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O desencadeamento da psicose e sua clínica nos equipamentos substitutivos de saúde mental: uma contribuição teórica na perspectiva freudiana

Resumos

O objetivo deste trabalho é construir um quadro esclarecedor do modo de produção da psicose, tendo a psicanálise freudiana como referencial teórico. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo dos textos que continham os termos ligados ao conceito a ser estudado. Baseando-se no pressuposto de que os sintomas psicóticos advêm de fixação no narcisismo primário, conclui-se que a fusão das pulsões de vida e de morte e a constituição egóica, por meio de processos de identificação na fase oral, podem manter um indivíduo ligado a figuras primitivas de identificação e impedido de fazer novos investimentos libidinais, o que lhe imprime constante sensação de ameaça e de morte em vida. As tentativas que o psicótico apresenta de fugir desse estado de morte e de se relacionar com a realidade externa são expressas sob as formas que se conhece como sintomas, a exemplo dos delírios e dos quadros de agressividade.

saúde mental; psicanálise; transtornos mentais


The present study goal was to build a framework based on the Freudian psychoanalysis in order to understand the psychosis mode of production. The methodology consisted of content analysis of terms related to the concept studied. Based on the assumption that the psychotic symptoms are a result of a fixation on the primary narcissism, we conclude that the fusion of life and death pulses, as well as the egoic constitution through identification processes in the oral phase, can keep the individual tied to primitive figures of identification and prevent him(er) from making new libidinal investments, which lead the individual to feel a constant threat and death in life. The attempts made by the psychotic person to escape from this state of death and to relate with external reality are expressed in forms known as symptoms, such as delusions and aggressiveness.

mental health; psychoanalysis; mental disorders


Este trabajo tiene como objetivo construir un marco esclarecedor del modo de producción de la psicosis, según el referencial teórico del psicoanálisis freudiano. La metodología consiste en analizar el contenido de los textos que tratan de los términos vinculados al concepto en foco. Tomando por base el supuesto de que los síntomas psicóticos resultan de una fijación en el narcisismo primario, concluimos que la fusión de las pulsiones de vida y de muerte, junto con la constitución del yo por medio de procesos de identificación en la fase oral, pueden mantener al individuo sujeto a primitivas figuras de identificación e impedido de hacer nuevos investimientos libidinales, lo que le imprime una constante sensación de amenaza y de muerte en vida. Los intentos que el psicótico presenta para escapar de este estado de muerte y relacionarse con la realidad externa son expresos bajo las formas que conocemos como síntomas, por ejemplo los delirios y los cuadros de agresividad.

salud mental; psicoanálisis; trastornos mentales


ARTIGO ORIGINAL

O desencadeamento da psicose e sua clínica nos equipamentos substitutivos de saúde mental: uma contribuição teórica na perspectiva freudiana

Lilian MirandaI; Débora Isane Ratner KirschbaumII

IPsicóloga, Doutoranda, e-mail: limiranda78@hotmail.com

IIEnfermeira, Professor, e-mail: isane@uol.com.br. Faculdade de Ciências Médicas, da Universidade Estadual de Campinas, Brasil

RESUMO

O objetivo deste trabalho é construir um quadro esclarecedor do modo de produção da psicose, tendo a psicanálise freudiana como referencial teórico. A metodologia utilizada foi a análise de conteúdo dos textos que continham os termos ligados ao conceito a ser estudado. Baseando-se no pressuposto de que os sintomas psicóticos advêm de fixação no narcisismo primário, conclui-se que a fusão das pulsões de vida e de morte e a constituição egóica, por meio de processos de identificação na fase oral, podem manter um indivíduo ligado a figuras primitivas de identificação e impedido de fazer novos investimentos libidinais, o que lhe imprime constante sensação de ameaça e de morte em vida. As tentativas que o psicótico apresenta de fugir desse estado de morte e de se relacionar com a realidade externa são expressas sob as formas que se conhece como sintomas, a exemplo dos delírios e dos quadros de agressividade.

Descritores: saúde mental; psicanálise; transtornos mentais

INTRODUÇÃO

Com o advento da Reforma Psiquiátrica, iniciada no Brasil durante, o final dos anos 70, a interpretação e a explicação do sofrimento psicótico e de suas possibilidades de tratamento vêm passando por drásticas modificações. Atualmente, a internação involuntária e o uso de técnicas terapêuticas invasivas, sem critérios claros que o justifiquem, são desaconselhados e restringidos por legislações federais(1). Além disso, os métodos interventivos asilares, cujo paradigma se firma pelo modelo do manicômio(2), foram criticados e superados por meio de esforços de trabalhadores da saúde mental envolvidos com as propostas ideológicas, sociais e políticas da luta antimanicomial e de grupos ligados à universidade e às sociedades científicas, preocupados com a investigação e a aplicação de tecnologias eticamente fundamentadas(3).

Alguns estudos, contudo, indicam que aqueles que intervêm cotidianamente com os psicóticos, principalmente os profissionais de enfermagem, a quem, na cultura organizacional dos serviços de saúde, cabe o contato constante com as questões dos pacientes ligadas à sexualidade, ao uso de medicação e à administração da rotina de vida, relatam que as desagradáveis sensações de impotência e de confusão frente às possibilidades de manejos inadequados lhes são comuns e intensas, impedindo-os, muitas vezes, de respeitar a alteridade dos pacientes(4).

Outras pesquisas mostram que parte do atual sofrimento dos profissionais ligados à Reforma Psiquiátrica se deve à escassez de aparatos teóricos que se voltem para os princípios básicos do funcionamento psíquico dos psicóticos e ofereçam os elementos estruturais para compreensão do ser humano, quando tomado sob o ponto de vista da existência de um psiquismo ou de um mundo emocional(5). Os pacientes apresentam processos que expressam esse funcionamento psíquico ao contarem sobre vivências de perseguição, alterações corporais e sensações de despersonalização, como será ilustrado com exemplos ao final deste artigo.

Partindo-se do pressuposto de que há a necessidade de maior intrumentalização teórica para o trabalho nos atuais equipamentos de saúde mental e com o intuito de contribuir para a formação e a atuação dos referidos trabalhadores, objetivou-se neste artigo, teorizar sobre o processo de formação psíquica que pode desencadear vivências psicóticas. A explicação será baseada no estudo dos conceitos formulados por Sigmund Freud de desenvolvimento psicossexual, constituição egóica e dualidade pulsional(6).

METODOLOGIA

Este trabalho é um estudo conceitual, cujo referencial teórico é a psicanálise freudiana. O método foi a leitura com atenção flutuante de todos os textos que continham os termos narcisismo, pulsão de vida, pulsão de morte, psicose, demência, paranóia, neurose narcísica, melancolia, delírio e alucinação, indicados pelo índice onomástico das Obras Completas de Sigmund Freud. Em seguida, elegeu-se questões ligadas ao desencadeamento da psicose e realizou-se análise de conteúdo a partir de três categorias temáticas: o desenvolvimento psicossexual, o conceito de pulsão de morte e a relação desses dois temas com a constituição do ego(7).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

A constituição do ego

Para a psicanálise(8), a saúde é marcada pela possibilidade de contatos genuínos com o outro, ou seja, por momentos em que um ser humano é capaz de reconhecer e suportar a alteridade e, diante da diferença, se fertilizar, viabilizando a procriação biológica, que perpetua a sua espécie, e a simbólica, que produz os bens culturais e materiais do seu meio social. A conclusão de um desenvolvimento saudável para o homem se dá quando esse chega à fase genital, momento em que suporta reprimir seus interesses narcísicos em favor de uma escolha genital de parceiros, escolha essa que implica na tolerância àquilo que diz respeito a um não-eu(8).

Essa capacidade de escolha, porém, é adquirida através de um complexo percurso de desenvolvimento, iniciado nos primeiros momentos de vida, quando o bebê ainda está imerso num narcisismo e alheio à existência de qualquer pessoa, embora dependa de cuidados externos para sobreviver. O processo de interação com o mundo e com a vida pulsional interna será o responsável pela constituição de um psiquismo no bebê(9-10), mas são algumas vicissitudes nesse percurso que podem incorrer nos sofrimentos mentais e, entre eles, na psicose(11-12).

Vários autores(8-9) afirmam que, para os psicóticos, muito mais do que para aqueles que sofrem de outras patologias, como as neuroses histérica e obsessiva, a realidade é, em geral, invasiva e assustadora, provocando neles terríveis sensações de paranóia e formas de reação que podem se mostrar num contínuo que se inicia no embotamento afetivo e prossegue até a heteroagressividade.

Numa perspectiva freudiana, o modo de relação que os seres humanos estabelecem com o mundo externo é construído pelo ego: "uma organização coerente dos processos mentais"(10), cuja tarefa é controlar as abordagens à descarga de excitação para o mundo externo, supervisionar todos os processos psíquicos e fazer o teste da realidade.

No início de sua vida, o bebê se relaciona com o mundo externo porque dele necessita para sobreviver, mas não reconhece esse mundo como sendo destacado de si mesmo. O contato com a mãe oferece sensações de prazer, originadas na saciação da fome, mas, depois, associadas à estimulação da mucosa da boca e aos diversos outros estímulos sensoriais, como os odores e os sons. Toda essa experiência sensorial é incorporada pelo bebê e nele deixa marcas, ou traços, os quais vão se organizando de forma a construir nesse bebê um jeito próprio de interação com o mundo(8).

No mesmo momento em que esses traços sensoriais estão se alojando, o bebê, baseando-se na experiência de mamar, inicia um processo análogo ao ato de devorar e incorporar a imagem da mãe, tal como a sente. Ele não devora ou agride concretamente a mãe, mas despreza alguns aspectos que pertencem a ela e assimila, em si mesmo, outros, sem se preocupar (porque ainda não possui condições de fazê-lo) com a subjetividade dela. Os traços de toda essa complexa incorporação vão formando seu ego e dando-lhe a sensação, ainda vaga, de possuir um mundo subjetivo. No entanto, aqui, refere-se à relação que, para o bebê, não é sentida como tal, já que ele desconhece a existência de alguém, diferente dele mesmo, para se relacionar. No período em que está se iniciando a constituição egóica, tudo o que o bebê ama, ou seja, tudo o que lhe dá prazer, é sentido como sendo ele mesmo, configurando assim um estado narcísico(11-12).

Em relação ao conceito de prazer, é necessário esclarecer que, na perspectiva teórica aqui adotada(13), o objetivo único de todo ser vivo é a ausência completa de quaisquer estimulações, de forma que não haja necessidade de movimentos em direção ao mundo onde se encontram as possíveis respostas às demandas. No entanto, esse estado nunca pode ser obtido porque o nascimento biológico implica na existência de estímulos internos, a exemplo da fome, e externos, tal qual a luminosidade. Diante dessa primeira impossibilidade, imposta pela vida, o ser humano se contenta em objetivar um estado de constância dos estímulos, ou de não incômodo. Associado a outros fatores, tal estado, como será vista, possibilita a constituição do ego.

A constituição egóica e a teoria pulsional

A descrição desse processo de constituição egóica se baseia na idéia de que todos nós somos munidos por uma pulsão de morte, uma força que trabalha a serviço da não movimentação. Não se trata de um esforço pela morte física, necessariamente, mas de direcionamento rumo a um estado de não contato com aspectos da vida que impliquem em novas estimulações. A pulsão de morte impulsiona o ser vivo a manter suas experiências afetivas da maneira como elas foram originalmente gravadas no psiquismo, sem haver necessidade de trabalhosas tentativas para ligá-las a representantes que as tornem socialmente compartilháveis(13).

Junto da pulsão de morte, habita no organismo também uma força que procura levá-lo ao desenvolvimento de suas possibilidades de interação com o mundo externo e de contato com as próprias necessidades: trata-se da pulsão de vida(13). Essa força ajudaria na tarefa de associar representantes psíquicos aos afetos dos quais se experimenta, atribuindo-lhes representação de palavra(14). Somente com essas representações é que pode haver a comunicação com o mundo, entendendo e conseguindo compreender as demandas das outras pessoas.

Ao mesmo tempo em que o ego, mediante seu trabalho de identificação e sublimação, ajuda a pulsão de morte do id a obter controle sobre a libido, também trabalha no sentido de acumular muita libido em si, desejando viver e ser amado(10).

O que é paradoxal, e ao mesmo tempo traz a chave para a possibilidade de entendimento da psicose, é que a pulsão de morte, em alguns momentos, trabalha a serviço da vida. Como acima explicado, para a sobrevivência psíquica de qualquer pessoa é necessária a existência de um ego, ainda que rudimentar; ego esse que começa a se constituir a partir de incorporações de objetos. No entanto, o estudo da teoria das pulsões mostra que tal processo de incorporação só pode ser compreendido se se levar em conta o trabalho da pulsão de morte, pois é ela que impulsiona o bebê a aniquilar o objeto e destruir sua alteridade, possibilitando, dessa forma, sua incorporação, após a qual ocorre o processo de identificação, cujas marcas constituirão o ego e, conseqüentemente, o jeito próprio que aquele bebê possui para lidar consigo mesmo e com os estímulos internos e externos que lhe acometem(12). Assim, a vida inicia-se através da morte, ou da destruição do outro.

Num percurso de desenvolvimento normal, a pulsão de vida, agindo em concomitância à pulsão de morte, trabalha para que o bebê experimente outras formas de sensação de prazer e, uma vez já tendo um rudimentar ego, possa ir diferenciando o que pertence a ele mesmo do que, embora esteja com ele intimamente ligado, diz respeito a uma realidade outra, que de alguma forma se destaca do seu ego. Com essa percepção, ele se depara com a necessidade de se esforçar para investir num mundo externo, afim de que consiga nesse as respostas às suas necessidades e aos seus desejos. Para esse investimento, precisa que a pulsão de vida aja no sentido de permitir a ligação dos afetos aos representantes psíquicos.

Quando tudo ocorre razoavelmente bem nesse movimento de catexização da realidade externa, o bebê abandona os primeiros objetos introjetados e consegue ligar-se a outras figuras, principalmente a paterna(11). Com isso, pode vivenciar o Complexo de Édipo e adquire a capacidade, em maior ou menor grau, conforme tenha se dado tal vivência, de perceber o outro e com ele se relacionar. Faz escolhas amorosas, se envolve com a alteridade e pode produzir bens materiais e simbólicos, além de gerar filhos, perpetuando a vida da sua espécie(13). Porém, quando há intercorrências nesse processo, algumas doenças são desencadeadas e, entre elas, a psicose, sobre a qual se discorre a seguir.

O desenvolvimento da psicose

No caso daquelas pessoas que apresentam sofrimentos psicóticos, observa-se que não ocorreu o desenvolvimento normal até o Complexo de Édipo. A psicose é constituída a partir de fixação na fase narcísica e conseqüente dificuldade de abandonar os primeiros objetos de identificação(9). No entanto, tal dificuldade implica na fixação de figuras incorporadas e introjetadas a partir de processos de morte, ou seja, as pessoas que não conseguem abandonar seus primeiros objetos e investir na realidade externa de forma menos destrutiva, ficam sempre voltadas para figuras cuja alteridade fora aniquilada pelo processo de identificação. Com isso, suportam catexizar apenas a si mesmas, passando a residir num constante estado narcísico(12).

Importante salientar que a fixação no narcisismo, para o indivíduo em desenvolvimento, implica em severas dificuldades em reconhecer que há um outro - a figura paterna - que possui ascendência sobre ele e pode lhe impor limites. Sua libido vai percorrendo as demais fases do desenvolvimento marcadas pela fixação, o que produz mais fixações e vicissitudes.

Nesse contexto de dificuldades, no momento da vivência edípica, a capacidade para suportar frustrações é muito reduzida e, por conseqüência, ocorrem intensos processos de regressão às fases anteriores do desenvolvimento psicossexual, sobretudo, à fase oral. Com problemas para se haver com os impeditivos e os limites implícitos ao contato com o outro, o indivíduo tende a permanecer fixado nas figuras que introjetou, não as abandonando em favor de um reconhecimento de suas próprias faltas e não suportando fazer novos investimentos no mundo externo(9,11,14).

Um indivíduo portador de fixação narcísica sempre se envolve com objetos que estão profundamente associados às primeiras figuras de introjeção. Diante de seus envolvimentos, ele nunca abandona seu objeto de amor, pois seu ego é o objeto; no entanto, quando ocorre uma frustração na relação objetal, seja no plano real ou no imaginário, é também o ego o frustrador, uma vez que ele está completamente misturado ao objeto. Ao invés de abandonar e atacar o objeto, o indivíduo o faz com o próprio ego, até porque o objeto, enquanto uma entidade externa a ele, não existe.

A relação de objeto na paranóia

No que diz respeito ao paranóico, conclui-se que seus objetos perseguidores configuram-se como objetos de amor, pois são escolhidos, narcisicamente, através dos processos de introjeção e identificação. Para se defender do sofrimento que esses objetos introjetados causam, o indivíduo faz uso do mecanismo da projeção, colocando a ameaça em alguém que possua, ainda que no plano inconsciente, alguma semelhança ou ligação com seu objeto perseguidor(9).

Por não suportar perder o primeiro objeto de identificação, o psicótico tende a se manter num estado de inércia, não conquistando outros objetos próprios da fase genital. Portanto, ele experimenta constante ameaça de morte, cuja fonte é justamente seu primeiro e insubstituível objeto de amor. Está preso nessa armadilha porque é, do ponto de vista da constituição via identificação, o próprio objeto delirante(9-10).

Quando uma pessoa sofre frustrações impostas pela alteridade, sua libido pode regredir a pontos onde se marcaram fixações. Uma regressão à fase narcísica implica num retorno da libido aos momentos da vida em que o indivíduo tinha todas as suas demandas respondidas e contava com a certeza de se autobastar. É justamente nessa fase narcísica que se encontram os traços das primeiras experiências sensoriais, traços esses que retornam junto da regressão, mas retornam da forma como se inscreveram, em odores, sons, sensações tácteis e imagens fragmentadas e distorcidas, configurando assim as alucinações, o clássico sintoma psicótico(12).

Tentando sair de seu ensimesmamento e de alguma forma interagir com o mundo, ou seja, procurando curar-se, o psicótico constrói explicações para suas vivências alucinatórias, desenvolvendo delírios que justifiquem a sensação de constante morte em vida.

Dois casos de psicose, sobre os quais Freud fez interessantes análises, podem melhor esclarecer os processos até aqui descritos. O primeiro deles se trata de um juiz de direito que escreveu um livro de memórias(15) em que conta sobre sua vivência psicótica. No mesmo são descritos diversos sintomas que poderiam ser agrupados num quadro de hipocondria, relacionado a intensas sensações de transformação corporal em que o juiz acreditava poder estar morto e em decomposição, ou sentia que seu corpo estava transformando-se num corpo de mulher, além de percebê-lo em conexão com Deus. Junto dessas sensações, ele construiu um delírio de que estava sendo perseguido e prejudicado, injustamente, por seu médico, Flechsig, a quem, após um período de profunda admiração, Schreber começou a designar por assassino de almas. Além disso, com o passar do tempo, ele se envolveu veementemente com delírios místico-religiosos, acreditando ter a missão de redimir o mundo e restituir nesse um estado de beatitude.

A partir desse livro de memórias, Freud faz uma análise de Schereber(9), propondo que os delírios de perseguição, religiosidade, emasculação e auto-referência fossem entendidos como manifestações psíquicas, como quaisquer outros impulsos da mente humana. Após descrição atenta e detalhada dos delírios e análise da relação que Schreber narra ter tido com seu médico e posterior figura persecutória, Freud propõe que a raiz dos delírios e da paranóia encontrava-se na sexualidade. Explica que, quando Schreber percebeu-se autorizado a assumir um cargo de maior poder, ou quando, com idade avançada, deu-se conta de que não mais poderia ter um filho homem para prosseguir com sua linhagem, reviveu conflitos narcísicos de origem primitiva. Afirma então que a raiz de toda paranóia encontra-se na primeira fase de desenvolvimento libidinal, conforme enunciado anteriormente.

A aquisição que Schereber fez de um cargo de maior autoridade corresponderia à intensificação da libido, que sendo poderosa demais procurou escoadouro no ponto mais fraco, que é, nesse caso, o narcisismo. Como nesse período do desenvolvimento psicossexual não há ainda escolha objetal, o movimento da libido é homossexual (a pessoa é seu próprio alvo de investimento amoroso) e, conseqüentemente, no caso do adoecimento paranóico, aparecem os conflitos ligados à homossexualidade. Disso decorre, por exemplo, os delírios de emasculação e o apaixonamento pelo médico que, por um processo de inversão - já que o ego não suportaria esse apaixonamento - torna-se o perseguidor. Tal regressão narcísica provoca o engrandecimento do ego, já que toda a libido fica nele depositada, e com isso, a megalomania, vivenciada pela via da relação com Deus e da incumbência de salvar o mundo.

Um ano depois de dedicar-se ao caso Schreber, Freud publicou outro trabalho sobre a relação da paranóia com o narcisismo e a homossexualidade. Um caso de paranóia que contraria a teoria psicanalítica da doença(16). Nesse artigo, ele relata duas entrevistas que fizera com uma moça encaminhada ao seu consultório por um advogado. Ela havia procurado ajuda jurídica porque se sentia perseguida por um rapaz com quem tivera um rápido envolvimento amoroso, mas seu advogado, suspeitando de um quadro doente, a encaminhou para uma consulta psicanalítica. Como ela se via perseguida por um homem, Freud suspeitou, inicialmente, que poderia se tratar de um caso que contrariaria a teoria da homossexualidade na raiz da paranóia. Porém, após investigação mais apurada, percebeu que a moça tinha uma relação homossexual (no plano da fantasia inconsciente) com a mãe, por quem renegava toda a sua vida social a pretexto dos cuidados que deveria prestar-lhe, sendo que reatualizava essa relação no contato profissional com a chefa. Ao permitir-se o envolvimento sexual com um colega de trabalho (envolvimento esse que veio a ser o primeiro de sua vida), experimentou intensificação da libido, cujo escoadouro se deu através do ponto fraco do desenvolvimento psicossexual: o narcisismo e a conseqüente homossexualidade. A moça conseguira se relacionar com um homem através de um processo regressivo, em que, narcisicamente, ela não tomara a mãe como objeto amoroso, mas identificara-se com essa, tansformando-se nela (no plano da fantasia inconsciente) e amando o próprio pai, representado, inconscientemente, pelo colega de trabalho. A manifestação incestuosa produziu sentimentos de culpa e perseguição. Como seria inaceitável para o ego que a mãe ou a chefa da moça a perseguissem, ela projetou a figura do perseguidor no rapaz. Note-se que, mais uma vez, a homossexualidade é entendida como tendência a se relacionar apenas com o que é igual, pois, não tolerando algo que ferisse o seu narcisismo, a moça identifica-se com a mãe, alguém que se iguala, na esfera psíquica, a ela mesma.

Esses casos contribuem para explicitar que as atitudes do psicótico, observadas pelos profissionais de saúde, estão enraizadas em processos emocionais complexos e pouco evidentes nas observações de comportamentos. A psicanálise freudiana ajuda a compreender os mecanismos inconscientes que se deve levar em conta no manejo dos pacientes e, principalmente, nas práticas que envolvem cuidado corporal, já que as questões da sexualidade costumam ser profundamente mobilizadas quando o profissional tem algum contato com o corpo daquele a quem oferece atenção. De todos os membros da equipe, possivelmente, os profissionais de enfermagem são aqueles mais requisitados a entrarem em contato com tais práticas e questões, ainda que, muitas vezes, não recebam preparo teórico para compreendê-las na dimensão aqui explorada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

De posse desse percurso de leitura pela teoria freudiana, pode-se propor algumas reflexões acerca das possibilidades de tratamento dos psicóticos. A primeira delas diz respeito aos delírios: como visto, eles são uma tentativa de atribuição de representação de palavra a vivências regressivas marcadas pela alucinação, configurando-se, portanto, como tentativa de relação com o mundo. Os discursos delirantes indicam a presença da pulsão de vida em busca de possível ligação entre as vivências sensoriais e os códigos socialmente compartilháveis. Assim, impera que se enfatize que os delírios devem ser valorizados e atenta e respeitosamente escutados.

Já quanto à polêmica questão que envolve a viabilidade em se pensar em relações transferenciais na psicose, a leitura, aqui, dos textos freudianos propõe a seguinte reflexão: é impossível deixar-se de admitir que pessoas com fixações narcísicas possuem dificuldades de se relacionar com o outro. No entanto, também é certo que essas pessoas tiveram um tipo de relação no início de suas vidas que, de forma ambivalente, devoraram e incorporaram o objeto, para depois com ele se identificarem. Diante dessas idéias, pode-se propor que um psicótico, do ponto de vista freudiano, pode sim desenvolver uma relação transferencial com um terapeuta, mas se tratará de relação em que o terapeuta será por ele devorado e incorporado, pois ele utilizará os mecanismos de relação próprios do narcisismo, fase em que sua libido se encontra fixada.

O trabalho com esse processo de identificação e o percurso, rumo à construção de possibilidade de contato com frustrações e depois com figuras portadoras de uma alteridade mais preservada, será a tarefa da parceria estabelecida entre o profissional e seu paciente. Deve-se admitir, no entanto, que não se trata de tarefa simples, pois, inicialmente o profissional precisará suportar uma relação em que sua própria subjetividade está completamente aniquilada pelo paciente. Porém, se essa relação puder se constituir, no decurso do tratamento, o indivíduo narcisista precisará cada vez menos de regressões às suas primeiras experiências de satisfação e poderá, aos poucos, suportar as limitações e diferenças do profissional que o acompanha, diminuindo suas identificações e fazendo investimentos menos destrutivos na realidade externa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 11.9.2006

Aprovado em: 11.6.2007

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    17 Dez 2007
  • Data do Fascículo
    Out 2007

Histórico

  • Aceito
    11 Jun 2007
  • Recebido
    11 Set 2006
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