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Mulheres portadoras de transtornos mentais e a maternidade

Resumos

Considera-se que a capacidade materna para oferecer boas condições de cuidado e acolhimento às necessidades do filho gera ambiente adequado preventivo para o desenvolvimento psicológico da criança. Este estudo buscou descrever o fenômeno da maternidade para usuárias de um ambulatório de saúde mental da cidade de Ribeirão Preto, SP, tendo como referencial teórico o Interacionismo Simbólico. Foram entrevistadas dez mulheres, com, ao menos, um ano de tratamento e no mínimo uma criança de 7 a 12 anos. A Teoria Fundamentada em Dados possibilitou analisar os dados, atingindo uma teoria explicativa para o fenômeno: "tentando se enxergar para permanecer lutando". Conclui-se que essas mulheres necessitam lidar, reconhecer e enxergar-se em sua função materna para permanecer lutando com as limitações impostas pelo transtorno. Trata-se de mais um passo para adequação dos serviços de saúde mental frente a essa demanda, para que essas mulheres sejam vistas para além de seu lugar de portadoras de transtornos mentais.

saúde mental; serviços de saúde; enfermagem psiquiátrica


Mothers' ability to deliver care and tend to the needs of their children is considered to generate an adequate preventive environment for infant psychological development. This study describes the phenomenon of motherhood from the perspective of users of a mental health outpatient clinic in Ribeirão Preto, SP, Brazil, through Symbolic Interactionism theoretical framework. Ten women under treatment for at least one year and with at least one child between 7 and 12 years old were interviewed. Grounded Theory was used for data analysis, which enabled the development of a theory to explain the phenomenon: "of perceiving oneself in such a way as to keep fighting". The conclusion is that these women need to deal with, recognize and perceive themselves in their maternal role so as to keep on fighting limitations imposed by the disease. That these women come and see beyond their condition of mental disorder patients is another step towards the delivery of more adequate mental health services to meet this demand.

mental health; health services; psychiatric nursing


Se considera que la capacidad materna para ofrecer buenas condiciones de cuidado y reconocimiento de las necesidades del hijo, genera un ambiente adecuado preventivo para el desarrollo psicológico del niño. Este estudio buscó describir el fenómeno de la maternidad para usuarias de un ambulatorio de salud mental de la ciudad de Ribeirao Preto, SP, utilizando como marco teórico el Interaccionismo Simbólico. Fueron entrevistadas diez mujeres, con, al menos, un año de tratamiento y con por lo menos un niño de 7 a 12 años. La Teoría Fundamentada en Datos posibilitó analizar los datos, alcanzando una teoría que explica el fenómeno: "tratando de reconocerse para permanecer luchando". Se concluye que esas mujeres necesitan lidiar, reconocer y reconocerse en su función materna para permanecer luchando con las limitaciones impuestas por el trastorno. Se trata de un paso más para adecuar los servicios de la salud mental frente a esa demanda, para que esas mujeres sean reconocidas no solo como portadoras de trastornos mentales.

salud mental; servicios de salud; enfermería psiquiátrica


ARTIGO ORIGINAL

Mulheres portadoras de transtornos mentais e a maternidade

Marisley Vilas Bôas SoaresI; Ana Maria Pimenta CarvalhoII

IEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil: Psicóloga, Doutoranda em Enfermagem, e-mail: marisvbs@gmail.com

IIEscola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil: Psicóloga, Doutor em Psicologia, Professor Doutor, e-mail:anacar@eerp.usp.br

RESUMO

Considera-se que a capacidade materna para oferecer boas condições de cuidado e acolhimento às necessidades do filho gera ambiente adequado preventivo para o desenvolvimento psicológico da criança. Este estudo buscou descrever o fenômeno da maternidade para usuárias de um ambulatório de saúde mental da cidade de Ribeirão Preto, SP, tendo como referencial teórico o Interacionismo Simbólico. Foram entrevistadas dez mulheres, com, ao menos, um ano de tratamento e no mínimo uma criança de 7 a 12 anos. A Teoria Fundamentada em Dados possibilitou analisar os dados, atingindo uma teoria explicativa para o fenômeno: "tentando se enxergar para permanecer lutando". Conclui-se que essas mulheres necessitam lidar, reconhecer e enxergar-se em sua função materna para permanecer lutando com as limitações impostas pelo transtorno. Trata-se de mais um passo para adequação dos serviços de saúde mental frente a essa demanda, para que essas mulheres sejam vistas para além de seu lugar de portadoras de transtornos mentais.

Descritores: saúde mental; serviços de saúde; enfermagem psiquiátrica

INTRODUÇÃO

Com a perspectiva de integrar o portador de transtornos mentais ao convívio social, a família assume importante papel para sua recuperação, passando a ser vista como, potencialmente, a reabilitação pode ser conquistada. Assim, estudos têm buscado verificar os impactos do transtorno mental sobre o contexto familiar, bem como as concepções de familiares acerca de suas manifestações(1-2). Ainda que muitas pesquisas enfoquem a ação do transtorno mental sobre a família e os cuidadores, alguns estudos passam a inverter essa lógica e priorizam o olhar do portador, na sua busca para equilibrar demandas sociais e necessidades decorrentes do transtorno mental.

Seguindo essas mudanças, pesquisas que evidenciam a relação desses transtornos e as diferenças de gênero dão pistas de como nortear ações preventivas e de tratamento, tendo em vista as particularidades encontradas na incidência e manifestações entre homens e mulheres(3), sendo que a saúde mental da mulher é um tema emergente, mas com poucos estudos brasileiros na área. Ao abordar a saúde mental feminina e buscar compreender as condições que a determinam, tem sido reforçada a atenção para a discriminação de gênero, pobreza, posição social e várias formas de violência contra a mulher e naquilo que esses aspectos podem acarretar à sua saúde. Entre os transtornos os quais podem acometer a mulher ao longo da vida, como sintomas relacionados ao período pré-menstrual, ou à fase da menopausa, destacam-se aqueles manifestos em decorrência do puerpério - quando também entram em cena questões relativas à maternidade. Pensar a condição da mulher remete não apenas aos conceitos que envolvem particularidades biológicas, mas à complexidade existente na construção social de seu papel e como se faz presente em seu contexto social.

As representações atribuídas à mulher sobre sua natural responsabilidade sobre o lar e a criação dos filhos encontram evidências que institucionalizaram esse modo de pensar. Há teorias de enfoques sociais e históricos que consideram o chamado "instinto materno" como decorrência de concepções ideológicas, engendradas a partir da metade do século XVIII, na Europa(4). A psicanálise acaba por reforçar um aspecto árduo para a mulher: a culpa pelos percalços e dissabores vividos pelos filhos. É também nesse período que a família se torna uma célula social que diferencia as vivências entre o público e o privado, em que a formação do núcleo familiar é centralizada pelo amor materno através dos afetos compartilhados. O espaço doméstico, dessa forma, possui forte conotação feminina.

A mulher, atualmente, enfrenta uma série de limitações para equilibrar suas múltiplas funções, encontradas no mercado de trabalho e no que diz respeito à conduta social e "o desempenho desses papéis não se dá de forma tranquila e sem conflitos, pelo fato de ser, ainda, uma 'transgressão' ao antigo modelo de comportamento individual e familiar"(5). Contudo, ainda se faz presente no ideal feminino a realização de papéis socialmente esperados, como de mãe e esposa, mas que concorrem com desejos de realização profissional e independência financeira.

Para aprofundar as reflexões acerca da figura materna, o conceito de parentalidade(6) abarca diversos fatores que constituem no indivíduo o cuidado sobre a sua descendência: recursos psicológicos individuais dos pais, características da criança e as fontes de estresse e suporte presentes no contexto em que estão inseridos. Tendo como pano de fundo esse conceito, dentre os aspectos citados que podem influenciar sua expressão, este trabalho discorre sobre o acometimento materno por enfermidade mental - na qual uma de suas características está em afetar a qualidade das relações afetivas e familiares. Pode-se considerar que essas mães portadoras de transtornos mentais podem lançar mão de outros elementos que lhes garantam o exercício da maternidade/parentalidade - além da exclusiva qualidade da relação mãe-filho.

Tendo em vista a complexidade do fenômeno da parentalidade, do transtorno mental e como esses fatores se relacionam, este trabalho objetiva conhecer como mulheres com diagnóstico de transtorno mental vivenciam a maternidade e se veem como mães.

METODOLOGIA

Nesta pesquisa, de desenho qualitativo, adotou-se como referencial teórico o Interacionismo Simbólico, cuja unidade de estudo é a interação entre as pessoas. Considera-se que sua ação desencadeia um processo dinâmico de mudança individual e social, que permite a transmissão de algo ao outro que percebe, interpreta e novamente age(7). Sua ocorrência é mediada pelos significados atribuídos pelo indivíduo e se dá externa e internamente: com o outro e consigo mesmo. Essas interações concomitantes são respostas mediadas pelo olhar que define o mundo para a pessoa, pois evoca uma visão particular de mundo e da situação em curso (interação interna) que resulta em ações com o outro (interação externa). Isso leva ao conceito de perspectiva, sendo própria da interação e compartilhada na mesma. A perspectiva se define através dos muitos papéis atuados pelo indivíduo e das muitas outras pessoas com quem interage - pois possibilita muitos "pontos de vista". Na interação, as pessoas se fazem entender quando são capazes de assumir o papel do outro, ao olhar pela perspectiva da outra pessoa o indivíduo é capaz de transmitir o significado de sua ação e de poder compartilhar significados comuns, quando sua importância está presente para todos os envolvidos na interação.

Como referencial metodológico, optou-se pela Teoria Fundamentada em Dados, permitindo abranger a experiência do sujeito em relação ao fenômeno estudado, por meio das interações humanas existentes, trocas simbólicas e significados para a interação, o que possibilita a construção de teorias acerca do objeto "com base nos dados investigados, ao invés de testar uma teoria já existente"(8). A Teoria Fundamentada em Dados pode gerar a elaboração de conceitos teóricos capazes de interpretar a ação em seu contexto, a partir da perspectiva dos participantes.

Foram definidos como critérios para a seleção dos participantes da pesquisa: mulheres portadoras de qualquer tipo de transtorno mental, há mais de um ano, que tivessem ao menos um filho na faixa etária dos sete aos doze anos de idade, que fossem usuárias de um serviço público de atendimento ambulatorial em saúde mental, da cidade de Ribeirão Preto, SP, residentes nesse município, mais precisamente no Distrito Norte. Entendeu-se que a diversidade das vivências advindas de diferentes tipos de transtornos mentais desse grupo possibilitou dados capazes de retratar a complexidade do fenômeno estudado. Com relação ao número de participantes, considerou-se que, à medida que ocorresse a análise dos dados, de fato, seria obtido o número de participantes que correspondesse à riqueza e valorização dos aspectos singulares do objeto de estudo, devido ao efeito de saturação. O número final de participantes deste trabalho foi dez.

Após a seleção dos casos por meio de prontuários, era feito o contato telefônico prévio, ou pessoalmente, quando se explicava sobre o trabalho e era realizado o convite para a participação. Quando aceito, agendava-se um horário, geralmente nos finais de semana, mediante a disponibilidade da entrevistada, em que a pesquisadora se dirigia à residência da participante. Esse procedimento possibilitou a otimização da coleta, pois requereu o deslocamento apenas da pesquisadora e também ofereceu maiores chances de se conseguir o agendamento com a participante, o que facilitou encontrá-la em sua residência, muitas vezes na realização de afazeres domésticos.

As entrevistas duraram em média 40 minutos, tendo sido gravadas e transcritas, mediante o consentimento livre e esclarecido. Foi desenvolvido um roteiro de entrevista semiestruturada, aprimorado em estudo piloto, no qual foram abordados temas relacionados ao transtorno mental, à maternidade e ao suporte social.

Após transcrição das entrevistas, a análise dos dados foi orientada pela Teoria Fundamentada em Dados. Os dados foram divididos em unidades menores, denominados incidentes, conceitualizados e relacionados entre si. Na codificação aberta, primeira fase da análise, os incidentes foram codificados e comparados entre si, estando aptos a serem categorizados, utilizando-se a própria linguagem dos dados. As subcategorias formaram um escopo maior de informações advindas das conexões feitas entre os códigos abertos, e constituiu-se na codificação axial, elaborada a partir do questionamento do fenômeno: as causas da ocorrência do fenômeno; o contexto em que aconteceu; o que foi feito pelos participantes quando aconteceu (estratégias); o que facilitou ou dificultou as ações sobre esse fenômeno (condições intervenientes) e quais as consequências da ação sobre esse fenômeno(8).

A obtenção desse novo agrupamento permitiu que se estabelecessem novas relações, que formaram um conjunto de categorias mais abstratas e abrangentes, capaz de identificar em si as codificações que buscou representar. Por fim, chegou-se então à codificação seletiva, que foi a base para a obtenção da categoria central, em que todas as demais categorias encontraram-se relacionadas e quando emergiu a teoria referente aos dados obtidos(8).

ASPECTOS ÉTICOS

Para atender ao item IV da Resolução nº 196/96, do Conselho Nacional de Saúde, foram obtidas autorizações para pesquisa dos locais onde ocorreram o estudo piloto e a pesquisa e, inclusive, da Coordenação Municipal de Saúde Mental e da Secretaria Municipal de Saúde. Posteriormente, foi possível a submissão ao Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto (EERP-USP, Protocolo nº 554/2005). Seguindo os preceitos, todos os convidados tornaram-se participantes mediante consentimento livre e esclarecido.

RESULTADOS

As participantes tinham, em média, 34 anos, grau de instrução até o ensino médio completo, três filhos em média, 70% viviam em união estável (incluindo-se casadas e amasiadas), 50% desempenhavam atividade ocupacional, dentre as demais se encontram atividades como donas de casa (do lar) ou afastadas (e recebendo benefício previdenciário). Com relação ao tempo de tratamento tinha-se, em média, três anos e meio e diagnósticos com predomínio dos transtornos afetivos e neuróticos (F30, F40) e algumas comorbidades.

A categoria central: "tentando se enxergar para permanecer lutando"

[...] e prá não voltar prá lá (ao estágio inicial do transtorno mental - nota da autora), você tem que se agarrar, entendeu? É tipo, você ter que se olhar no espelho e conseguir se enxergar. Você tem que se enxergar ali independente de qualquer coisa, não é enxergar só a sua imagem, mas eu acho que é um todo ali prá conseguir permanecer, lutando de pé (MÃE 1).

Os relatos das entrevistadas contaram um percurso de vida com nuances semelhantes entre si, em que se tornar mãe de modo inesperado era uma condição na qual se instalava o sofrimento mental. Em linhas gerais, essas mulheres demonstraram maior vulnerabilidade aos eventos de vida geradores de crises do desenvolvimento humano que, consequentemente, conduzem ao desempenho de novos papéis sociais.

Na realidade trazida por essas mulheres, o fenômeno que norteou suas experiências ficou expresso pela categoria "tentando se enxergar para permanecer lutando", e, nessa condição, elas se encontravam sem ter esclarecimentos sobre o transtorno mental do qual eram portadoras - sendo esse elemento parte do contexto onde ocorreu o fenômeno. Também participou desse pano de fundo a avaliação que faziam do vínculo com os serviços e com os profissionais de saúde, sendo esses fonte de informação e esclarecimento, ou de maior desorientação, frente à nova realidade de vida, impressa pelo transtorno mental.

Participou da realidade dessas mulheres a convivência com o tipo de ajuda prestada pelo marido, que poderia ocorrer ou não. Quando se dava, poderia ser fonte geradora de estresse, visto que se tratava de mulheres com elevado nível de exigência para si e, consequentemente, para os outros, com relação às tarefas domésticas.

Fechou esse contexto do fenômeno a percepção do apoio familiar, o qual representou a reatualização de dores emocionais contidas na infância, ou de apoio, de acordo com o que os familiares poderiam disponibilizar.

Em meio a essa realidade, como condição causal do fenômeno central, esteve a própria vivência do adoecimento, a busca de explicação para os fatores predisponentes para o surgimento do transtorno mental e, também, dos fatores desencadeantes do transtorno, que corroboraram para que vivessem na busca para se enxergarem e permanecerem lutando.

Fortemente associada a essa postura de luta surgiu a categoria querendo dar conta de tudo, quando não se permitiam receber ajuda ou mesmo se perceberem em necessidade de.

Outro elemento causal da ocorrência desse fenômeno pairou sobre os conflitos no relacionamento conjugal, visto que algumas delas relataram experiências de grande desgaste do relacionamento marital, culminando em rompimentos violentos (físicos e emocionais), ou na vivência tumultuada em meio às manifestações do transtorno mental e suas decorrências.

Vivendo a maternidade surgiu também como fator causal, pois assumiu uma série de representações as quais reforçaram as expectativas sociais e sentidos da maternidade, com os quais se encontraram impossibilitadas de cumprir, assumindo, dessa forma, as feições de fardo - o peso da maternidade. Com relação a essa categoria, as entrevistadas apresentaram em comum o fato de terem vivido ao menos uma gravidez não planejada, como uma experiência associada a uma urgente necessidade de se encontrarem diante do exercício da maternidade.

Contando com a necessidade de tentar se enxergar em meio ao contexto em que se encontraram inseridas, e lidando com os fatores apresentados como causais, para que pudessem permanecer lutando com o transtorno mental frente aos papéis que lhe cabiam desempenhar, as mães portadoras de transtornos mentais lançaram mão de algumas ações frente à ocorrência desse fenômeno.

Assim, passaram ao enfrentamento do transtorno mental, quando viveram entre a adesão e a desistência do tratamento, revelando trajetória de idas e vindas aos serviços de saúde. À medida que conheceram melhor a si mesmas, também se mostraram capazes de conhecer o curso do transtorno em suas vidas, associando eventos pessoais às crises ou momentos de piora do quadro. Momento esse em que demonstram o entendimento do curso do transtorno mental.

Outro recurso que procuraram disponibilizar para lidar com o fenômeno emergiu quando, tendo outras fontes de apoio, essas mulheres puderam se dedicar um pouco mais a si, contando com a colaboração de vizinhos para auxiliarem no cuidado dos filhos e, assim, poderem ir à consulta médica, ou mesmo tendo ao seu lado profissionais (como psicólogos) que as auxiliaram a compreender tanto o espectro do desenvolvimento de seus filhos, quanto a si próprias em seu transtorno.

Ainda, como estratégia, buscaram inserir o trabalho no contexto do transtorno mental, tendo em vista ser um recurso ao qual puderam se agarrar e assim se sentirem melhor. Por outro lado, o trabalho e as dificuldades para se inserirem nele puderam indicar a gravidade do adoecimento mental.

Nas ações empregadas como estratégias frente ao fenômeno, existiram condições que interferiram e que não estavam sob o controle das entrevistadas, como as repercussões do transtorno mental no cotidiano, em que se deram conta de como as manifestações do transtorno mental interferiram em suas atividades diárias e em seus relacionamentos. Desse modo, as participantes acabaram sentindo-se vulneráveis aos impactos do transtorno mental, convivendo com o medo de novas crises e/ou com o desespero, advindo de tentativas de suicídio.

Ademais, como fator interveniente, que reverberou sobre as ações tomadas diante do fenômeno de tentarem encontrar a si mesmas numa luta individual e diária, esteve presente a condição em que perceberam o estigma associado ao transtorno mental. Nesse sentido, depararam-se com o estigma e incompreensão de pessoas próximas como os filhos, companheiro, o vizinhos. Tais condições afetaram sobremaneira o fenômeno em si, tendo em vista criarem impedimentos para as ações empregadas.

As estratégias adotadas para lidar com o fenômeno apresentado como categoria central levaram a consequências possíveis dessas ações, recaindo, por exemplo, na condição em que apareceu o transtorno mental refletindo nos filhos, quando essas mães perceberam que a maneira como se encontravam interferia nos recursos dos filhos ao lidarem com situações inesperadas de vida.

Outra consequência que esperaram obter com suas ações era poder simplesmente ir tentando levar a vida, disponibilizando-se a conviver com as mudanças decorrentes do transtorno, além de desenvolverem maneiras de lidar com o preconceito existente contra aqueles que portam transtorno mental.

Observou-se que o fenômeno foi perpassado pelos elementos apresentados, no movimento dessas mães ao tentarem se enxergar (em meio às demandas externas e internas) para que pudessem permanecer lutando - como fenômeno central identificado, que refletiu a vivência da maternidade como portadoras de transtornos mentais.

DISCUSSÃO

Mediante a realização da análise dos dados, foi possível considerar que a maternidade de mulheres portadoras de transtornos mentais demanda mobilizações para a reconstrução da identidade, em meio ao contexto de vida em que se encontram e com os recursos internos de que dispõem. A maternidade, como fenômeno de vida, reúne significações e valores que remetem à aquisição e atribuição de funções e expectativas que recaem sobre a mulher e que exercem importante impacto sobre a dinâmica de vida pessoal e familiar.

A esse respeito, a maternidade como ideal feminino é uma construção social apoiada no aspecto biológico(4,9) que, nos dias de hoje, ainda encontra ecos para reforçar a posição da mulher como cuidadora e responsável pelo espaço doméstico, também identificada na fala das mães portadoras de transtornos mentais, as quais apontaram a maternidade como um evento "normalizador" da vida adulta, ou seja, garantindo-lhes a realização de uma expectativa social relativa ao gênero feminino(10-11).

Verificou-se que as entrevistadas verbalizaram de modo mais enfático as dificuldades vivenciadas em amplo aspecto (em seus relacionamentos com a família, com o companheiro, com o cotidiano perpassado pelo transtorno mental). Ao abordarem a maternidade tenderam reproduzir visões estereotipadas, visto na categoria "querendo dar conta de tudo", embora também tivessem acrescentado "o peso da maternidade". Devido ao estigma associado ao transtorno mental, a maternidade para essas mulheres foi motivo de questionamento pessoal e social, quanto à capacidade para desempenhar os papéis a ela reservados(10), buscando discernir até que ponto lidavam com o estresse decorrente dos sintomas de seu transtorno ou das dificuldades da relação mãe-filho.

Segundo o conceito de parentalidade(6), a capacidade de exercício da função materna também se pauta nas fontes de estresse e suporte presentes no contexto de vida do genitor, nas quais se incluem: o casamento, as redes sociais e de trabalho.

A inserção do parceiro nos relatos das mães entrevistadas surgiu no contexto em que se deu o fenômeno, com o fator "tipo de ajuda prestada pelo marido", o qual assumiu duas possibilidades opostas: a de ocorrer ou não. Quando o companheiro assume ativamente a prestação dos cuidados, isso se dava pela realização das tarefas domésticas não mais desempenhadas pela portadora de transtorno mental e também pela provisão dos bens necessários à manutenção da casa e dos membros da família.

Houve situações em que a presença do transtorno mental acabou por precipitar o término de uma união conjugal frágil, sendo o transtorno mental o pretexto necessário para o seu rompimento. Foi nesse contexto que a família de origem veio mais fortemente se fazer presente, para provisão dos cuidados e suporte com os quais essas mães contavam para a organização mínima de sua rotina e espaço doméstico. Tem-se que a inserção da família e da rede de apoio informal, como vizinhos, é instrumento importante para o fortalecimento e realização dos cuidados nessas condições, tendo em vista as restrições apresentadas pelos serviços de saúde e, em maior amplitude, pela capacidade limitada de as políticas públicas abarcarem adequadamente essas demandas(12-13).

Como um dos elementos que constituem a parentalidade, mantendo-se em relação aos demais fatores anteriormente mencionados, os recursos internos e a história de vida da mãe também fornecem dados sobre como se dará a construção das funções maternas.

Os relatos obtidos junto às entrevistadas referem concomitância ou agravamento das manifestações do transtorno com a vivência da gravidez, em que a gestação não planejada e sua recorrência são trazidas como situações desestabilizadoras na dinâmica individual e familiar das mães entrevistadas. Além disso, tem-se que a mulher se encontra mais suscetível ao desenvolvimento dos transtornos mentais no período puerperal, devido aos efeitos das ações hormonais desencadeadas pela gravidez(14-15).

Conclui-se que as histórias das mães que participaram deste estudo, seus relatos em que contam suas trajetórias e em como têm buscado resgatar a si próprias em meio a esses eventos, denotam a necessidade de se reconhecerem e se enxergarem em sua função materna para que permaneçam lutando com as limitações impostas pelo transtorno mental.

Trata-se de realidade específica e ao mesmo tempo comum a tantas outras mulheres. Específica por se tratar de temática ainda pouco explorada nos estudos científicos brasileiros, nem por isso de menor relevância - tendo em vista seu potencial preventivo para a atenção e cuidado relacionados à saúde mental.

Ademais, o tema aponta para a importância da adequação dos serviços de saúde mental frente a essa demanda, para que as vejam para além de seu lugar de portadoras de um transtorno mental.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Pode-se considerar que, no campo da saúde mental, a inclusão das questões de gênero possibilitará a melhor adequação da prestação dos cuidados e assistência, posto que o indivíduo doente - nessa denominação visto como algo genérico - é antes de tudo um homem ou uma mulher, sobre quem, nessas condições, recaem expectativas e atribuições sociais construtoras do processo saúde-doença. Dessa forma, a abordagem de temas sobre a saúde mental da mulher e maternidade, sob o enfoque metodológico utilizado no presente estudo, vem se somar a outros estudos publicados por este periódico, contribuindo, dessa forma, para ampliação do conhecimento quer seja na área de saúde mental quer seja no que tange às estratégias de investigação científica, passíveis de serem utilizadas na pesquisa com enfoque qualitativo(8,15).

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009

Histórico

  • Aceito
    28 Jul 2009
  • Recebido
    16 Jul 2008
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