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Usuários dos serviços de saúde com diabetes mellitus: do conhecimento à utilização dos direitos à saúde

Resumos

Estudo descritivo de abordagem qualitativa, e teve como objetivo analisar o conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com diabetes mellitus (DM), acerca dos seus direitos. Participaram 12 pessoas com DM, atendidas em um centro universitário do interior paulista, em 2008, por meio de entrevista aberta. A análise de conteúdo temática dos dados possibilitou identificar duas categorias: o (des)conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com diabetes sobre seus direitos e o exercício não consciente dos seus direitos pelas pessoas com DM. Foi possível constatar que, apesar dos avanços legalmente alcançados pelas políticas públicas, a maioria dos usuários dos serviços de saúde com DM desconhece seus direitos, embora utilize, de maneira não consciente, os benefícios advindos da legislação. Ressalta-se como ponto fundamental prover informações completas, suficientes para que a pessoa possa tomar a melhor decisão em relação ao seu tratamento, preservando sua autonomia, nos serviços de saúde.

Enfermagem; Diabetes Mellitus; Direitos do Paciente; Políticas Públicas


This descriptive study with qualitative approach analyzes the knowledge of individuals with diabetes mellitus (DM) concerning their health rights. Open interviews were conducted with 12 individuals with DM in a university center in the interior of Sao Paulo, Brazil. Content analysis enabled the identification of two categories: the users’ (lack of) knowledge concerning their rights and the unaware exercise of their rights. The results revealed that despite the legal advancements achieved in public policies, most users with DM are unaware of their rights, although they use the benefits that accrue from law in an unconscious way. Providing complete and sufficient information is essential so that individuals are able to make the best decision in relation to their treatment, preserving their autonomy.

Nursing; Diabetes Mellitus; Patient Rights; Public Policies


Se trata de un estudio descriptivo de abordaje cualitativo, con el objetivo de analizar el conocimiento de los usuarios de los servicios de salud con diabetes mellitus (DM) acerca de sus derechos. Participaron 12 personas con DM atendidas en un centro universitario del interior paulista en 2008, por medio de entrevista abierta. El análisis de contenido temático de los datos posibilitó identificar dos categorías: el (des)conocimiento de los usuarios de los servicios de salud con diabetes sobre sus derechos y el ejercicio no consciente de sus derechos por las personas con DM. Fue posible constatar que, a pesar de los avances legalmente alcanzados por las políticas públicas, la mayoría de los usuarios de los servicios de salud con DM desconoce sus derechos, a pesar de que utilizan los beneficios provenientes de la legislación, de manera no consciente. Se resalta como punto fundamental proveer informaciones completas y suficientes para que la persona pueda tomar la mejor decisión en relación a su tratamiento, preservando su autonomía en los servicios de salud.

Enfermería; Diabetes Mellitus; Derechos del Paciente; Políticas Públicas


ARTIGO ORIGINAL

Usuários dos serviços de saúde com diabetes mellitus: do conhecimento à utilização dos direitos à saúde

Ellen Cristina Barbosa dos SantosI; Carla Regina de Souza TeixeiraII; Maria Lucia ZanettiIII; Manoel Antonio dos SantosIV; Marta Cristiane Alves PereiraII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professor Assistente, Universidade Federal de Pernambuco, PE, Brasil

IIEnfermeiras, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: Carla carlast@eerp.usp.br

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, SP, Brasil. E-mail: zanetti@eerp.usp.br

IVPsicólogo, Doutor em Psicologia, Professor Doutor, Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, SP, Brasil. E-mail: masantos@ffclrp.usp.br

Endereço para correspondência

RESUMO

Estudo descritivo de abordagem qualitativa, e teve como objetivo analisar o conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com diabetes mellitus (DM), acerca dos seus direitos. Participaram 12 pessoas com DM, atendidas em um centro universitário do interior paulista, em 2008, por meio de entrevista aberta. A análise de conteúdo temática dos dados possibilitou identificar duas categorias: o (des)conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com diabetes sobre seus direitos e o exercício não consciente dos seus direitos pelas pessoas com DM. Foi possível constatar que, apesar dos avanços legalmente alcançados pelas políticas públicas, a maioria dos usuários dos serviços de saúde com DM desconhece seus direitos, embora utilize, de maneira não consciente, os benefícios advindos da legislação. Ressalta-se como ponto fundamental prover informações completas, suficientes para que a pessoa possa tomar a melhor decisão em relação ao seu tratamento, preservando sua autonomia, nos serviços de saúde.

Descritores: Enfermagem; Diabetes Mellitus; Direitos do Paciente; Políticas Públicas.

Introdução

O diabetes mellitus (DM) é doença crônica, na qual a gravidade das complicações e complexidade dos meios necessários para controlá-la a tornam condição muito onerosa, não apenas para os indivíduos afetados e suas famílias como também para o sistema de saúde(1).

Dessa forma, há necessidade de estabelecer políticas públicas voltadas para a criação de mecanismos que minimizem tanto o aparecimento quanto o agravamento da doença, com o intuito de reduzir os custos advindos da falta de detecção precoce e das complicações relacionadas às dificuldades de controle metabólico no DM(2).

Nesse sentido, em 29 de setembro de 2007, entrou em vigor a Lei Federal no11.347/06, que dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos e insumos necessários à aplicação de insulina e à monitorização da glicemia capilar aos usuários com DM, inscritos em programas de educação voltados para o diabetes(3). Com o objetivo de detalhar e regulamentar a distribuição gratuita dos benefícios, advindos da Lei Federal no11.347/06, a Portaria no2.583/07 define o elenco de medicamentos e insumos que devem ser disponibilizados aos usuários com DM, no âmbito do Sistema Único de Saúde (SUS)(4).

Para que sejam implementados os direitos do usuário com DM, previstos na legislação, é necessário, entretanto, que esses sejam divulgados de modo a torná-los conhecidos da população e dos próprios profissionais de saúde.

Dessa maneira, torna-se evidente a responsabilidade de todo profissional de saúde, como seres proativos, incorporar postura reflexiva e ética, que contemple a adoção de novos conhecimentos e habilidades necessárias para a efetiva comunicação com os usuários dos serviços de saúde. O estabelecimento de comunicação eficaz entre os usuários e os profissionais dos serviços é um dos eixos norteadores da bioética(5), disciplina recente que tem ganhado destaque crescente nos últimos anos.

Tendo em vista a necessidade de redirecionamento da prática assistencial, uma discussão levantada pela bioética é a de que o exercício dos direitos, pelos usuários, deve visar o alcance da humanização dos serviços de saúde, além de garantir a cidadania em saúde. A bioética propõe questões acerca da humanização e da personalização dos serviços de saúde, bem como a promoção dos direitos do paciente. Nesse contexto, o direito à saúde passa a constituir o valor maior do paradigma bioético(5).

Para tanto, e com o intuito de promover a humanização dos serviços de saúde, há duas formas de garantir os direitos dos usuários com DM, nos serviços de saúde. A primeira é assegurar o acesso às informações sobre seus direitos legais de cidadãos, que deverão ser fornecidas por equipe de saúde capacitada. A segunda diz respeito à provisão e alocação adequada de recursos, para que o acesso seja alcançado de forma justa e equitativa.

Entendendo que o conhecimento dos direitos dos usuários é essencial para o desenvolvimento de consciência democrática, responsável e reflexiva do cidadão, tanto no papel de usuário quanto no de profissional da saúde, conhecer os direitos é o primeiro passo para diminuir as barreiras enfrentadas pelos usuários com DM, para o acesso pleno a seus direitos de cidadania(6). Nesse sentido, o presente estudo teve por objetivo investigar o conhecimento dos usuários, nos serviços de saúde, com DM, acerca dos seus direitos e como eles têm se apropriado dos seus direitos em saúde garantidos pela legislação vigente.

Referencial Teórico

Para fundamentar o presente estudo utilizaram-se os princípios da Bioética Principialista(7) e os documentos oficiais acerca dos direitos dos usuários com diabetes em saúde que regulamentam a distribuição gratuita de medicamentos e materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar(3-4).

O Modelo Bioético Principialista encontra-se baseado em quatro princípios fundamentais, que são definidos como: autonomia, beneficência, não maleficência e justiça. Por autonomia entende-se a capacidade que a pessoa possui de se autogovernar, de usar de sua liberdade de escolha e de agir em conformidade com sua própria vontade. A beneficência está intrinsecamente relacionada ao comportamento ético de fazer o bem, visando a promoção do bem-estar das pessoas. A não maleficência diz respeito à necessidade de prevenir e retirar possíveis danos às pessoas, resumindo-se a não fazer o mal. O princípio da justiça implica equidade na distribuição de bens, benefícios e serviços prestados na saúde(7).

As pessoas com DM, atualmente, dispõem, no mercado, de ampla variedade de medicamentos, insumos e aparelhos para o controle da sua doença. A criação de normas e rotinas creditadas e validadas por leis e portarias pode vir a configurar legislação ativa, eficaz, sustentada por pensamento ético vigente e que contemple a participação social e o pleno exercício da cidadania.

Não se trata, no entanto, apenas de construção de normas, portarias ou leis, mas de colocar em questão a praticidade de implementação desses dispositivos, visando assegurar melhor controle metabólico das pessoas com DM, priorizando a individualidade de cada ser humano e propiciando a formação de cidadãos capazes de exercer seus direitos com autonomia.

A necessidade de prover informação adequada aos usuários dos serviços de saúde nos remete ao papel social que a Enfermagem possui. A informação faz parte do cuidado ao usuário, sendo atitude justa orientá-lo devidamente para que ele possa buscar os recursos que a sociedade coloca à sua disposição para o tratamento(8).

Discussões atuais, advindas da formalização dos direitos dos usuários, referenciam a bioética como moderadora das ações de saúde e das repercussões dessas ações, conduzindo a reflexões acerca dos direitos dos usuários, acesso a esses direitos e disseminação de informações relativas ao uso adequado dos mesmos nos serviços de saúde.

Ao considerar a equidade como princípio instrumentalizador do direito à saúde, estreitamente interligado ao princípio bioético da justiça, uma vez que promove o reconhecimento de necessidades diferentes, oriundas de sujeitos também diversos, para alcançar direitos iguais(9), pode-se observar que a alocação de recursos pelo SUS aos usuários com DM segue tal princípio. Isso pode ser evidenciado, por exemplo, por meio das recomendações para a monitorização da glicemia capilar. Os usuários com DM tipo 2, que fazem uso de antidiabéticos orais, devem realizar a monitorização da glicemia na própria unidade de saúde. Já os usuários com DM tipo 1 têm o direito de receber, gratuitamente, do serviço de saúde, o glicosímetro e as tiras reagentes, necessários para a realização da glicemia capilar em domicílio(4). Dessa forma, tem-se a distribuição dos benefícios em saúde, que deve considerar cada usuário e suas necessidades específicas frente ao controle da doença, o que configura o respeito à equidade e à justiça distributiva.

Nessa direção, problematizar questões relacionadas à alocação de recursos permite sistematizar estratégias que beneficiem a desconstrução e/ou aperfeiçoamento de práticas vigentes, contribuindo para garantir o exercício da cidadania do usuário com DM, no âmbito de uma justiça distributiva. Nessa vertente, considerar os princípios bioéticos, também presentes no Código de Ética dos Profissionais de Enfermagem, deve permear todas as ações da Enfermagem e nortear suas práticas diante de qualquer usuário(8), em particular aquele com DM, que já conquistou seu espaço com a formulação de leis específicas que legitimam e protegem seus interesses.

Essa legislação, no entanto, encontra-se ainda no estágio de operacionalização, o que requer estudos voltados para a verificação da praticidade e exequibilidade dessas leis em nosso contexto, que abordem, especialmente, a percepção que os usuários com DM têm sobre essas leis e suas implicações, no cotidiano e na assistência. Entende-se que o conhecimento que usuários têm acerca de seus direitos e o modo como eles têm se apropriado dos benefícios, assegurados pela legislação vigente, podem trazer subsídios valiosos para o planejamento de estratégias de avaliação dos programas implementados.

Metodologia

Trata-se de estudo exploratório, descritivo e transversal, com abordagem qualitativa. A investigação foi realizada em um centro de pesquisa e extensão universitária do interior paulista. Os critérios de inclusão estabelecidos foram: usuários dos serviços de saúde com mais de 18 anos, que estavam vinculados ao Grupo de Educação em Diabetes, no período de agosto a dezembro de 2008, e consentiram participar do estudo. O critério para a escolha dos usuários foi a acessibilidade, de acordo com a disponibilidade das pessoas para a entrevista, caracterizando uma amostra de conveniência. Cabe destacar que esse grupo de educação não está vinculado ao Programa de Monitoramento da Glicemia Capilar do município e atende as pessoas com DM que procuram o serviço, por livre demanda após divulgação na mídia.

Por ser pesquisa de cunho qualitativo, o critério de representatividade da amostra para o encerramento da coleta de dados não foi o numérico, mas a variabilidade que permitiu abranger a totalidade do problema investigado, em suas múltiplas dimensões, ou seja, adotou-se o critério da saturação do discurso. Considera-se esgotada ou satisfatória a amostra quando se obtém respostas com profundidade para os questionamentos estabelecidos, em associação à repetição do discurso por outros entrevistados(10). Neste estudo, a saturação do discurso foi alcançada com 12 entrevistas, fornecidas por usuários dos serviços de saúde adultos, com DM, em relação à pergunta norteadora sobre o conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com DM sobre seus direitos. As entrevistas foram aplicadas individualmente, em situação face a face, em ambiente preservado e com condições adequadas de conforto, com duração média de 30 minutos.

A coleta de dados ocorreu no período de setembro a dezembro de 2008. Os dados foram coletados pelo pesquisador após a participação do usuário na atividade do grupo, onde era realizado o convite para a participação no estudo. Foi realizada entrevista aberta com duas perguntas norteadoras, sendo utilizado um gravador, a fim de garantir a fidedignidade do registro das respostas. Posteriormente, as entrevistas foram transcritas na íntegra. As perguntas norteadoras foram: quais as informações que o(a) senhor(a) possui acerca de seus direitos como usuário com diabetes? Como o(a) senhor(a) tem utilizado esses direitos?

Os depoimentos obtidos foram transcritos integralmente, sendo realizada leitura exaustiva do material empírico. A seguir, foram selecionadas partes do material, configuradas de acordo com critérios de relevância que constituíram as unidades de significado, as quais foram codificadas e organizadas em categorias, relacionando-as aos temas(10). A análise dos temas foi fundamentada nos documentos oficiais, identificados por meio do levantamento acerca dos direitos do usuário dos serviços de saúde com diabetes e dos princípios da bioética.

O projeto de pesquisa foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo, sob Protocolo no0869/2008. Os entrevistados assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido. Neste estudo, os nomes mencionados nas falas dos participantes foram substituídos por nomes fictícios. Foram utilizados códigos (E1, E2...) para designar cada entrevistado, respeitando-se o princípio do anonimato.

Resultados e Discussão

Da análise das entrevistas emergiu o tema: a não consciência dos usuários dos serviços de saúde, com DM, acerca dos seus direitos. Esse tema abrange duas categorias: (1) o (des)conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com DM, acerca dos seus direitos, e (2) o exercício não consciente dos direitos pelos usuários dos serviços de saúde, com DM.

O (des)conhecimento dos usuários dos serviços de saúde com DM acerca dos seus direitos

Entende-se por "desconhecimento" a não consciência que os usuários manifestaram em relação aos seus direitos de saúde. Nesse tema, de acordo com as falas dos participantes, constatou-se que, apesar dos avanços legalmente alcançados pelas políticas públicas, os usuários dos serviços de saúde com DM, em sua maioria, desconhecem seus direitos. O princípio da autonomia assegura o direito de as pessoas terem pontos de vista próprios, fazer escolhas, tomar atitudes, baseadas em crenças e valores pessoais(7). Portanto, respeitar a capacidade de autonomia das pessoas significa prover toda a informação necessária para que elas possam tomar a melhor decisão, de acordo com os seus interesses.

Os achados deste estudo evidenciam amplo e generalizado desconhecimento dos usuários sobre seus direitos, o que pode ser verificado na fala que se segue.

Meus direitos como usuário com diabetes? Olha, eu não conheço nenhum direito. Eu não sei (E4).

Em estudo realizado com o objetivo de compreender os motivos que levavam enfermeiras a interferirem na capacidade de autonomia de usuários com doenças crônicas, observou-se que dentre os motivos figuram: o não reconhecimento da capacidade de autonomia dos clientes, o desconhecimento dos usuários de seus direitos e o perfil de dependência dos clientes, dentre outros(11).

Assim, de acordo com o estudo realizado, é possível identificar que ainda parece haver carência de acesso ou compreensão das informações, para que os usuários dos serviços de saúde possam, mediante o conhecimento de seus direitos, vir a exercê-los plenamente enquanto cidadãos, em um contexto onde a justiça e a equidade sejam pressupostos fundamentais para a correção das desigualdades na saúde. Para tanto, é preciso levar em consideração que a informação e o conhecimento são bens públicos essenciais e que as desigualdades de acesso a esses bens são importantes determinantes das possíveis iniquidades em saúde(12).

No caso brasileiro, o desafio que se coloca é o de materializar em práticas as conquistas estabelecidas no plano legal(13). Dentro do que se denomina processo de construção dos direitos em saúde, um aspecto fundamental é a construção de consciência sanitária, entendida como "a tomada de consciência de que a saúde é um direito da pessoa"(14), o que não pode ser evidenciado na fala que se segue.

Eu não sei nem quais são os direitos que eu tenho enquanto diabético. Eu até te confesso que eu nem sabia que eu tinha direito. Então, eu não posso conhecer nada (E6).

Além disso, a falta da "concretização dos direitos que não saem do papel" aparece na fala do usuário, apresentada a seguir, assim como a percepção de que, no Brasil, há iniquidades no que tange à distribuição de bens em saúde(13).

Bom, se for ver a Constituição Brasileira eu tenho todo direito à saúde, e, na realidade, eu não tenho. A saúde no Brasil é um caos total, e aqui [referindo-se ao contexto local] ainda é bom, é melhor um pouco. Mas você vai por aí, a coisa é triste (E2).

Nessa direção, acredita-se, aqui, que a democratização do conhecimento, entendida como a promoção de acesso consciente e crítico às informações, bens e insumos de saúde, pode contribuir para o empoderamento dos cidadãos, permitindo que participem das decisões relativas à definição e implantação de políticas que lhes garantam o alcance ao direito à saúde(15). A partir da incorporação da informação, mediada por consciência crítica e reflexiva exercida por um sujeito que se apropria de suas prerrogativas de cidadania, é possível julgar situações, assumir condutas e exercer direitos como pessoas proativas, autônomas e cidadãs. Por autonomia, princípio básico da bioética, entende-se o autogoverno, a autodeterminação da pessoa em tomar decisões relacionadas à sua vida, sua saúde, sua integridade físico-psíquica e suas relações sociais, presumindo a existência de opções e liberdade de escolha, o que requer que o indivíduo seja capaz de agir de acordo com as deliberações tomadas(7). A fala a seguir exemplifica a percepção que o usuário possui sobre a importância de conhecer seus direitos para se posicionar de maneira autônoma e consciente.

Quando a gente tem conhecimento dos nossos direitos, a gente tem mais autonomia para reivindicar. A gente só reivindica o que a gente conhece que é de direito nosso, não é? Por isso que eu acho que todo mundo tem que ter acesso a essas informações, sobre os nossos direitos (E4).

Conhecer leva a reivindicar o cumprimento de seus direitos de usuário, o que fortalece a participação social, que é um dos princípios organizadores do SUS. Na percepção do usuário, a seguir, o conhecimento sobre os direitos confere ao usuário a possibilidade de ser digno de, ao menos, receber uma satisfação, por parte dos profissionais de saúde, quando, por exemplo, ocorre a falta de medicamentos.

Eu sinto que tem pessoas, que às vezes se ela não tiver um pouquinho de conhecimento... Eles [profissionais da farmácia] atendem bem, mas também se a pessoa [usuário de saúde] às vezes fala: ‘e quando é que vai chegar?’. Eles [profissionais da farmácia] falam: não sei, espera’. Também não é assim, né? Se é direito de cidadão, tem que dar uma satisfação, dizer: olha, vai chegar tal dia. Eu vejo que, se você não tiver um pouquinho de conhecimento ali, aí já é mais problemático (E4).

Nesse sentido, "ignorar as necessidades de informação de um paciente é uma forma de crueldade" e contraria o princípio bioético da não maleficência. Esse princípio consiste na obrigação de não causar prejuízos ou danos às pessoas. Assim, não informar os usuários sobre seus direitos contraria, sobretudo, tal princípio(15).

O direito de os usuários serem informados sobre os motivos do atraso na dispensação dos medicamentos/insumos está contemplado na Lei no11.347/06, que dispõe sobre a distribuição gratuita de medicamentos e materiais necessários à sua aplicação e à monitoração da glicemia capilar aos usuários, inscritos em programas de educação para pessoas com DM. Nesse sentido, a Lei no11.347/06 estabelece, em seu art. 3o, que é assegurado à pessoa com DM o direito de requerer, em caso de atraso na dispensação dos medicamentos e materiais, informações acerca do fato à autoridade sanitária municipal(3).

Diante do exposto, neste estudo, constatau-se que há desconhecimento, pela maioria dos usuários com DM, sobre seus direitos à saúde, assim como em relação à legislação vigente sobre DM, no que tange à distribuição dos medicamentos e insumos. Em contrapartida, foi possível identificar nas falas dos entrevistados que eles utilizam os benefícios advindos da legislação sobre DM, porém, não o reconhecem como seus direitos, o que limita o controle social exercido pela comunidade e a reivindicação de seus direitos em situações nas quais eles estejam ameaçados ou sendo violados.

O exercício não consciente dos direitos pelos usuários com DM

O princípio bioético da justiça, que prevê o reconhecimento da distribuição justa dos recursos em saúde, além de incorporar de modo coerente os padrões utilitaristas e igualitários, também norteia nosso sistema de saúde(7). Dessa forma, tal princípio preconiza que todos os usuários de saúde devem ter acesso igualitário aos serviços de saúde e às mesmas oportunidades de acesso às informações que lhes são necessárias para a promoção, prevenção e recuperação da saúde.

Embora a maioria dos entrevistados tenha referido (des)conhecimento em relação aos direitos dos usuários com DM, alguns, no decorrer da entrevista, demonstraram o reconhecimento de seus direitos, como identificado nas falas a seguir.

Eu não estou sabendo de nada ainda... [silêncio] Ah eu acho que pegar a insulina lá no postinho, né? E as fitas, né, que eu pego (E1).

Não sei... Acho que os medicamentos, consultas no posto de saúde, que eu saiba é mais ou menos isso, eu penso (E4).

Direitos... Olha, tem direito a fazer o tratamento digno, seria o acompanhamento, seja em clínica particular ou seja através do SUS, é um direito adquirido do programa do governo, esses seriam os direitos (E7).

Por outro lado, as escolhas pessoais também são importantes, uma vez que nem todas as necessidades singulares se convertem em demandas para os serviços de saúde. Assim, nem todos os usuários têm as mesmas necessidades e, portanto, desfrutam de formas diferentes dos benefícios que lhes são assegurados, conforme fala a seguir.

Direitos? Eu sei que eles dão os remédios de graça, mas só que eu nunca fui atrás, porque eu compro, né? Eu prefiro comprar e deixar esses [medicamentos] que o governo dá pra quem não tem condições para comprar, né? (E12).

De maneira implícita, a fala acima mostra sentimento de solidariedade, que pode ser definido como o sentimento que o indivíduo desenvolve de pertencer a um todo maior. Esse sentimento representa parte significativa de sua identidade pessoal e lhe confere sentido de completude, que ultrapassa sua individualidade e lhe permite reconhecer as necessidades de pessoas economicamente desprivilegiadas. Ao mesmo tempo, é possível perceber certa naturalização de tal situação pelos usuários, na medida em que reconhecem o serviço disponível como favor ou doação e não como um direito(16).

Em estudo realizado na cidade de Itajaí, SC(17), com o objetivo de analisar as trajetórias dos usuários que receberam medicamentos via mandatos judiciais contra o Estado de Santa Catarina, bem como suas motivações e percepções sobre essa forma de acesso aos medicamentos, observou-se que as trajetórias dos usuários revelaram tentativas de busca do medicamento acionando políticos, que, por sua vez, têm interesses eleitoreiros. Essa situação também foi evidenciada nas falas a seguir.

A médica do posto é candidata a vereadora lá na cidade, então ela já passou uma receita pra seis meses. Então, durante seis meses eu vou lá e pego [medicamento]. Vale por seis meses (E4).

Porque agora ó, época de eleição, o que você precisar, você consegue. Você vai num político, você fala: ó, eu precisaria disso, aí eles dizem: eu vou te arrumar, principalmente aqueles que são médicos, né? Então eu vejo que existe um interesse por trás das coisas, sempre tem um interesse (E5).

De acordo com este estudo, tais relações entre políticos, médicos e usuários de saúde revelam a percepção, pelo usuário, de que a concessão de direitos é utilizada, muitas vezes, como instrumento de barganha, o que reforça a percepção social de que se trata de "favor". Assim, é necessário que haja a interferência de alguém, investido de autoridade e poder, para que se consigam alcançar benefícios, legalmente já assegurados, mas não presentes na consciência dos usuários como direito.

Além disso, neste estudo, foi possível identificar que usuários dos serviços de saúde, não conscientes de seus direitos, se valem de relações pessoais de amizade com pessoas influentes para alcançar o que desejam. Isso parece refletir um modelo preestabelecido nas instituições brasileiras e arraigado na cultura popular, na qual o conhecido "jeitinho brasileiro" é utilizado como meio para obter benefícios pessoais(18).

Chegar até o prefeito mesmo, graças a Deus eu tenho essa boa sorte... [risos] Eu posso chegar e falar diretamente com ele se eu quiser, ele me conhece, nós somos amigos e estudamos juntos (E3).

Os profissionais de saúde devem incrementar programas de educação continuada, com o objetivo de monitorar o curso das complicações crônicas em DM, bem como desenvolver intervenções que estimulem a mudança de estilo de vida, permitindo entender quais os fatores que interferem e/ou facilitam a aquisição do bom controle metabólico(19-20). Por outro lado, observa-se a necessidade de prover informações suficientes para que o usuário com DM possa tomar a melhor decisão em relação ao seu tratamento, de maneira autônoma, uma vez que a conscientização dos direitos dos usuários com DM não se encontra plenamente desenvolvida em nosso contexto.

Considerações Finais

Diante do exposto, encontra-se que, apesar dos avanços legalmente alcançados pelas políticas públicas, os usuários dos serviços de saúde com DM, em sua maioria, desconhecem seus direitos. No entanto, utilizam de seus direitos na aquisição de medicamentos e insumos para o seu tratamento. Faz-se necessário salientar que os profissionais de saúde têm árdua tarefa diante de si: promover a conscientização dos usuários com DM sobre seus direitos, sobretudo no que se refere ao entendimento de que os benefícios existem e devem ser compreendidos não como "favores", mas como fruto de uma política de saúde que prevê e dispõe de instrumentos legais para sua implementação.

Para tanto, nesse processo de conscientização, o desempenho da função educativa é ferramenta imprescindível. A educação em saúde tem por objetivo conscientizar – o que requer mais do que simplesmente informar – os usuários com DM sobre seus direitos e desenvolver condições objetivas para sua efetivação. Assim, é necessário que os profissionais de saúde conheçam os benefícios advindos das legislações, que vão além do ato de distribuir gratuitamente os insumos, glicosímetros e medicamentos de forma regular e equitativa para todos os usuários com DM. A necessidade de prover informações suficientes para que o usuário com DM possa tomar a melhor decisão em relação ao seu tratamento, de maneira autônoma, remete à importância da capacitação profissional para educar, orientar e respeitar a capacidade de autonomia dos usuários.

Sem a necessária e suficiente informação, acredita-se ser difícil o usuário se sentir capaz de reivindicar e/ou lutar pelos seus direitos, dificultando, assim, o exercício pleno de sua autonomia. Promover a qualidade da assistência em saúde, por meio do respeito aos direitos dos usuários e, principalmente, por meio de ações informativas, beneficentes e justas, que resultem na intensificação do exercício da autonomia desses usuários, deve ser, portanto, a meta a ser perseguida pelos profissionais de saúde.

É importante destacar que mudar os comportamentos, frente às práticas de saúde, é tarefa difícil, pois exige dos profissionais de saúde a disponibilidade de tempo, recursos e capacitação. Ressalta-se, aqui, a importância de que os líderes do governo e as autoridades da saúde adotem mudanças que introduzam inovações nas políticas públicas, no sentido de reconhecer a abordagem educativa como tecnologia leve a ser valorizada e implementada no atendimento dos serviços de saúde.

Os resultados sistematizados pelo presente estudo permitem avançar em relação ao conhecimento produzido pela literatura recente, em estudos publicados, especialmente, no contexto da Revista Latino-Americana de Enfermagem, ao dar voz aos usuários dos serviços de saúde e interrogá-los a respeito do reconhecimento de seus direitos, como pessoas que convivem com o DM.

Considerando-se os resultados obtidos, são sugeridas novas investigações que permitam aprofundar aspectos não focalizados no presente estudo, especialmente as dimensões subjetivas da relação usuário/profissional de saúde. Dessa maneira, desdobramentos das evidências aqui encontradas poderão ser futuramente ampliados e discutidos à luz de novos conhecimentos produzidos.

Ao se levar em consideração que a Enfermagem representa um elo entre os usuários e os atuais modelos de saúde vigentes, verifica-se que o fornecimento de informação adequada aos usuários dos serviços de saúde remete à função social da Enfermagem. Desse modo, espera-se que os resultados apresentados sobre o conhecimento dos usuários dos serviços de saúde, com DM, sobre seus direitos e benefícios, advindos da legislação em vigor, possam contribuir para a assistência de Enfermagem qualificada, responsável e coerente com os princípios bioéticos da beneficência, não maleficência, justiça e respeito à autonomia dos usuários.

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  • Corresponding Author:
    Carla Regina de Souza Teixeira
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  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      06 Maio 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2011

    Histórico

    • Aceito
      24 Maio 2010
    • Recebido
      11 Set 2009
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