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Crenças das mães soropositivas ao HIV acerca da transmissão vertical da doença

Resumos

As crenças parecem influenciar diretamente nas atitudes dos seres humanos. Neste estudo qualitativo buscamos identificar as crenças que influenciam a adesão das mães portadoras do HIV às medidas profiláticas da transmissão vertical. Foram entrevistadas 14 mães soropositivas. A análise foi feita utilizando-se como referencial teórico o Modelo de Crenças em Saúde, composto das dimensões: susceptibilidade e severidade percebida, benefícios e barreiras percebidos. Dos dados emanaram reflexões que evidenciam as contradições da epidemia: o conhecimento não determina mudança de comportamento; relações de gênero; aids como doença do outro; medo da morte; evitar pensar na doença; medo do estigma; dificuldades financeiras; descrença na sua existência. Concluímos que a identificação das crenças e a compreensão de como estas influenciam o comportamento humano frente a um problema de saúde pode determinar a ação dos serviços e a forma como esta ação deve se processar.

HIV; síndrome de imunodeficiência adquirida; transmissão vertical de doença


Beliefs can influence health behavior. This qualitative study aimed to understand the beliefs that influence HIV positive mothers' behaviors towards prevention methods against mother-to-child transmission. Fourteen women were interviewed. Our research was based on the theoretical Health Belief Model, formed by the following dimensions: perceived susceptibility, perceived severity, perceived benefits and perceived obstacles. Data analysis showed reflections that evidence the paradox in the AIDS epidemic: knowledge does not change behavior; gender relations; fear of death; fear of stigma; financial problems; disbelief in the virus' existence. Identifying beliefs and understanding how to influence the conduction of the health problem can help services to promote patients' adherence.

HIV; acquired immunodeficiency syndrome; disease transmission


Las creencias son capaces de influenciar el comportamiento del hombre. El objetivo de este estudio cualitativo fue comprender las creencias que influencian el comportamiento de las madres HIV respecto a las medidas profilácticas de la transmisión vertical. Fueron entrevistadas 14 mujeres portadoras de HIV. Los datos fueron analizados utilizando como referencial teórico el Modelo de Creencias de la Salud, que es compuesto por las dimensiones de susceptibilidad percibida, severidad percibida, beneficios percibidos y barreras percibidas. Fueron observadas las contradicciones de la epidemia de SIDA: el conocimiento no muda comportamiento; miedo de la muerte; subestimación del HIV; dificultades financieras; no creer en la existencia del virus. Identificar y comprender las creencias puede ayudar los servicios de salud a promover la adhesión de la clientela.

VIH; síndrome de inmunodeficiencia adquirida; transmisión vertical de enfermedad


ARTIGO ORIGINAL

Crenças das mães soropositivas ao HIV acerca da transmissão vertical da doença1 1 Trabalho Extraído da Dissertação de Mestrado

Lis Aparecida de Souza NevesI; Elucir GirII

IEnfermeira, e-mail: lisapneves@yahoo.com.br

IIEnfermeira, Professor Titular da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo, Centro Colaborador da OMS para o desenvolvimento da pesquisa em enfermagem, e-mail: egir@eerp.usp.br

RESUMO

As crenças parecem influenciar diretamente nas atitudes dos seres humanos. Neste estudo qualitativo buscamos identificar as crenças que influenciam a adesão das mães portadoras do HIV às medidas profiláticas da transmissão vertical. Foram entrevistadas 14 mães soropositivas. A análise foi feita utilizando-se como referencial teórico o Modelo de Crenças em Saúde, composto das dimensões: susceptibilidade e severidade percebida, benefícios e barreiras percebidos. Dos dados emanaram reflexões que evidenciam as contradições da epidemia: o conhecimento não determina mudança de comportamento; relações de gênero; aids como doença do outro; medo da morte; evitar pensar na doença; medo do estigma; dificuldades financeiras; descrença na sua existência. Concluímos que a identificação das crenças e a compreensão de como estas influenciam o comportamento humano frente a um problema de saúde pode determinar a ação dos serviços e a forma como esta ação deve se processar.

Descritores: HIV; síndrome de imunodeficiência adquirida; transmissão vertical de doença

INTRODUÇÃO

O crescimento da infecção pelo HIV entre as mulheres tem ocorrido no mundo todo e traz como conseqüência a preocupação com a transmissão materno-infantil.

Estima-se que 15 a 30% das crianças nascidas de mães soropositivas para o HIV adquirem o vírus na gestação, durante o trabalho de parto ou parto, ou por meio da amamentação. Baseado no protocolo ACTG 076, o Ministério da Saúde implementou as medidas de prevenção e, apesar das dificuldades, nos últimos anos, a incidência de casos de aids em crianças vem decrescendo progressivamente em nosso país. Entre as medidas implementadas estão o oferecimento do teste anti-HIV a todas as gestantes; atendimento especializado com oferecimento da terapia anti-retroviral (ARV) às que forem diagnosticadas com a infecção do HIV; administração do ARV injetável à parturiente durante o trabalho de parto; administração de AZT oral ao recém nascido até a sexta semana de vida; supressão do aleitamento materno; seguimento especializado da criança até a definição do diagnóstico(1).

A combinação das intervenções recomendadas para a profilaxia da transmissão vertical do HIV reduziu as taxas de transmissão para cifras inferiores a 1%(1).

Para ocorrer e manter a diminuição do risco de infecção na criança, além de profissionais capacitados para acompanhamento da mãe e da criança, é necessário que haja a participação efetiva das mães em realizar todas as intervenções recomendadas. Entretanto, a mãe só vai aderir ao tratamento preventivo se estiver sensibilizada com a idéia de que a criança pode ser infectada e que, para evitar essa infecção, é necessário seguir todas as recomendações. A adesão da mãe é fundamental para diminuir o risco da infecção na criança.

Adesão é um processo de aprendizado de como lidar com as dificuldades econômicas, sociais e individuais, uma vez que, atualmente, a população mais acometida pela infecção tem sido procedente de classes sociais menos favorecidas, com baixo nível de escolaridade, confirmando a tendência de pauperização da epidemia(2). A complexidade da aids envolve não somente o lado cognitivo do conhecimento e da informação, mas também as mudanças de comportamento.

Em nossa prática profissional, trabalhando com gestantes e puérperas soropositivas, observamos que, embora a maioria das mães faça adesão ao tratamento preventivo, algumas não fazem o pré-natal ou não seguem adequadamente as recomendações dos profissionais de saúde. Algumas reflexões surgiram dessas constatações: as mães consideram que a aids é uma doença grave? Elas acreditam que podem transmitir o vírus ao seu filho? Elas acreditam que o acompanhamento correto pode trazer benefícios para a criança?

Essas reflexões nos motivaram a desenvolver um estudo em que buscamos compreender as razões que levam as mães portadoras do HIV a aderirem às medidas preventivas da transmissão vertical. No entanto, isso significa compreender a influência dos fatores ambientais e psicossociais no comportamento dessas mães. Dentre os fatores ambientais e psicossociais, as crenças parecem influenciar diretamente nas atitudes dos seres humanos.

Dessa forma, neste artigo, nosso objetivo foi identificar as crenças que influenciam na adesão das mães portadoras do HIV às medidas profiláticas da transmissão vertical.

METODOLOGIA

Trata-se de um estudo descritivo com uma abordagem qualitativa, que enfatiza o mundo dos significados das ações e relações humanas, um aspecto não perceptível ou captável quantitativamente(3). O referencial teórico utilizado é o Modelo de Crenças em Saúde - MCS(4), visto que este procura explicar a adoção de comportamentos preventivos e estabelecer relações entre o comportamento individual e algumas crenças individuais.

As características preliminares do MCS consideram que para um indivíduo adotar medidas preventivas, ou seja, evitar doenças, ele necessariamente precisa acreditar em três aspectos: que ele é susceptível à doença; que a ocorrência da doença deverá acarretar pelo menos alterações moderadas em alguns componentes de sua vida; que a tomada de determinada ação deverá ser benéfica, reduzindo sua susceptibilidade à referida condição, diminuindo sua gravidade e desvinculando-a de barreiras mais importantes, tais como custo, conveniência, dor, embaraço(4). O MCS é composto basicamente de 4 dimensões: susceptibilidade percebida, severidade percebida, benefícios percebidos e barreiras percebidas.

A população-alvo do estudo constituiu-se de mulheres portadoras do HIV, cuja gravidez resultou em nascimento de criança viva no município de Ribeirão Preto, no ano de 2004. Para inclusão no estudo consideramos os seguintes critérios: o parto ter ocorrido em Ribeirão Preto e ainda residir no município no momento da coleta de dados; estar em boas condições físicas e emocionais; o filho ter no mínimo 6 meses de vida e estar sob os cuidados da mãe; concordância em participar da investigação. No ano de 2004, ocorreu o nascimento de 49 crianças filhas de mulheres portadoras do HIV, das quais 20 atendiam aos critérios de inclusão. Devido às dificuldades de localização de alguns endereços no momento da coleta, a amostra final foi constituída por 14 mulheres.

Para a coleta de dados, empregamos a técnica de entrevista semi-estruturada gravada na residência das mulheres e norteada pelo instrumento específico. O instrumento foi dividido em 2 partes, sendo que a primeira constou da caracterização das participantes, e a segunda foi composta de questões norteadoras com base no referencial teórico: quais as suas crenças e percepções a respeito do HIV/aids e da possibilidade de transmiti-lo para a criança? Que benefícios o bebê pode ter se você fizer o tratamento correto? Quais as dificuldades em realizá-lo adequadamente?

No momento da visita, era realizada a leitura do termo de consentimento livre e esclarecido, como também lhe era assegurado o sigilo e a confidenciabilidade dos dados. Para garantir o anonimato das participantes, os nomes foram substituídos por nomes de flores. A coleta aconteceu no período de novembro de 2004 a janeiro de 2005.

As entrevistas gravadas eram transcritas pela própria pesquisadora. Para análise dos dados, utilizamos o método da Análise de Conteúdo(5), composto das fases de pré-análise, exploração dos dados e interpretação dos resultados. Os conteúdos foram selecionados, codificados e inseridos nas dimensões do referencial teórico.

O projeto foi apreciado pelo Secretário Municipal da Saúde de Ribeirão Preto e aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem de Ribeirão Preto, da Universidade de São Paulo.

APRESENTANDO E DISCUTINDO OS RESULTADOS

Foram entrevistadas 14 mães, com idade entre 15 e 37 anos; 10 possuíam parceiros fixos. Apenas 2 participantes tinham mais de 10 anos de estudo e 5 com ocupação fora do lar; a renda familiar de 12 mulheres era até 3 salários mínimos. Quanto ao pré-natal, 2 participantes não o realizaram, mesmo já sabendo que eram portadoras do HIV; todas faziam o seguimento especializado da criança.

Das entrevistas semi-estruturadas emergiram unidades de significado, dando origem a categorias que foram inseridas nas dimensões do referencial teórico.

Percepção de susceptibilidade

A susceptibilidade refere-se à percepção subjetiva do indivíduo acerca dos riscos existentes. A aceitação da susceptibilidade é variável entre os indivíduos, que podem negar qualquer possibilidade de contrair uma doença, admitir que existe possibilidade, porém pouca probabilidade de ocorrência ou perceber um risco real de contraí-la(4). Nesse sentido, identificamos as categorias: conhecimento, relações de gênero, conceito de grupos de risco, susceptibilidade da criança.

Conhecimento

Quando questionamos as mulheres entrevistadas a respeito do seu conhecimento sobre HIV, praticamente todas referiram conhecer as formas de transmissão, mesmo antes de se infectarem.

Eu sei que transmite pelo sangue e outras coisas também, tipo relação sexual, seringa contaminada (Rosa).

Pega tendo relação com outra pessoa, ou droga injetável (Hortência).

Transmite de contato com o sangue e em relações sexuais como eu tive (Petúnia).

Eu sei que é transmitido por relação sexual, contatos de machucados, pelo sangue (Gerânio).

Um recente estudo nacional acerca do conhecimento da população adulta sobre a infecção pelo HIV aponta que 91% citam a relação sexual como uma forma de transmissão(6). Entretanto, o conhecimento em si não garante a apreensão e a sua incorporação no comportamento.

Relações de gênero

Na transmissão sexual do HIV, as relações de gênero tornam ambos mais frágeis e vulneráveis. Enquanto nossa cultura cobra do homem sua virilidade e potência, a mulher tem que ser submissa, criando um contexto social que dificulta a negociação do sexo seguro, tornando-as mais vulneráveis à infecção pelo HIV.

Eu usei camisinha só durante a gravidez, depois não usei mais não. Ele não gosta (Calêndula).

Eu sabia que devia usar (preservativo), mas me envolvi com uma pessoa lá de São José dos Campos e ele não gostava de usar, e aí aconteceu de eu ficar grávida (Camomila).

O ideal de amor romântico e a confiança no parceiro continuam sendo fatores determinantes na vulnerabilidade das mulheres à infecção pelo HIV, pois, que ao manterem uma relação estável com vínculo afetivo, não se percebem em risco, conforme observamos nas falas:

Transmite por relação sexual, e a gente tinha aquela idéia que como era uma pessoa só que eu tinha, estava tranqüila (Jasmim).

Não usava porque era casada, gosto muito dele, não podia imaginar isso. Eu culpei meu marido porque ele já sabia e não me contou com medo de me perder; eu até quis largar dele, mas depois a gente foi conversando e passou (Petúnia).

A convivência prolongada deixa a mulher com o sentimento de que está imune, e a confiança no companheiro, base das relações amorosas, não leva em consideração a vida pregressa dele. A fidelidade e a situação conjugal aparecem como imunização contra a infecção; a convivência com alguém que se ama e a confiança no parceiro são facilitadores da negação do risco. A confiança e a fidelidade são as principais razões para que o casal não use preservativo enquanto preventivo das infecções sexualmente transmissíveis e aids(7).

Conceito de grupos de risco

Apesar de estarmos a 25 anos da descoberta da epidemia, os conceitos de grupo de risco ainda permanecem no imaginário social, contribuindo para que a aids seja vista como a doença do outro, e dando a falsa sensação de distância do perigo.

Estudar, sempre estudamos, conhecer, sempre conhecemos, tudo. Sabia que era através de relação sexual, que não pode ter vários parceiros, uso de drogas, mas jamais esperava que ia acontecer. Quando eu fui fazer o pré-natal foi um susto porque eu jamais esperava, até pra ele também, porque ele teve uma outra namorada antes de mim que também era certinha (Jasmim).

A crença inicial de que a aids seria uma doença circunscrita a determinados "grupos de risco" continua sendo um dos empecilhos para a prevenção em mulheres que imaginam que "só os outros podem contrair o HIV". A falsa racionalização está intimamente relacionada ao fato de que as informações sobre aids foram, durante muito tempo na história da epidemia, transmitidas com a idéia da existência de grupos de risco, que se referiam a tipos muito estigmatizados - promíscuos, viciados, pervertidos(8). Ninguém quer se identificar com esses tipos sob risco.

É preciso, portanto, que as ações preventivas contemplem as diferenças de gênero e a desconstrução do conceito de grupos de risco para que as mulheres compreendam e percebam sua susceptibilidade ao HIV/aids.

Susceptibilidade da criança

A percepção de susceptibilidade em relação à criança foi observada nas mulheres que já sabiam que eram portadoras do HIV antes da gravidez:

Eu achava muito arriscado, graças a Deus o dele já negativou. Eu sabia que podia passar o vírus, mas aconteceu, eu não usava preservativo (Begônia).

Teve uma vez que ele tava doidinho pra arrumar filho, mas eu falava imagina, eu não tenho coragem, sabe de parar a pílula por minha conta; se um dia eu tiver que engravidar vai ser tomando remédio. E acabou acontecendo... (Calêndula).

Eu tinha tanto medo que fiquei indo os nove meses lá na igreja da catedral e pedindo ai meu Deus, não faz isso com meu filho não (Hortência).

Elas sabiam da susceptibilidade do bebê e verbalizaram o medo que sentiam em engravidar. As mulheres em gestação de risco sentem medo e se apegam ao poder dos médicos e/ou ao divino para manterem a esperança de verem o bebê saudável(9). Da mesma forma, a mulher soropositiva tem o receio de transmitir o vírus ao seu filho; ela sabe que essa possibilidade é concreta.

Percepção de severidade

A percepção da severidade está relacionada ao estímulo emocional criado pelo pensamento acerca de um problema de saúde e às conseqüências que o indivíduo acredita que este poderia provocar em sua vida. Sentimentos relativos à severidade de se contrair uma doença ou deixá-la sem tratamento levariam o indivíduo a avaliar as conseqüências clínicas e físicas resultantes, como dor, redução das funções físicas e mentais, temporária ou permanentemente, possíveis conseqüências sociais, como implicações no trabalho, vida familiar e/ou relações sociais, ou mesmo a morte(4). Nessa dimensão, emergiram 3 categorias: não pensar no HIV, medo da morte, crença religiosa.

Não pensar no HIV

Na história da aids existem dois períodos bem delimitados: antes da década de 90, quando prevalecia a imagem da aids ligada à desesperança e morte; e após, com o uso dos medicamentos antiretrovirais. O advento dessa terapia em 1996 trouxe a perspectiva de que a aids passaria a ser uma enfermidade crônica, compatível com uma sobrevivência, até então inusitada e, sobretudo, com grande preservação da qualidade de vida. Essa perspectiva se confirmou em estudos que mostram que a sobrevida do paciente com aids aumentou significativamente após esse período, concomitante com a queda nas taxas de internação e mortalidade por aids no Brasil(10).

Essa percepção é sentida pelas mulheres portadoras do HIV e que ainda não manifestaram sintomas, relegando a existência do vírus para segundo plano.

Ela falou que eu só tenho HIV, e que não é pra eu pensar nisso. A gente fica mais aliviada (Flor do campo).

Você toma, abaixa a carga viral e continua vivendo normal, é crônico. É uma coisa que não vai me matar (Jasmim).

Há 10 anos atrás não tinha recurso; hoje em dia tem o coquetel(Violeta).

Elas sabem que têm o vírus, mas relutam em entrar em contato com essa realidade que além de ser dolorosa, impõe um novo direcionamento em suas vidas.Transparece assim, a complexidade contextual da aids, cheia de contradições e incoerências dos sentimentos do ser humano.

Eu prefiro não ficar tão preocupada, se não entro em depressão. Então eu prefiro não preocupar muito não, porque já está aqui na minha cabeça, entendeu. Eu tenho que levar a minha vida (Margarida).

Se eu colocar na cabeça que eu vou morrer, não adianta vai dar depressão e vou morrer mesmo (Calêndula).

Pelo fato de a aids ainda ser uma doença associada com a morte, uma forma de sobreviver com o diagnóstico de ser portadora é relegar o HIV para segundo plano, não deixando que ele ocupe um espaço grande em suas vidas.

Medo da morte

Concomitantemente ao fato de considerar o HIV como um mal menor e novamente realçando a complexidade da aids e suas contradições, o medo da morte e a depressão de, que algumas tentam fugir, podem aparecer a essas mulheres até como uma reação normal, na medida em que manifestam os sentimentos de "perda" decorrentes da doença:

Eu vi gente muito mal no hospital, se não se cuidar, acabou (Lírio).

Acho que se a criança nasce com o vírus ela tem pouca possibilidade de viver (Violeta).

Eu sei que a aids mata, que HIV mata e dá muita doença, e que se você não se proteger, se você sair com homem vai passar aids para os outros. Se você por na cabeça, vai morrer mais rápido (Hortência).

A fala de Hortência revela que a presença do HIV trouxe a certeza da morte, a ansiedade e o medo de morrer, medo esse que é mais acentuado quando se pensa na possibilidade de a criança ficar infectada e doente.

Apesar da evolução no tratamento da aids, que aumentou a sobrevida do paciente e a transformou em uma doença crônica, nas representações populares a associação entre aids e morte é muito presente. A associação que as mulheres infectadas fazem com a morte se manifesta principalmente na revelação do diagnóstico. Posteriormente, quando elas vão entrando em contato com os profissionais de saúde e outras pessoas na mesma situação, associar-se à ausência de sintomas da doença, elas consideram que a morte não é tão imediata como pensavam. Dessa forma, "a invisibilidade da doença permite também a invisibilidade da própria morte"(11).

Crença religiosa

A realidade das mulheres que vivem em situações menos favorecidas é de luta constante pela sobrevivência, muitas vezes mobilizando sentimentos de apego a uma crença religiosa. Esse apego também pode se transformar em uma alternativa de enfrentamento da doença:

Eu entreguei nas mãos de Deus, ele é que vai me dar essa resposta (Camomila).

...a saúde dele que está em jogo, mesmo que eu sabia que ele era negativo, mas a gente tem que fazer a parte da gente, que nem Jesus fala, faz a sua parte que eu te ajudarei (Calêndula).

A religião surge como apoio, representando uma importante rede de suporte emocional. A fé no divino é uma forma de explicar o mundo, de superar e suportar o cotidiano da existência, associando-o à esperança. A fé na cura se assenta na crença de um poder superior, que lhes dá esperança, conforme observamos nas falas:

...quem sabe mais pra frente, Deus prepara um remédio pra cura... (Flor do campo).

Eu fiquei 9 meses indo naquela igreja da catedral e pedia "ai meu Deus, não faz isso com meu filho não"; a gente não pode perder a esperança, tem que levar o menininho e acreditar em Deus (Hortência).

A religião é um sistema de símbolos que atua para estabelecer poderosas e duradouras disposições e motivações nos homens(12). De certa forma as mulheres estão se beneficiando de sua crença religiosa, à medida que esta se transforma em uma forma de enfrentamento e alívio para o sofrimento e a angústia, impostas por uma doença percebida como muito severa.

Benefícios percebidos

A percepção da susceptibilidade e da severidade da doença pode motivar o indivíduo a tomar uma determinada conduta, porém não define o curso da ação a ser realizada. O que direciona a ação são as crenças pessoais relativas à eficácia das alternativas disponíveis para diminuir a ameaça da doença ou a percepção dos benefícios de se tomar a ação(4). As categorias que emergiram entre os benefícios foram: crescer saudável e não ser como eu.

Crescer saudável

Todas as mulheres participantes de nossa pesquisa estão fazendo o seguimento da criança em ambulatório especializado, embora 2 não tenham realizado o pré-natal. Quando questionadas sobre os benefícios que a criança teria em fazer o tratamento, elas relataram de várias maneiras que o maior benefício é a chance de não ser infectada pelo HIV e ter uma vida saudável.

A possibilidade dele não vir a desenvolver a doença, para não ter o HIV (Lírio).

Eu queria que ele não pegasse, eu não poderia comprometer a vida dele passando o vírus pra ele (Violeta).

Pra ele crescer uma criança saudável, não ter nada! (...) Eu acho que ela vai crescer, vai brincar, vai fazer tudo que ela quer entendeu. Enquanto eu tiver aqui trabalhando, eu quero dar tudo que ela quiser, tudo que pode e pronto (Margarida).

A possibilidade de crescer, brincar e ter uma vida saudável estimula as mães a realizarem as orientações dos profissionais de saúde para diminuir a chance da infecção na criança.

O acompanhamento em ambulatório especializado é preconizado pelo Ministério da Saúde como uma medida importante para o recém-nascido exposto à transmissão vertical, uma vez que determina as ações a serem tomadas durante esse período(1). Um acompanhamento sistemático dessas crianças deve ocorrer mesmo após a confirmação da sorologia negativa, uma vez que elas foram expostas a agentes com potenciais carcinogênicos.

Não ser como eu

Saber que é portador de uma doença crônica, que você terá que fazer acompanhamento médico, tomar medicações e ter algumas restrições para o resto de sua vida não é uma situação tranqüila.

Pelo menos eu sabia que ela não ia ser igual eu, ter que ir no médico, ter que tomar remédio, foi um alívio (Rosa).

Eu rezava tanto pra Deus pra negativar porque ia pesar pra nós de saber que ele pegou da gente, é uma criança que não tem noção (Hortência).

As mulheres que já convivem com uma rotina de freqüentes consultas médicas, tratamentos medicamentosos, e eventualmente, com as doenças oportunistas em suas vidas, não querem que o filho também venha a ter. No caso da aids, isso é reforçado pelo fato de ainda ser uma doença com característica estigmatizante para a sociedade. O estigma é uma construção social legitimada pelo olhar do outro, que circunscreve de forma simbólica ou concreta, os territórios de normalidade. Se algumas pessoas ultrapassarem a linha divisória que separa essas normas, instala-se um desvio que é acompanhado de acusação, isolamento e até mesmo de punição(13).

No caso dos portadores de HIV/aids, temos que considerar a forma como a sociedade relacionou-os no início da epidemia: como vítimas, no caso dos infectados por hemoderivados, ou como culpados, no caso dos homossexuais, prostitutas e usuários de drogas. Vistos como promíscuos, era atribuída a eles a responsabilidade pela infecção. Embora tenham ocorrido mudanças na trajetória da epidemia, ainda hoje o estigma e o preconceito são receios presentes no cotidiano dos indivíduos infectados.

O benefício de que o tratamento venha permitir a diminuição da possibilidade de infecção pelo HIV, patologia ainda estigmatizante, torna-se um fator importante na adesão ao tratamento.

Barreiras percebidas

O indivíduo pode acreditar na eficácia de uma determinada ação em reduzir a ameaça da doença e, ao mesmo tempo, perceber essa ação como inconveniente, dispendiosa, perigosa quanto aos efeitos colaterais negativos ou resultados iatrogênicos, desagradável, dolorosa, desconfortável ou que consuma muito tempo. Esses aspectos negativos das ações de saúde ou percepção de barreiras podem agir como impedimentos para a adoção dos comportamentos recomendados e podem gerar conflitos na tomada de decisão(4). Nessa dimensão identificamos as categorias: descrença no HIV, dificuldades financeiras, não amamentar.

Descrença no HIV

Um aspecto importante que precisa ser discutido e que pode comprometer o processo de adesão materna se constituindo em uma barreira é a descrença no HIV. Quando a mulher infectada não consegue reconhecer que o fato de ser portadora do vírus pode trazer graves conseqüências para ela e para o filho, ela não tem nenhum cuidado consigo e nem com a criança. Consideramos que essa descrença na existência da doença é uma barreira que a impede de fazer o seguimento da criança e o seu próprio. Citamos a fala de Tulipa, que é analfabeta, tem 13 filhos, está na 14ª gestação e refere nunca ter feito pré-natal:

Eu nunca vi ninguém com aids. Ninguém acredita que eu tenho, nem eu acredito, então fica por isso mesmo. Eu levo ela nas Clínicas porque quando ela nasceu teve um probleminha, bebeu água de parto e ficou um mês internada na UTI da Santa Casa; aí depois me mandaram levar no hospital e eu levo. Eu nunca levei os outros filhos porque eles não tem nada, nasceram bem, estão tudo forte, nem precisa de remédio (Tulipa).

Essa fala nos remete a uma situação em que a descrença vem associada ao analfabetismo e ao contexto de vida em que ela está inserida. Para uma parcela significativa da população, só se toma providência depois do fato instalado, ou seja, depois da manifestação de algum sintoma. No caso da situação de já ser portadora do HIV, a presença do vírus não tem um significado concreto, pois ainda não há sintomas aparentes que comprovem a sua existência.

Tomar decisão em saúde é um processo em que o indivíduo atravessa uma série de estágios e as interações com pessoas ou eventos em cada um influencia o indivíduo na tomada de decisão para sua saúde(14). É preciso estabelecer uma relação de confiança com as pessoas para que elas tenham alguma influência na tomada de decisão.

A observação da epidemia de aids tem mostrado que os comportamentos individuais desempenham papel crucial na transmissão do HIV e que as estratégias de prevenção de seu crescimento devem levar esse fator em consideração.

Dificuldades financeiras

A maioria das mulheres participantes referiu apresentar dificuldades financeiras, para realizar todas as ações preventivas, especialmente no que se refere ao comparecimento nos retornos do pré-natal e da criança. Em alguns momentos, essas dificuldades podem se constituir em uma barreira.

Aqui está todo mundo desempregado, o ônibus é difícil e eu não tenho carteira; muitas vezes eu levo ela a pé. Tem dia que chove, tem dia que o sol está quente demais, mas eu vou (Rosa).

A maior dificuldade é o ônibus, tem vez que tem dinheiro e tem vez que não tem. Já até perdi retorno porque não tinha dinheiro (Lírio).

O Brasil é um país de grandes disparidades socioeconômicas e demográficas em sua população, e por isso é de se esperar que essas disparidades reflitam na forma como o HIV se propaga na população. A vulnerabilidade social a que os indivíduos das camadas sociais mais baixas estão sujeitos fica evidente nas falas acima. A alta vulnerabilidade desses indivíduos, relacionada à complexidade socioeconômica, deve ser considerada nos programas de prevenção e controle da aids(15). A maioria das participantes relatou a importância da ajuda de instituições públicas e filantrópicas para manutenção do tratamento.

A inexistência da intersetorialidade na elaboração das políticas públicas brasileiras compromete a resposta integral à dupla vulnerabilidade gerada pela superposição pobreza e aids(16). As falas confirmam a necessidade de implementação de políticas públicas intersetoriais, abrangendo não só a saúde e a assistência social, mas também a educação, trabalho, cultura e lazer para os indivíduos portadores do HIV, como forma de diminuir as barreiras financeiras que comprometem a adesão ao tratamento.

Não amamentar

Um aspecto a ser considerado é a supressão da amamentação, que além de aumentar o problema financeiro, também vai de encontro com a questão emocional do desejo materno.

Esse leite é caro e a gente não pode dar mamar... (Begônia).

O leite ajuda muito até hoje, mas eu queria muito era dar de mamar pra ele....(Petúnia).

O aleitamento materno é amplamente difundido nas campanhas publicitárias e nos serviços de saúde como um dos responsáveis pelo crescimento saudável do recém nascido, e sempre associado à proteção, maior vínculo com a mãe e amor materno(17). Para a mulher portadora do HIV que não pode amamentar, muitas vezes fica a imagem de fracasso na proteção à criança. O seguimento da mãe e da criança deve abordar também esse aspecto, com os profissionais de saúde apoiando a mulher na "desconstrução" da vontade de amamentar, subsidiando-a com informações de como estabelecer, manter e fortalecer o vínculo afetivo com seu filho, orientando-a quanto ao preparo e administração da fórmula infantil e sobre a introdução gradativa de outros alimentos.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Os avanços alcançados com a terapia medicamentosa, aliada a outros procedimentos, reduziram consideravelmente a taxa de transmissão materno-infantil. Porém, para alcançar esses resultados, as mães têm que estar estimuladas a realizar os procedimentos preconizados pelos profissionais de saúde.

A identificação das percepções acerca da infecção pelo HIV/aids revelou nuances em que podemos compreender as crenças que influenciam essa adesão.

Alguns aspectos das percepções maternas podem ser considerados tanto como facilitadores como dificultadores da adesão, sendo influenciados pelo nível educacional, classe social, personalidade e contexto de vida.

A determinação da conduta que cada mulher deve seguir, só é possível quando suas crenças e valores individuais são levados em consideração. Identificá-los e compreender como influenciam na condução de um problema de saúde pode determinar a ação dos serviços e a forma como ela deve se processar.

Os serviços que atendem os portadores de HIV/aids, em especial as mulheres e as crianças expostas à transmissão vertical, devem estar atentos em implementar programas que extrapolem a dimensão biológica e considerem também os valores e a bagagem cultural da clientela, buscando uma assistência mais solidária e participativa.

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

Recebido em: 2.7.2005

Aprovado em: 22.3.2006

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    Trabalho Extraído da Dissertação de Mestrado
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      13 Nov 2006
    • Data do Fascículo
      Out 2006

    Histórico

    • Recebido
      22 Jul 2005
    • Aceito
      22 Mar 2006
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