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Histórias de vida de familiares de crianças com doenças graves: relação entre religião, doença e morte

Resumos

Trata-se de pesquisa qualitativa com o objetivo de conhecer a relação entre as experiências de famílias de crianças que vivenciaram uma doença grave com a sua religião, doença e suas histórias de vida. O referencial metodológico usado foi a História Oral. Participaram deste estudo nove famílias de seis diferentes religiões, as quais já vivenciaram a experiência de ter uma criança gravemente doente. As entrevistas, realizadas com um ou dois membros da família da criança, foram transcritas, textualizadas e, a partir de sua análise, elaborado o Tom Vital que representa a síntese moral da narrativa. Três dimensões da religiosidade/espiritualidade foram relacionadas à doença e morte em suas histórias de vida: Ser Superior com Poder de Cura; Desenvolvimento e Manutenção de uma Conexão com Deus e a Fé Encorajando o Otimismo. As narrativas evidenciaram a busca da família por atribuir significados às experiências vivenciadas, a partir de suas crenças religiosas.

Morte; Religião; Criança


This qualitative study aimed to get to know the relationship between the experiences of families of children with a life-threatening disease and their religion, illness and life histories. The methodological framework was based on Oral History. The data were collected through interviews and the participants were nine families from six different religions who had lived the experience of having a child with a life-threatening disease. The interviews, held with one or two family members, were transcribed, textualized and, through their analysis, the Vital Tone was elaborated, representing the moral synthesis of each narrative. Three dimensions of spirituality were related to illness and death in their life histories: a Higher Being with a healing power; Development and Maintenance of a Connection with God and Faith Encouraging Optimism. The narratives demonstrated the family's search to attribute meanings to their experiences, based on their religious beliefs.

Death; Religion; Child


Se trata de una investigación cualitativa con el objetivo de conocer la relación entre las experiencias de familias, con niños que tenían una enfermedad grave, con religión, enfermedad, e historias de sus vidas. El marco metodológico usado fue la Historia Oral. Participaron de este estudio nueve familias practicantes de seis religiones diferentes, las cuales pasaron por la experiencia de tener un niño gravemente enfermo. Las entrevistas, realizadas con uno o dos miembros de la familia del niño, fueron transcritas, textualizadas y, a partir de su análisis, fue elaborado el Tono Vital que representa la síntesis moral de la narración. Tres dimensiones de la religiosidad/espiritualidad fueron relacionadas a la enfermedad y muerte en sus historias de vida: un Ser Superior con Poder de Cura; el Desarrollo y Manutención de una Conexión con Dios y la Fe Incentivando el Optimismo. Las narraciones evidenciaron la búsqueda de la familia, partiendo de sus creencias religiosas, por significados que pudiesen ser atribuidos a las experiencias de sus vivencias.

Muerte; Religión; Niño


ARTIGO ORIGINAL

Histórias de vida de familiares de crianças com doenças graves: relação entre religião, doença e morte

Regina Szylit BoussoI; Taís de Souza SerafimII; Maira Deguer MiskoIII

ILivre Docente, Professor, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: szylit@usp.br

IIAluna do curso de graduação em enfermagem, Escola de Enfermagem, Universidade de São Paulo, Bolsista de Iniciação Científica CNPq. E-mail: tais_serafi@hotmail.com

IIIEnfermeira, Doutoranda do Programa Interunidades de Doutoramento em Enfermagem, Escola de Enfermagem e Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: mairadm@usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Trata-se de pesquisa qualitativa com o objetivo de conhecer a relação entre as experiências de famílias de crianças que vivenciaram uma doença grave com a sua religião, doença e suas histórias de vida. O referencial metodológico usado foi a História Oral. Participaram deste estudo nove famílias de seis diferentes religiões, as quais já vivenciaram a experiência de ter uma criança gravemente doente. As entrevistas, realizadas com um ou dois membros da família da criança, foram transcritas, textualizadas e, a partir de sua análise, elaborado o Tom Vital que representa a síntese moral da narrativa. Três dimensões da religiosidade/espiritualidade foram relacionadas à doença e morte em suas histórias de vida: Ser Superior com Poder de Cura; Desenvolvimento e Manutenção de uma Conexão com Deus e a Fé Encorajando o Otimismo. As narrativas evidenciaram a busca da família por atribuir significados às experiências vivenciadas, a partir de suas crenças religiosas.

Descritores: Morte; Religião; Criança.

Introdução

A experiência de ter doença grave gera sofrimento e a imediata busca por atribuir significados na tentativa de que essa situação faça algum sentido, pois essa experiência pode ser, muitas vezes, confusa e desgastante, tanto para a vida da pessoa quanto para a de sua família(1).

Os significados são transmitidos historicamente, determinando a cultura de um povo, por meio da qual as pessoas desenvolvem seu conhecimento e suas atividades em relação à vida; como construção social, ela possibilita um modo de ver o mundo, vivenciá-lo cognitiva e emocionalmente, influenciando suas atitudes em relação à saúde e à doença. Assim, na cultura ocidental, a religião é descrita como estratégia para lidar com a doença e suas terapêuticas(2).

As crenças e práticas religiosas são mediadoras no processo saúde-doença face ao desenvolvimento de esquemas cognitivos que poderiam ampliar os recursos pessoais de enfrentamento, por meio da sensação de controle e da autoestima, favorecendo a atribuição de significado aos eventos estressores(3-4). A religiosidade permite à pessoa compreender os significados dos eventos como parte de um propósito ou projeto mais amplo, mediante a crença de que nada ocorre por acaso e de que acontecimentos da vida são determinados por uma força superior. Possibilitam, ainda, a crença de que tais eventos podem levar ao crescimento pessoal como sabedoria, equilíbrio e maturidade(3).

A religião é um recurso comum, com efeitos benéficos ao ajustamento à doença e crenças importantes para a pessoa, que a faz sentir menor culpa e necessita de menor número de informações; esse fato pode resultar em menor dependência em relação aos profissionais de saúde(5). Vale ressaltar que diferentes religiões oferecem crenças distintas e, consequentemente, os dilemas sobre a experiência de doença e morte também são percebidos de formas peculiares(6).

Para os pais, um dos principais impactos no cotidiano de suas vidas é quando descobrem que seu filho tem uma doença que ameaça sua vida. Esse fato provoca alterações em seus sonhos e esperanças em relação ao futuro dos seus filhos e, a partir de então, esses familiares buscam por significados e estratégias de enfrentamento diante de tais situações de doença(7).

Sendo a religião importante para muitos pacientes, os profissionais de saúde necessitam conhecer as crenças que tornam a pessoa doente e seus familiares com maior ou menor disposição para receber o tratamento. Além disso, atividades espirituais e religiosas podem ser agregadas às terapias e tratamentos e tais fatos devem incentivar novas pesquisas na área.

Diante do exposto, este estudo teve como objetivo conhecer a relação entre a experiência de famílias de crianças que vivenciaram uma doença grave com: religião, doença e suas histórias de vida.

Metodologia

Para responder ao objetivo proposto neste estudo, utilizou-se a abordagem qualitativa. O método qualitativo é recomendado quando se conhece pouco a respeito de um fenômeno ou se pretende descrevê-lo de acordo com o ponto de vista do sujeito, aplicando-se, portanto, à questão que norteia esta pesquisa(8). Considerando a natureza deste estudo, e acreditando na importância de se estudar os fenômenos sob a perspectiva das próprias pessoas, em seus contextos de vida, optou-se, aqui, pela História Oral como referencial metodológico para a sua condução, que se constitui em recurso usado como forma de captação de experiências de pessoas dispostas a falar sobre aspectos de sua vida, com o compromisso de se manterem no contexto social.

O pressuposto da História Oral está na percepção do passado como algo que tem continuidade no presente e cujo processo histórico não está acabado; além disso, proporciona sentido à vida social dos depoentes e leitores, levando-os a compreender o seguimento histórico e a se identificarem como parte dele. Na História Oral, o depoente é considerado o “colaborador”, o que implica em relacionamento de afinidade entre o entrevistado e o entevistador(9).

A História Oral é considerada o foco central do estudo e os depoimentos o ponto central das análises. Para obter o valor metodológico, o pesquisador centraliza sua atenção nos critérios de elaboração do projeto, na realização das entrevistas, no processo da passagem oral para o texto escrito e nos resultados afinados com o sentido da entrevista. É sobre a expressão dessas entrevistas, ponto nevrálgico da pesquisa, que os resultados são efetivados(9).

Em relação à representatividade da amostra, cada depoimento e cada entrevista tem valor em si; portanto, não se pode afirmar que uma ou algumas entrevistas “representem” o conjunto. Porém, a versão individual de cada fenômeno é importante e se justifica diante da soma de argumentos que caracterizam a experiência em conjunto, ou seja, para a história oral, cada depoimento tem peso autônomo. Dessa forma, não se pensa que uma única entrevista seja capaz de sintetizar a concepção da experiência de todos os familiares, mas o conjunto das crenças dos vários entrevistados torna-se significativo na busca da compreensão do tema(9).

Nesta pesquisa, foi utilizada a história oral temática, que busca o esclarecimento ou a opinião do entrevistado sobre algum assunto específico, ou um tema preestabelecido. A objetividade é direta: aborda questões externas, objetivas, factuais, temáticas, e seu caráter específico lhe confere características diferentes(9).

O projeto desta pesquisa foi submetido ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da USP, tendo recebido parecer favorável para a sua realização. Inicialmente, solicitou-se, por escrito, consentimento às famílias para sua participação na pesquisa, por meio do termo de consentimento livre e esclarecido, o qual apresentava informações sobre a pesquisa, relatando que as entrevistas seriam gravadas e que o anonimato seria assegurado.

Para a seleção dos colaboradores é necessário o estabelecimento de uma colônia. A colônia é um grupo ou comunidade de pessoas, pessoas essas que fazem parte da pesquisa e que apresentam comportamento amplo que os caracteriza. É definida pelos traços preponderantes que ligam as trajetórias das pessoas(9). Neste estudo, a colônia foi constituída por nove famílias de seis diferentes religiões que vivenciaram a experiência de ter uma criança gravemente doente. A rede é uma subdivisão da colônia e visa estabelecer parâmetros para decidir quais pessoas serão entrevistadas(9).

A seleção das famílias que fizeram parte do estudo foi baseada no critério de já terem vivenciado a experiência de ter uma criança gravemente doente sob a perspectiva da própria família. As famílias selecionadas, respeitando esse critério, eram conhecidas da pesquisadora e, por meio de indicações dessas famílias e de outras pessoas, uma rede começou a ser formada. O primeiro contato foi feito pessoalmente ou por telefone, quando as famílias foram convidadas a participar do estudo e, após seu consentimento, a entrevista foi agendada. Nesse momento, todos os membros da família eram convidados a participar da entrevista, considerando a definição de que família é quem seus membros dizem que são. Assim, participaram do estudo: nove mães, um pai e uma avó materna.

Foram entrevistadas uma família pertencente à religião espírita, quatro católicas, uma batista, uma evangélica, uma espiritualista e uma budista. As entrevistas ocorreram em ambiente tranquilo e privado, com duração média de vinte minutos, gravadas após a autorização e assinatura do termo de consentimento livre e esclarecido.

A utilização de um roteiro é recomendada como peça fundamental para obter os dados investigados na história oral temática(9). Para este estudo, o roteiro foi composto por três momentos com focos distintos: (1) a religião na história de vida da família; (2) a experiência de doença e a religião (quando e como suas crenças religiosas afetam sua saúde e de que forma) e (3) crenças sobre religião e doença, e religião e morte. O roteiro foi constituído pelas seguintes questões norteadoras: conte-me de que forma a religião começou a fazer parte da sua vida. Como a religião aparece no seu cotidiano? De que forma suas crenças religiosas afetam as experiências de doença da criança? O que significa a doença para você? O que a morte significa para você?

Após a finalização das entrevistas, dando continuidade aos procedimentos metodológicos, a análise foi realizada em três etapas, conforme preconizado(9): 1) transcrição – é a passagem rigorosa da entrevista, da fita para o papel, após a escuta cuidadosa de todo o conteúdo, por algumas vezes, da fita para o papel, com todos os seus lapsos, incluindo as perguntas do entrevistador; 2) textualização – etapa na qual as perguntas são suprimidas e agregadas às respostas, passando a ser todo o texto de domínio exclusivo do colaborador. Aqui, a narrativa recebe reorganização para se tornar mais clara. Escolhe-se, então, o Tom Vital, que é uma frase a ser colocada na introdução da história oral por representar a síntese moral da narrativa ou eixo norteador da leitura, e 3) transcriação – é a etapa na qual se atua no depoimento de maneira mais ampla, invertendo-se a ordem de parágrafos, retirando ou acrescentando palavras e frases. Recria-se a atmosfera da entrevista, procurando trazer ao leitor o mundo de sensações provocadas pelo contato. Há interferência do autor no texto, devendo obedecer a acertos combinados com o colaborador. Nesse procedimento, torna-se vital a legitimação da entrevista por parte do colaborador(9).

Após a leitura de cada depoimento, evidenciou-se que as narrativas expressavam um significado peculiar, percebendo-se pontos em comum entre as histórias, os quais poderiam ser bem mais explorados, com o intuito de fornecer compreensão mais ampla de seu conteúdo, o que será realizado a seguir.

Resultados

Na abordagem interpretativa adotada para este estudo, procurou-se descrever cada experiência da maneira como ela foi vivenciada, sob a perspectiva daquele que a vivenciou e a forma que suas crenças religiosas influenciam no momento de doença da criança e vice-versa.

A partir das narrativas, três dimensões da religiosidade/espiritualidade foram relacionadas à doença e à morte em suas histórias de vida: Ser Superior com Poder de Cura, Desenvolvimento e Manutenção de uma Conexão com Deus e a Fé Encorajando o Otimismo.

Na fala da primeira colaboradora, pertencente à religião católica, evidenciou-se o seguinte Tom Vital: o que me sustentou foi a minha família e a minha fé, eu não tenho dúvidas disso tanto que tinha muito bebê prematuro na época e eu via para quem não tinha uma espiritualidade ali passava a ter, não existe ateu dentro de uma UTI neonatal... Não existe...

A família tem papel importante na fase de internação da criança. O fato de todos os membros da família participar da mesma religião fez com que compartilhassem a mesma fé e esse suporte tornou-se efetivo durante a fase da doença. A família é sempre mencionada pelos entrevistados, ao relatarem suas experiências. As crenças tradicionais, ensinadas pelas gerações anteriores, têm grande valor e são lembradas nos momentos de aflição.

Para a colaboradora, o ambiente de UTI neonatal é muito tenso face à gravidade das doenças e, diante dessa situação, crer em um Ser Superior com poder para resolver os problemas ameniza a situação, já que seus medos, angústias e incertezas são divididas com Ele. Para a família, a crença é de que Deus é dotado de poderes para a vida e a morte.

A segunda narrativa refere-se à outra família católica, mas que há tempos não frequentava a igreja. A colaboradora se autodenomina “católica não praticante”, sendo possível evidenciar o seguinte tom vital em sua história: não voltei à igreja para ouvir a palavra, mas por acreditar que tem um ser maior, que tem alguma coisa que de repente você precise diante de um momento de doença, diante de alguma coisa ruim na sua vida, de acreditar em alguma coisa maior... depois que você estuda e se desenvolve intelectualmente, a gente não procura tanto a palavra mas os rituais...

Após a cura do filho, a colaboradora relata uma fase de reflexão e ressignificação que proporcionou o retorno de toda sua família aos cultos religiosos. A colaboradora refere que passou a valorizar os rituais e cultos religiosos da igreja e acreditar que existe um Ser maior que ampara a família diante das dificuldades.

Os colaboradores descrevem a conexão com Deus como componente essencial para a espiritualidade e, nem sempre, identificam esse como um aspecto religioso. Para a família, a instituição religiosa ou as formalidades da igreja podem dificultar essa conexão “espiritual” com Deus. A relação ou conexão mental com “algo maior” é o que mantém a esperança e direciona a família para o futuro nas situações de doença.

A terceira narrativa é de uma família de religião batista, sendo os colaboradores do estudo os pais da criança. Nela, o Tom Vital constitui-se em: a religião não se tornou mais importante, pois ela já era muito importante, mas a gente se apega mais ainda quando passa um momento difícil, se apega mais a Deus... você tem uma necessidade de comungar com Deus a sua ansiedade e o teu medo.

A família utiliza a oração como importante forma ou estratégia para amenizar o sofrimento causado pela doença da filha e ressalta ser essa uma prática comum em sua religião, não apenas utilizada nos momentos de angústia, mas também de agradecimento. A fé religiosa proporciona à família melhor controle interno de emoções, resultando em maior habilidade para se sentir confortável na situação de vulnerabilidade da doença. Entendem que a vida e a morte estão sob o controle de Deus. Nesse contexto, as crenças e práticas religiosas suprem a necessidade emocional de ter uma expectativa para o futuro.

O tom vital da narrativa 4, apresentada por uma mãe, colaboradora de uma família que se intitula espiritualista foi: não tenho nenhuma religião, na minha casa somos bastante espiritualistas... Eu tive uma formação voltada para o catolicismo. Fiz primeira comunhão, mas minha mãe frequentava muito o espiritismo, e eu fui me interessando ao longo do meu crescimento... e depois foram acontecendo algumas coisas na minha vida e a espiritualidade foi uma forma de me manter em pé. É indescritível a sensação de saber que estava sendo ajudada, pelas pessoas, pelos amigos, pelas orações que faziam.

A família ressalta a importância de se doar para ajudar o outro nas situações de doença. Doar-se ao outro é relatado como importante componente da espiritualidade. Identificam ações acolhedoras e fortalecedoras por parte de parentes e amigos. Quanto mais apegada aos aspectos espirituais, mais a família identifica recursos e mantém sua energia para levar adiante a situação estressante de doença. A religião ou religiosidade não tem poder para resolver a situação instantaneamente, mas, sim, de ajudar a renovar as energias para que a família identifique recursos e aprenda a lidar com as situações. A família descreve a mudança ocorrida no estilo de vida, inclusive atividades relacionadas à saúde, desde que começou a desenvolver sua espiritualidade.

O próximo Tom Vital foi evidenciado a partir da narrativa da colaboradora 5, mãe, pertencente a uma família espírita: minha fé ficou muito mais forte depois da doença do meu filho, com certeza a gente sabe que tem alguém olhando por nós e isso reconforta alguém lá em cima, alguma força maior, acho que a gente tem que saber pedir e agradecer e acreditar nisso.

Além de estabelecer conexão pessoal em “Algo maior” é preciso ter fé. Ter fé em Algo maior é o que ajuda a família a manter-se mais calma diante das adversidades da vida – como a doença grave. Ao rezar, a família estabelece sua conexão com Deus ou Algo maior e reforça sua fé. Rezar passa a ser componente fundamental para lidar com as adversidades da doença.

A próxima narrativa foi de uma mãe e de uma avó de família católica e evidenciou, segundo a fala das colaboradoras, o tom vital 6: e é aí essa parte da religião que a gente se apegou, fiz muita promessa, fui muito em Aparecida e acredito, assim, que a gente é amparada, que tem momento que a gente acha que não vai suportar, mas graças a Deus estamos aí....

A família considera a religião como importante apoio para enfrentar os momentos críticos da enfermidade da criança; por ser uma doença crônica de grande gravidade, as fases de crises sempre retornam. A família fica abalada e acredita que só pode enfrentar esse momento por existir um Ser Superior que lhes concede conforto e, assim, os fortalece diante da experiência. Além disso, a família ressalta as práticas de devoção que fortalecem suas crenças. Acreditam que sua fé é testada e precisa ser comprovada. Fazem promessas que representam sua capacidade de doação e gratidão a Deus pela graça recebida – a cura da doença.

O tom vital 7 apresenta a narrativa de uma mãe, de uma família adepta do budismo: ele não melhorava, então comecei a fazer muito daemoko no hospital, era um caso de vida ou morte e, após muita oração, ele foi melhorando; foi aí que eu tive a prova real, né? Isso serviu para aprofundar minha fé, faz você acreditar mais no que você pratica.

Da mesma forma que para outras famílias, a fé sempre foi importante e as crenças aprendidas, inquestionáveis. Acredita que as orações determinaram a melhora do filho e isso fortalece a fé familiar. Para a família, a melhora da criança representa a força da oração e da fé para reverter uma situação adversa. A fé encoraja seu otimismo.

A partir da narrativa da colaboradora 8, mãe, de crença religiosa evangélica, evidenciou-se o seguinte Tom Vital: quando soube que minha filha estava com suposta leucemia eu não aceitei, pois creio que o Senhor leva nossas enfermidades, então nós não podemos aceitar; um versículo diz que a doença pode até vir até nós, mas também pode sair com o poder de Deus .

A fala evidencia a não aceitação da doença de sua filha, pois sua crença é depositada em um Ser Superior capaz de sanar todas as enfermidades, então, para ela, se esse Ser pode curar, logo a doença não existe. Sua crença é depositada em um Ser Superior com poder para resolver todos os seus problemas.

O Tom Vital 9 foi evidenciado a partir da narrativa de uma mãe, pertencente a uma família católica: fiquei com muito medo que minha filha morresse. Então, o que eu fazia? Eu ajoelhava e rezava muito e pedia: Nossa Senhora Aparecida, abençoa minha filha, tira ela dessa situação. Minha fé é tão grande, que tudo o que peço consigo.

Para ela, os momentos críticos na internação de sua filha foram superados por sua fé. Relata que suas orações e pedidos, realizados para um Ser Superior, foi o que possibilitou a recuperação de sua filha.

Discussão

Em uma situação de doença grave, a família lida com o sofrimento da forma como é possível naquele específico momento, pois as ações de enfrentamento são limitadas pela pressão do evento, pelo sistema de crenças predominantes e pela avaliação de recursos disponíveis para enfrentá-los(10).

O enfrentamento religioso é uma das estratégias possíveis diante de uma situação de doença; a família utiliza recursos de ordem religiosa para entendê-la e lidar com essa situação. Constantemente, as urgências pessoais ou situacionais são enfrentadas pelas pessoas, em alguns casos, com o recurso religioso de orações, promessas, peregrinações, exercícios ascéticos e ações rituais, conforme as diversas religiões(11).

A presente pesquisa identificou esses recursos religiosos; em algumas narrativas, as promessas foram citadas, especificamente na religião católica, quando as famílias prometiam algo em troca da cura da criança. Mas, o principal recurso religioso utilizado pelas famílias nesta pesquisa foi a oração. A oração é uma peça fundamental para sustentar a relação com o Ser Superior, ou seja, é por meio da oração que é realizada a comunicação com esse Ser, seja para pedir ou agradecer algo(12). Além disso, a oração também é algo concreto que os familiares podem fazer pela criança diante de uma situação de doença, gerando conforto para os familiares e ajudando-os a estar emocional e fisicamente envolvidos com sua criança(13). Assim, a oração se configura como a expressão de um desejo, um anseio de algo, mas, de acordo com o cristianismo, esse desejo apenas é realizado se for vontade do Ser superior(14). No cristianismo, por exemplo, uma das manifestações mais indicativas da presença do Ser Superior são as curas físicas e algumas curas chamadas psíquicas, curas essas muitas vezes solicitadas pelo doente ou por outras pessoas, por meio da oração(11).

A busca religiosa não deve ser entendida como fuga da realidade, mas como uma perspectiva de futuro frente uma situação de doença grave. Essa visão auxilia a compreensão de como e porquê as religiões oferecem resultados de eficácia simbólica, em relação ao bem-estar e autocontrole(15). A religião desempenha diversas funções como a de criar uma identidade de coesão entre as pessoas, captar novas energias na luta pela sobrevivência e reforçar uma resistência cultural que, por si só, reforça também a busca da religião como solução, como foi narrado pelos participantes desta pesquisa(16).

Diversos estudos(3-4,7,10-11,13,15) têm demonstrado a influência das crenças religiosas na construção de significados em eventos estressantes. Neles também se pode melhor compreender a necessidade da pessoa para a construção e reconstrução desses significados e realidades, buscando superar o sofrimento imposto pela experiência de doença.

A relação entre símbolos religiosos e vida social é estabelecida no curso dos eventos de doença e morte, nos quais os indivíduos se apropriam, confrontam e reinterpretam os símbolos à luz de determinados fins e interesses(17). A variedade de religiões incluídas no estudo foi restrita e, portanto, esses resultados não podem ser generalizados.

Conclusão

O trabalho traz a idéia da importância das crenças religiosas e desenvolvimento da espiritualidade como suporte na situação de doença e morte e como forma de enfrentá-las da melhor maneira possível, já que aumenta a fé e esperança de cura e traz sensação de tranquilidade para enfrentar a adversidade. Sua importância para a enfermagem é abrir possibilidades de entender e aceitar que o outro é um ser permeado por crenças baseadas em suas respectivas religiões.

As famílias desenvolvem ações espirituais e seculares para assegurar o melhor cuidado profissional para a criança e procuram influenciar a vontade de Deus em seu favor e da família. O trabalho contribui para a compreensão das diferentes formas de ver o mundo e projetos de cura de diferentes religiões, incorporados nas experiências da criança doente e suas famílias.

É importante ressaltar que o uso da narrativa focalizou a perspectiva do sujeito em relação à saúde e doença com o objetivo de trazer novas informações e perspectivas mais do que trazer conclusões definitivas.

A religião é considerada fator significante no sistema de crenças relacionadas à saúde e doença, tendo forte influência nas percepções, atitudes e crenças relacionadas à doença. Os profissionais de saúde necessitam reconhecer as múltiplas percepções relacionadas à doença e morte, compartilhadas pelas diferentes religiões para, efetivamente, poderem compreender, acessar e atender esferas espirituais do cuidar, integrando mente, corpo e espiritualidade.

O tema religiões e sua relação com doença e morte na perspectiva das famílias, merecem investigações mais profundas e diferentes estratégias de investigação. Outras pesquisas necessitam ser realizadas no sentido de evidenciar como e quanto essas relações são relevantes para a clínica.

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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      16 Jun 2010
    • Data do Fascículo
      Abr 2010

    Histórico

    • Recebido
      10 Fev 2009
    • Aceito
      14 Maio 2009
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