez que esse recorte depende da concepção de saúde e de educação, a finalidade do processo de produção dos serviços de saúde será a transformação dos perfis de reprodução social e perfis saúde-doença nos grupos sociais homogêneos (objeto de trabalho), visando o aperfeiçoamento dos processos saúde-doença do coletivo(13).

Se assim é, para o aperfeiçoamento dos perfis epidemiológicos do coletivo torna-se necessária a participação dos usuários no reconhecimento de suas formas de reprodução social, dos potenciais de desgaste e fortalecimento a que estão expostos e ainda das manifestações de desgaste e de fortalecimento que vão se evidenciando ao longo de suas vidas. Essa participação se dará na medida em que os trabalhos educativos com os usuários facilitem a apropriação das informações e conhecimentos que garantirão sua autonomia, a fim de que haja o enfrentamento dos potenciais de desgaste e aperfeiçoamento dos potenciais de fortalecimento materializados nos seus processos saúde-doença(13).

A partir do pressuposto que o processo de trabalho educativo em Saúde Coletiva é guiado pela finalidade de aprimorar os perfis epidemiológicos do coletivo, este estudo buscou construir uma base operacional para viabilizar o desenvolvimento de processos de trabalho educativos.

Identificação dos elementos do processo educativo em saúde: a base empírica (Figura 1)


A partir desse arcabouço teórico-metodológico, procurou-se encontrar as características específicas do processo de trabalho educativo necessárias para identificar o objeto, os meios, instrumentos e a finalidade do trabalho. Para apoiar a identificação dos elementos do processo de trabalho na realidade, utilizou-se como base empírica, a partir de uma revisão bibliográfica, os relatos de experiência dos enfermeiros brasileiros na rede básica de serviços de saúde publicados entre 1988 e 2003(17).

O objeto de trabalho foi encontrado mediante a descrição: dos agentes envolvidos no planejamento e na execução da ação educativa, das concepções de saúde e de educação que constituem o saber fazer dos agentes, dos objetivos descritos, dos sujeitos para os quais a ação educativa se destinou, e da necessidade geradora da ação.

Por referência aos agentes: Indicador de trabalhador do serviço e trabalhador da universidade envolvido no planejamento e na execução - qualifica a potência do agente e a natureza da instituição a que pertence, para a transformação do objeto-sujeito da atividade educativa. Além disso, permite o paralelo entre os agentes que planejam a atividade e aqueles que de fato a executam, para ser captada a divisão técnica do trabalho educativo da enfermagem na rede básica de serviços de saúde. Tomando por pressuposto que os agentes são os que se encontram em posição de captar e decodificar a realidade de saúde, objeto a ser transformado pelo trabalho em saúde, elegeu-se o indicador de necessidade geradora para captar se o processo educativo relatado pelos agentes é instrumento do processo de trabalho da assistência ou do ensino de enfermagem; e o indicador de concepção de educação e o indicador de concepção de saúde - que vislumbra a potência do agente de olhar a natureza, recortar seu objeto de trabalho e traçar, por meio de um saber fazer, o processo de transformação do objeto-sujeito, a partir de um referencial teórico que norteia seu trabalho pedagógico.

Por referência ao objetivo: indicador de temática - que é o objetivo a ser trabalhado com os sujeitos da atividade educativa, indicando a práxis (maneira de pensar e de agir) que o agente considera necessário transformar.

Por referência ao sujeito: Indicador de qualificação empírica dos sujeitos - permitiu qualificar se os agentes identificam os sujeitos: por meio do ciclo de vida em que se encontram, por meio do ciclo de vida em que se encontram e sua rede social, pela qualidade de ser usuário de uma instituição, por meio do ciclo de vida em que se encontram, do sexo e pela qualidade de ser usuário de uma instituição, e pela condição que vivenciam no momento da atividade educativa. Indicador de participação no planejamento dos temas - permite captar se os sujeitos representantes da população participam como co-produtores das necessidades tomadas pelo agente como sendo transformáveis em um processo educativo. A presença dos sujeitos no recorte dos temas a serem trabalhados na ação educativa favorece o compartilhamento do objeto a ser transformado. Indicador de âmbito de atuação - permite captar se o objeto tem caráter individual ou coletivo, esze podendo ser definido como grupo de indivíduos ou como grupo com alguma comunalidade, de classe ou condição.

Os meios e instrumentos de trabalho foram identificados pelo: Indicador de espaço físico em que o agente concretiza o processo de trabalho educativo, considerando que o local onde se desenvolve o processo educativo nem sempre é o meio em que o agente trabalha cotidianamente. Indicador de recurso didático que capta a viabilidade de transformação concreta do objeto-sujeito no processo educativo e aponta para uma práxis reiterativa ou transformadora. Indicador de freqüência dos encontros, que refletem as etapas necessárias ao processo pedagógico. O saber operante/instrumental foi captado por meio do indicador de concepção de educação em saúde, que permite vislumbrar a potência do agente de utilizar um referencial teórico, que potencializa o alcance das finalidades propostas para o trabalho pedagógico.

Para identificar os elementos relativos à finalidade do processo de trabalho educativo utilizou-se: indicador de presença de avaliação, para demonstrar se houve preocupação em perceber algum nível de transformação do objeto; indicador de tipo de avaliação, para comprovar se houve preocupação em captar transformações sucessivas durante o processo (avaliação de processo ensino-aprendizagem) e/ou se a finalidade do processo de trabalho educativo foi captada apenas no momento final do processo ou em outros momentos (avaliação de resultados a curto, médio e longo prazos); indicador de meta a ser alcançada, diz respeito a: adotar um comportamento saudável, discutir as causas dos problemas de saúde, prevenir uma certa doença ou agravo, controlar uma certa doença ou agravo, promover a melhoria das condições de vida na casa/bairro ou outro espaço ligado ao âmbito do consumo, promover a melhoria das condições de trabalho. Indicador de articulação saber/fazer e saber operante, a fim de captar indícios de articulação entre os saberes constituintes do saber/fazer - concepção de educação e de saúde - para a captura do objeto de trabalho, e o saber operante - concepção de educação em saúde - que é parte dos instrumentos do processo de trabalho educativo em saúde. Indicador de tipo de avaliados, que captou quem foi avaliado, se o sujeito e/ou o agente do processo educativo.

CONCLUSÕES

Foi possível, a partir desses indicadores, captar uma variedade de objetos, meios/instrumentos e finalidades do trabalho realizado particularmente pela enfermagem na rede básica de serviços de saúde, a partir de 1988. Esses resultados(17) mostraram divergência com o eixo teórico-metodológico e operacional do campo da Saúde Coletiva. Por vezes, distanciam-se em certa medida do eixo da saúde pública tradicional sem, contudo, alçar coerência entre as categorias que compõem o processo de trabalho educativo em Saúde Coletiva. O processo de trabalho educativo está mais próximo dos moldes de uma saúde pública que incoerentemente advoga o instrumento da participação - inclusive a partir de autores como Paulo Freire - mas apenas para legitimar o saber técnico e responsabilizar a chamada comunidade pela busca de soluções para seus problemas de saúde.

É possível dizer que a sociedade brasileira compõe trabalhos educativos na rede básica de serviços de saúde, cujo desenvolvimento reprime as possibilidades do homem genérico de exercer sua criatividade e liberdade porque tem recortado objetos pontuais tomados a partir de uma visão de mundo que conceitua homem como um ser individual, funcionando como um sistema de órgãos em perfeita harmonia, que faz parte de uma sociedade homogênea, sem classes sociais, uma visão funcionalista(2).

Para desenvolver um processo educativo em Saúde Coletiva é necessário, em primeiro lugar, articular as concepções de saúde que fundamentam a constituição do objeto às de educação, que coerentemente apoiarão a transformação desse objeto. Em segundo lugar, é necessário compreender a prática educativa como um processo de trabalho. As bases dessas concepções são marxistas, o que significa tomar a saúde como um processo socialmente determinado(5) e a educação do ponto de vista emancipatório, como um processo histórico-crítico de compreensão da realidade, locus em que interagem educador e educando(10-12). Da mesma forma, para desenvolver um processo educativo em Saúde Coletiva é necessário que a concepção de educação em saúde utilizada na transformação de um tema particular, com um grupo delimitado, seja coerente com as concepções de saúde e de educação que fundamentam o campo da Saúde Coletiva: uma educação que instrumentalize os grupos sociais a buscar as raízes do processo saúde-doença e constituir saídas coletivas.

Coerentemente a isso, os objetivos do processo pedagógico serão atingidos mediante a escolha de instrumentos que intensifiquem a possibilidade de problematização, prevendo um local que favoreça relações dialógicas e que atenue a hierarquia institucional. Os instrumentos pedagógicos devem incorporar etapas que permitam as idas e vindas do processo de reflexão.

A finalidade é determinada pela transformação desse objeto, instrumentalizando trabalhadores da saúde e grupos sociais para o enfrentamento dos potenciais de desgaste e constituindo sujeitos históricos, capazes de usufruir do que for socialmente produzido. Só é possível aferir se essa finalidade está sendo atingida por meio de processos avaliativos, comumente negligenciados. A avaliação deve contemplar o processo educativo na totalidade. Portanto, além de indicadores de resultados, deve prever indicadores que avaliem o processo. Processos educativos na perspectiva da Saúde Coletiva propiciam a participação dos agentes e dos sujeitos como co-produtores do processo, desde o momento do planejamento até o da avaliação.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 16.11.2006

Aprovado em: 16.8.2007

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  • 1
    Trabalho extraído de Dissertação de Mestrado
  • *
    O
    saber fazer é o conhecimento que articula todos os elementos constitutivos do trabalho pedagógico e o
    saber que se passa é aquele que instrumentaliza a transformação do tema para os sujeitos do processo de trabalho pedagógico
    (10)
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      11 Fev 2008
    • Data do Fascículo
      Dez 2007

    Histórico

    • Aceito
      16 Ago 2007
    • Recebido
      16 Nov 2006
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