MENINGITE ASSÉPTICA INDUZIDA POR IBUPROFENO: UM CASO CLÍNICO

RESUMO

Objetivo:

Descreve-se o caso de um adolescente do sexo masculino com diagnóstico de meningite asséptica por ibuprofeno. Discutem-se as causas de meningite asséptica induzida por medicamentos (MAIM) e a importância do reconhecimento precoce dessa situação, para que a medicação envolvida seja suspensa e as recorrências prevenidas. Poucos casos foram descritos em idade pediátrica.

Descrição do caso:

Adolescente de 15 anos, gênero masculino, saudável, procurou o serviço de urgência por cefaleia, náuseas, tonturas, febre, hiperemia conjuntival e visão desfocada 30 minutos após o uso de ibuprofeno. Durante a internação, iniciou vômitos e rigidez na nuca. A análise do líquido cefalorraquidiano excluiu causas infeciosas, e considerou-se como diagnóstico mais provável a MAIM. A recuperação foi total após a suspensão do medicamento.

Comentários:

A MAIM é rara, mas deve ser considerada no diagnóstico diferencial de meningite asséptica. A principal causa são os anti-inflamatórios não esteroides, principalmente o ibuprofeno. A suspeita clínica é evocada pela relação temporal entre o uso do medicamento e o início dos sintomas, mas as causas infeciosas devem ser sempre excluídas.

Palavras-chave:
Meningite asséptica; Anti-inflamatórios não esteroides; Ibuprofeno; Adolescente

ABSTRACT

Objective:

To report a case of a male adolescent with the diagnosis of ibuprofen-induced meningitis. We discuss themain causes of drug-induced aseptic meningitis (DIAM) and highlight the importance of early recognition of DIAM, sothat the offending drug can be withdrawn, and recurrences prevented. Only few DIAM cases have been reported in pediatric age.

Case description:

A healthy 15-year-old boy presented to the emergency department with headache, nausea, dizziness, fever, conjunctival hyperemia and blurred vision 30 minutes after ibuprofen-intake. During his stay, he developed emesis and neck stiffness. Cerebrospinal fluid analysis excluded infectious causes, and DIAM was considered. He totally recovered after drug withdrawal.

Comments:

DIAM is a rare entity, that should be considered in the differential diagnosis of an aseptic meningitis. The major causative agents are nonsteroidal anti-inflammatory drugs, particularly ibuprofen. Suspicion is made by the chronologic link between drug intake and the beginning of symptoms, but infectious causes should always be ruled out.

Keywords:
Meningitis, aseptic; Anti-inflammatory agents, non-steroidal; Ibuprofen; Adolescent

INTRODUÇÃO

A meningite asséptica é uma inflamação não bacteriana das meninges.¹ É comumente causada por vírus, mas uma variedade de agentes infecciosos e não infecciosos, incluindo medicamentos, pode estar implicada.²

A meningite asséptica induzida por medicamentos (MAIM) é uma entidade rara e constitui um desafio diagnóstico e de manejo de pacientes. Os medicamentos mais frequentemente associados são os anti-inflamatórios não esteroidais (AINEs), antibióticos, imunossupressores, imunomoduladores, antiepilépticos e intratecais.^3,4

O ibuprofeno é a principal causa de MAIM, tendo sido descrito em vários relatos de casos, especialmente em adultos com doenças autoimunes.^4,5,6

DESCRIÇÃO DO CASO

Paciente do sexo masculino, 15 anos, previamente saudável, apresentou-se ao pronto-socorro com cefaleia, náuseas, tontura, febre e visão turva com início 30 minutos após tomar uma dose única de 400 mg de ibuprofeno. Uma semana antes, ele havia tido dor de cabeça, náuseas e febre após ingerir ibuprofeno, prescrito devido a uma fratura do quinto osso metatársico direito.

Paciente relatou histórico familiar de doença autoimune: airmã de 20 anos apresentava tireoidite autoimune.

Ao exame, estava febril (temperatura auricular de 38,4º C), pressão arterial de 130/71 mmHg e pulsação de 93/minuto. Seu exame neurológico estava normal, sem alteração do estado mental ou sinais meníngeos ou focais. Apresentava hiperemia conjuntival, sem secreção ocular. O exame dos demais órgãos não foi digno de nota.

Os exames laboratoriais revelaram contagem total de leucócitos de 9.900/µL, com diferencial de 76,9% de neutrófilos e 19,4% de linfócitos, proteína C reativa de 1,2 mg/L e hemocultura negativa.

Ele foi internado para controle clínico. No dia 1, o paciente ainda teve febre e a cefaleia tornou-se mais intensa, com emese. Ao exame, apresentava rigidez no pescoço. Foi realizada punção lombar, e a análise do líquido cefalorraquidiano (LCR) revelou cor clara, com contagem total de leucócitos de 268/mm³ (0% neutrófilos e 100% linfócitos), glicose 58 mg/dL e proteína total 720 mg/dL. Nenhum micro-organismo foi encontrado na coloração de Gram e o resultado da cultura foi negativo. A pesquisa de antígenos bacterianos (Haemophilus influenzae tipo b, Streptococcus pneumoniae, Neisseria meningitidis A, B e C, e Escherichia coli k1) e da reação em cadeia da polimerase (RCP) via enterovírus também foi negativa. O ibuprofeno foi descontinuado e o paciente melhorou sem tratamento específico. Os sintomas foram eliminados 48 horas após a admissão, sem sequelasneurológicas.

O paciente recebeu alta com diagnóstico presuntivo de meningite asséptica induzida por ibuprofeno, tendo sido orientado a não fazer mais uso de AINEs. A pesquisa de doenças autoimunes foi negativa e incluiu anticorpos antinucleares, antifosfolípides e antitireoidianos.

Foi feito um relatório para a Autoridade Nacional de Medicamentos e Produtos de Saúde (Infarmed), que considerou provável a ligação entre a ingestão de ibuprofeno e meningite asséptica.

DISCUSSÃO

Os AINEs são os medicamentos mais comuns relacionados à MAIM.^7,8 O primeiro relato data de 1978, de um paciente com lúpus eritematoso sistêmico (LES) com meningite induzida pelo ibuprofeno.⁹ Desde então, vários relatos de meningite asséptica atribuídos a AINEs foram feitos, incluindo dexibuprofeno, dexcetoprofeno, flurbiprofeno, diclofenaco, sulindaco, cetoprofeno, tolmetina, piroxicam, indometacina, naproxeno e prostaglandina-endoperóxido sintase 2 (PGHS-2) (rofecoxibe e celecoxibe).^5,8,10 O ibuprofeno permanece, no entanto, como a principal causa de MAIM.⁵

Até onde se sabe, existem apenas dois relatos de casos publicados sobre meningite asséptica induzida por AINEs em idade pediátrica, causada por ibuprofeno³ e rofecoxibe¹¹. Resumimos as características clínicas e laboratoriais na Tabela 1.

Tabela 1
Características clínicas e laboratoriais de três pacientes pediátricos com meningite induzida por medicamentos anti-inflamatórios não esteroides.

	Bonnel et al. 200211	Frank-Briggs et al. 20143	Pires et al. 2019*
Idade	16	15	15
Gênero	Feminino	Masculino	Masculino
Medicamento (dose)	Rofecoxibe (12,5 mg/dia)	Ibuprofeno (n/a)	Ibuprofeno (400 mg/dia)
Doenças associadas	Nenhuma	Nenhuma	Nenhuma
Tempo entre ingesta do medicamento e sintomas	12 dias	3 dias	30 minutos
Sintomas	Dor de cabeça, dormência na perna direita e no lado direito da face, alteração do estado mental	Febre (39ºC), estado mental alterado, sinal positivo de Kernig, hipertonia dos membros inferiores	Febre (38,4ºC), hiperemia conjuntival, cefaleia, tontura, visão turva, vômitos, rigidez de nuca
LCR
- Glóbulos brancos/mm3	- 82	- 75	- 268
- Neutrófilos (%)	- 0	- 27	- 0
- Linfócitos (%)	- 100	- 73	- 100
- Glicose (mg/dL)	- N/a	- 42	- 58
- Proteínas (mg/dL)	- Aumentadas (sem valor disponível)	- 102	- 720
- Culturas	- Negativas	- Negativas	- Negativas
- Outras	- Negativo para isolados virais, fúngicos e bacterianos	- CMV, VHS 1 e 2, VEB, arbovírus e RCP para Mycobacterium tuberculosis negativos	- RCP negativa para enterovírus
Tratamento antibiótico	Ceftriaxona e aciclovir	Vancomicina e ceftriaxona	Nenhum
Sequelas	Nenhuma	Nenhuma	Nenhuma

• LCR: líquido cerebrospinal; CMV: citomegalovírus; VHS: vírus herpes simplex; VEB: vírus Epstein-Barr; RCP: reação em cadeia da polimerase. *Estudo atual.

Geralmente, pacientes com MAIM apresentam febre, estado mental alterado, cefaleia, rigidez de nuca, náuseas e vômito. Noentanto, a meningoencefalite com déficits focais neurológicos não é incomum. Visão turva e conjuntivite também podem ocorrer, como em nosso relato.^4,5,6

A MAIM é um diagnóstico de exclusão e as causas infecciosas devem ser sempre descartadas. A apresentação clínica pode ser bastante semelhante à da meningite bacteriana aguda, porisso a análise do LCR não permite excluir tal diagnóstico até que a cultura seja negativa. Os achados de LCR não são específicos e geralmente há pleocitose com predomínio de neutrófilos (em 72,2% dos casos), valores normais a baixos de glicose e aumento de proteínas.⁵ Portanto, se houver suspeita clínica de meningite bacteriana, deve ser instituída antibioticoterapia até que as culturas sejam negativadas. Além disso, nos casos que se apresentam como meningoencefalite, deve-se considerar tratamento antiviral.

Linfócitos e até eosinófilos podem se mostrar predominantes ocasionalmente.^5,12 Em nosso paciente, no entanto, encontramos pleocitose com 100% de linfócitos, aumento de proteínas e glicorraquia normal.¹³ Alguns autores sugerem que diferentes resultados da análise do LCR podem estar relacionados ao momento em que se realiza a punção lombar, ou seja, em diferentes estágios da doença.^10,14,15 A normalização dos parâmetros do LCR ocorre de forma bastante lenta, aolongo de vários dias.^5,12

Por outro lado, pode ser difícil diferencias a meningite viral da MAIM. No caso que relatamos e de acordo com as manifestações clínicas e achados ligados ao LCR, fizemos RCP de enterovírus no LCR para excluir infecção por esse agente viralprincipal.¹

Suspeita-se de MAIM quando se estabelece uma relação temporal entre a administração da droga e o início dos sintomas. O período de latência é curto, tipicamente menos de 48 horas.³ A resolução dos sintomas é rápida após a retirada do medicamento, podendo ocorrer em um a cinco dias.^4,12Nameningite viral, ao contrário, o tempo de recuperação é maior, de 10 a 14 dias.⁶

MAIM pode ocorrer em pacientes que anteriormente tinham tolerância ao medicamento causador.^3,6 Houve exposição anterior ao medicamento em 35% dos pacientes com meningite induzida por ibuprofeno.⁴ Em nosso paciente, o período mais curto entre a ingestão de ibuprofeno e o início dos sintomas com aumento da gravidade na segunda exposição foram pistas úteis para o diagnóstico. Além disso, o adolescente se recuperou completamente apenas 48 horas após a retirada da substância.

É mais frequente em mulheres (64%) e os episódios recorrentes são bastante comuns (61%), principalmente quando o diagnóstico não é feito no primeiro caso.^5,15,16 Nova administração do medicamento pode confirmar o diagnóstico,¹⁴ masnão é aconselhável, pois pode levar a sintomas graves.¹⁷

Os pacientes devem ser orientados a evitar não só o ibuprofeno, mas todos os AINEs, pois podem ocorrer episódios recorrentes de meningite asséptica relacionados.^10,18 É preciso fornecer alternativas ao sujeito e explicar que a meningite asséptica independe da dose do AINE.⁵

Existe uma forte associação entre MAIM e doenças autoimunes (especialmente o LES), por isso recomenda-se uma triagem analítica mesmo em pacientes assintomáticos.^5,17 A maior incidência de meningite asséptica induzida pelo ibuprofeno em pacientes com doenças autoimunes poderia estar relacionada ao uso desenfreado de AINEs ou à predisposição à autorreação dos pacientes.^5,15 Isso é muito importante na população pediátrica, porque a MAIM pode ser o primeiro sinal que leva à suspeita de um distúrbio autoimune subjacente. Em nosso relato de caso, apesar do histórico familiar de doença autoimune, o teste de autoanticorpos foi negativo.

O mecanismo que leva os AINEs a causarem inflamação meníngea é incerto, mas parece ser uma reação de hipersensibilidade mediada imunologicamente (tipo III ou IV).^1,5,6

O aumento do número de casos de meningite asséptica induzida por AINEs, mesmo em pessoas saudáveis, pode estar relacionado ao uso mais amplo deste medicamento.⁵ Pode se tratar de um problema maior em países onde são comprados sem receita, como Portugal. Portanto, é muito importante chamar atenção da classe médica para essa condição e relatar os efeitos colaterais dos medicamentos.

Nosso relato de caso de meningite asséptica por ibuprofeno ilustra a importância do diagnóstico precoce, de forma que a droga causadora possa ser retirada e as recorrências, evitadas. Rápido início e resolução dos sintomas com achados compatíveis com LCR sugerem MAIM. Como se trata de diagnóstico de exclusão, é importante investigar e excluir outras causas de meningite, especialmente agentes infecciosos, e sempre obter uma história detalhada de uso do medicamento.¹²O prognóstico geralmente é bom, sem sequelas de longo prazo.⁵

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Financiamento

• Este estudo não recebeu financiamento.

Datas de Publicação

• Publicação nesta coleção
  03 Jun 2019
• Data do Fascículo
  Jul-Sep 2019

Histórico

• Recebido
  14 Jan 2018
• Aceito
  15 Abr 2018
• Publicado
  21 Maio 2019