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Os sentidos de ser homem com estoma intestinal por câncer colorretal: uma abordagem na antropologia das masculinidades

Resumos

O estudo teve como objetivo analisar os sentidos que homens com estoma intestinal atribuem à experiência da doença e do tratamento do câncer colorretal. Foram utilizados os referencias teóricos da antropologia médica, das masculinidades e do método etnográfico. Participaram do estudo 16 homens na faixa etária de 40 a 79 anos, moradores de Ribeirão Preto, SP, e região. A coleta dos dados foi realizada por meio de observações participantes e entrevistas semiestruturadas. Pela análise indutiva dos dados, selecionou-se dois núcleos de sentidos: o reconhecimento da gravidade da doença e o sofrimento de ter câncer, submeter-se à cirurgia e ao estoma. Esses sentidos revelam a tensão que se desenvolve entre os padrões tradicionais de masculinidade e as novas formas de identidades provocadas pela experiência. Conhecer esses sentidos, sob a perspectiva cultural, facilita a comunicação enfermeiro-paciente e permite o planejamento de cuidados adequados às suas necessidades.

neoplasias colorretais; enfermagem; cultura; identidade de gênero


This study analyzes the meanings that men with intestinal stoma attribute to their colorectal cancer experience and its treatment. The medical anthropology framework, gender identity and the ethnographic methods were used. A total of 16 men from 40 to 79 years of age, residents in Ribeirão Preto and neighboring cities, SP, Brazil participated in the study. Data collection was carried out through participant observation and semi-structured interviews. Two groups of meanings were selected through inductive data analysis: acknowledging the severity of the disease and the distress of having cancer, and being submitted to surgery and suffering from a stoma. These meanings revealed the tension that develops between traditional patterns of masculinity and the new identities resulting from the experience. The understanding of these meanings from a cultural perspective favors nurse-patient communication and enables planning of care appropriate to these patients' needs.

colorectal neoplasms; nursing; culture; gender identity


El estudio tuvo como objetivo analizar el significado que los hombres, con estoma intestinal, atribuyen a la experiencia de la enfermedad y al tratamiento de cáncer de colorectal. Fueron utilizadas las referencias teóricas de la antropología médica, de la masculinidad y del método etnográfico. Participaron del estudio 16 hombres en el intervalo de edad de 40 a 79 años, residentes en Ribeirao Preto, SP, y región. La recolección de los datos fue realizada por medio de observaciones participantes y entrevistas semiestructuradas. Por medio del análisis inductivo de los datos, se seleccionó de los núcleos de significados: el reconocimiento de la gravedad de la enfermedad y el sufrimiento de tener cáncer, someterse a la cirugía y al estoma. Esos significados revelan la tensión que se desarrolla entre los estándares tradicionales de masculinidad y las nuevas formas de identidad provocadas por la experiencia. Conocer esos significados, bajo la perspectiva cultural, facilita la comunicación entre enfermero y paciente y permite planificar los cuidados adecuados a sus necesidades.

neoplasias colorrectales; el enfermería; la cultura; identidad de género


ARTIGO ORIGINAL

Os sentidos de ser homem com estoma intestinal por câncer colorretal: uma abordagem na antropologia das masculinidades

Eliza Maria Rezende DázioI; Helena Megumi SonobeII; Márcia Maria Fontão ZagoIII

IEnfermeira, Doutoranda, e-mail: elizadazio@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Doutor, e-mail: megumi@eerp.usp.br

IIIEnfermeira, Doutor em Enfermagem, Professor Associado, e-mail: mmfzago@eerp.usp.br. Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o Desenvolvimento da Pesquisa em Enfermagem, Brasil

RESUMO

O estudo teve como objetivo analisar os sentidos que homens com estoma intestinal atribuem à experiência da doença e do tratamento do câncer colorretal. Foram utilizados os referencias teóricos da antropologia médica, das masculinidades e do método etnográfico. Participaram do estudo 16 homens na faixa etária de 40 a 79 anos, moradores de Ribeirão Preto, SP, e região. A coleta dos dados foi realizada por meio de observações participantes e entrevistas semiestruturadas. Pela análise indutiva dos dados, selecionou-se dois núcleos de sentidos: o reconhecimento da gravidade da doença e o sofrimento de ter câncer, submeter-se à cirurgia e ao estoma. Esses sentidos revelam a tensão que se desenvolve entre os padrões tradicionais de masculinidade e as novas formas de identidades provocadas pela experiência. Conhecer esses sentidos, sob a perspectiva cultural, facilita a comunicação enfermeiro-paciente e permite o planejamento de cuidados adequados às suas necessidades.

Descritores: neoplasias colorretais; enfermagem; cultura; identidade de gênero

INTRODUÇÃO

Nas últimas décadas, a literatura alerta para a importância da saúde do homem, considerando que eles padecem mais de doenças de saúde do que as mulheres e que há relação entre a construção da masculinidade e o comprometimento da sua saúde. Dado a importância que o trabalho ocupa na identidade do homem, como ser provedor, vários problemas podem decorrer em relação à promoção da saúde e à intervenção na doença(1).

Nesse panorama, o Ministério da Saúde do país estabeleceu, em agosto de 2008, a "Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem: Princípios e Diretrizes", afirmando que os agravos à saúde do sexo masculino são problemas de saúde pública, e sua proposição visa qualificar a integralidade da atenção à saúde da população masculina brasileira. O documento destaca que entre os indicadores de mortalidade para a população masculina nacional, na faixa etária de 25 a 59 anos, em 2005, os tumores ocuparam o terceiro lugar, responsáveis por 43,2% dos óbitos(2). Segundo o Instituto Nacional de Câncer (INCA), para 2008, eram esperados 231.860 casos novos de câncer para o sexo masculino e 234.870 para o sexo feminino(3).

Como enfermeiras, docentes e pesquisadoras na área da oncologia, a atenção da autoria deste trabalho volta-se à saúde do homem com câncer colorretal (CCR). Essa neoplasia ocupa a quarta posição entre aquelas que atingem os homens, e a mortalidade tem aumentado. As estimativas de incidência publicadas em 2008 apontaram 12.490 casos novos de câncer colorretal (CCR) em homens e 14.500 em mulheres. Essas estimativas correspondem ao risco estimado de 13 casos novos a cada 100 mil homens e 15 a cada 100 mil mulheres(3).

Apesar dos avanços da coloproctologia na prevenção e diagnóstico precoce do CCR, ainda há dificuldades devido ao desconhecimento da população sobre os riscos, ao retardo ou à falta de acesso ao sistema de saúde e aos recursos diagnósticos insuficientes, no nosso país. Em geral, o diagnóstico da doença é realizado em estádios avançados, demandando internações prolongadas e a confecção de estomas intestinais(4).

Enfermeiros brasileiros já demonstraram, por estudos interpretativos, que os distúrbios físicos e psicossociais acarretados pelo CCR, cirurgia e estoma comprometem a qualidade de vida da pessoa e de sua família(5-6).

Frente a esse panorama, chama a atenção o processo de reabilitação dos pacientes, com um olhar sob a perspectiva da masculinidade, aspecto ainda não estudado na enfermagem brasileira.

Buscando sanar essa lacuna, o objetivo deste estudo foi analisar os sentidos dados à experiência da doença e ao tratamento do CCR entre homens com estoma intestinal.

ABORDAGEM TEÓRICO-METODOLÓGICA

Neste estudo, os pensamentos teórico-metodológicos empregados foram os da antropologia médica, antropologia das masculinidades e do método etnográfico.

A antropologia médica considera que a cultura é um sistema simbólico de criação de sentidos que expressam conhecimentos, crenças, normas e valores. Nessa ótica, a doença precisa ser interpretada não como um processo biológico, estático e individual, mas como um processo que demanda interpretação e ação do meio sociocultural. Assim, se faz necessário entender a doença como uma experiência, como um processo subjetivo. Na experiência da doença, como o CCR, o sujeito lhe atribui sentidos de acordo com o senso comum e adquire novos conhecimentos no decorrer da experiência do tratamento(7).

Complementando, a divisão do mundo social em masculino e feminino, em todas as sociedades, expressa uma socialização distinta. É desse modo que a cultura colabora para diretrizes implícitas e explícitas construídas na vida em grupo, que homens e mulheres estão submetidos a diferentes normas de emoção, cognição e de práticas. Entretanto, os papéis de gênero não são fixos, podem mudar sob a influência de diversos processos sociais, como na experiência da doença(7).

Durante décadas, os estudos realizados abordaram apenas a masculinidade hegemônica que é um modelo cultural ideal e que exerce controle sobre os homens, pela incorporação da normatização das práticas sociais, contrastado com a abordagem do gênero feminino. Frente às críticas a esse modelo, considera(8) que há outros padrões de masculinidade. A identificação desses padrões possibilita compreender as variações das subjetividades presentes no processo de adoecer, pois estudar o homem implica buscar a sua singularidade, no contexto do seu grupo de referência.

Para que o processo da experiência da doença possa ser apreendida com as nuances individuais, é preciso descrever a etiologia do problema, a sua fisiopatologia, o curso da doença, o prognóstico e o tratamento realizado, por meio de método que possibilite o contato próximo com o doente(9).

Em correspondência aos pressupostos descritos, selecionou-se o método etnográfico para desenvolver o estudo. Esse método tem a finalidade de produzir uma "descrição densa" dos sentidos atribuídos a um fenômeno, pelos informantes, expressos pela linguagem. A partir desses sentidos, cabe ao pesquisador sintetizar os aspectos relevantes(10).

Os critérios para a seleção dos informantes foram: ser morador de Ribeirão Preto ou das cidades próximas; maior de 18 anos, com qualquer nível de escolaridade; ter estoma há pelo menos um mês, temporário ou definitivo; estar em condições físicas e emocionais para participar do estudo e concordar em participar, assinando o termo de consentimento livre e esclarecido.

O estudo teve a participação de 16 homens portadores de estoma intestinal por CCR, cadastrados no Ambulatório de Proctologia do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina de Ribeirão Preto da Universidade de São Paulo. A coleta de dados ocorreu no período de junho a dezembro de 2007, após a sua aprovação pelo Comitê de Ética em Pesquisa do Hospital.

Para a coleta de dados, foram utilizadas a entrevista semiestruturada e a observação participante, procedimentos que possibilitam a obtenção da intersubjetividade entre pesquisadores e pesquisados(10), orientadas pelas questões: fale-me como a sua doença começou e o que pensa sobre ela; como foi a sua busca pelo tratamento; como foi ter que fazer a cirurgia; como é ser homem com estoma.

A coleta ocorreu no contexto hospitalar (no ambulatório e na sala de consulta médica) e no domicílio dos informantes. As entrevistas e observações realizadas no domicílio foram agendadas. Em média, foram realizadas duas entrevistas com duração média de 60 minutos com cada informante, para que se pudesse complementar os dados. A observação participante teve como objetivo identificar os comportamentos não-verbais, os relacionamentos e as práticas dos informantes, nos seus domicílios e nos retornos médicos, quando os homens se relacionam com outros pacientes e com a equipe. As informações sobre a doença, os tratamentos realizados e a evolução dos pacientes foram obtidas pelo prontuário médico. Os dados foram registrados em um diário de campo; após, todas as informações obtidas foram transcritas como textos.

A análise indutiva dos dados foi realizada pelas seguintes etapas: ordenação de textos de dados de cada informante, identificação de sentidos dados à experiência em cada texto e no seu conjunto, possibilitando a identificação de categorias empíricas, considerando-se seus aspectos comuns e distintos. Com base nessas categorias, constituiu-se a interpretação dos sentidos dados à experiência, considerando o contexto sociocultural dos informantes(10).

Dentre os 16 sujeitos do estudo, três estavam na faixa etária de 40 a 50 anos e 13 na de 51 a 79 anos; 12 possuíam estomas definitivos e quatro provisórios; o tempo de existência do estoma intestinal variou de um mês e sete anos. Treze pacientes foram acometidos pela neoplasia de reto, dois foram acometidos pela neoplasia do sigmóide e um pela neoplasia sincrônica de cólon sigmóide e reto. Essas características confirmam que o câncer de reto é mais frequente que o de cólon e mais incidente em homens, na maioria das populações(3).

Em relação às características sociais destaca-se: dez são casados, seis residem em Ribeirão Preto e dez na região; onze se declaram católicos não praticantes; suas profissões são variadas, como de motorista, lavrador, mecânico, entre outras. Seis estão aposentados, sete em licença saúde, dois desempregados e um deles continua a trabalhar. A renda financeira varia entre um a cinco salários mínimos, vigente à época; dois informantes estão sem renda e quatro recebem apenas um salário. Nove possuem ensino fundamental incompleto, o que é condizente com ocupações (antes do adoecimento) e salários (ou aposentadorias) reduzidos. Por essas características, considera-se que a maioria dos informantes pertence à classe popular, caracterizada por trabalhadores de centros urbanos, que vivem em condições financeiras precárias, decorrentes da reduzida qualificação ocupacional e da baixa escolaridade e, consequentemente, com acesso limitado aos serviços públicos, como educação e saúde(11).

RESULTADOS E DISCUSSÃO

O reconhecimento da gravidade da doença

Entre os sinais e sintomas indicativos de problemas no aparelho intestinal, os informantes descrevem diarreia, sangramento, afilamento das fezes e hemorroida, que perduraram por meses. Foram considerados como problemas de pouco agravamento, e tentaram resolvê-los por meio de seus conhecimentos leigos, como remédio caseiro, muito chá de broto, de goiaba e de salsa. À medida que esses sinais se intensificaram, impedindo o exercício da vida cotidiana, eles reavaliaram a sua importância e buscaram soluções no sistema médico de saúde, como exemplificam os relatos, a seguir. Eu ia ao banheiro, demorava pra sair (as fezes), saía com aquela pelotinha de sangue. Isso foi aumentando. Depois de um ano fui ao médico. Fiquei enrolando com medo do diagnóstico. Eu sentia dor e obrava fino que nem de gato, saía sangue. Pensei que não era nada.

Um estudo interpretativo(6) descreve essas mesmas crenças e práticas, não havendo diferenças entre homens e mulheres. Reconhece-se que os homens demoram para procurar pelos serviços de atenção primária, pois os estereótipos da masculinidade hegemônica negligenciam o cuidado com a saúde(1-2), como apresentado anteriormente.

A trajetória para a obtenção do diagnóstico médico foi um desafio para os homens; eles tiveram que passar por encaminhamentos entre médicos e instituições de saúde diferentes, com agendamentos longos, repetição de exames, necessidade de deixar o trabalho, falta de recursos financeiros para os deslocamentos, entre outras dificuldades. Certamente essas dificuldades são barreiras institucionais para o acesso dos homens aos serviços de saúde(12).

Entre todos os informantes, os exames de colonoscopia e do toque retal deixaram marcas corporais e emocionais. O exame do dedo foi o primeiro. Depois veio o outro (colonoscopia). Este foi puxado, num lugar ruim, posição estranha... eu suava e tremia; [...] foi constrangedor. É uma coisa esquisita. O homem foi criado para não tocar lá (ânus); [...] senti muita dor. Fere a gente!

O toque retal é realizado para detectar massas endurecidas, alterações no reto e sangramento. Pela colonoscopia o médico pode visualizar a parede intestinal e observar alguma anormalidade; também possibilita a biópsia. Para o sistema profissional, esses exames são efetivos e de baixo custo(4). Para os informantes, esses procedimentos representaram invasão da privacidade, ferindo a dignidade de ser homem, pelo desconforto físico e psicológico de estar sendo tocado numa região que não é de acesso a outros(13).

Ao longo da realização dos exames, os informantes relataram que começaram a pensar na possibilidade de ter uma doença grave. Só falta ele (médico) falar que estou com câncer.

A revelação do diagnóstico foi situação marcante para os informantes, provocando reações emocionais de sofrimento, angústia e percepção de fragilidade. Ele (médico) só falou que eu tinha que fazer uma cirurgia urgente. Eu esperava que a bolsa fosse só por dois ou três meses. Agora ele falou que é pro resto da vida. Foi difícil! Eu sou forte, não tombo fácil com doença. Mas foi um abalo... um susto grande!

Com o diagnóstico, a doença passa a ter um nome - câncer - e o paciente sofre uma ruptura na sua biografia de vida, sua identidade é alterada, é um portador de câncer. No imaginário das pessoas, independentemente do gênero e da classe social, as representações do câncer são de doença fatal, que causa sofrimento e limitações(5-6). Desse modo, os homens se sentem vulneráveis, frágeis, reconhecem que não corresponderão ao padrão de masculinidade socialmente estabelecido, sentem-se marginalizados e subordinados aos conhecimentos e práticas do modelo médico(8,13).

O sofrimento de ter câncer, se submeter à cirurgia e à estomia

A revelação do diagnóstico dá início a um processo de questionamentos, entre eles o porquê da doença nessa etapa da vida. Entre as diferentes estratégias empregadas, os homens relembram situações familiares de câncer. Uma mulher mais nova do que eu pegou no intestino e não teve jeito, já foi embora; perdi um primo que operou e voltou (a doença). A concepção de fatalidade foi comum. [...] o tempo todo ouvindo e vendo: olha o câncer não tem cura; é uma doença difícil; eu achei que não tinha cura. No convívio com o contexto de saúde, eles foram descobrindo as causas médicas da doença e as relacionaram com a vida pregressa, aos hábitos alimentares e ao consumo de bebidas alcoólicas. Comia muita carne vermelha, linguiça. Nunca gostei de verduras e frutas, demonstrando desconhecimento dos seus riscos para a doença.

Para alguns, as crenças religiosas foram relatadas como causas para a doença, numa perspectiva na dimensão da vida profana. Eu nunca tive nada. Ele (Deus) falou: deixa-me eu dar um castiguinho pra você. Tem que sofrer um pouco.

A vida difícil de trabalhador e a exposição a fenômenos da natureza também deram sentido à origem da doença. Eu fui uma pessoa sofrida desde a infância. Eu penso que foi a vida sofrida de cortar cana, andar de pau de arara, catar algodão, pegar friagem, poeira.

Apreendeu-se que há generalização, nos diferentes grupos sociais ocidentais, ao se empregar associações entre os diversos elementos da vida humana(5-6,11). Entre os informantes há um destaque para as condições precárias de trabalho, condizentes com a condição da classe popular.

Com o reconhecimento da gravidade do CCR, os homens subordinaram-se às terapêuticas médicas da cirurgia e confecção da colostomia, pois, é a vida que está em jogo. Porém, necessitar da colostomia, temporária ou definitiva, foi um momento de indecisão e sofrimento. Alguns a aceitaram com resignação. [...] tem que encarar, fazer o quê!; Fiquei totalmente pra baixo. Foi brabo o negócio! Outros inicialmente recusaram, mas acabaram concordando. Fiquei triste, depois me conformei. Aconteceu, então, tem que encarar e ir pra frente.

No processo de dar sentido à ameaça a vida e que precisa ter o corpo alterado, os conhecimentos, valores e crenças foram reconsiderados. Compreende-se que esse período foi marcado pelo sentido de rompimento com a invencibilidade masculina, provocando a ruptura com os dogmas entre masculinidade e poder, marcados pelas imagens de ser forte e ter corpo resistente. Assim, o poder masculino também repercute na sua experiência com o CCR, levando a um processo de resignação com a situação, lógica cultural característica de membros da classe popular brasileira(5,11).

A prontidão para se submeter ao tratamento está relacionada aos valores da vida e como a vida se apresenta. Na condição de ter CCR, a prontidão é uma perspectiva de esperança nos resultados terapêuticos, não significando a obtenção da cura, mas a interrupção dos sintomas e da possibilidade de retomada do controle do corpo e da vida(14).

As reações iniciais à visualização do estoma e a constatação da perda do controle esfincteriano foram dramáticas. Quando acordei vi aquela bolsinha de lado... Caramba! Foi meio um choque, horrível! Foi horripilante olhar aquele pedaço de intestino. Um pedaço de mim que está pra fora...

As lembranças da visualização da transformação do corpo pela colostomia foram expressas por emoções de choro e tristeza, demonstrando que o homem também chora, mas esse comportamento é privado, não público. A expressão dessas emoções insere-se numa masculinidade de cumplicidade com o pesquisador que, por sua vez, tem que respeitá-la.

O corpo é a base existencial do ser humano e da cultura. No senso comum, os valores sociais atribuídos ao corpo são frutos de discursos e interesses que geram atributos pessoais e coletivos do que é ser homem(15). Considera-se que o simbolismo dado à colostomia modela o corpo transformado, gerando conflitos devido à perda do controle da vida anterior, repercutindo nos significados hegemônicos de masculinidade.

Com o passar do tempo, a visualização do estoma já não é tão assustadora, mas os informantes reconhecessem que o seu cuidado diário requer mudanças em vários aspectos da vida e leva a constrangimentos. [...]quando levantei a bolsa soltou. Tive que correr para o banheiro lavar. Outro dia fui num aniversário de criança e daí a pouco começaram os gases. Todo mundo ficou me olhando; Mudou o hábito de alimentar, as frequências de ir ao banheiro, da higiene. Pra sair de casa é meio desconfortável, solta gases, sai ruídos.

Todos os informantes aprenderam o autocuidado com a colostomia. Se no princípio havia a dependência de cuidador, com o tempo todos adquiriram confiança e essa é uma etapa vencida. Eu mesmo recorto, lavo e recoloco.

Aprender a conviver com as mudanças do sistema intestinal e com a colostomia foram processos que demandaram recursos internos e externos dos homens, que os aproximaram das características relacionadas ao gênero feminino: sensibilidade, cuidado, dependência e fragilidade(12).

Após a superação dessa etapa, a busca pelo retorno do controle da vida é dificultada, pois há apreensão com a atividade sexual. A gente é menos homem. Fica mais fraco... Fica sem desejo. Eu tenho desejo, mas sem ereção.

Estudiosos da sexualidade demonstraram que a idade avançada e a enfermidade não implicam automaticamente no fim da vida sexual. Para esses homens, a sexualidade está ligada à genitalidade, ou seja, à atividade real e física do ato sexual, valor característico da masculinidade hegemônica da classe popular, independente da faixa etária(8).

Outra dificuldade relatada foi a impossibilidade de retomar o trabalho, principalmente entre os sete homens com licença saúde e aos dois desempregados. Eu me sinto amarrado... depender dos outros. A vida de antes acabou. Como homem, eu me percebo um fracasso. É uma decepção. A minha preocupação é sustentar minha família. Ainda não consegui acertar o auxílio doença.

No contexto da classe popular, o trabalho é um marco de referência para a construção da identidade masculina. É reconhecido como valor moral, que sustenta a honra do provedor da família e fornece realização pessoal(5,11). Não poder trabalhar devido à doença leva a privações e dependência financeiras, considerando-se um fardo para a família, percebendo-se como um homem marginalizado.

As crenças mágico-religiosas, a família e os amigos formam a rede de apoio para amparar o descontrole da vida, possibilitando que haja cumplicidade entre todos, para lidar com os problemas e suas soluções, fazendo com que as percepções de marginalidade fiquem resguardadas ao contexto privado.

No contexto da experiência da doença grave, a temporalidade da vida é um aspecto importante e possibilita o recomeço do seu controle. Hoje eu já estou acostumado. É tudo normal, estou recuperando devagarzinho.

Compreende-se que se acostumar com a colostomia e sentir-se normal são imagens que a pessoa constrói sobre o corpo alterado, possibilitando o cruzamento do passado com o presente(15). Pela imagem corporal transformada, o indivíduo se projeta no meio social, na expressão das emoções e dos seus papéis sociais. Assim, retomar a normalidade é um objetivo desejado para se obter senso de controle sobre as normas sociais.

O que chamou a atenção nas narrativas dos informantes, na retomada da normalidade, foi a concepção simbólica de honra que rege as expectativas e atuações dos homens no lar e na vida social, norma da masculinidade hegemônica. Ser homem é ser uma pessoa cumpridora das suas obrigações, na qualidade de pai e de marido. De ser um marco dentro da casa e no trabalho.

Compreende-se que, para o homem da classe popular, sobrevivente do CCR com colostomia, colocaram a sua vida em jogo, impondo novos padrões de masculinidade como o de subordinação, cumplicidade e marginalização(8), com o passar do tempo, assume a expectativa de retomar o ideal da sua posição dominante, hegemônica, para ter o sentimento de reintegração no mundo social.

Com a análise desses sentidos, considera-se que a enfermagem tem papel crucial no reconhecimento das subjetividades masculinas dos homens acometidos pelo CCR, com colostomia temporária ou definitiva, construídas no convívio sociocultural. É preciso se estar atento à reação dos clientes, quando veem de forma diferente um mesmo evento de doença e tratamento, buscando preservar suas identidades. Assim, as necessidades específicas de apoio ao cuidado dos homens impõem uma base reflexiva para os profissionais programarem suas ações de intervenção, no processo de reabilitação ao portador de câncer, em todos os níveis de atenção à saúde e, dessa forma, poder-se-á incorporar as diretrizes da Política Nacional de Atenção Integral à Saúde do Homem (MS) no cuidado de homens portadores de CCR.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Com o objetivo de analisar os sentidos dados à experiência do CCR e da estomia, entre homens da classe popular, por meio da abordagem teórica da antropologia médica, das masculinidades e do método etnográfico, apreendeu-se que nesse processo os padrões de masculinidade se alteram, associando normas de subordinação, cumplicidade e marginalização. Entretanto, com a temporalidade da experiência, com a sobrevivência aos problemas, as normas da masculinidade hegemônica voltam a predominar, para que o homem possa voltar a se sentir coeso ao seu grupo social.

Os sentidos analisados contribuem para a reflexão dos profissionais de saúde, principalmente o enfermeiro, para as suas ações de apoio e cuidado a esse grupo de clientes, que têm necessidades específicas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    30 Nov 2009
  • Data do Fascículo
    Out 2009

Histórico

  • Aceito
    07 Ago 2009
  • Recebido
    04 Jun 2008
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