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Instrumentos ópticos em Proust

Proust's optical instruments

Instruments optiques chez Proust

Los instrumentos ópticos en Proust

Optische Instrumente bei Proust

Resumos

Este trabalho toma, como chave de leitura para a obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, a função desempenhada pelos instrumentos ópticos à luz do conceito de paralaxe. Em nossa leitura da obra de Proust, a incidência da mudança de posição do observador sobre a percepção do fenômeno dialoga com os conceitos de realidade psíquica (Freud) e Real (Lacan). Os instrumentos ópticos, entre os quais a própria obra, servem antes para deformar do que como meio de acesso ao mundo. Assim, a realidade psíquica não provém de dados perceptivos, mas de constante releitura.

Palavras-chave:
Psicanálise; Proust; paralaxe; literatura


This paper analyses the function of optical instruments, in light of the concept of parallax, as keys to read Marcel Proust's novel In Search of Lost Time. In our reading of Proust's work, the influence of the observer's change of position on the perception of the phenomenon produces a dialogue with the concepts of psychic reality (Freud) and real (Lacan). Optical instruments, including the novel itself, serve to deform rather than to access the world. Thus, psychic reality doesn't come from perceptual data, but from constant rereading.

Key words:
Psychoanalysis; Proust; parallax; literature


Ce travail prend comme clé de lecture de À la recherche du temps perdu, de Marcel Proust, le rôle joué par les instruments optiques, conçu à la lumière de la notion de parallaxe. Dans notre lecture de l'œuvre de Proust, l'incidence du changement de position de l'observateur sur la perception du phénomène produit un dialogue avec les concepts de réalité psychique (Freud) et réel (Lacan). Les instruments optiques, y compris le travail de la littérature, servent à déformer le monde plutôt qu'à y accéder. Ainsi, la réalité psychique ne provient pas de données perceptuelles, mais de constante réinterprétation.

Mots clés:
Psychanalyse; Proust; parallaxe; littérature


Para la lectura de la obra En busca del tiempo perdido, de Marcel Proust, este trabajo se basa en la función desempeñada por los instrumentos ópticos a la luz del concepto de paralaje. En nuestra lectura de la obra de Proust, la incidencia del cambio de posición del observador, sobre la percepción del fenómeno, dialoga con los conceptos de realidad psíquica (Freud) y real (Lacan). Los instrumentos ópticos, incluyendo la obra en sí, antes de ser un medio de acceso al mundo sirven para deformar. De esta forma, la realidad psíquica no proviene de datos percibidos, sino de una reinterpretación constante.

Palabras clave:
Psiconálisis; Proust; paralaje; literatura


Diese Arbeit analysiert die Funktion der optischen Instrumente gemäß dem Konzept der Parallaxe und benutzt diese als Schlüssel zu Marcel Prousts Hauptwerk Auf der Suche nach der verlorenen Zeit. Wir vertreten den Standpunkt, dass ein Dialog zustande kommt zwischen der Positionsänderung des Betrachters bezüglich der Wahrnehmung des Phänomens und die Begriffe der psychischen Realität (Freud) und des Realen (Lacan). Optische Instrumente, zu denen das literarisches Werk selbst zählt, dienen eher dazu, die Welt zu deformieren als dass sie einen Zugang zu ihr verschaffen. So entsteht die psychische Realität nicht aufgrund von Wahrnehmungsdaten, sondern aus wiederholtem lesen.

Schlüsselwörter:
Psychoanalyse; Proust; Literatur; Parallaxe


Introdução

Na realidade, todo leitor é, quando lê, o leitor de si mesmo. A obra não passa de uma espécie de instrumento óptico oferecido ao leitor a fim de lhe ser possível discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo. O reconhecimento, por seu foro íntimo, do que diz o livro, é a prova da verdade deste, e vice-versa, ao menos até certo ponto, a diferença entre os dois textos devendo ser frequentemente imputada não a quem escreveu, mas a quem leu. (Proust, BTP, 7, p. 256)1 1 Abreviação de Em busca do tempo perdido.

No final do século XIX, emergia, na França de Marcel Proust (1871-1922), um movimento psicopatológico que, contemporaneamente a Freud, compartilhava concepções puramente psicogenéticas em psicopatologia. Eram descrições que inovavam ao privilegiar a origem psicológica, supondo que a personalidade patológica poderia ser um processo de desenvolvimento e não um processo degenerativo, como era até então a visão predominante. Assim como seus conterrâneos mapeavam as histórias de vida em busca da constituição mental patológica, Proust pesquisava o modo como as pessoas falavam. Enquanto os psicopatólogos buscavam fixar suas observações em quadros (tableaux) psicopatológicos, o narrador de Proust buscava o elemento mínimo, o traço, o modo de falar. Como Proust relata:

Como um geômetra que, despojando os corpos das qualidades sensíveis, só lhes visse o substrato linear, escapavam-me o que as criaturas contavam, pois não me interessava o que diziam, e sim o modo pelo qual o diziam [...] o objeto sempre visado particularmente por minhas pesquisas [...] era a descoberta dos pontos comuns a vários seres. (Proust, BTP, 7, p. 40)

O destaque ao “como” uma pessoa fala nos permite uma comparação com o método da escuta psicanalítica. Como nos relata Roudinesco (2016)Roudinesco, E. (2016). Sigmund Freud na sua época e em nosso tempo. Rio de Janeiro, RJ: Zahar., Proust não faz alusão aos trabalhos freudianos, mas é possível encontrar paralelos entre as duas obras na exploração dos temas do sonho, da memória, da sexualidade e do inconsciente.

O narrador da obra Em busca do tempo perdido, de Marcel Proust, apresenta-se como alguém a quem falta espírito de observação, pois não saberia dizer como uma amiga estava vestida em determinada recepção. Paradoxalmente, as impressões que fazem o narrador valorizar as coisas são aquelas experimentadas pelas outras pessoas como insignificantes (Proust, BTP, 4, p. 405). Na leitura de Em busca do tempo perdido, somos guiados por uma série de instrumentos ópticos: lanterna mágica, caleidoscópio, telescópio, estereoscópio.2 2 Instrumento que permite a observação simultânea, através de uma objetiva binocular, de duas imagens de um objeto, obtidas com ângulos ligeiramente diferentes, produzindo a sensação de relevo, de terceira dimensão. Ao longo dos sete volumes do romance, esses instrumentos ora são mediadores para a imaginação (a tela da lanterna mágica) (Proust, BTP, 1, Combray); ora para a percepção (a tela do pintor Elstir) (Proust, BTP, 2); ora são metáforas, como na irônica descrição da sociedade francesa como um caleidoscópio que gira de tempos em tempos (Idem). Para além dessas múltiplas utilidades, são chaves de leitura, isto é, exercem uma função metanarrativa ao indicar que onde está a percepção pode estar o engano. As ocasiões em que o narrador se refere ao ver, também são aquelas em que se refere ao não ver. Trata-se então de valorizar o encoberto, pois se trata do que ou ativamente se esconde, não se deixa ver, ou o que não se suporta ver. Nesses momentos, o narrador exerce uma função de crítica da crítica, como na seguinte passagem:

Sabia eu que não só entre as obras, na longa série dos séculos, mas também no seio de uma mesma obra, se diverte a crítica a mergulhar de novo na sombra o que era radiante há demasiado tempo, e em fazer sair da sombra o que parecia condenado à obscuridade definitiva. (Proust, 1990Proust, M. (1990). O caminho de Guermantes. BTP (v. 3, 10a ed. rev.). São Paulo, SP: Globo., BTP, 3, p. 422)

O narrador experimenta diversos instrumentos ópticos, ora ampliando os restos das impressões, ora aproximando o que era remoto. As telas do pintor Elstir fazem o narrador descobrir as sombras da paisagem marinha. Assim como o telescópio torna próximo o que está distante, a tela impressionista faz ver o que fica encoberto pelo excesso de luz do sol. A obra literária será o último instrumento a aparecer, a que torna possível ao leitor “discernir o que, sem ela, não teria certamente visto em si mesmo” (Proust, BTP, 7, p. 184).

Instrumentos ópticos

O primeiro instrumento óptico com o qual o narrador percebe o mundo é uma lanterna mágica, um mecanismo de projeção e animação de imagens. Mas podemos nos perguntar sobre a relação entre as imagens giratórias na lanterna mágica e as imagens mentais, que se misturavam à medida que o narrador, quando criança, escutava a lenda merovíngia sobre o amor proibido do cavaleiro Golo por Geneviève:

Bem se haviam lembrado, para distrair-me nas noites em que me achavam com um ar muito melancólico, de presentear-me com uma lanterna mágica, com a qual cobriam minha lâmpada; a lanterna, à maneira dos primeiros arquitetos e mestres vidraceiros da idade gótica, sobrepunha, à opacidade das paredes, impalpáveis criações, sobrenaturais aparições multicores, onde se pintavam legendas como em um vitral vacilante e efêmero [...] Golo parava um instante para ouvir com tristeza a arenga lida em voz alta por minha tia-avó e que ele parecia compreender muito bem, ajustando sua atitude às indicações do texto, com uma brandura que não excluía certa majestade. [...] Se se movia a lanterna, eu distinguia o cavalo de Golo, que continuava a avançar por sobre as cortinas da janela, enfunando-se em suas dobras, afundando em sua fendas. O próprio corpo de Golo, de uma essência tão sobrenatural como a de sua montaria, aproveitava-se de qualquer obstáculo que encontrasse no caminho, tomando-o como ossatura e tornando-o interior, ainda que fosse a maçaneta da porta, à qual logo se adaptava e sobrenadava invencivelmente sua veste vermelha [...] (Proust, BTP, 1, p. 27-28)3 3 No documentário “Illiers Combray sur les traces de Marcel PROUST” o leitor pode visualizar uma lanterna mágica similar àquela da infância do narrador de BTP, I. O documentário está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KykvEdYUi6g>. Recuperado em: 14 jun. 2016.

O uso da lanterna mágica indica que o que está sendo narrado como percebido poderá ser projeção, ilusão. Em outro momento da obra, o narrador observa que a curvatura da projeção de sua lanterna mágica dependia da curvatura dos vidros de cor. Assim como na memória, haveria maneiras de representação de uma verdade. E essa “uma” verdade poderia também incluir o engano (BTP, 6, A fugitiva, p. 148).

Poderíamos, então, considerar que os instrumentos ópticos em Proust diriam de um olhar que seria antes construção imaginária do que percepção de realidade? Outro instrumento óptico, a tela de Elstir, aparece em À sombra das raparigas em flor (BTP, 2), quando o narrador conhece o pintor que lhe conduz ao descobrimento do jogo de luz e sombra da pintura impressionista. Em uma conversação no atelier do pintor, este lhe ensina a perceber o que se esconde na paisagem:

[…] falava-lhe no outro dia da igreja de Balbec como de um grande penhasco, um grande molhe de pedras da região, mas, inversamente - disse, mostrando--me uma aquarela -, veja estes penhascos, é um esboço apanhado perto daqui, nos Creuniers, repare como estes rochedos poderosa e delicadamente recortados, fazem pensar numa catedral [...] Naquele dia em que a luz havia como que destruído a realidade, concentrara-se esta em criaturas sombrias e transparentes que, por contraste, davam uma impressão de vida mais patente, mais próxima: as sombras. Ávidas de frescor, a maioria delas, desertando o largo inflamado, se refugiara ao pé dos rochedos, ao abrigo do sol [...]o que me fez exclamar o quanto lamentava não conhecer Creuniers. Albertine e Andrée asseguraram que eu lá já devia ter estado umas cem vezes. Nesse caso, fora sem o saber, sem imaginar que um dia a sua vista pudesse inspirar-me tal sede de beleza, não precisamente natural, como a que até então buscara nos penhascos de Balbec, mas antes arquitetônica. [...] ao ver aquele mágico retrato, ficava-se de tal modo enamorado que não se tinha outro pensamento senão correr mundo para reencontrar aquele dia que se fora, em toda a sua graça instantânea e repousada. (Proust, BTP, 2, p. 560)

A pintura impressionista captura o que não se vê porque o tempo passa muito rapidamente, os instantes fugidios da passagem das horas. Mas o narrador tentará colocar-se na mesma posição geográfica e cronológica em que esteve o artista quando pintou, a fim de reencontrar o instante:

Olhe - disse ela de repente -, aqui estão os seus famosos Creuniers, e você ainda tem muita sorte, pois estão justamente na hora e na luz com que Elstir os pintou. [...] Assim, [...] pude distinguir de súbito a meus pés, aconchegadas entre as rochas onde se abrigavam do calor, as deusas marinhas que Elstir espiara e surpreendera, sob uma sombria transparência, tão bela como o seria de um Leonardo, as maravilhosas sombras ocultas e furtivas, ágeis e silenciosas, prestes, ao primeiro remoinho de luz, a escorregar sob a pedra, a esconder-se numa cova e prontas, passada a ameaça do dardo luminoso, a voltar para junto da rocha ou da alga, sob o sol esfarelador dos alcantis, e do oceano descolorido, cujo sono parecem velar guardiãs imóveis e leves, deixando aparecer à flor d'água o seu corpo escorregadio e o olhar atento de seus olhos escuros. (Proust, BTP, 2, p. 586)

A paisagem dos Creuniers, com suas “deusas marinhas”, o narrador agora a vê pela primeira vez. Pois apesar de ter estado lá muitas vezes, ele reconhece não guardar nenhum registro, ou seja, não as viu.

Em nossa leitura, não as viu porque não as podia ver - antes de ver a tela de Elstir, as impressões lhe advinham sem cortes, de modo que não seria possível distinguir, sob “o sol esfarelador dos alcantis”, “as maravilhosas sombras ocultas e furtivas”.

Desse modo, a tela de Elstir, como instrumento óptico proustiano, tem por função encobrir o que estaria sob o sol, visível, e fazer ver o não iluminado, o invisível. Retomando a série, a lanterna mágica, o caleidoscópio, a tela do pintor não são instrumentos usados para ampliar a percepção e revelar o mundo, e sim instrumentos que deformam o objeto, revelando não algum novo aspecto da realidade, e sim um ponto de vista sobre o mundo, ou o mundo desde um ponto de vista que o apreende. Nessa perspectiva, a obra em construção nos mostraria que não há uma única ordem de verdade. Os aparelhos ópticos proustianos seriam metanarrativas, ou seja, indicariam as deformações.

A partir da identificação, por Freud, da função dos vestígios de lembranças (Erinnerungsspur) na construção das narrativas pelo analisante, Gagnebin (2006)Gagnebin, J. M. (2006). Lembrar, escrever, esquecer. São Paulo, SP: Editora 34. ressalta o liame entre rastro e memória, pois “a memória vive essa tensão entre a presença e a ausência, presença do presente que se lembra do passado desaparecido, mas também presença do passado desaparecido que faz sua irrupção em um presente evanescente” (p. 44). Se a força da resistência coloca em xeque a soberania da consciência para acessar a memória, isso não quer dizer que bastaria o acaso, a memória involuntária, para que emergisse um encontro, pois há signos emitidos sem que jamais sejam decifrados. Enfim, o herói busca “iluminação espiritual, mas de maneira profundamente paradoxal, pois é ele o próprio espírito que será simultaneamente origem e meio dessa criação” (p. 157).

Na obra Em busca do tempo perdido, sucedem-se montagens de realidade psíquica, para as quais os aparelhos ópticos são os delineamentos que demarcam que se trata de deformações, não no sentido negativo, mas como condição da construção da realidade psíquica: vemos o que suportamos olhar, olhamos o que se deixa ver. Os vestígios, enquanto materialidade, mesmo que negados, denegados, não percebidos, correspondem à realidade psíquica.

Aqui precisamos diferenciar realidade psíquica e Real. Para este último, Lacan inventou a palavra entr'aperçu para dizer isso que escapa à realidade psíquica. Esta última é, por sua vez, montagem, por exemplo, entre ver e olhar. O Real não se deixa reduzir a uma determinada montagem da realidade psíquica, mas está entre diferentes enquadramentos das lentes, na oscilação entre eles, restando não apreendido, entr'aperçu.

A realidade psíquica é paraláctica

Em Física, estuda-se um fenômeno que é conhecido como paralaxe: a incidência da mudança de posição do observador sobre a percepção do fenômeno. Em Astronomia, fala-se, por exemplo, em paralaxe estelar, devido ao movimento de translação da Terra em torno do Sol. O conhecimento de que as estrelas aparecem ao longo dos meses do ano em outra posição relativamente ao fundo (já que a paralaxe é inversamente proporcional à distância do objeto), aliado ao uso da trigonometria, torna possível medir a distância entre a Terra e as estrelas observadas. Além da Astronomia, o conceito de paralaxe tem sido útil em diversas áreas, como a fotografia, o cinema, a oftalmologia e a química.

Se a posição do observador em relação ao observado requer considerar a relação do observador com sua própria posição, é possível comparar paralaxe e realidade psíquica. Na Busca..., as mudanças nos personagens são efeitos de mudanças no campo do narrador, as quais são demarcadas pelos instrumentos ópticos. Esses instrumentos, como vimos, incluem tudo o que implica o ver (óptica). O narrador adverte o leitor de que tudo o que encontrará é o ponto de vista de um observador: este pode estar dormindo, sonhando ou lembrando do que lhe foi narrado pelo avô.

Na leitura dos dois primeiros volumes de Em busca do tempo perdido, encontramos duas passagens que podem ser lidas como fenômenos de paralaxe. A primeira, em No caminho de Swann, quando, em um passeio de carro, o narrador se fascina pela visão de três torres que surgem no horizonte e, obedecendo a seu entusiasmo, escreve in loco uma página:

Sozinhas, erguendo-se do nível da planície e como perdidas em campo raso, subiam para o céu as duas torres de Martinville. Em breve vimos três: vindo colocar-se à sua frente em uma volta atrevida, reunira-se a elas uma torre retardatária, a de Vieuxvicq. Os minutos passavam, íamos depressa e no entanto as três torres estavam sempre ao longe, a nossa frente, como três pássaros pousados na planície, imóveis, e que a gente divisa ao sol. Depois a torre de Vieuxvicq se afastou, marcou suas distâncias, e as torres de Martinville ficaram sós, alumiadas pela luz do poente que, mesmo àquela distância, eu via brincar e sorrir em suas telhas. Demoráramos tanto em nos aproximar das torres que eu ainda pensava no tempo que nos faltava para atingi-las quando de repente o carro, depois de dar uma volta, nos depôs a seus pés; e tão rudemente se haviam lançado elas de encontro ao carro que mal se teve tempo de parar para não esbarrarmos no pórtico. Prosseguimos viagem; fazia pouco que deixáramos Martinville e que a aldeia desaparecera, depois de nos ter acompanhado alguns segundos e ainda suas torres e a de Vieuxvicq, ficando sozinhas no horizonte a ver-nos fugir, agitavam em sinal de despedida seus cimos ensolarados. Às vezes uma se afastava para que as outras pudessem avistar-nos um instante ainda; mas a estrada mudou de direção, elas voltearam na luz como três gonzos de ouro e desapareceram de minha vista. (Proust, 2006Proust, M. (2006a). No caminho de Swann. BTP (v. 1, 3a ed. rev.). São Paulo, SP: Globo. (Trabalho original publicado em 1913)., BTP, 1, p. 229)

Nessa passagem, somos conduzidos, através da paralaxe literária com que joga o narrador, a uma descrição que, se absurda, é por fazer-se hipérbole da relatividade da realidade - daquilo que vemos - enquanto paraláctica. Segundo os movimentos do carro em que o narrador se encontra, as torres prescindem de sua imobilidade. Ora vêm, ora se afastam, mas apenas como efeito da mudança do ponto de vista do observador.

A segunda cena que nos faz relacionar com paralaxe ocorre em À sombra das raparigas em flor, durante a estadia do narrador em Balbec, quando, novamente em um passeio, ele se depara com a visão de três árvores:

Baixamos até Hudimesnil; de repente me invadiu essa profunda sensação de felicidade que não havia tido desde os dias de Combray, uma felicidade análoga à que me deram, entre outras coisas, os campanários de Martinville. Mas, dessa vez, essa sensação ficou incompleta. Acabava de ver a um lado da estrada, na encosta por onde íamos, três árvores que deviam servir de pórtico a uma alameda ensombrada. Não era a primeira vez que eu via aquele desenho que formavam as três árvores, e ainda que não pudesse encontrar na memória o lugar de onde pareciam haver-se deslocado, notei contudo que me fora muito familiar em outros tempos, de modo que, como meu espírito vacilasse entre um ano muito remoto e o momento atual, os arredores de Balbec vacilaram também e vieram-me dúvidas se aquele passeio não seria uma ficção, Balbec um lugar onde nunca estivera a não ser em imaginação, a sra. de Villeparisis uma personagem de romance, e as três velhas árvores a realidade que encontramos ao erguer os olhos do livro que estava lendo e que nos descrevia um ambiente onde nos pareceu que estávamos de verdade. (Proust, BTP, 2, p. 352)

Nesse fragmento, observamos o narrador lamentando não poder precisar o lugar e o tempo no qual já vira aquelas árvores formando um pórtico. O fracasso em reconstituir a memória leva o narrador a perguntar se não seria tudo fruto de sua imaginação, inclusive o próprio passeio (déjà vu). Ao admitir a imprecisão, o estranhamento, o narrador nos leva a concluir que, para ele, a realidade é ficcional. Após a tentativa frustrada de recuperar uma cena de sua história de vida, ele se compara ao leitor que se sente parte de uma cena ficcional.

A não resolução entre sono e vigília representaria, na Busca..., justamente a crítica à nitidez e à certeza. Qualquer desengano é enganoso. Os instrumentos ópticos cumprem uma função metanarrativa de advertir o leitor quanto à incerteza do que é narrado. O que é tratado como consistência em um momento poderá vir a ser desconstruído em outro momento. A metanarrativa raramente é explicitada, como em A prisioneira, quando o narrador dirige-se ao leitor: “Antes de voltar à loja de Jupien, o autor faz questão de dizer que se sentiria contristado se o leitor se escandalizasse com cenas tão estranhas” (Proust, BTP, 5, p. 56).

Na paralaxe importa a inclusão do olhar (posicionamento) para que ocorra o ver (a percepção do fenômeno). Se os aparelhos proustianos indicam ao leitor a posição na qual o observador se encontra, a paralaxe, por sua vez, destaca que antes de se considerar o observador, há o próprio fenômeno do enquadre, a posição do observador. Nesse sentido, o que é acessível à percepção é posto em xeque. E se evidencia a variabilidade e indecidibilidade das mudanças de enquadre. Portanto, não há um enquadre definitivo, pois sempre há algo a mais ou a menos no enquadre atual. Resta um “entre” ou entr'aperçu, expressão linguageira encontrada por Lacan (1966-1967)Lacan, J. (1966-1967). Le Séminaire. Livre XIV. Logique du fantasme. (Inédito) Recuperado em 2 jan.2015 de: <www.staferla.free.fr>.
www.staferla.free.fr...
durante o Seminário Lógica do fantasma. Assim, a leitura da obra proustiana nos levou aos instrumentos ópticos enquanto o que permitiria vislumbrar a paralaxe do Real não substancial, uma elaboração de Zizek (2008)Zizek, S. (2008). A visão em paralaxe. São Paulo, SP: Boitempo. para aquilo que não cessa de não se escrever.

Com a expressão Real Paraláctico, falaríamos de um Real que é inferido a partir da multiplicidade e da não complementaridade, não compatibilidade, dos aparelhos de leitura. Se fossem compatíveis, os vários aparelhos ópticos poderiam ser somados, como óculos em cima de óculos, numa espécie de acumulação multiculturalista. Mas se perderia uma relação com o próprio lugar em que o observador se situa.

O limite para o psíquico não seria então o entr'aperçu? Metafori-camente, uma lente ideal seria aquela que oportunizaria um encontro, uma equivalência, sem diferenças, sem restos. Funcionalmente, consideramos a homologia entre o Real e o resto matematicamente escrito, a dízima não periódica de um número irracional. É aqui que Zizek (2008)Zizek, S. (2008). A visão em paralaxe. São Paulo, SP: Boitempo. trabalha o que ele denomina de Real Paraláctico, que existe como tensão, como “o osso duro do conflito que pulveriza a mesmice numa miríade de aparências”, ou seja, que não tem substancialidade positiva, é apenas a lacuna entre a multiplicidade dos pontos de vista a seu respeito (p. 19).

A metáfora sinestésica

As frases proustianas se alongam quando, ao passar de uma sensação a outra, acrescentam contornos e densidade a cada impressão. Esse estilo faz com que Pouilloux (1997)Pouilloux, J.-Y. (1997). Métaphore. In Dictionnaire de la psychanalyse (pp. 481-491). Paris, France: Encyclopedia Universalis; Albin Michel. considere que em BTP a metáfora vai além da figura de retórica. O narrador em Proust usa a metáfora para fixar sensações. Mais do que isso, as construções frasais suspendem as distinções entre as sensações (sinestesia): “Uma hora não é apenas uma hora, é um vaso repleto de perfumes, de sons, de projetos e de climas” (BTP, 7, p. 232).

Com termos que remetem ao toque, ao cheiro, ao sabor, à escuta e à visão o narrador tenta apreender o modo como foi tomado pela memória involuntária. A sinestesia reconstitui um instante em que o narrador se deixa levar pelo fortuito, aproximando mundos distantes:

“O que chamamos realidade é uma determinada relação entre sensações e lembranças a nos envolverem simultaneamente […] relação única que o escritor precisa encontrar a fim de unir-lhe para sempre em sua frase os dois termos diferentes” (BTP, 7, p. 232). Nesse modo fortuito da sensação que se opõe à memória ou à observação consciente, depreende-se uma noção de inconsciente.

Nesses trechos ensaísticos nos quais o narrador de BTP descreve o fortuito cuja verdade é instável, encontramos um paralelo com a instabilidade do fenômeno paraláctico: “Felicitaram-me por as haver [a percepção das verdades] descoberto ao 'microscópio', quando ao contrário, eu me servira de um 'telescópio' para distinguir coisas efetivamente muito pequenas, mas porque situadas a longas distâncias, cada uma num mundo” (Proust, BTP, 7, p. 398). A realidade, para o narrador, é efeito de um trabalho de abertura, de desentranhamento do que se esconde nas impressões casuais que despertam sensações diversas, desagradáveis ou de bem-estar. A tarefa do escritor é traduzir essas sensações. Para o narrador, a vida digna de ser vivida seria aquela realizada em tal livro, fruto de uma pesquisa a ser continuada pelos leitores, pois um livro assim permaneceria inacabado como muitas catedrais.

Longamente nutrimos um livro assim [...] mas para voltar a mim, pensava mais modestamente em meu livro, e seria inexato dizer que me preocupavam os que o leriam, os meus leitores. Porque não seriam meus leitores. [...] mas leitores de si mesmos, não passando de uma espécie de vidro de aumento, como os que oferecia a um freguês o dono da loja de instrumentos ópticos em Combray, o livro graças ao qual eu lhes forneceria meios de se lerem. (Proust, BTP, 7, p. 388-389)

Mas os aparelhos ópticos encontram seus próprios limites, algo resta irrecuperável

Sei muito bem quão facilmente as imagens gravadas pelo espírito são por ele próprio apagadas. Substitui as antigas por novas sem o mesmo poder de ressurreição. Se ainda possuísse o François le Champi [...] temeria inserir nele minhas impressões de hoje, recobrindo inteiramente as antigas, temeria vê-lo tornar-se de tal maneira atual que, quando lhe pedisse para invocar de novo a criança que lhe soletrara o título no quarto de Combray, esta, não lhe reconhecendo mais a voz, não respondesse mais ao apelo e permanecesse para sempre sepultada no esquecimento. (Proust, BTP, 7, p. 230)

Na admissão do limite do observável, os instrumentos proustianos dialogam com o fenômeno da paralaxe. O narrador não pode retornar, com os olhos atuais, às impressões infantis. Ele quer que as imagens de outrora ressuscitem, mas não poderá fazê-lo por meio de um artifício, colocando-se na mesma posição, isto é, folheando o mesmo livro. Assim, a paralaxe como fenômeno nos indica a impossibilidade de considerar ao mesmo tempo dois pontos de vista, mas apenas um depois do outro. Isto é, ou se está em um ponto ou em outro, mas não nos dois ao mesmo tempo. O narrador nos diz que, se fosse conservado, o livro não conversaria com a criança, pois esta não reconheceria a voz do livro. O narrador mais uma vez se reconcilia com um impossível.

Considerações finais

Na antevéspera da publicação do primeiro volume da Busca..., Proust explica as concepções que o guiaram na escrita da obra, destacando que o estilo de escrita está relacionado ao conteúdo, como um “universo a mais” (Proust, 2006Proust, M. (2006a). No caminho de Swann. BTP (v. 1, 3a ed. rev.). São Paulo, SP: Globo. (Trabalho original publicado em 1913)., BTP, 1, p. 512). Em nossa leitura, os instrumentos ópticos fazem parte desse estilo que é o próprio conteúdo. O modelo de Real Paraláctico nos permite uma leitura dessa aproximação entre o que e o como, na medida em que um dado pode ser inferido a partir do deslocamento entre pontos de vista. Assim, o “universo a mais” de que fala Proust pode ser entendido não no contexto de uma acumulação e optimização de instrumentos ópticos (como lentes sobre lentes), mas no sentido de uma indecidibilidade fundamental.

Um “movimento paraláctico”, portanto, seria o percurso de Proust através do narrador, que se deixa tomar pelas impressões, como restos diurnos que contribuem para a formação de um sonho. Ele, o narrador, cultiva essas impressões fugidias mais do que as percepções conscientes. Como entr'aperçu, no entre as sensações fugidias, o narrador tenta chegar ao coração das coisas, mas sempre fracassa em tocar o Real. Como nas cenas dos encontros com as três árvores e com as três torres.

Nessas cenas o narrador confirma que há algo inalcançável, sem substância e que não cessa de não se escrever. O que se alcança são as lentes deformantes. Proust bem o sabia, pois seus manuscritos,4 4 É possível acessar alguns manuscritos em <http://expositions.bnf.fr/proust/albums/compagnon_an/index.htm>. nos quais estão acréscimos e alterações, mostram que escrever seria fazer mediação das sensações fugidias em edição permanente, sem pretensão de concluir “isto é isto”. Enfim, a deformação, enquanto condição estrutural da construção da realidade, é o que convoca o leitor a experimentar o último dos instrumentos ópticos oferecidos pelo narrador, a própria obra.

  • 1
    Abreviação de Em busca do tempo perdido.
  • 2
    Instrumento que permite a observação simultânea, através de uma objetiva binocular, de duas imagens de um objeto, obtidas com ângulos ligeiramente diferentes, produzindo a sensação de relevo, de terceira dimensão.
  • 3
    No documentário “Illiers Combray sur les traces de Marcel PROUST” o leitor pode visualizar uma lanterna mágica similar àquela da infância do narrador de BTP, I. O documentário está disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=KykvEdYUi6g>. Recuperado em: 14 jun. 2016.
  • 4
    É possível acessar alguns manuscritos em <http://expositions.bnf.fr/proust/albums/compagnon_an/index.htm>.

Referências

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  • Freud, S. (2013). A interpretação dos sonhos Tradução de Renato Zwick. Porto Alegre, RS: L&PM. (Trabalho original publicado em 1900).
  • Gagnebin, J. M. (2006). Lembrar, escrever, esquecer São Paulo, SP: Editora 34.
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Editores do artigo/Editors: Profa. Dra. Sonia Leite

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Oct-Dec 2018

Histórico

  • Recebido
    15 Jul 2018
  • Aceito
    29 Set 2018
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