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O potencial de um instrumento para o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde: saberes e práticas em saúde coletiva

Resumos

Este estudo teve como objetivos analisar um instrumento de leitura do processo saúde-doença, seu potencial para o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, possibilitando intervenções mais adequadas num dado território. Os procedimentos usados constituíram-se de análise do instrumento de coleta de dados - composto por questões fechadas e abertas para o reconhecimento dos diferentes perfis de reprodução social (formas de trabalhar e de viver) - utilizado no Projeto de Desenvolvimento Pedagógico e de relatórios das atividades desenvolvidas por alunos do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP. Conclui-se que o instrumento analisado possibilita aos profissionais de saúde, particularmente da Enfermagem em Saúde Coletiva, reconhecer vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, orientando suas intervenções em diferentes contextos, segundo a perspectiva da promoção da saúde. Revela, assim, potencial transformador das práticas de saúde vigentes, caráter dinâmico e de renovação constante dessas práticas em diferentes contextos, segundo a "radicalidade" própria da Saúde Coletiva.

determinação das necessidades de cuidados de saúde; vulnerabilidade social; enfermagem; saúde pública; assistência à saúde; educação


OBJECTIVES: to analyze an instrument that aims to understand the health-disease process, its potential to identify social vulnerabilities and health needs to enable the most appropriate interventions in a given territory. Procedures: analysis of the data collection instrument - composed of closed and open questions to identify different profiles of social reproduction (ways of working and living) - used in the Project of Pedagogical Development and activities reported by students at a Collective Health Nursing department. CONCLUSIONS: the instrument enables health care professionals, especially those from Collective Health Nursing, to identify social vulnerabilities and health needs, and guide interventions in different contexts, according to the health promotion perspective. Thus, it reveals potential to transform current health practices, dynamism and constant innovation of these practices in different contexts, according to the "radicality" that is characteristic of Collective Health.

needs assessment; social vulnerability; nursing; public health; delivery of health care; education


Este estudio tuvo como objetivos analizar un instrumento de lectura del proceso salud enfermedad y evaluar su potencial para el reconocimiento de vulnerabilidades sociales y necesidades de salud, posibilitando intervenciones más adecuadas en un dado territorio. Los procedimientos usados se constituyeron de análisis del instrumento de recolección de datos - compuesto por preguntas cerradas y abiertas para el reconocimiento de los diferentes perfiles de reproducción social (formas de trabajar y de vivir) - utilizado en el Proyecto de Desarrollo Pedagógico y de informes de las actividades desarrolladas por alumnos del Departamento de Enfermería en Salud Colectiva de la Escuela de Enfermería de la Universidad de San Pablo(USP). Se concluye que el instrumento analizado posibilita a los profesionales de la salud, particularmente de Enfermería en Salud Colectiva, reconocer vulnerabilidades sociales y necesidades de salud, orientando sus intervenciones en diferentes contextos, según la perspectiva de la promoción de la salud. Revela, así, un potencial transformador de las prácticas de salud vigentes, carácter dinámico y de renovación constante de esas prácticas en diferentes contextos, según la "radicalidad" propia de la Salud Colectiva.

evaluación de necesidades; vulnerabilidad social; enfermería; salud publica; prestación de atención de salud; educación


ARTIGO DE REVISÃO

O potencial de um instrumento para o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde: saberes e práticas em saúde coletiva

Eunice NakamuraI; Emiko Yoshikawa EgryII; Célia Maria Sivalli CamposIII; Lúcia Yasuko Izumi NichiataIII; Anna Maria ChiesaIV; Renata Ferreira TakahashiV

ICientista Social, Doutor em Antropologia, Pesquisador Prodoc/Capes, e-mail: eunice_nakamura@hotmail.com. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil

IIEnfermeira, Doutor em Saúde Pública, Professor Titular, e-mail: emiyegry@usp.br. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, e-mail: celiasiv@usp.br, izumi@usp.br. Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo, Brasil

IVEnfermeira, Doutor em Saúde Pública, Professor Associado, e-mail: amchiesa@usp.br

VEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, e-mail: rftakaha@usp.br

RESUMO

Este estudo teve como objetivos analisar um instrumento de leitura do processo saúde-doença, seu potencial para o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, possibilitando intervenções mais adequadas num dado território. Os procedimentos usados constituíram-se de análise do instrumento de coleta de dados - composto por questões fechadas e abertas para o reconhecimento dos diferentes perfis de reprodução social (formas de trabalhar e de viver) - utilizado no Projeto de Desenvolvimento Pedagógico e de relatórios das atividades desenvolvidas por alunos do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Escola de Enfermagem da USP. Conclui-se que o instrumento analisado possibilita aos profissionais de saúde, particularmente da Enfermagem em Saúde Coletiva, reconhecer vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, orientando suas intervenções em diferentes contextos, segundo a perspectiva da promoção da saúde. Revela, assim, potencial transformador das práticas de saúde vigentes, caráter dinâmico e de renovação constante dessas práticas em diferentes contextos, segundo a "radicalidade" própria da Saúde Coletiva.

Descritores: determinação das necessidades de cuidados de saúde; vulnerabilidade social; enfermagem; saúde pública; assistência à saúde; educação

INTRODUÇÃO

Há, aproximadamente, trinta anos, a Saúde Coletiva constituía-se como campo de saber e âmbito de práticas, a partir da crítica ao modelo médico hegemônico. O seu desenvolvimento histórico ocorreu principalmente em países da América Latina, com forte influência da corrente da Epidemiologia Social latino-americana, que enfatiza o caráter histórico e social do processo saúde-doença e de seus determinantes. Esse campo de conhecimento, especificamente latino-americano em sua origem, apresenta ainda como características particulares a defesa da articulação entre sistemas de saúde universais, de natureza pública e equitativos, fundamentados, no triedro "ideologia, saber e prática"(1).

A forte articulação entre pensamento e ação tornou a Saúde Coletiva um campo expressivo para as mudanças ocorridas na área da saúde, particularmente no Brasil, na década de 1980; exigindo, por outro lado, a definição mais precisa de conceitos e práticas de saúde, em conformidade com o caráter coletivo, histórico e socialmente determinado de seu objeto.

A possibilidade de articulação entre novos conceitos e práticas de saúde tem sido, também, desde a implantação do Sistema Único de Saúde (SUS) pela Constituição Federal de 1988, um dos elementos propulsores da mudança pretendida nos modelos assistenciais(2), deparando-se, entretanto, com um obstáculo importante no que se refere à formação adequada de profissionais para a prática em Saúde Coletiva.

Entre as diversas áreas que integram as Ciências da Saúde, a Enfermagem tem se voltado para questões apresentadas no campo da Saúde Coletiva, desenvolvendo área específica do conhecimento, a Enfermagem em Saúde Coletiva, refletindo e propondo, ao mesmo tempo, novas possibilidades à formação e à prática profissional, principalmente por se tratar de área na qual a intervenção e o cuidado são atividades fundamentais.

Não por acaso, o saber da Enfermagem em Saúde Coletiva vem sendo impulsionado pelo aprofundamento de referenciais teórico-metodológicos e a ampliação do espectro de instrumentos de investigação das realidades e dos processos saúde-doença de diferentes grupos sociais, contribuindo para a qualificação das práticas de saúde.

Os avanços teórico-metodológicos, observados na área, também não têm sido suficientes para impedir a ocorrência de lacunas na transformação e inovação das práticas de saúde, o que parece estar relacionada principalmente à escassez de análises, acerca da formação profissional, voltadas às práticas em Saúde Coletiva.

A análise dessas práticas pressupõe reflexão sobre a natureza e a especificidade de seus três componentes básicos: o objeto, os instrumentos de trabalho e as atividades ou o trabalho propriamente dito. São práticas que pressupõem um campo de conhecimento específico que oriente a assistência à saúde, de acordo com as necessidades de saúde da população, baseando-se, portanto, em competências que valorizem o compromisso "com a defesa da vida e a saúde do público"(1). Tomando como objeto as necessidades de saúde, uma primeira etapa das práticas de saúde é analisá-las, bem como seus determinantes, por meio de instrumentos apropriados para sua apreensão e transformação.

Assim, a finalidade deste artigo é analisar um instrumento com potência - tanto no ensino de enfermagem em Saúde Coletiva quanto na atenção à saúde - para o reconhecimento de necessidades de saúde de indivíduos e famílias dos diferentes grupos sociais de um determinado território, que, por sua vez, devem ser tomadas como objeto das práticas de saúde, para que essas sejam operacionalizadas em resposta às necessidades que as originaram, numa circularidade entre necessidades de saúde e trabalho em saúde.

Essa contribuição - na dimensão do ensino - coaduna-se com a necessidade de instrumentos no processo de trabalho de ensino que possam aprimorar a formação do futuro trabalhador em saúde, com vistas à mudança do modelo assistencial, que, preponderantemente, vem tomando como objeto das práticas em saúde a doença, no âmbito individual(2). No tocante à dimensão da atenção à saúde, o instrumento de trabalho analisado neste estudo possibilita a identificação de necessidades de saúde que ampliam o objeto das práticas em saúde, para além do hegemonicamente identificado com os problemas individuais já instalados(3-4) ou a necessidades restritas aos programas pré-determinados(4).

Procedimentos: análise do instrumento do Projeto de Desenvolvimento Pedagógico para a formação de profissionais em Enfermagem em Saúde Coletiva

Um dos objetivos do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva (ENS) da Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo (EEUSP), com base no referencial teórico-metodológico da Epidemiologia Social, tem sido orientar seus alunos de graduação para identificar os determinantes objetivos do processo saúde-doença e, ao mesmo tempo, compreender os aspectos subjetivos desse processo, mediante os significados e as representações que distintos grupos sociais têm de seu processo de adoecer. Além disso, uma de suas principais preocupações na formação tem sido a reflexão acerca do processo de trabalho em enfermagem, a relação desse profissional com os diferentes atores sociais da saúde e os significados atribuídos ao trabalho e às práticas de saúde, no sentido de melhor organizá-las diante das diferentes realidades vividas pela população.

Foi com essa finalidade que um grupo de docentes desse departamento elaborou o Projeto de Desenvolvimento Pedagógico

O projeto tem como objetivo "(...) descrever a situação de saúde no território, nos limites de um trabalho de caráter pedagógico, especificamente dirigindo-se aos aspectos mais gerais do coletivo que ocupa a área de abrangência, buscando dar conta de identificar os perfis de reprodução social (formas de trabalhar e de viver) e perfis de saúde-doença de famílias moradoras numa amostra delimitada em comum acordo com a UBS"

Para alcançar o objetivo proposto, adotou-se como referências teórico-metodológicas e operacionais: a) a concepção de perfis epidemiológicos(6), para identificar grupos sociais homogêneos na população; b) do ponto de vista metodológico, considerou-se que essas concepções fundamentam a sistematização da apreensão do objeto da Saúde Coletiva, orientando a descrição das particularidades da situação de saúde no território da UBS eleita para a realização dos inquéritos de saúde e as ações de monitoramento das condições de saúde da população; c) o entendimento de que assumir a responsabilidade pela saúde dos habitantes do território implica o controle, monitoramento e acompanhamento da saúde da totalidade dos habitantes pelo setor público de saúde, mediante a caracterização dos diferentes perfis epidemiológicos e a possibilidade de intervenção sobre eles, o que implica no monitoramento das condições de trabalho, de vida e de saúde no território em uma ação interdisciplinar, intersetorial e transetorial, que é a forma como se operacionaliza a Vigilância à Saúde(6); d) do ponto de vista pedagógico, a apreensão da realidade estudada a partir dessas concepções, possibilita aos alunos compreender a proposta de intervenção no coletivo, em contraposição às experiências pedagógicas tradicionais centradas em intervenções junto ao corpo individual.

Se o projeto pedagógico, seus objetivos e pressupostos teóricos inovaram o processo ensino-aprendizado, particularmente na Enfermagem em Saúde Coletiva, o instrumento nele utilizado merece análise mais detalhada, principalmente quanto ao seu potencial tecnológico e à sua possível contribuição para ampliar o conhecimento e transformar as práticas no campo da Saúde Coletiva.

Tal instrumento é aqui tomado como meio de trabalho ou tecnologia utilizada para identificar, manipular ou transformar necessidades de saúde e seus determinantes, dando conta assim de seu caráter coletivo e, ao mesmo tempo, possibilitando a adoção de procedimentos que viabilizem o trabalho, também coletivo, em saúde(1).

O objeto da análise é, portanto, o instrumento de coleta de dados utilizado no projeto pedagógico, um questionário composto por questões fechadas e questões abertas para o reconhecimento dos diferentes perfis de reprodução social - formas de trabalhar e formas de viver. Foram analisados, também, os relatórios das atividades desenvolvidas pelos alunos da disciplina "Fundamentos e Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva", durante o primeiro semestre de 2006, em Unidades Básicas de Saúde (UBS) da Supervisão de Saúde do Butantã, da Coordenadoria de Saúde da Região Centro-Oeste, no município de São Paulo: UBS Jd. São Jorge, UBS Jd. Boa Vista e UBS Vila Dalva. Partindo do instrumento originalmente proposto, a análise considerou, também, adequações realizadas nas atividades em campo, realizadas em 2006, segundo as particularidades de cada território apresentadas nos relatórios citados.

A complexidade do processo saúde-doença: o reconhecimento de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde das populações

Estudos voltados ao monitoramento das condições de saúde do coletivo tendem a considerar principalmente as formas de inserção social de uma dada população(5). Essas formas de inserção social diferem nas diversas populações e irão definir as condições de vulnerabilidade social particulares, que implicarão, por sua vez, diferentes necessidades de saúde dos grupos sociais(7-8).

A associação entre as concepções de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, no sentido coletivo, encontra-se mais próxima da perspectiva da Epidemiologia Social, na qual o processo saúde-doença é considerado fenômeno complexo, socialmente determinado e modulado por condicionantes de ordem biológica, psicológica, cultural, econômica e política. De acordo com essa perspectiva, as raízes dos processos saúde-doença estão vinculadas às formas de inserção dos grupos sociais no mundo do trabalho, em especial suas formas de trabalhar, das quais decorrem as particularidades encontradas em suas condições de vida(5,9). Portanto, "(...) a causa última do comportamento do processo saúde-doença deve ser buscada na forma segundo a qual a sociedade se organiza para a construção da vida social. (...) A organização social é determinante fundamental das manifestações da qualidade de vida das populações e, por conseguinte, de necessidades diferenciadas em termos de saúde"(10).

Assim, os processos saúde e a doença são a síntese do conjunto de determinações que acabam por resultar em vulnerabilidades ou potencialidades diferenciadas. Ressalta-se a perspectiva aqui adotada de vulnerabilidade social, entendida como uma dimensão tanto dos processos de exclusão, discriminação ou enfraquecimento dos grupos sociais, quanto da capacidade de enfrentamento dessas condições. Originário da área de advocacia internacional pelos Direitos Humanos, o termo vulnerabilidade designa, em sua origem, grupos ou indivíduos fragilizados, jurídica ou politicamente, na promoção, proteção ou garantia dos seus direitos de cidadania, estando vinculado a situações de iniquidade e desigualdade social, expressas por meio de potenciais de adoecimento, ou não adoecimento, e de enfrentamento relacionados a indivíduos, grupos e coletividade(11). Nessa concepção, a vulnerabilidade não se restringe a suscetibilidades individuais, mas se refere ao plano coletivo, exigindo práticas de saúde caracterizadas pelo desenvolvimento de ações que envolvam "resposta social", de participação de diferentes atores sociais na procura solidária de estratégias passíveis de resposta às necessidades de saúde(12).

As necessidades de saúde não se restringem a necessidades médicas, de serviços de saúde, nem a problemas de saúde (doenças, sofrimentos ou riscos), mas dizem respeito a carências ou vulnerabilidades que expressam modos de vida e identidades, expressos na questão "o que é necessário para ter saúde" e que envolvem, portanto, "as condições necessárias para o gozo da saúde"(1). A abrangência e complexidade desses objetos da prática em Saúde Coletiva exigem competência profissional e instrumentos específicos que respondam adequadamente ao seu caráter coletivo.

Um instrumento para a orientação da prática profissional em Saúde Coletiva

Ao se tomar, nesta análise, os conceitos de vulnerabilidades sociais e necessidades de saúde, como objetos das práticas em Saúde Coletiva, é fundamental delimitar a discussão acerca de como essas práticas se viabilizam. Impõe-se, ainda, o desafio de, uma vez identificadas essas necessidades, buscar elaborar ações de intervenção no setor saúde capaz de articular os princípios de universalidade, equidade e integralidade, preconizados pelo SUS(13).

A constituição da Saúde Coletiva como um campo de saber e âmbito de práticas conduz à retomada de alguns conceitos fundamentais para a construção do que poderia se chamar uma "cartografia da práxis"(1). Esses conceitos são: as necessidades de saúde, o sujeito e as práticas de saúde, articulados na compreensão de necessidades de saúde como possibilidade de os sujeitos terem saúde e reconhecidas na relação intersubjetiva entre profissionais de saúde e população, reorganizando as atividades e recriando tecnologias.

Aqui reside a "radicalidade" da Saúde Coletiva(1), tendo em vista seus pressupostos de emancipação, democracia e autonomia dos sujeitos, o que irá configurar, por outro lado, seu principal obstáculo, principalmente em termos da qualificação profissional necessária à viabilização de práticas fundamentadas nesses pressupostos. Esse obstáculo será tanto maior à medida que se associe o conceito de equidade à possibilidade de apreensão de diferentes necessidades de saúde e de sua expressão por sujeitos autônomos.

Apresentadas como um problema, as competências esperadas de um profissional de Saúde Coletiva são aqui abordadas, a partir da análise do instrumento utilizado no Projeto de Desenvolvimento Pedagógico mencionado, no qual se integram o ensino e o mundo do trabalho.

Esse instrumento considera importantes dimensões da realidade objetiva, quais sejam a constituição da família, as formas de trabalhar (ou de produzir) e de viver (ou de consumir) dos diferentes grupos sociais, com seus potenciais de fortalecimento e de desgaste, para compreender a vulnerabilidade dos diferentes grupos sociais ao adoecimento, numa dada realidade.

Partindo da análise do instrumento e dos relatórios das atividades desenvolvidas pelos alunos da disciplina "Fundamentos e Práticas de Enfermagem em Saúde Coletiva", identificou-se um conjunto de indicadores relacionados às características da família, suas formas de trabalhar e viver, morbidade identificada e estratégias de enfrentamento, e percepções relativas ao processo saúde-doença. Esses indicadores permitem conhecer os potenciais de fortalecimento e aqueles de desgaste dos grupos sociais, definindo um quadro de vulnerabilidades sociais(14) e, consequentemente, um conjunto de necessidades de saúde particulares a esses grupos(8). Em relação à composição familiar, é possível caracterizar os arranjos familiares, a procedência dos integrantes, escolaridade e as relações geracionais presentes nos diferentes agrupamentos.

Com relação às formas de trabalhar, destacam-se dois grupos de indicadores: 1) trabalho em atividade remunerada (características da atividade, ocupação, horas trabalhadas por semana, tempo de deslocamento diário) e 2) renda familiar (benefícios recebidos, além do trabalho, percentual da renda familiar gasta com despesas básicas, como alimentação, aluguel, luz, água, telefone, vestuário).

Quanto às formas de viver, ressaltam-se os seguintes grupos de indicadores: 1) habitação (propriedade, adequação de ventilação e iluminação natural, presença de mofos e bolores, material do piso predominante, material da habitação, número de cômodos, número de moradores); 2) acesso (a serviços básicos, como água, energia elétrica, coleta de lixo, esgoto e atividades de lazer); 3) participação social (em grupos, associações, sindicatos e partidos políticos); 4) percepção de situações de vulnerabilidade (desmoronamento, enchente, violência, acidente de trânsito, contaminação por lixo, esgoto e córregos, contato com vetores, desenvolvimento de dependência de álcool e drogas, envolvimento com problemas decorrentes do tráfico de drogas).

Os perfis de saúde-doença do grupo social e os agravos aos quais os membros das famílias estão expostos são identificados como o resultado do embate entre os potenciais de fortalecimento e de desgaste a que essas famílias estão submetidas. Esse resultado é captado por meio de questões que abordam: 1) problemas de saúde referidos (problemas gerais, problemas com bebidas e outras drogas, problemas mentais e problemas de incapacidade física); 2) internações referidas (últimos 12 meses); 3) monitoramento de exames preventivos (tempo de realização do último exame de Papanicolau e mamografia); 4) adesão aos programas disponibilizados pelos serviços de saúde do território (frequência com que procura os serviços de saúde relacionados às morbidades referidas).

As questões abertas, que também compõem o instrumento, ressaltam a apreensão da dimensão subjetiva dos processos saúde-doença, nas concepções e vivências das famílias entrevistadas, revelando significados particulares do que seria uma pessoa saudável, estratégias de cuidado (quem desempenha o papel de cuidador, como se estabelece a relação cuidador/paciente) e possibilidades de acesso aos serviços de saúde.

A análise complementar desses indicadores resultantes das dimensões objetiva e subjetiva da realidade das famílias, apreendida a partir do instrumento proposto, tem possibilitado um trabalho conjunto entre trabalhadores das UBS, alunos e docentes do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva no planejamento de intervenções específicas a um conjunto de vulnerabilidades e necessidades de saúde particulares, reconhecidas nos diferentes grupos sociais.

CONCLUSÕES

O instrumento analisado busca identificar determinantes do processo saúde-doença, apreender as concepções e vivências que os grupos sociais têm sobre seu processo de adoecer, possibilitando aos profissionais de saúde, e particularmente aos alunos de Enfermagem em Saúde Coletiva, envolvidos no Projeto Pedagógico, reconhecer vulnerabilidades e necessidades de saúde, orientando-os, ao mesmo tempo, quanto às formas de intervenção nos diferentes contextos em que atuam. Nesse sentido, suas contribuições, bem como do instrumento nele utilizado, tanto para a formação profissional como para a orientação das práticas de saúde, estão vinculadas à sua possível relação com os pressupostos da Saúde Coletiva.

Os instrumentos de identificação e monitoramento de necessidades de saúde podem ser classificados de acordo com as diferentes perspectivas adotadas, segundo prioridades, alvos ou metas e promoção da saúde, para: 1) identificar os mais necessitados ou o público-alvo para as políticas de saúde pública, segundo critérios epidemiológicos; 2) garantir que os serviços de saúde possam responder da forma mais eficiente às necessidades de saúde da população ou 3) independente da identificação de problemas, valorizar a abordagem proativa, centrada na participação da população e na possibilidade de sua autonomia na geração de recursos próprios de saúde. Apesar das diferenças, as três abordagens deveriam compor um sistema integrado, permitindo que os dados necessários para diferentes propósitos fossem identificados em diferentes níveis e por meio de instrumentos e métodos específicos(15).

O instrumento apresentado e analisado neste trabalho aproxima-se da perspectiva da promoção da saúde, na medida em que busca reconhecer vulnerabilidades e necessidades de saúde de diferentes grupos sociais da população, seus potenciais de fortalecimento e de desgaste, a partir das características de sua inserção na reprodução social. Além disso, ao permitir a complementaridade entre aspectos objetivos da realidade e concepções subjetivas da própria população, valoriza, também, a possibilidade de expressão dos sujeitos envolvidos e dos diferentes significados atribuídos aos modos de vida, de saúde e sofrimento.

Revela, assim, seu potencial transformador das práticas de saúde vigentes, orientando alunos e profissionais de saúde a adotarem práticas mais condizentes com os pressupostos do campo da Saúde Coletiva, em especial com os conceitos de coletivo, equidade, alteridade e autonomia. Possibilita, também, a articulação e a redefinição dos três componentes básicos das práticas de saúde - o objeto, o instrumento e as atividades - ressaltando o caráter dinâmico do modelo teórico-metodológico nele implícito, segundo a dinamicidade do próprio campo da Saúde Coletiva: "um espaço cada vez mais aberto a novos paradigmas diante das necessidades de saúde, dos direitos humanos, de processos emancipatórios e da democratização da vida social"(1).

É nesse modelo dinâmico, aliado à possibilidade de renovação constante das práticas de saúde, segundo os contextos em que vivem os diferentes grupos sociais, que parece residir a "radicalidade" da Saúde Coletiva e de um modelo teórico-metodológico fundamentado na perspectiva do outro, suas vulnerabilidades e necessidades de saúde(1). Nele reside também a "radicalidade" possível na formação profissional e na transformação das práticas de saúde, não mais centradas exclusivamente no conhecimento biomédico, mas abertas a outros saberes.

Um dos grandes desafios ao processo de formação de profissionais em Saúde Coletiva parece residir na possibilidade de formulação de competências específicas a esse campo, baseadas no ideal de co-gestão(16), mediante intervenções norteadas pelo enfrentamento das situações reconhecidas de vulnerabilidade e necessidades de saúde da população, articuladas aos princípios de universalidade, equidade e integralidade, preconizados pelo SUS.

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  • *
    , visando o monitoramento crítico em saúde
    (5), mediante a investigação e, ao mesmo tempo, o aprendizado da delimitação de problemas e necessidades de saúde em um dado território, para assim propor formas de intervenção em realidades particulares.
  • **
    .
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      15 Jun 2009
    • Data do Fascículo
      Abr 2009

    Histórico

    • Recebido
      02 Abr 2008
    • Aceito
      27 Fev 2009
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