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Mecanismos de enfrentamento utilizados por trabalhadores esgotados e não esgotados da estratégia de saúde da família

Resumos

A pesquisa objetivou investigar os mecanismos de enfrentamento do estresse utilizados pelos trabalhadores das dezesseis equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) de Santa Maria, RS, Brasil. Foram entrevistados, nos meses de janeiro e fevereiro de 2007, seis trabalhadores com escores compatíveis com a síndrome de Burnout, identificados pelo Maslach Burnout Inventory, e seis sem a síndrome. Na análise de conteúdo das falas, identificou-se que os trabalhadores esgotados utilizam, predominantemente, mecanismos individuais para enfrentamento dos problemas laborais, enquanto os não esgotados recorrem a mecanismos coletivos. Os achados apontam para a importância do relacionamento interpessoal entre os membros da equipe da ESF para o enfrentamento do estresse laboral e para a necessidade de construção de estratégias coletivas, com o objetivo de prevenir o estresse e manter a saúde do trabalhador.

enfermagem; estresse; saúde do trabalhador; programa saúde da família


This study aimed to investigate stress coping mechanisms used by workers of 16 Family Health Strategy (FHS) teams in Santa Maria, RS, Brazil. Six workers with scores compatible with the Burnout Syndrome, identified through the Maslach Burnout Inventory, and six workers without the syndrome were interviewed in January and February 2007. In the reports' content analysis, we identified that burned out workers predominantly used individual mechanisms to cope with occupational problems, while non-burned out workers sought collective mechanisms. These findings indicate the importance of interpersonal relationships among FHS team members to cope with occupational stress and the need to develop collective strategies to prevent stress and maintain workers' health.

nursing; stress; workers' health; family health program


La investigación objetivó investigar los mecanismos para enfrentar el estrés, utilizados por los trabajadores de los dieciséis equipos de la Estrategia de la Salud de la Familia (ESF) de Santa Maria, RS, Brasil. Fueron entrevistados, en los meses de enero y febrero de 2007, seis trabajadores con puntajes compatibles con el síndrome de Burnout, identificados por el Maslach Burnout Inventory, y seis sin el síndrome. En el análisis de contenido de las declaraciones, se identificó que los trabajadores agotados utilizan, predominantemente, mecanismos individuales para enfrentamiento de los problemas laborales, en cuanto los no agotados recurren a mecanismos colectivos. Lo encontrado apunta para la importancia de las relaciones interpersonales entre los miembros del equipo de la ESF para el enfrentamiento del estrés laboral y para la necesidad de construir estrategias colectivas, con el objetivo de prevenir el estrés y mantener la salud del trabajador.

enfermería; estrés; salud laboral; programa de salud familiar


ARTIGO ORIGINAL

Mecanismos de enfrentamento utilizados por trabalhadores esgotados e não esgotados da estratégia de saúde da família

Letícia de Lima TrindadeI; Liana LautertII; Carmem Lúcia Colomé BeckIII

IEnfermeira, Mestre em Enfermagem, Professor da Universidade Paranaense, Brasil, Professor do Centro Universitário Católico do Sudoeste do Paraná, Brasil, e-mail: letrindade@hotmail.com

IIEnfermeira, Doutor em Psicologia, Professor Associado da Escola de Enfermagem da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Brasil, e-mail: lila@enf.ufrgs.br

IIIEnfermeira, Doutor em Filosofia da Enfermagem, Professor Associado da Universidade Federal de Santa Maria, Brasil, e-mail: carmembeck@smail.ufsm.br

RESUMO

A pesquisa objetivou investigar os mecanismos de enfrentamento do estresse utilizados pelos trabalhadores das dezesseis equipes da Estratégia de Saúde da Família (ESF) de Santa Maria, RS, Brasil. Foram entrevistados, nos meses de janeiro e fevereiro de 2007, seis trabalhadores com escores compatíveis com a síndrome de Burnout, identificados pelo Maslach Burnout Inventory, e seis sem a síndrome. Na análise de conteúdo das falas, identificou-se que os trabalhadores esgotados utilizam, predominantemente, mecanismos individuais para enfrentamento dos problemas laborais, enquanto os não esgotados recorrem a mecanismos coletivos. Os achados apontam para a importância do relacionamento interpessoal entre os membros da equipe da ESF para o enfrentamento do estresse laboral e para a necessidade de construção de estratégias coletivas, com o objetivo de prevenir o estresse e manter a saúde do trabalhador.

Descritores: enfermagem; estresse; saúde do trabalhador; programa saúde da família

INTRODUÇÃO

O Programa de Saúde da Família (PSF), hoje nomeado Estratégia de Saúde da Família (ESF), criado em 1994, propôs mudança do modelo assistencial na atenção básica, na lógica da vigilância à saúde, e incorporou os princípios básicos do Sistema Único de Saúde. O PSF foi instituído para atender a crescente necessidade de descentralização e municipalização dos serviços de saúde, com base na resolutividade e na integralidade da atenção em saúde(1).

Entre seus objetivos, a ESF busca diminuir a distância entre as equipes de saúde e a população, fato resultante de questões territoriais, econômicas, políticas e culturais do modelo de saúde vigente até então(2). Entre seus preceitos está a participação da comunidade na identificação dos problemas de saúde, no acompanhamento e na avaliação do trabalho das equipes de saúde e na definição das prioridades(1).

A atenção da ESF está centrada na família, percebida em seu ambiente social e físico, e reconhece a saúde como direito do cidadão, expressa em melhores condições de vida, em serviços resolutivos e, principalmente, humanizados(1,3). A ESF também preconiza o trabalho interdisciplinar em que a equipe, formada por trabalhadores de diferentes áreas, opera conjunta e complementarmente, visando a abordagem integral do indivíduo, valorizando-o dentro de seu contexto socioeconômico e cultural, com respeito, comprometimento e ética(1).

Essa modalidade de atenção prevê a inserção do trabalhador na comunidade, tornando-o referência para atenção à saúde da população residente em sua área de abrangência. Dessa forma, os membros da equipe da ESF atuam diretamente com pessoas que vivem em diferentes realidades as quais, por vezes, são permeadas pela miséria, violência, más condições de higiene e de moradia e inúmeras precariedades e impossibilidades, podendo desencadear a sensação de impotência do profissional devido às limitações que, em muitas situações, comprometem o cuidado de saúde almejado pelo trabalhador(3). Esse cenário complexo exige adaptação, conhecimento e competência para implementar o cuidado(2).

Para assistir a população e enfrentar o dinamismo dos problemas, os membros das equipes de saúde da família necessitam de perfis profissionais próprios para esse tipo de atividade(4), para reduzir o risco de gerar sofrimento e estresse(5). Portanto, exige que o trabalhador utilize mecanismos de enfrentamento, ou seja, um conjunto de esforços cognitivos e de conduta em permanente mudança, desenvolvidos pelo indivíduo para suprir as demandas externas e internas, avaliadas como dependentes dos próprios recursos. Esses mecanismos são utilizados para amenizar, eliminar, alterar a situação ou evento causador de perturbação (dirigidos ao problema) e para regular a resposta emocional decorrente do episódio estressante (dirigido à emoção)(6).

As ações e reavaliações cognitivas voltadas ao enfrentamento do problema são denominadas estratégias de controle, e as ações e reavaliações cognitivas de escape são as estratégias de esquiva. Para fazer frente, efetivamente, aos problemas e conflitos ocupacionais faz-se necessário que as ações e reavaliações cognitivas ocorram concomitantemente(7).

Ressalta-se que o conjunto de crenças sobre o mundo, os valores, a motivação e o compromisso (com o trabalho, por exemplo) bem como o estilo de vida adotado pelos trabalhadores (impaciente, competitivo) são aspectos psicológicos independentes do fenômeno externo com potencial estressor(6).

Ao longo da vida, os indivíduos desenvolvem mecanismos de enfrentamento variados ante uma mesma situação conflitante, decorrentes da interação entre múltiplos fatores. Por isso, diferentes estudos(2,4,6) sobre o estresse laboral buscam entender os mecanismos utilizados pelos trabalhadores nos conflitos do mundo do trabalho, a fim de compreender a dinâmica laboral e relacional, bem como as formas de expressão desses indivíduos.

O enfrentamento emana da necessidade de adaptação da pessoa ao contexto em que vive e trabalha. Entretanto, alguns grupos de trabalhadores tendem a deparar-se com situações que exigem grandes enfrentamentos como, por exemplo, os trabalhadores de saúde. O trabalho desses profissionais inclui o contato direto e intenso com pessoas(8), na maioria em sofrimento decorrente da proximidade da dor, do adoecimento ou da finitude e, às vezes, portadoras de diferentes carências (econômicas, psíquicas, sociais, dentre outras).

Os trabalhadores de saúde mediam o estresse originado no ambiente e em situações de trabalho por meio do uso de recursos pessoais ou grupais, sendo que a avaliação cognitiva e o valor que lhe atribuem determinam a forma de enfrentamento que utilizarão e, em consequência, as reações emocionais e somáticas decorrentes desse processo(6).

O comprometimento e as expectativas associados ao contexto organizacional e às relações interpessoais no trabalho são fatores que contribuem para a realização pessoal, mas também para o estresse do trabalhador. Quando a frequência e a duração das situações ou eventos estressantes aumentam, os recursos de enfrentamento tendem a se esgotar, originando o estresse crônico(6).

O estresse laboral crônico ou síndrome de Burnout, caracteriza-se pelo desgaste emocional, a despersonalização e a falta de realização profissional do trabalhador, decorrentes da carência de adequadas estratégias de enfrentamento das situações de estresse(6,8). O Burnout, apesar de constar na Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde (CID Z73.0), ainda é desconhecido para muitos trabalhadores, não sendo comum associar o estresse decorrente ou associado ao trabalho às alterações de saúde ou à doença ocupacional. Entretanto, é considerado problema grave de saúde, que acomete contingente crescente de trabalhadores no mundo, afetando o bem-estar físico e psíquico dos indivíduos e dos grupos nos quais estão inseridos(9). Considerando que os trabalhadores da ESF apresentam estresse(4), que esse produz efeitos no corpo do trabalhador e que a maior parte das pesquisas sobre o estresse limita-se a abordar sua sintomatologia(10) objetivou-se, aqui, investigar os mecanismos de enfrentamento do estresse utilizados pelos trabalhadores da Estratégia de Saúde da Família (ESF).

CAMINHO METODOLÓGICO

Trata-se de estudo descritivo no qual se empregou a abordagem quantitativa para selecionar os trabalhadores esgotados (com escores compatíveis com Burnout, avaliado por meio do Maslach Burnout Inventory (MBI) e os não esgotados (sem Burnout). Posteriormente, utilizou-se a abordagem qualitativa para conhecer os mecanismos de enfrentamento utilizados por esses trabalhadores, frente aos problemas e conflitos do cotidiano laboral.

A coleta dos dados foi realizada após a aprovação do projeto de pesquisa pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Parecer nº2006643), nos meses de janeiro e fevereiro de 2007.

A etapa quantitativa do estudo foi realizada com os 86 trabalhadores que atuam em unidades da ESF, em Santa Maria, no Estado do Rio Grande do Sul (RS), sendo 57 profissionais (12 médicos, 13 enfermeiros, 19 técnicos de enfermagem, 5 odontólogos, 8 auxiliares de consultório dentário) e 29 agentes comunitários de saúde, os quais assinaram o termo de consentimento livre e esclarecido e responderam as questões do Inventário de Burnout. Posteriormente, foram selecionados para entrevista os trabalhadores que apresentaram escores localizados no percentil igual ou superior a 75, nas subescalas de despersonalização e desgaste emocional e até o percentil 25 na subescala de realização profissional (escore inverso) no MBI, os quais formaram o grupo com Burnout, ou seja, os esgotados. Os trabalhadores que apresentaram escores localizados no percentil até 25 nas subescalas de desgaste emocional e despersonalização e igual ou superior a 75 em realização profissional compuseram o grupo de trabalhadores sem Burnout, ou seja, não esgotados.

Entre os participantes esgotados, entrevistados, três são agentes comunitários de saúde, dois são técnicos de enfermagem e um é médico, todos do sexo feminino e com idades de 21, 27, 28, 29, 30 e 40 anos. Entre os sujeitos identificados como não esgotados, estão um agente comunitário de saúde, três médicos, um técnico de enfermagem e um enfermeiro, sendo que três do sexo feminino, com as idades de 31, 34, 44, 48, 61 e 68 anos.

As entrevistas foram transcritas na íntegra e submetidas à análise de conteúdo(11), buscando-se os significados e estruturas dos conteúdos das falas dos participantes.

Para testar a associação entre as características demográficas - sexo, idade categoria profissional (ensino superior ou não), estado civil (com companheiro ou não) e tempo de serviço - e as médias do MBI utilizou-se o qui-quadrado(2) para as variáveis qualitativas e o teste t de Student para as variáveis quantitativas contínuas. A única diferença significativa foi entre as médias da idade dos esgotados e não esgotados (p=0,034); os indivíduos esgotados eram mais jovens (idade média de 29,2 e 47,6 anos, respectivamente).

RESULTADOS

Ao contrário de outro estudo(4) e do que se imaginava ao iniciar este estudo, a realidade social das famílias e da comunidade não representa fator de desgaste para os trabalhadores, ao contrário, gera satisfação, pois dá significado ao trabalho realizado tanto para o grupo de trabalhadores esgotados como para os não esgotados. Para eles: [...] a satisfação do trabalho está em ver as pessoas feridas e as ver saindo felizes [...] elas chegam aqui com dor e saem felizes por elas [...] as pessoas serem bem atendidas, serem acolhidas, elas saírem bem [...] saírem elogiando o teu trabalho (Trabalhador Esgotado). [...] fazer um trabalho rico, ter o retorno e criar vínculo com a família (Trabalhador Não Esgotado).

O relacionamento interpessoal entre os membros da equipe de trabalho, contudo, revelou-se como fator de insatisfação e sofrimento para os trabalhadores esgotados, o que os leva a não recorrerem aos colegas para auxiliar na resolução dos problemas, como se observa no depoimento: [...] aqui a gente não confia em ninguém, no meio do trabalho não tem como conseguir amigos, são colegas [...] como não tem com quem dividir, então tu fica sobrecarregado (Trabalhador Esgotado).

Ao observar os mecanismos de enfrentamento utilizados pelos trabalhadores para lidarem com as situações problemáticas ou conflitantes do trabalho, identificou-se que os esgotados utilizam, com maior frequência, mecanismos individuais nessas ocasiões.

A exaustão física e a esquiva(8) aparecem na fala dos trabalhadores esgotados: [..] estou em depressão, sinto muito cansaço por causa das oito horas do trabalho (...) estou tentado esquecer, deletar os problemas do meu trabalho, comecei a tomar remédio natural e comecei a deletar as coisas, eu tinha muita dor de cabeça, dor na nuca (Trabalhador Esgotado).

Os sujeitos esgotados relataram, em diversos momentos do estudo, que a falta de apoio social e os problemas de relacionamento interpessoal na equipe de trabalho os levam, muitas vezes, a usar mecanismos de enfretamento individuais, entre os quais destacaram aqueles dirigidos à emoção(6), como o ato de chorar, que pode representar uma forma de descarga emocional ou de exaustão.

Por outro lado, os trabalhadores não esgotados apontaram diversificadas estratégias coletivas para a resolução dos problemas e poucas estratégias individuais e, ao contrário dos trabalhadores esgotados, buscam auxílio da equipe de trabalho ou de colegas e em outras unidades de saúde ou serviços: a gente faz assim: liga para outro posto [...] a gente vem para a unidade e conversa com a equipe, com a médica, com a técnica de enfermagem [...] dependendo a gente liga para um político [...] vai à rádio [...] conversa com os vizinhos (Trabalhador Não Esgotado).

O tempo de experiência na profissão foi mencionado pelos não esgotados como determinante para enfrentar as situações problemáticas do trabalho. Expuseram que as vivências conferem capacidade para manter a calma e racionalizar mediante situações estressantes o que, consequentemente, possibilita a resolução dos problemas. Esses relatos convergem para os achados da análise estatística do MBI, na qual a idade jovem teve correlação estatisticamente significativa (p=0,034) com os escores da síndrome de Burnout. Os trabalhadores com mais idade (média de 47,6 anos) apresentaram valores baixos nas subescalas de desgaste emocional e despersonalização e altos em realização profissional.

Outra característica observada no grupo de trabalhadores não esgotados foi o uso de estratégias de enfrentamento dirigidas, predominantemente, aos problemas, diferente do outro grupo que utiliza estratégias de esquiva e voltadas às emoções. O uso de estratégias de enfrentamento dirigidas ao problema permite que os mesmos sejam resolvidos, amenizados ou eliminados, favorecendo o trabalho e a saúde desses indivíduos.

DISCUSSÃO

Nos relatos das entrevistas observou-se que o trabalhador esgotado, para conviver ou suportar a situação avaliada como estressante, volta-se para si, utiliza recursos pessoais e a esquiva como estratégia de enfrentamento, o que gera sofrimento e frustração no trabalho ao mesmo tempo em que não modifica o problema.

A percepção de falta de apoio do grupo de trabalho e falta de confiança nos colegas aparecem nos depoimentos dos trabalhadores do grupo de esgotados e os compele a empregar recursos próprios para enfrentar o problema, o que agrava o estresse e gera consequente sofrimento. Esses trabalhadores se referem ao apoio social sob a perspectiva funcional, caracterizado como um conjunto de elementos estruturais, reais ou percebidos, proporcionados por outros para a resolução de problemas práticos e/ou para facilitar as tarefas cotidianas(12). Representa o engajamento dos indivíduos em estratégias proativas de controle, diante de situações estressantes(7).

As estratégias de enfrentamento do estresse centradas nas emoções são, frequentemente, utilizadas frente a situações avaliadas como perduráveis ou imodificáveis, sendo alternativa para o indivíduo desviar seu pensamento, reduzir o nível de tensão e avaliar melhor a situação(6). O ato de chorar é uma dessas estratégias e auxilia a aliviar a aflição. No entanto, quando um indivíduo tem sentimentos de impotência perduráveis pode desenvolver depressão ou recorrer ao abuso do álcool, drogas, fumo e fármacos(8) para esquivar-se do estresse. Por outro lado, os esforços para manter a aparência de permanente disposição para o trabalho, entusiasmada e satisfeita pode também conduzir à busca de recursos no uso de substâncias tidas como estimulantes(8,12-13).

Considerando que a modalidade de atuação proposta para a ESF é o trabalho em equipe(1), esse exige bom relacionamento entre seus membros e as relações interpessoais são determinantes para a efetividade do trabalho.

Acredita-se que o trabalho na ESF exige disposição dos indivíduos para trabalhar em grupo, pois todas as ações e intervenções desse modelo de atenção são pautadas pelas atividades e decisões coletivas. A partir disso, pondera-se que os trabalhadores esgotados, ao utilizarem a esquiva e mecanismos de enfrentamento direcionados às emoções, por vezes, não amenizam, eliminam ou alteram os estressores e ficam predispostos ao adoecimento.

Conforme a frequência, a intensidade, as características e o tempo de exposição às situações estressantes, a avaliação cognitiva da situação se deteriora, os mecanismos de adaptação se esgotam, inicia-se a exaustão física e emocional(6,8), característica da síndrome de Burnout que acomete o grupo de trabalhadores esgotados.

A síndrome é produzida pelo desequilíbrio entre as expectativas dos trabalhadores e a realidade do trabalho, gerando manifestações psicológicas e físicas, com repercussão na vida pessoal, familiar, social e laboral dos indivíduos(14). O Burnout se caracteriza pela presença de sintomas físicos como cansaço, irritabilidade, surgimento de doenças, principalmente psicossomáticas e comportamentos defensivos como a tendência ao isolamento, sentimento de onipotência, perda de interesse pelo trabalho, absenteísmo, ímpetos de abandonar o trabalho, ironia e cinismo(15).

Além disso, a presença de indivíduos estressados na equipe pode provocar o desenvolvimento da ineficiência, comunicação deficitária, desorganização do trabalho, insatisfação e diminuição da produtividade o que, como decorrência, afetará o contexto organizacional e a qualidade da atenção prestada às famílias(4).

Com relação ao grupo de trabalhadores não esgotados, o trabalho coletivo em equipe multidisciplinar se revelou como diferencial em relação aos dados dos trabalhadores esgotados. Para eles, a equipe se destaca como ponto de apoio para a resolução dos problemas e geradora de satisfação no trabalho. Esses achados corroboram os estudos que apontam o apoio social como elemento importante para o enfrentamento do estresse(6,7,12).

Nem sempre, entretanto, as equipes de trabalho atuam coletivamente, pois a construção coletiva de sistemas decisórios diferencia-se em cada grupo social e relaciona-se, portanto, à natureza de cada organização do trabalho(6,14). Mas, no caso da ESF, esse modelo de atenção preconiza a atuação multidisciplinar, característica que favorece o desempenho grupal.

Os indivíduos não esgotados apontaram também o tempo na profissão como fator que favorece a tomada de decisão no trabalho. Aparentemente, as experiências vividas fornecem subsídios para enfrentar as situações problemáticas, amenizar a angústia associada aos problemas laborais e prevenir o aparecimento da síndrome de Burnout.

Os mecanismos de enfrentamento do estresse se modificam ao longo dos anos e, com o passar do tempo, há tendência para que os mecanismos imaturos sejam substituídos por mecanismos evoluídos e que os indivíduos se tornem mais realistas e bem-humorados(6). As experiências trazidas com o tempo na profissão, associadas à maturidade do indivíduo, permitem avaliar as situações que podem ser mudadas e as que não podem, bem como resgatam os melhores mecanismos para conduzir os problemas.

Cabe lembrar que algumas pessoas têm tendência crônica ao estresse, a qual pode ser de origem genética, do modo de vida do indivíduo, da história de vida ou, ainda, pela interação desses fatores. Assim, o estresse pode ser gerado por fontes externas presentes na vida de um indivíduo e pelo seu mundo interior, cujos efeitos são mediados por estratégias de enfrentamento apreendidas, principalmente, na infância, mas que também podem ser desenvolvidas e incorporadas ao longo da vida(16).

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As situações de conflito no ambiente de trabalho na ESF são avaliadas e tratadas de formas distintas entre os trabalhadores esgotados e não esgotados, sendo que aqueles buscam mecanismos individuais para enfretamento dos problemas e esses buscam mecanismos coletivos.

Os trabalhadores elaboram defesas individuais e/ou coletivas para fazer frente ao sofrimento. Parte-se, assim, da compreensão de que os indivíduos não estão passivos em relação à organização do trabalho, mas são capazes de se proteger elaborando defesas que escondem, evitam ou superam o sofrimento decorrente do cotidiano laboral(6,8,15).

Ao analisar os depoimentos dos trabalhadores não esgotados e dos esgotados, percebe-se que os mecanismos coletivos de enfrentamento das situações estressantes favorecem os primeiros e que esses centram suas estratégias na resolução dos problemas, enquanto os esgotados utilizam estratégias individuais e as centram nas emoções, tentando regular sua resposta emocional à situação conflitante, o que gera adoecimento nesses indivíduos.

As relações interpessoais foram determinantes para os trabalhadores não esgotados enfrentarem o estresse laboral, desenvolverem a motivação no trabalho e intervirem junto aos problemas; enquanto para os esgotados, mostraram-se como geradoras de sofrimento e desgaste no trabalho.

Os resultados desta investigação apresentam consonância com pesquisas(4,9,17) realizadas com profissionais de saúde em outros cenários, nas quais o sofrimento no trabalho é frequentemente relacionado ao frágil suporte social dos trabalhadores, entre outros aspectos. Dessa forma, acredita-se que, apesar das limitações do estudo, tendo em vista que cada participante atribuiu um valor singular ao trabalho e tem comprometimento e expectativas diferenciadas em relação à sua atividade laboral, esta pesquisa ressalta o contexto organizacional e as relações interpessoais no trabalho como elementos fundamentais para o desenvolvimento de mecanismos de enfrentamento do estresse laboral.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009

Histórico

  • Aceito
    28 Jul 2009
  • Recebido
    10 Jul 2008
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