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Laicidade do Estado no Uruguai: Considerações a partir do debate parlamentar sobre o aborto (1985-2016)1 1 Este artigo é um dos resultados de minha investigação no trabalho de tese, intitulado Sobre Corpos, Crucifixos e Liberdades: A laicidade do Estado analisada a partir do debate legislativo sobre o aborto no Brasil e no Uruguai (1985-2016), elaborado sob inestimável auxílio e orientação da Prof.ª Dra. Flávia Biroli. Agradeço imensamente as contribuições realizadas no âmbito da defesa pelas professoras Maria José Rosado Nunes (PUC-SP), Susana Rostagnol (UdelaR, Uruguai) e Danusa Marques (UnB). Agradeço também as relevantes considerações ao artigo realizadas pelos/as pareceristas anônimos/as da Revista Religião & Sociedade.

Laicity of State in Uruguay: Considerations from the parliamentary debate on abortion (1985-2016)

Resumo:

O objetivo deste artigo é examinar a amplitude da hipótese sobre possíveis alterações no modelo de laicidade do Estado no Uruguai. Para isso, esta investigação se dedicou a analisar o debate legislativo sobre o aborto, com o intuito de verificar a influência de convicções morais e/ou religiosas na discussão deste assunto de natureza pública. A metodologia aplicada consistiu na análise dos pronunciamentos dos/as parlamentares que compõem a Cámara de Representantes, proferidos entre os anos de 1985 e 2016. Na primeira seção, o texto concentra-se em construir o problema de pesquisa. Na segunda, apresentamos os dados aferidos, especificamente as posições e argumentos mobilizados pelos/as parlamentares. A partir das constatações, discutimos as confluências e divergências dos resultados com a hipótese acerca de modificações na laicidade construída no Uruguai.

Palavras-chave:
Laicidade do Estado; Uruguai; Poder Legislativo; Aborto

Abstract:

The objective of this article is to examine the magnitude of the hypothesis about possible changes in the laicity of state model in Uruguay. For this purpose, this research was dedicated to analyze the legislative debate on abortion, in order to verify the influence of moral and/or religious convictions in the discussion of this public matter. The methodology applied consisted of the analysis of the parliamentary pronouncements of the House of Representatives, pronounced between 1985 and 2016. In the first part, the text focuses on constructing the research problem. In the second part, we present the data collected, specifically the positions and arguments mobilized by the parliamentarians. From the findings, we discuss the confluences and divergences of the results with the hypothesis about modifications in the laicity built in Uruguay.

Keywords:
Laicity of State; Uruguay; Legislative Branch; Abortion

Introdução

O Uruguai é considerado caso paradigmático em relação à adoção de políticas em prol da laicidade do Estado. As raízes deste processo são, em grande parte, fruto de tensões ocorridas entre os séculos XIX e XX. Conforme argumenta Roberto Blancarte (2012______. (2012), “Prólogo a la edición en español”. In: E. Poulat. Nuestra laicidad pública. México/DF: Fondo de Cultura Económica (FCE).), a França não inventou a laicidade, mas sim o conceito que explica o fenômeno, pois já havia relativa difusão de seus princípios em países como Turquia, Alemanha, México e Uruguai.

No contexto contemporâneo, foram aprovadas no Uruguai, pelos Poderes Legislativo e Executivo, legislações sobre as quais repousa intensiva mobilização e interesse de grupos e instituições religiosas, sob justificativa de preservar valores vitais à sociedade, entre elas: a descriminalização do aborto, o casamento civil igualitário e a legalização do uso da maconha. Mesmo assim, boa parte dos analistas aponta para possíveis rupturas no modelo de laicidade do Estado estabelecido no país. Esta hipótese sustenta-se a partir de fenômenos ocorridos após a redemocratização, em 1985, tais como: a edificação de monumentos religiosos no espaço público, a proximidade entre religião e política nas últimas eleições e a tolerância quanto à ingerência religiosa em assuntos públicos. Tal hipótese conflui com a acepção de que a laicidade do Estado não é algo estático, sua estrutura pode ser alterada de acordo com as forças políticas e sociais envolvidas, seja para invocar, seja para negar sua função de assegurar a pluralidade de ideias e crenças em uma democracia.

O objetivo deste artigo é examinar a amplitude dessa hipótese a partir do debate legislativo sobre o aborto, com o intuito de verificar a influência de convicções morais e/ou religiosas na discussão desse assunto de natureza pública. Os direitos sexuais e reprodutivos estão intrinsecamente ligados à construção do Estado laico, em virtude da obrigação do Estado em assegurar a liberdade de consciência, impedindo que alguém seja obrigado a acreditar em algo. A liberdade de consciência promove a pluralidade de ideias, religiosas e seculares, as quais submetem algumas crenças à relativização no espaço público e à criação de juízos morais aceitáveis por todos, alheios a uma doutrina específica (Blancarte 2008BLANCARTE, Roberto. (2008), “El porqué de un Estado Laico”. In: ______. Los retos de la laicidad y la secularización en el mundo contemporáneo. México/DF: El Colegio de México.).

A metodologia aplicada neste empreendimento consistiu na análise dos pronunciamentos sobre o aborto dos/as parlamentares que compõem a Cámara de Representantes, proferidos entre os anos de 1985 e 2016. Este trabalho integra um conjunto de pesquisas com foco nesse material, empreendidas pelo Grupo de Pesquisas Democracia e Desigualdades da Universidade de Brasília (UnB), no âmbito do Projeto “Direito ao aborto e sentidos da maternidade: atores e posições em disputa no Brasil contemporâneo”2 2 O projeto foi financiado pelo CNPq através do edital MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA 32/2012. Agradeço a CNPq, CAPES, DPP/UnB e FAP/DF por colaborarem de diferentes formas para a realização deste trabalho. , coordenado pela Prof.ª Flávia Biroli e pelo Prof. Luis Felipe Miguel, com alguns resultados já publicados em periódicos nacionais e estrangeiros, citados no decurso da escrita.

Na primeira parte, o texto concentra-se em construir o problema de pesquisa. Examinamos a construção da laicidade do Estado no Uruguai, a partir de processos político-sociais remanescentes do século XIX e início do século XX, os quais tiveram como finalidade implementar reformas políticas com inflexão laica. Do mesmo modo, nos dedicamos a identificar as bases de possíveis rupturas na laicidade do Estado a partir da redemocratização. Na segunda parte, explicitamos os parâmetros metodológicos da investigação, assim como apresentamos os dados aferidos, especificamente as posições e argumentos mobilizados pelos/as parlamentares para dissertar sobre políticas relacionadas à interrupção voluntária da gravidez. A partir das constatações, discutimos as confluências e divergências dos resultados com a hipótese de possíveis modificações no modelo de laicidade construído no Uruguai.

A construção da laicidade do Estado e sua conformação no contexto contemporâneo

As bases históricas da laicidade uruguaia

O Uruguai declarou-se independente em 1830, após o fim da Guerra da Cisplatina. Entre os anos de 1839 e 1852, aconteceu a chamada Grande Guerra, que ocorreu entre os grupos rivais do país, denominados “blancos” e “colorados3 3 O Partido Nacional (blanco), de inspiração conservadora, e o Partido Colorado, com inflexão progressista e ao centro, são remanescentes desses grupos políticos. É após este cenário de indefinições e disputas que as políticas laicas são implementadas; por isso, é plausível aferir que essas políticas nascem quase que em concomitância ao decurso de formação do Estado uruguaio. . A evangelização do território hoje conhecido como Uruguai foi tardia. Durante todo o período colonial, não havia um alto clero, e os poucos missionários presentes no território tinham dificuldades de comunicação com a população, por questões idiomáticas (Barrán 1998______. (1998), Uruguay: sociedad, política y cultura. Extremadura: CEXCI.). A escassez de metais preciosos tornou a chamada Banda Oriental uma região sem atrativos para a Coroa espanhola e a Igreja Católica (Sotelo et al. 2008SOTELO, Victoria et al. (2008), “Religión y pobreza: la Iglesia Universal del Reino de Dios en Uruguay”. In: G. Zalpa; H. Offerdal. ¿El reino de Dios es de este mundo?: El papel ambiguo de las religiones en la lucha contra la pobreza. Bogotá: CLACSO.; Da Costa 1997). Disso resulta a subordinação da Igreja uruguaia à Sede Episcopal de Buenos Aires, assim como a inexistência de iniciativas da Igreja para institucionalizar-se no país (Ángeles e Allende 2014ÁNGELES, Rafael; ALLENDE, Jonatán. (2014), “Secularización, laicismo y reformas liberales en Uruguay”. Revista de Estudios Jurídicos, nº 14: 1-17. ).

Durante a elaboração da primeira Constituição do Uruguai, em 1830, estabeleceu-se em seu artigo 5° o catolicismo como religião oficial do Estado. Em consequência disso, em 1832, o Papa Gregório XVI criou o Vicariato Apostólico de Montevidéu. Iniciou-se, assim, um processo modesto de institucionalização da Igreja Católica no país. O retorno dos jesuítas4 4 Expulsos no século XVIII pela Coroa espanhola. em 1842 deu impulso à visão de cristianização como reação e contraposição às transformações filosóficas, científicas e sociais no mundo ocidental (Sansón 2011______. (2011), “La iglesia y el proceso de secularización en el Uruguay moderno (1859-1919)”. Revista Hispania Sacra, vol. 63, nº 127: 283-303.). A posição dos jesuítas entrou em choque com o catolicismo liberal ou maçônico5 5 Católicos maçons eram comuns na cosmologia religiosa do período. No Uruguai, esta clivagem do catolicismo caracteriza-se por sua tendência liberal, não dogmática e antiultramonta. Esse fenômeno também ocorreu no Brasil e foi responsável pela ruptura temporária nas relações entre o Estado e a Igreja Católica em 1870. , corrente que já havia se estabelecido no Uruguai. A proposta dos jesuítas era consolidar-se e estabelecer a influência do catolicismo ultramontano na sociedade e nas ações do Estado (Da Costa 2011).

Diante desse panorama, é possível perceber a existência de duas tendências opostas. De um lado, uma religiosidade baseada em pressupostos racionalistas e liberais, respaldada, inclusive, por boa parte do clero católico (Caetano e Geymonat 1997CAETANO, Gerardo; GEYMONAT, Roger. (1997), La secularización uruguaya (1859-1919). Montevideo: Taurus.). De outro, a emergência da vertente ultramontana6 6 Esta visão foi em grande parte construída pelo movimento católico ultramontano (acima das montanhas), que entendia a necessidade de retorno aos fundamentos políticos e sociais presentes na Idade Média. Daí a proposta de que os poderes terrenos deveriam estar subordinados ao Papa e ao direito canônico. Em muitos países, essa corrente do catolicismo teve papel significativo na luta contra o estabelecimento do Estado laico. , a qual buscava consolidação a partir da ocupação de espaços, com base em uma proposta de crença ortodoxa, dogmática e proselitista, apoiada na negação e condenação às vertentes religiosas importantes no Uruguai (Da Costa 1999).

O antagonismo dessas posições deflagrou uma série de conflitos por espaços e poder político entre as tendências. O primeiro deles foi a proibição da maçonaria, em 1856, pelo Vigário Lamas (Ardao 2013ARDAO, Arturo. (2013), Racionalismo y Liberalismo en el Uruguay. Montevideo: Ediciones Universitarias, Universidad de la Republica (UDELAR). (Colección Clásicos).). Após isso, em 1859, os jesuítas foram expulsos pelas lideranças políticas, em virtude de manifestações antimaçônicas (Sansón 2011______. (2011), “La iglesia y el proceso de secularización en el Uruguay moderno (1859-1919)”. Revista Hispania Sacra, vol. 63, nº 127: 283-303.). Em 1860, o recém-empossado Vigário Jacinto Vera7 7 É considerado o grande responsável pela organização institucional da Igreja uruguaia, em que pese as debilidades estruturais do período; desempenhou a tarefa crucial em unificar o catolicismo em torno das diretrizes do Papa Pio IX e do ultramontanismo (Sansón 2011). expulsou membros do clero vinculados ao catolicismo liberal ou maçônico (Da Costa 1999). Contudo, nenhum desses episódios causou tanta tensão quanto à recusa da Igreja Católica, em 1861, em sepultar Jacobson, notável católico maçom da cidade (Caetano e Geymonat 1997CAETANO, Gerardo; GEYMONAT, Roger. (1997), La secularización uruguaya (1859-1919). Montevideo: Taurus.). O caso teve enorme repercussão na sociedade, mobilizando o posicionamento de intelectuais e atores políticos por meio da imprensa da época. Como resposta a esse ato, no mesmo ano, os cemitérios foram secularizados; logo, deixaram de ser administrados pela Igreja para serem pelo Estado (Ángeles e Allende 2014ÁNGELES, Rafael; ALLENDE, Jonatán. (2014), “Secularización, laicismo y reformas liberales en Uruguay”. Revista de Estudios Jurídicos, nº 14: 1-17. ). Esta seria a primeira intervenção estatal (de outras muitas) em espaços que anteriormente estavam sob domínio religioso.

O debate em torno das posições sobre a secularização dos cemitérios polarizou a sociedade uruguaia. Essa bifurcação é denominada por Gerardo Caetano (2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.) como o “conflito intelectual”, que ocorreu entre 1868 e 1878. Por um lado, aqueles que acreditavam que a Igreja era vital à organização social. Por outro, desenvolveu-se a partir daí resistências à Igreja e à percepção da fé católica ultramontana. Essa oposição materializou-se por meio das ações do Estado durante o período histórico denominado “Militarismo” (1860-1890), em que lideranças político-militares governaram o Uruguai (principalmente vinculadas ao Partido Colorado, como Lorenzo Latorre). Um aspecto peculiar do “militarismo” foi conferir primazia ao exército como instituição capaz de organizar a sociedade, em detrimento dos partidos políticos.

Em meio a esse ambiente, a filosofia positivista chegou ao conhecimento das elites uruguaias. De acordo com Sansón (1998SANSÓN, Tomás. (1998), El catolicismo popular en el Uruguay. Montevideo: Editora Asociación de escritores de Cerro Largo.), o positivismo desempenhou expressiva influência no país, a ponto de reorganizar o ensino universitário e modificar o modo como a classe política entendia e enfrentava questões político-sociais. Em virtude disso, as instituições políticas foram fundadas tendo como suporte os princípios de progresso (Guigou 2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.). No âmbito social, o positivismo impulsionou e legitimou a crença na ciência, razão (valores já presentes no país) e na necessidade de seguir os passos da modernidade (Sansón 2011; Caetano e Geymonat 1997CAETANO, Gerardo; GEYMONAT, Roger. (1997), La secularización uruguaya (1859-1919). Montevideo: Taurus.). Essa perspectiva contribuiu progressivamente para o estímulo de uma militância anticlerical, que passava a entender o catolicismo e a fé como manifestações ultrapassadas de compreensão do mundo, ou seja, antíteses ao progresso e entraves ao desenvolvimento (Barrán 1998; Guigou 2000).

Com base nesses pressupostos, uma série de medidas foram adotadas pelas lideranças políticas durante o período do “militarismo”, no intuito de secularizar a sociedade. A Reforma da Educação, de 1877, foi a primeira e mais polêmica deste conjunto de ações. José Pedro Varela, empossado Diretor de Instrução Pública, incorporou na reestruturação escolar o princípio do modelo laico de ensino. Assim, a educação passava a ser gratuita e obrigatória, e o ensino religioso tornava-se componente curricular optativo. Em suma, a ideia era estabelecer um sistema de ensino sem a participação da Igreja Católica na formação das novas gerações. As reações dos líderes eclesiásticos e políticos direcionaram-se para uma tentativa de influenciar o debate público, mediante a “demonização” através de qualificações do gênero “Escola sem deus” (Guigou 2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.).

Em 1879, foi promulgada a Lei de Registro Civil, através da qual se retirou da Igreja o poder legal de reconhecimento e inscrição dos nascimentos, matrimônios e óbitos (Guigou 2000GUIGOU, Nicolás. (2000), A nação laica: religião civil e mito-práxis no Uruguai. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS.). Por meio desse dispositivo, segundo Tomás Sansón (2011______. (2011), “La iglesia y el proceso de secularización en el Uruguay moderno (1859-1919)”. Revista Hispania Sacra, vol. 63, nº 127: 283-303.), foi plausível registrar um movimento em direção à “descristianização” da sociedade uruguaia. O indicador utilizado pelo autor é o declínio nos registros de matrimônios e batismos religiosos realizados entre os anos de 1870 e 1900 (Sansón 2011:294-295).

A Lei de Conventos, de 1885, declarou a inexistência legal de todos os conventos e casas de oração e, ademais, proibiu o ingresso de religiosos estrangeiros no país (Da Costa 2011). O impacto simbólico e estratégico dessa medida legal é singular, uma vez que teve por propósito marginalizar a instituição, não reconhecendo sequer sua existência por parte do Estado. Estrategicamente, essa norma dificultou a política eclesial adotada desde 1870, pelo Bispo Jacinto Vera, o qual almejou expandir a religiosidade, o clero e as ações da Igreja por meio do ingresso de distintas congregações católicas no país, tais como: salesianos, capuchinhos, vicentinos, entre outras.

Diante disso, a Igreja Católica investiu na tentativa de construir uma base de apoio social em meio a esse ambiente hostil. Primeiramente, destaca-se o estímulo à criação de associações leigas8 8 Como El Club Católico e Los Congresos Católicos. Esses congressos aconteceram em quatro oportunidades entre os anos de 1889 e 1911, em que se discutiam estratégias de resistência e temas da estrutura eclesial. , que reforçavam os laços internos entre os fiéis e contribuíam no trabalho de evangelização, compensando, assim, a ausência de sacerdotes nessa função. Ademais, a Igreja empreendeu, entre os anos de 1896 e 1908, missões de evangelização no campo. Com o espaço urbano “sitiado” por grupos anticlericais, a proposta consistia em conquistar influência entre a população rural. De acordo com Tomás Sansón (2011______. (2011), “La iglesia y el proceso de secularización en el Uruguay moderno (1859-1919)”. Revista Hispania Sacra, vol. 63, nº 127: 283-303.), as 211 missões percorreram todo o país e obtiveram êxitos relevantes na realização de batismos, comunhões e casamentos; não obstante, a interrupção das atividades prejudicou uma maior adesão da população rural9 9 O baixo contingente de pessoas (sacerdotes e leigos), as dificuldades operacionais e estruturais são indicadores apresentados para entender essa interrupção. .

Por seu turno, os grupos anticlericais promoveram ações também em outras esferas. Além do chamado “conflito intelectual”, desenvolveu-se uma militância radical através da mobilização popular10 10 No conjunto de mobilizações, há episódios mais inusitados, como o Banquete da Promiscuidade. Este era um evento que começou em Montevidéu no final do século XIX. Tratava-se basicamente de uma convocação pública (realizada por célebres líderes liberais do movimento anticlerical) para grandes “churrascadas” nos arredores da Catedral de Montevidéu, nada mais nada menos que na sexta-feira santa, data em que católicos não comem carne (Da Costa 1999). . Os dados apresentados por Nicolás Guigou (2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.) e José Pedro Barrán (1998) dão conta da realização de mobilizações massivas a partir de 1892, chegando a reunir em Montevidéu o número de 15 mil participantes. Segundo Barrán (1998), o anticlericalismo ganhou as ruas, as medidas e a militância anticlerical lograram apoio e adesão em amplas parcelas da população do país (Caetano e Geymonat 1997CAETANO, Gerardo; GEYMONAT, Roger. (1997), La secularización uruguaya (1859-1919). Montevideo: Taurus.).

Os conflitos entre os grupos anticlericais e a Igreja Católica registrados entre as décadas de 1860 e 1900 deflagrariam os passos iniciais em direção à construção do modelo de nação laica e da religião civil. Esse período é entendido como uma espécie de primeiro ato ou preâmbulo às reformas executadas no início do século XX, que aprofundaram a privatização e a marginalização do religioso na sociedade uruguaia (Caetano e Geymonat 1997CAETANO, Gerardo; GEYMONAT, Roger. (1997), La secularización uruguaya (1859-1919). Montevideo: Taurus.).

A partir disso, a Igreja Católica recuou progressivamente e adotou a posição modesta de apenas proteger e conservar seus fiéis diante de uma sociedade moralmente “perdida”. As palavras expressas na carta enviada pelo Monsenhor Yéregui ao Papa, em 1888, denotam sua preocupação com aspectos ideológicos adotados pelas elites e sua relação com a Igreja: “Desgraçadamente, o desenvolvimento dos princípios liberais, ateístas, racionalistas, positivistas e maçônicos se encarnou no poder e a partir daí fazem uma feroz guerra contra a religião católica” (Sansón 2011______. (2011), “La iglesia y el proceso de secularización en el Uruguay moderno (1859-1919)”. Revista Hispania Sacra, vol. 63, nº 127: 283-303.:296, tradução nossa)11 11 Do original: “Desgraciadamente el desenvolvimiento de los principios liberales, ateos, racionalistas, positivistas y masónicos se han encarnado en el poder y desde allí hacen encarnizada guerra a la religión católica”. . O Monsenhor Soler, em 1905, em carta ao clero, aponta a ampliação desta “degeneração” na sociedade uruguaia: “É tão triste a situação atual! É verdade; todos os dias a impiedade penetra mais profundamente na juventude e nas massas populares, e a indiferença religiosa estende seu domínio de maneira terrível, mesmo entre os fiéis. É maior do que poderia manifestar a preocupação que me atormenta sobre o futuro da Igreja e da sociedade em nosso país” (Sansón 2011:297, tradução nossa)12 12 Do original: “Es tan triste la situación presente! Es verdad; cada día la impiedad penetra más profundamente en la juventud y en las masas populares, y la indiferencia religiosa extiende su dominio de una manera pavorosa hasta entre los fieles. Es más grande de lo que pudiera manifestar la preocupación que me atormenta acerca del porvenir de la Iglesia y de la sociedad en nuestra patria”. .

A construção da laicidade do Estado como “Religião Civil”

A ascensão de José Batlle y Ordoñez à Presidência do Uruguai (1903-1907 e 1911-1915 - Partido Colorado), conjuntamente ao seu grupo político pertencente ao Partido Colorado, tornou a separação entre Igreja e Estado uma agenda política de governo. Esta é uma diferença peculiar em comparação às políticas anticlericais do século XIX implementadas pelo “militarismo”. Como vimos, naquele momento houve tensões entre essas esferas, mas no período batllista13 13 A Época Batllista representa o período entre 1903-1930, em que José Batlle y Ordoñez e seu grupo político vinculado ao Partido Colorado estiveram à frente do governo uruguaio e operaram reformas importantes em direção à modernização do Estado. O Batllismo, ainda hoje, é uma das principais correntes ideológicas no Uruguai, influenciando obviamente o Partido Colorado (ao centro) e também a Frente Ampla (mais à esquerda). a neutralidade das instituições em relação às convicções morais e religiosas foi um princípio adotado como peça central às bases do Estado.

As ideias do batllismo foram compostas por distintas inspirações. Notadamente, o liberalismo constituiu-se em uma das principais influências desse grupo político (Ardao 2013ARDAO, Arturo. (2013), Racionalismo y Liberalismo en el Uruguay. Montevideo: Ediciones Universitarias, Universidad de la Republica (UDELAR). (Colección Clásicos).). A ênfase nas liberdades de consciência, religiosa e individual são características das reformas engendradas naquele período. Paradoxalmente, os representantes dessa corrente política rejeitavam o individualismo exacerbado do liberalismo (como a ideologia do laissez-faire) e acreditavam na intervenção estatal para a promoção da igualdade, liberdade e desenvolvimento econômico (Souza 2003SOUZA, Marcos. (2003), A cultura política do Batllismo no Uruguai (1903-1958). São Paulo: Ed. FAPESP/Annablume.). Havia a profunda crença na ideia de que cabia ao Estado desenvolver políticas voltadas à justiça social.

O batllismo representou (e representa) uma combinação complexa das vertentes teóricas e ideológicas do início do século XX, nas quais é possível encontrar elementos do pensamento liberal, racionalista, socialista e socialdemocrata (Ardao 2013ARDAO, Arturo. (2013), Racionalismo y Liberalismo en el Uruguay. Montevideo: Ediciones Universitarias, Universidad de la Republica (UDELAR). (Colección Clásicos).; Caetano 2011CAETANO, Gerardo. (2011), La República Batllista. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental.; Caetano e Geymonat 1997). Não obstante, todas essas influências foram equilibradas em uma composição que tornam o batllismo uma concepção política sui generis (Barrán 1988; Ardao 2013; Caetano 2011).

Abaixo, listamos as principais medidas adotadas em prol da laicidade do Estado e da secularização no Uruguai no período batllista, em lista elaborada com base em Ardao (2013ARDAO, Arturo. (2013), Racionalismo y Liberalismo en el Uruguay. Montevideo: Ediciones Universitarias, Universidad de la Republica (UDELAR). (Colección Clásicos).), Guigou (2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.) e Da Costa (1997):

1906 - Retirada das imagens religiosas dos hospitais.

1907 - Extinguiu-se a regra que exigia juramento com referência a Deus e aos evangelhos dos legisladores e chefes do Poder Executivo recém-empossados.

1909 - Reforma no ensino, instituindo a universalização da educação pública e gratuita. Ademais, o modelo de escola laica presente na Reforma de 1877 é radicalizado. O ensino religioso nas escolas públicas é proibido e passa a ser considerado crime, com penas de suspensão e destituição do cargo aos professores reincidentes.

1911 - Extinguiu-se toda referência religiosa do Código e dos ritos militares.

1913 - Aprovação da Lei do divórcio pela vontade da mulher (ver Cabella 1998CABELLA, Wanda. (1998), “La evolución del divorcio en Uruguay (1950-1995)”. Repositório CEPAL. Seção Notas de Población: 209-245. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.cepal.org/handle/11362/12681 . Acesso em: 23/05/2017.
https://repositorio.cepal.org/handle/113...
).

1917 - Separação formal entre a Igreja Católica e o Estado, que passou a vigorar a partir da promulgação da Constituição de 1919.

1919 - Secularização dos nomes dos feriados. Por exemplo, o Natal passou a se chamar Festa da Família, e a Semana Santa, Semana do Turismo (entre outras mudanças).

1919 - Secularização dos nomes das cidades. Mais de trinta cidades registradas com nomes de santos foram “rebatizadas” com nomes seculares.

1934 - A descriminalização do aborto14 14 Somente a União Soviética possuía uma legislação de interrupção voluntária da gravidez no mundo. Graciela Sapriza (2011) argumenta que, no Uruguai, a descriminalização do aborto em 1934 teve forte inflexão eugenista. Em 1938, o aborto tornou a ser criminalizado, com essa legislação permanecendo vigente até 2012, quando foi descriminalizado novamente. Convém ressaltar que a legislação de 1938 estipulava muitos casos de exceção, sobre os quais não se aplicava qualquer tipo de pena. Entre as atenuantes estão: gravidez com risco de saúde ou vida da mulher; estupro; penúria econômica e honra (Sapriza 2011). e da eutanásia, aprovadas durante a ditadura de Gabriel Terra (1931-1938) (posterior ao primeiro batllismo)15 15 Gabriel Terra era filiado ao Partido Colorado e pertencia ao batllismo. Todavia, após eleito em 1930, afastou-se desse grupo político. Apesar de romper com a legalidade e a alternância no poder (identificada desde o século XIX), não há registros de rupturas significativas quanto à laicidade e à secularização (Guigou 2011). .

De modo geral, esse conjunto de ações avançou de forma radical o projeto de secularização e a laicidade do Estado. Apesar do enorme impacto que gerou na sociedade uruguaia e das campanhas de oposição, as políticas anticlericais contavam com ampla base social, composta por pilares distintos de apoio: 1) parte da população considerava o clero mais preocupado com a riqueza do que com os fiéis; 2) setores da burguesia denunciavam a “corrupção sexual” e o fato de os sacerdotes viverem à custa do povo; 3) já os imigrantes (especialmente os protestantes) se engajaram no apoio a essas ações como forma de autoproteção16 16 Barrán (1988) registra que, entre a metade do século XIX e o início do século XX, houve intenso fluxo de correntes migratórias, a ponto de promover uma “revolução” demográfica, envolvendo em torno de 34% da população do país em 1860 e 18% em 1908 (Souza 2003). A experiência com o catolicismo ultramontano, que perseguia os protestantes na Europa, fez com que esses imigrantes se mobilizassem em prol da privatização do religioso, para que a partir do enfraquecimento do catolicismo pudessem desenvolver suas crenças (Guigou 2011). (Barrán 1988BARRAN, José Pedro. (1988), Iglesia Católica y burguesia en el Uruguay de la modernización (1860-1900). Montevideo: Facultad de Humanidades y Ciencias de la Educación.; Guigou 2000GUIGOU, Nicolás. (2000), A nação laica: religião civil e mito-práxis no Uruguai. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS.). Dessa forma, o batllismo valeu-se do lastro social existente, em grande parte remanescente do período anterior, para a execução de políticas com essa inflexão.

A eliminação de simbologias religiosas das repartições públicas representou a “expulsão” do catolicismo do âmbito público e, por conseguinte, sua privatização (Guigou 2006______. (2006), “Religión y política en el Uruguay”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 6, nº 2: 43-54.). Segundo Gerardo Caetano (2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.), o sentido dessas reformas extrapolava a mera relação de disputa entre a política e a Igreja, pois também se encontravam em sintonia com o modelo de Estado que vinha sendo estruturado. O Estado batllista caracterizou-se por sobrepor-se às convicções particulares, excluindo-as para a esfera privada, a fim de desempenhar a função de principal referência dos uruguaios. Conforme argumenta Nicolás Guigou (2006, 2011), é apropriado entender o Estado nesse período como um “fazedor da nação”, visto que buscou ocupar (e ocupou) o lugar de fornecedor das representações e mitos que serviram de alicerce ao país. Esse processo é entendido pela literatura como a construção de uma religião civil no Uruguai, o que significa dizer que o Estado e o público passaram a assumir o papel de “sagrado”.

Para construir esse modelo, o Estado atuou de forma paternalista. Dito de outro modo, tal modelo não foi resultado de aspirações que vieram de baixo para cima, mas o inverso, ou, como afirma Gerardo Caetano (2011CAETANO, Gerardo. (2011), La República Batllista. Montevideo: Ediciones de la Banda Oriental., 2013), um “reformismo a partir do alto” (“reformismo desde lo alto”). Neste sentido, o Estado foi responsável por pensar, elaborar, aplicar e conduzir as políticas que entendia serem as melhores para o país. Alguns fatores colaboraram para esse modo de ação; entre os mais emblemáticos, estão a frágil e dispersa organização da sociedade civil e a supracitada adesão popular (Caetano e Geymonat 1997).

A “imposição” paternalista de políticas à esfera pública é frequentemente associada a governos autoritários. No entanto, Nicolás Guigou (2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.) sustenta que é inviável entender o batllismo como uma expressão autoritária, em virtude de seu ímpeto democrático. De fato, as medidas eram vanguardistas e geraram enorme tensão; porém, tinham como propósito incluir, e não excluir, ou melhor, conferiam direitos às amplas parcelas da população ao invés de suprimi-los. Portanto, a ideia era desestruturar instituições e valores nocivos à ampla efetivação dos princípios democráticos da igualdade e da liberdade.

No período batllista (1903-1930), a Igreja Católica ainda se empenhou em criar e fortalecer organizações sociais como os Círculos Operários e sindicatos (Sansón 1998SANSÓN, Tomás. (1998), El catolicismo popular en el Uruguay. Montevideo: Editora Asociación de escritores de Cerro Largo.). A resistência católica não foi suficiente para impor obstáculos às reformas laicas. Neste cenário, a partir da Constituição de 1919, a Igreja passou a aceitar seu lugar no âmbito privado, e não mais no público (Ángeles e Allende 2014ÁNGELES, Rafael; ALLENDE, Jonatán. (2014), “Secularización, laicismo y reformas liberales en Uruguay”. Revista de Estudios Jurídicos, nº 14: 1-17. ). A instituição se “fechou para o mundo”, atuando apenas no sentido de preservar seus fiéis e para estabelecer uma diferença entre ela e a sociedade, já “moralmente corrompida” (Sansón 1998). Somente na década de 1960, sob a influência das transformações eclesiais do Concílio Vaticano II, a Igreja Católica reapareceu no espaço público. De acordo com Néstor Da Costa (1999______. (1999), “El Catolicismo en una sociedad secularizada: el caso uruguayo”. Ciencias Sociales y Religión, nº1: 131-141. ), esse ressurgimento não teve como propósito uma restauração do catolicismo na sociedade, mas sim motivado pelo ímpeto em colaborar em obras de ação social. Mesmo assim, tal postura motivou divisão de opiniões, entre aqueles que apoiavam seu posicionamento perante as questões sociais e aqueles que criticavam sua intervenção em assuntos que não eram de sua incumbência (Da Costa 1999______. (1999), “El Catolicismo en una sociedad secularizada: el caso uruguayo”. Ciencias Sociales y Religión, nº1: 131-141. ).

O começo da ditadura militar em 1973 freou o impulso católico de inserção no espaço público. Isto porque a Igreja entrou na “linha de tiro” dos militares, em virtude de sua aproximação com os movimentos sociais e grupos de esquerda. A adoção de políticas repressivas (entre elas, a prisão de muitos bispos e fiéis e a censura de publicações de opinião) visava também eliminar a ascensão da influência social dos católicos (Ángeles e Allende 2014ÁNGELES, Rafael; ALLENDE, Jonatán. (2014), “Secularización, laicismo y reformas liberales en Uruguay”. Revista de Estudios Jurídicos, nº 14: 1-17. ). Sendo assim, novamente a Igreja foi marginalizada e “empurrada” para a esfera privada, desta vez com riscos à sua liberdade litúrgica mesmo em seu “gueto”17 17 Tomás Sansón (1998) usa esse termo para identificar que, no Uruguai, se produziu, por tudo já falado, uma igreja de “gueto”, um fenômeno sui generis para a história da instituição católica. . A ditadura uruguaia teve como característica ideológica a tentativa de resgate das “raízes da pátria”, especialmente do “militarismo” do século XIX (Ángeles e Allende 2014; Guigou 2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.). Como vimos, o “militarismo” era anticlerical, responsável por implementar boa parte das políticas laicas anteriores ao período batllista18 18 Interessante mencionar que, durante a ditadura, precisamente em 1978, uma proposta para descriminalizar o aborto foi apresentada pelo Departamento de Polícia de Montevidéu. Para discutir a ideia, o Ministério do Interior, coordenado pelo General Hugo Linares Brum, criou uma Comissão integrada por membros do Ministério da Justiça e do Interior, cujo resultado foi a elaboração de um projeto que estabelecia “o aborto por vontade da mulher dentro das primeiras 12 semanas de gestação” (“el aborto por voluntad de la mujer dentro de las primeras 12 semanas de gestación”). Não obstante, após discussões, a hierarquia militar rejeitou a aplicação da iniciativa (Rocha, Rostagnol e Gutiérrez 2009). .

A laicidade do Estado, em suas diferentes matrizes, cumpriu papéis fundamentais na formação do Uruguai moderno e da religião civil, tendo em vista que foi edificada como um dos mitos mais importantes da nação e um dos princípios basilares de funcionamento do Estado. Por isso, revestiu (ainda reveste) as instituições públicas de uma imparcialidade percebida como virtude inviolável (Da Costa 2011______. (2011), “El fenómeno de la laicidad como elemento identitário: El caso uruguayo”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 11, nº 2: 207-220.).

De acordo com Gerardo Caetano (2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.:120), o Uruguai pode ser entendido a partir da mescla de três protótipos de laicidade: 1) A separatista, mediante a privatização do religioso em contraposição à esfera pública dominada pelo Estado; 2) A anticlerical, militância pela diminuição da influência da religião nos assuntos públicos; e 3) A fé cívica, quando a laicidade se torna o fundamento da sociedade política.

Sendo a neutralidade seu alicerce, o Estado agia (e age) com rejeição às influências étnicas, culturais e religiosas como componentes legítimos para a constituição da nação, da cidadania e da identidade do país. Ao negar as particularidades, o Estado buscava (e busca) se sobrepor a elas para outorgar e integrar a todos sob uma mesma matriz de identificação, estruturada por valores preponderantemente seculares (Caetano 2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.). Segundo Guigou (2000GUIGOU, Nicolás. (2000), A nação laica: religião civil e mito-práxis no Uruguai. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS.), desenvolveu-se um esquema de hierarquização entre as particularidades, em posição inferior, e os princípios de igualdade, liberdade, democracia e laicidade, considerados os únicos valores legítimos no espaço público. Sob a tutela de um Estado centralizador e disciplinador, esses princípios solidificaram-se na composição da identidade coletiva e fundação do “cidadão uruguaio”19 19 Esse elemento foi fundamental na integração dos imigrantes, pois estes preservavam suas crenças em foro íntimo e eram absorvidos em plena igualdade pelo Estado, desde que respeitassem e se submetessem aos princípios citados. (Caetano e Geymonat 1997).

Um Estado comprometido com esses valores (através do grupo político que o ocupava20 20 A primeira fase do batllismo “termina” em 1930. Contudo, como dissemos, esta “ideologia” permanece hegemônica na cena política uruguaia e reaparece com força no chamado “segundo batllismo” (1942-1958), liderado pelo Presidente Luís Batlle Berres do Partido Colorado (sobrinho de José Batlle y Ordoñez). ) somado à marginalização das particularidades e à adesão popular a esse processo foram os fatores responsáveis pela construção paulatina e histórica de uma religião civil (Guigou 2000GUIGOU, Nicolás. (2000), A nação laica: religião civil e mito-práxis no Uruguai. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS.; Da Costa 2011______. (2011), “El fenómeno de la laicidad como elemento identitário: El caso uruguayo”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 11, nº 2: 207-220.). O que equivale a dizer que, no Uruguai, se desenvolveu uma fé cívica nas instituições e no conjunto de valores que regiam (e regem) a sociedade. O respeito à legalidade e a democracia transformaram-se em símbolos centrais na formação da cultura nacional (Caetano 2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.). Portanto, houve “uma associação entre a legitimidade do sistema político democrático e a legitimidade da própria nação, onde a igualdade política dos cidadãos passou a ser vista não como o resultado do funcionamento do processo político democrático, mas sim como sua base” (Souza 2003SOUZA, Marcos. (2003), A cultura política do Batllismo no Uruguai (1903-1958). São Paulo: Ed. FAPESP/Annablume.:120).

Este conjunto de significações promoveu uma transferência da sacralidade do religioso para o político, através de simbologias e liturgias cívicas orientadas a reforçar a identidade e a ordem social (Caetano 2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.). O culto religioso materializou-se no Estado uruguaio e em seu sistema político mediante a construção de elementos míticos e devocionais, que até então eram monopólios das religiões convencionais (Da Costa 1999______. (1999), “El Catolicismo en una sociedad secularizada: el caso uruguayo”. Ciencias Sociales y Religión, nº1: 131-141. :135). Por um lado, isso nos fornece subsídios para entender o porquê, ainda hoje, de o parlamento, a democracia, os partidos e os mandatos políticos serem considerados invioláveis ou sagrados no Uruguai (Guigou 2000GUIGOU, Nicolás. (2000), A nação laica: religião civil e mito-práxis no Uruguai. Porto Alegre: Dissertação de Mestrado em Antropologia Social, UFRGS., 2011). Por outro, também auxilia na compreensão da conclusão de Néstor Da Costa (1997DA COSTA, Néstor. (1997), “A situação religiosa no Uruguai”. In: A. Oro; C. Steil (orgs.). Globalização e religião. Petrópolis: Vozes., 1999______. (1999), “El Catolicismo en una sociedad secularizada: el caso uruguayo”. Ciencias Sociales y Religión, nº1: 131-141. , 2011______. (2011), “El fenómeno de la laicidad como elemento identitário: El caso uruguayo”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 11, nº 2: 207-220.), o qual afirma que o catolicismo não foi hegemônico no Uruguai. Diferentemente de outros países da região, “ser” católico nunca fez parte da construção identitária dos uruguaios.

A laicidade uruguaia no contexto contemporâneo

A partir da redemocratização, em 1985, transformações importantes passaram a ser registradas no âmbito da laicidade do Estado e no campo religioso uruguaio. Isto com base em alguns episódios que, segundo os analistas, representam possível início de modificações no modelo de laicidade estabelecido no país (Caetano 2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.).

A polêmica “Cruz do Papa” foi o primeiro episódio de tensão, talvez o mais significativo. Trata-se de um monumento (em forma de cruz) construído em homenagem à visita ao país do Papa João Paulo II em 1987, que, a princípio, deveria permanecer temporariamente, apenas para o evento da missa papal, no bairro Três Cruzes (Tres Cruces) em Montevidéu. Após essa ocasião, aventou-se a possibilidade de permanência da cruz como forma de recordação e, em consequência disso, instalou-se a controvérsia entre os que defendiam a preservação do monumento e aqueles que o entendiam como violação da laicidade (Sotelo et al. 2008SOTELO, Victoria et al. (2008), “Religión y pobreza: la Iglesia Universal del Reino de Dios en Uruguay”. In: G. Zalpa; H. Offerdal. ¿El reino de Dios es de este mundo?: El papel ambiguo de las religiones en la lucha contra la pobreza. Bogotá: CLACSO.; Da Costa 2005______. (2005), “El espacio de lo religioso a veinte años del retorno de la democracia”. In: G. Caetano. 20 años de democracia Uruguay 1985-2005: Miradas Múltiples. Montevideo: Taurus.). A enorme discussão em torno da permanência, retirada ou traslado da cruz mobilizou a atenção do Presidente Julio María Sanguinetti (1985-1989 - Partido Colorado) e dos parlamentares das duas casas legislativas. Por fim, naquele mesmo ano seria aprovada a lei 15.870, a qual permitia monumentos religiosos no espaço público. Portanto, a cruz permaneceu (Guigou 2006______. (2006), “Religión y política en el Uruguay”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 6, nº 2: 43-54.; Da Costa 2005______. (2005), “El espacio de lo religioso a veinte años del retorno de la democracia”. In: G. Caetano. 20 años de democracia Uruguay 1985-2005: Miradas Múltiples. Montevideo: Taurus.).

Esse episódio abriu precedentes para que outras religiões viessem a reivindicar espaços no âmbito público (Ángeles e Allende 2014ÁNGELES, Rafael; ALLENDE, Jonatán. (2014), “Secularización, laicismo y reformas liberales en Uruguay”. Revista de Estudios Jurídicos, nº 14: 1-17. ). Em 1993, as associações umbandistas solicitaram permissão à construção de uma imagem da deusa Iemanjá, que seria o segundo monumento religioso a ser erigido no país. No ano seguinte, no dia 2 de fevereiro, a estátua foi inaugurada na Praia Ramírez em Montevidéu, inclusive com a presença do então prefeito Tabaré Vázquez21 21 Presidente do Uruguai nos períodos de 2005-2010 e 2015-2019. . Neste caso, houve apenas um trâmite burocrático para liberação da edificação, sem qualquer resistência (Guigou 2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.).

As mudanças no campo religioso, com a inserção das igrejas evangélicas no país, também fomentaram a emergência de uma relação diferente entre religião e política (Sotelo et al. 2008SOTELO, Victoria et al. (2008), “Religión y pobreza: la Iglesia Universal del Reino de Dios en Uruguay”. In: G. Zalpa; H. Offerdal. ¿El reino de Dios es de este mundo?: El papel ambiguo de las religiones en la lucha contra la pobreza. Bogotá: CLACSO.). Essas denominações, de origem brasileira (especialmente a Igreja Universal), passaram a ocupar com seus templos os espaços centrais nas cidades, assim como ter significativa presença nos meios de comunicação (Da Costa 2005). A consolidação dos evangélicos no campo religioso uruguaio ocorreu no período de aprofundamento da crise econômica em 2002, o que proporcionou sua inserção entre as camadas mais pobres e sem instrução (Sotelo et al. 2008). No entanto, além do discurso motivacional àqueles em situação de penúria econômica, tais igrejas estabeleceram-se também através da perseguição contra as religiões de matriz africana (Da Costa 2005).

Apesar do crescimento dessas vertentes religiosas no Uruguai, Nicolás Guigou (2011______. (2011), “Religião e Política no Uruguai”. In. A. P. ORO (org.). Religião e Política no Cone Sul: Argentina, Brasil e Uruguai. São Paulo: Attar Editorial.) argumenta que não há indícios de movimentos para uma articulação política entre os evangélicos, a ponto de formar uma bancada parlamentar ao estilo brasileiro. As relações político-eleitorais existem, mas são pontuais. Contudo, em 2014, o Pastor Álvaro Dastuque foi eleito deputado pelo Partido Nacional, o primeiro pastor evangélico no Congresso uruguaio.

Neste cenário, as associações umbandistas iniciaram um processo de organização política, por estarem, em nosso entendimento, atentas aos sérios desdobramentos da perseguição religiosa existente no Brasil. O movimento político denominado Atabaque, fundado em 1997, transformou-se nos anos 2000 em partido político, passando a integrar a composição Frente Ampla22 22 A Frente Ampla surgiu em 1971, sendo um partido político resultado de uma coalizão de diversos grupos políticos de inspiração progressista e à esquerda. É possível identificar em seu interior outros partidos de inspiração religiosa, como, por exemplo, o Partido Demócrata Cristiano (fundado em 1962). . Desde então, é possível perceber seu progressivo crescimento eleitoral, o que resultou na eleição em 2014 da deputada Mãe Susana Andrade, emblemática líder religiosa e política do movimento. Além disso, Gerardo Caetano (2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.) assinala a intensa participação do Atabaque nas vitórias eleitorais de Tabaré Vázquez (em 2004 - Frente Ampla) e José Mujica (em 2009 - Frente Ampla) à Presidência do Uruguai. Por exemplo, em 2009, muitos comitês de campanha do então candidato José Mujica (FA) foram formados em espaços que ao mesmo tempo eram terreiros de umbanda (Caetano 2013:128). Dessa forma, por mais que a mobilização política do movimento Atabaque seja justificável, em face da preocupante perseguição às religiões de matriz africana em outros países, não por isso deixa de haver violações da laicidade nesta relação estreita entre religião e política.

As eleições presidenciais de 2009 representaram um marco em possíveis indícios de transformação na relação entre religião e política, pois se, de um lado, o candidato José Mujica (FA) era apoiado pelos umbandistas (além de pontuais apoios de igrejas cristãs), de outro, Luis Alberto Lacalle, candidato do Partido Nacional, empenhou-se em conquistar os católicos e evangélicos. A plataforma eleitoral de Lacalle (PN) nessa campanha visava restaurar os valores morais como fundamento primordial da sociedade, com ênfase no fortalecimento da família tradicional heteronormativa e o comprometimento com a criminalização do aborto. De acordo com Caetano (2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.), houve significativo esforço para articular atores religiosos, associações católicas e igrejas evangélicas em torno desse projeto moral que representava, naquela ocasião, a antítese do programa frenteamplista.

Diante de todos esses cenários, a preocupação dos analistas pode parecer desproporcional, tendo em vista que o Uruguai nos últimos anos avançou em legislações de forte apelo religioso e moral, como a descriminalização do aborto, a aprovação do casamento civil igualitário e a legalização da maconha. Entretanto, o que está sendo colocado é que esses episódios podem representar o “prelúdio” de transformações mais profundas no paradigma de laicidade construído historicamente no país. Ou seja, anteriormente, tal princípio estava sustentado em posturas anticlericais e separatistas, em que qualquer ligação mais substancial entre religião e política era inadmissível. Já no contexto atual parece haver inflexão à condescendência para ingerência religiosa no espaço público (Guigou 2006______. (2006), “Religión y política en el Uruguay”. Civitas - Revista de Ciências Sociais, vol. 6, nº 2: 43-54.; Caetano 2013______. (2013), “Laicidad, ciudadanía y política en el Uruguay contemporáneo: matrices y revisiones de una cultura laicista”. Revista Religión y Cultura, vol. VII, n°1: 116-139.).

Aborto no Uruguai (1985-2016)

Breves considerações sobre os parâmetros metodológicos

Para averiguar a incidência e amplitude da hipótese aventada, este estudo utilizou como fonte de pesquisa a composição da deliberação política sobre o tema do aborto, com o intuito de verificar a influência de convicções morais e/ou religiosas na discussão desse assunto de natureza pública. A descriminalização do aborto é uma agenda política que provoca tensões e reações diversas na sociedade pelo menos desde a metade do século XX, o que resultou na criação na década de 1970 de movimentos de cunho internacional, como o Pró-Vida e o Pró-Escolha. Na América Latina, a oposição de grupos e instituições religiosas, sobretudo cristãs, intensificou-se nos últimos anos mediante proposições de revisão das legislações punitivas após a redemocratização dos países da região.

A metodologia aplicada nesta pesquisa consistiu na análise dos pronunciamentos sobre o aborto na Cámara de Representantes do Uruguai, proferidos entre os anos de 1985 e 201623 23 Os projetos de lei apreciados e/ou apresentados no mesmo período na Cámara de Representantes foram utilizados como fonte de pesquisa suplementar. . Antes de apresentar os dados aferidos, precisamos esclarecer alguns aspectos sobre a organização político-institucional do Uruguai e da Cámara de Representantes.

O Uruguai adota o sistema presidencialista, o qual, diferentemente do Brasil, não é de coalizão, mas de compromisso, isto é, o Poder Executivo constrói acordos eventuais sem estabelecer um governo de coalizão (Lanzaro 2003LANZARO, Jorge. (2003), “Os Partidos Uruguaios: a transição na transição”. Revista Opinião Pública, vol. IX, nº 2: 46-72.). Para as eleições legislativas, o país adota o sistema eleitoral proporcional; as legislaturas têm duração de cinco anos, compostas por 99 deputados/as e 30 senadores/as. O sistema partidário uruguaio possui mais de 150 anos de história, um dos mais antigos do mundo. Caracterizado por sua estabilidade institucional, foi composto na maior parte de seu tempo por dois partidos hegemônicos, o Partido Colorado e o Partido Nacional. Após a redemocratização, a Frente Ampla emergiu como alternativa política aos partidos tradicionais.

A organização institucional e regimental dos debates públicos, realizados na Cámara de Representantes, está estruturada por meio de três sessões plenárias: ordinárias, extraordinárias e especiais. Nelas, são discutidos apenas o roteiro previamente estabelecido da Ordem do Dia, e o que as difere é a atenção que darão para cada tema. As sessões ordinárias são compostas por dez assuntos, as extraordinárias por cinco, e as especiais por apenas um assunto (Uruguay 2014: cap. VII). Para se pronunciarem sobre algum tema que não está na Ordem do Dia, os/as parlamentares dispõem de dois espaços: Exposiciones Verbales e Exposiciones Escritas. As Exposiciones Verbales ocorrem meia hora antes (media hora previa) do início das sessões ordinárias e são compostas por seis pronunciamentos com duração total de até cinco minutos cada. Essas manifestações servem basicamente para realizar encaminhamentos e para pedidos de inclusão de matérias na Ordem do Dia (Uruguay 2014: cap. XXI). Caso o/a deputado/a deseje discursar por um período de quinze minutos (prorrogáveis), deve apresentar pedido, com precisão sobre o tema, de Exposición Verbal ao Presidente da Câmara, o qual deverá ser votado pelos/as parlamentares. Em caso de aprovação por maioria dos votos, o Presidente inclui o pronunciamento na Ordem do Dia em data posterior à solicitação, pois, para discursar no mesmo dia, deverá também ser anexado um pedido de urgência, igualmente submetido à votação (Uruguay 2014: art. 154).

A partir desses pontos, podemos perceber que, no legislativo uruguaio, os espaços para realização de discursos não relacionados com a Ordem do Dia são reduzidos (tanto de tempo como de ambientes) e restringidos por normas regimentais. A elevação dos discursos sobre o aborto ocorreu somente quando o assunto esteve em deliberação na Ordem do Dia. Na série histórica, em quatro anos é possível observar aumento considerável de discursos sobre o tema. São eles: 1985, 2002, 2008 e 2012. Com exceção de 1985, nos demais anos havia um projeto de lei sobre a descriminalização do aborto em deliberação e votação.

A investigação analisou 337 pronunciamentos, proferidos entre janeiro de 1985 e dezembro de 2016, período correspondente ao início da 42ª (XLII) legislatura até a metade da 48ª (XLVIII) legislatura. Logo, a investigação coletou todos os discursos efetuados na Cámara de Representantes a partir do estabelecimento da redemocratização e do governo civil em 1985 até os dias atuais.

Para cada discurso lido e analisado, uma ficha no software estatístico Sphinx Lexica foi preenchida, com trinta variáveis de classificação dos pronunciamentos. As variáveis nessa ficha foram elaboradas paulatinamente, de acordo com testes realizados pelas/os integrantes da pesquisa. As quinze variáveis iniciais serviram para identificar a autoria das falas e registrar as referências documentais dos discursos, por exemplo: data, nome do/a parlamentar, sexo, partido, região pela qual foi eleito, quantos mandatos exercia. As outras quinze variáveis serviram para classificar o conteúdo do discurso, tais como: as posições expressas, os argumentos mobilizados, o argumento principal da fala. A utilização desse instrumento foi de suma importância para a sistematização e cruzamento dos dados obtidos. Em nota de pesquisa, detalhamos com profundidade todos os procedimentos adotados na investigação, assim como um modelo da ficha utilizada e a forma como cada variável foi pensada, além, por conseguinte, do papel que exerceu na classificação dos discursos (Silva, 2017SILVA, Luis Gustavo Teixeira. (2017a), “Religião e Política no Brasil”. Latinoamerica. Revista de Estudios Latinoamericanos - Univ. Nacional Autónoma de México (UNAM), vol. 64: 223-256. Disponível em: http://dx.doi.org/10.22201/cialc.24486914e.2017.64.56799.
http://dx.doi.org/10.22201/cialc.2448691...
).

Alguns resultados desta e de outras pesquisas empreendidas a partir dessa base de dados no Grupo Democracia e Desigualdades (Demode-UnB) já estão disponíveis. Para análise do caso brasileiro, ver, por exemplo, Miguel, Biroli e Santos (2017SANTOS, Rayani Mariano; BIROLI, Flávia. (2017), “O debate sobre aborto na Câmara dos Deputados (1991-2014): posições e vozes das mulheres parlamentares”. Revista Cadernos Pagu, nº 50: não paginado.). Para a comparação entre Brasil e Uruguai, consulte-se Silva (2018______. (2018), Sobre Corpos, Crucifixos e Liberdades: A laicidade do Estado no Brasil e no Uruguai analisada a partir do debate legislativo sobre o aborto. Brasília: Tese de Doutorado em Ciência Política, UnB.), Santos e Silva (2016). Em outro artigo, Santos e Biroli (2017MIGUEL, Luis F; BIROLI, Flávia; SANTOS, Rayani Mariano. (2017), “O direito ao aborto no debate legislativo brasileiro: a ofensiva conservadora na Câmara dos Deputados”. Revista Opinião Pública , vol. 23, nº 1: 230-260.) efetuaram recorte com relação ao sexo dos/as parlamentares no Brasil.

As posições nos discursos sobre o aborto

A partir de agora o objetivo é expor o diagnóstico dos dados aferidos a respeito das posições expressas nos discursos, através das sete categorias de classificação contidas nesta variável, bem como explorar configurações peculiares nos posicionamentos. Para isso, apresentamos abaixo uma tabela com o mapeamento geral das posições

Tabela 1:
Distribuição dos discursos de acordo com a posição dos/as parlamentares, entre 1985-2016

Antes de tudo, precisamos ressaltar que, em cada discurso, era possível marcar até duas posições. Sendo assim, para iniciar a análise dos dados, passamos a considerar a categoria pela educação sexual e/ou planejamento familiar, a qual identificou posições em prol de políticas direcionadas à educação sexual de jovens e adultos, e à elaboração/ampliação dos programas e campanhas destinados à orientação sobre a importância do planejamento familiar. Esse posicionamento representa uma magnitude mediana no contexto geral. Mais importante que isso é verificar que essa posição nos discursos revelou certa complexidade não identificada nas outras categorias, devido à heterogeneidade de direcionamentos e circunstâncias com que foi utilizada. Quer dizer, tal posicionamento foi empregado pelos/as deputados/as para se expressarem de diversas formas, por exemplo, tanto a favor como contra o aborto. Para ser mais exato, do total de 54 registros, foi mobilizada em dezenove discursos junto à posição a favor da ampliação do aborto legal; em vinte junto à categoria contra o aborto (genérico); e em nove junto com a favor da manutenção da lei.

Na junção da posição pela educação sexual e/ou planejamento familiar com posicionamentos contrários, os/as parlamentares tenderam a argumentar que o aborto estaria associado a fatores socioeconômicos e, consequentemente, à ausência de políticas de educação sexual e planejamento familiar. Dessa forma, a resposta para o “problema” do aborto seria o investimento em políticas dessa natureza, que produziriam melhores resultados na diminuição da prática, ao invés da descriminalização. Por seu turno, em sua junção com a posição a favor da ampliação do aborto legal, os/as parlamentares indicam a inexistência de antagonismo entre as políticas educativas e a descriminalização, salientando, pelo contrário, que elas se complementam. No cenário uruguaio, essa construção discursiva foi frequentemente utilizada para rebater críticas aos projetos de lei em discussão. Para ilustrar o exposto, apresentamos abaixo dois fragmentos de discursos contendo ambos os direcionamentos no emprego da posição pela educação sexual e/ou planejamento familiar, respectivamente:

Jorge Schusman

(Partido Colorado-Maldonado)

Nora Castro

(Frente Ampla - Montevidéu)

Pessoalmente, acredito que antes de descriminalizar o aborto, com a finalidade de melhorar as condições em que o aborto clandestino é realizado, é necessário tomar medidas para conseguir reduzir a prática do aborto. Na Conferência Internacional sobre População e Desenvolvimento, realizada no Cairo em 1994, recomendou-se sempre atribuir a mais alta prioridade à prevenção de gravidezes indesejadas e estabeleceu-se a realização de tudo o que fosse possível para eliminar a necessidade de aborto, concluindo estritamente que em nenhum caso o aborto deve ser promovido como um método de planejamento familiar. […] Então, tudo passa por uma boa educação e pela divulgação de campanhas para a promoção da saúde e prevenção do aborto, semelhantes às existentes para tratar de outros problemas de saúde, cujas estratégias são elaboradas por uma equipe multidisciplinar, tentando alcançar a população em risco, através do que se conhece como multiplicadores de saúde, a fim de reverter as causas que provocam o problema (Uruguay, Diario de Sesiones, 27/11/2002:62, tradução nossa)24 24 Do original: “En lo que me es personal, antes de despenalizar el aborto con la finalidad de mejorar las condiciones en que se realiza el aborto clandestino, me inclino por tomar las medidas tendientes a lograr disminuir la práctica del aborto. En la Conferencia Internacional sobre Población y Desarrollo llevada a cabo en El Cairo en el año 1994, se recomienda siempre asignar máxima prioridad a la prevención de los embarazos no deseados y se establece que habría que hacer todo lo posible por eliminar la necesidad del aborto, concluyendo terminantemente que en ningún caso se debe promover el aborto como método de planificación de la familia. […] Entonces, todo pasa por una buena educación y por la difusión con campañas de promoción de salud y prevención del aborto similares a las existentes con relación a otras enfermedades, cuyas estrategias sean elaboradas por un equipo multidisciplinario, tratando de llegar a la población de riesgo a través de lo que se conoce como multiplicadores de salud, con el fin de revertir las causas que provocan el problema.” .

Alguns se perguntam por que atuar simultaneamente nos aspectos educacionais e na descriminalização do aborto. Por que não atuar primeiro na educação, avaliar os resultados de um possível plano de cinco anos, por exemplo, e numa segunda etapa propor estudar e talvez aprovar um projeto desse tipo? Em primeiro lugar, os efeitos de qualquer programa ou plano educacional são de longo ou médio prazo e não imediatos. Então, as respostas são muito claras. Em minha opinião, são de duas ordens. A primeira é que estamos em vigor há sessenta e quatro anos com essa lei, com governos diferentes, alguns com coincidências ideológicas e políticas; mas sobre esse assunto estamos com sessenta e quatro anos e temos uma prática social sobre a qual há um diagnóstico de consenso que mostra que o efeito desejado não foi alcançado por essa legislação. A segunda é que aqueles que postulam isso tiveram tempo para implementar as políticas educacionais que agora estão sendo exigidas! (Uruguay, Diario de Sesiones, 27/11/2002:38, tradução nossa)25 25 Do original: “Algunos se preguntan por qué actuar simultáneamente en los aspectos educativos y en el de la despenalización. ¿Por qué no actuar primero en lo educativo, evaluar los resultados de un posible plan a cinco años, por ejemplo, y en una segunda etapa proponernos estudiar y quizás aprobar un proyecto de este tipo? En primer lugar, los efectos de cualquier programa o plan educativo son a largo o mediano plazo y no inmediatos. Entonces, las respuestas son muy claras. A mi juicio, son de dos órdenes. La primera es que llevamos sesenta y cuatro años de vigencia de esta ley, con distintos Gobiernos, algunos con coincidencias ideológicas, políticas; pero sobre este tema llevamos sesenta y cuatros años y tenemos una práctica social sobre la cual existe un diagnóstico consensuado que demuestra que no se ha alcanzado el efecto que se pretendía, por lo menos en la letra. ¡Vaya si se habrá tenido tiempo de implementar esas políticas educativas que ahora se reclaman!” .

A categoria a favor da manutenção da lei caracteriza-se pela posição em defesa da legislação vigente no país. Desse modo, no Uruguai, esse posicionamento foi assumido nos discursos que apresentaram resistências quanto às mudanças na legislação, expressando oposição moderada aos projetos de lei em discussão em plenário, cujo objetivo era modificar a legislação e, por conseguinte, descriminalizar o aborto. Contudo, tal posicionamento não deve ser entendido apenas como uma variação das posições contrárias, pois foi assumido também para preservar avanços na legislação; por exemplo, após a descriminalização do aborto em 2012, os/as parlamentares que outrora se posicionavam a favor da ampliação do aborto legal passaram a se posicionar a favor da manutenção da lei.

A categoria não se posiciona caracteriza-se, por óbvio, pela ausência de posicionamento. Dos 33 discursos classificados assim, em dezoito os/as parlamentares mencionaram o aborto para complementar suas falas sem se posicionarem acerca da matéria. Isso ocorreu, por exemplo, na deliberação sobre o casamento civil igualitário em 2013.

Ao examinar a tabela acima, notamos que quase metade de todos os pronunciamentos em plenário sustentou a posição a favor da ampliação do aborto legal, além de percebermos que proporcionalmente representa parcela muito superior de discursos em relação às demais categorias. O índice de posicionamentos a favor da ampliação do aborto legal é indicador muito representativo da composição do debate legislativo. Esse dado permite constatar uma tendência relevante nos níveis de adesão pela ampliação dos direitos reprodutivos na Cámara de Representantes do Uruguai, ou seja, a significativa absorção dessa agenda na construção dos mandatos dos/as parlamentares nas esferas políticas institucionais. Por exemplo, na Câmara dos Deputados do Brasil, essa posição foi sustentada em 178 pronunciamentos, o equivalente a apenas 16,5% do total de 1.078 discursos (Silva 2018______. (2018), Sobre Corpos, Crucifixos e Liberdades: A laicidade do Estado no Brasil e no Uruguai analisada a partir do debate legislativo sobre o aborto. Brasília: Tese de Doutorado em Ciência Política, UnB.).

Nesta pesquisa, foram utilizadas três categorias para classificar as distintas formas de oposição à interrupção voluntária da gravidez expressas nos pronunciamentos. A posição contra o aborto (genérico) - utilizada naqueles discursos contrários ao aborto, mas que não falavam da legislação e não defendiam mudanças nela - foi assumida em 27% dos discursos, representando os maiores índices em relação às posições de gênero equivalente.

As posições por novas medidas punitivas e/ou de controle e a favor da restrição do aborto legal - utilizadas para classificar as falas que reivindicavam maior repressão ao aborto e/ou retrocessos na legislação vigente, respectivamente - foram enunciadas em apenas quatro discursos. Logo, os níveis de colocações em plenário com conteúdo restritivo são irrisórios no marco integral dos dados, sendo que a legislação do país era constituída por número amplo de permissões à realização do aborto até 2012, tais como: em casos de penúria econômica, estupro e quando a gravidez representava algum risco à vida ou à saúde da gestante (Rostagnol 2009______. (2009), “Panorama do aborto no Uruguai”. In: M. I. Rocha; R. Barbosa. Aborto no Brasil e países do Cone Sul. Campinas: Editora Unicamp. ). No Brasil, apenas essas posições, excluindo contra o aborto (genérico), foram sustentadas em 305 pronunciamentos, o equivalente a 28,3% de 1.078 discursos (Silva 2018______. (2018), Sobre Corpos, Crucifixos e Liberdades: A laicidade do Estado no Brasil e no Uruguai analisada a partir do debate legislativo sobre o aborto. Brasília: Tese de Doutorado em Ciência Política, UnB.). A partir desse quadro geral, passamos a considerar a distribuição desses posicionamentos durante a série histórica.

Gráfico 1:
Distribuição das posições dos/as parlamentares em cada legislatura, entre 1985-2016

Os dados demonstram que a posição favorável à ampliação do aborto legal é superior em todas as legislaturas, com certo equilíbrio a partir de 2008 na diferença numérica em comparação à posição contra o aborto (genérico). É importante levar em consideração que essa diferença permanece constante na série histórica, mesmo diante do avanço nas duas últimas décadas de clivagens cristãs conservadoras na América Latina, mobilizadas para frear avanços nos direitos reprodutivos, entre outras agendas (Vaggione 2012______. (2012), “La ‘cultura de la vida’. Desplazamientos estratégicos del activismo católico conservador frente a los derechos sexuales y reproductivos”. Religião & Sociedade, vol. 32, nº 2: 57-80.). Aliás, vale sublinhar em perspectiva comparada que, no Brasil, entre 2002 e 2012, se registraram os maiores índices de mobilização política e reações contrárias ao aborto, derivadas em grande parte da atuação das Frentes Parlamentares confessionais, como a evangélica e a católica (Silva 2017b______. (2017b), “O desenho da pesquisa: o debate legislativo sobre o aborto no Brasil e no Uruguai”. Revista Teoria & Pesquisa, vol. 26, nº 3: 235-251. Disponível em: https://doi.org/10.4322/tp.v26i3.616.
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); já no Uruguai nesse mesmo período se identificaram os maiores índices de posições favoráveis, além de três projetos de lei sobre a descriminalização do aborto aprovados na Cámara de Representantes, em 2002, 2008 e 2012.

Precisamos notar igualmente que as manifestações contrárias empreenderam uma trajetória ascendente entre 2002 e 2012, cuja resposta repousa em dois pontos de reflexão. Por um lado, entendemos que o aumento dessas reações em plenário ocorre de acordo com a previsibilidade de aprovação da descriminalização do aborto nas esferas políticas. Em 2002, foi registrado o menor número de pronunciamentos contrários entre os três anos de deliberação de projetos de lei (PLs) relacionados à matéria. Embora aprovado na Cámara de Representantes, o PL 3107/1993 contava com cenário muito desfavorável no Senado, cujo resultado foi o veto desta casa legislativa ao projeto em 2004. Em 2008, o PL 536/2006 foi aprovado em ambas as casas legislativas, porém o Presidente Tabaré Vázquez já havia antecipado seu veto à proposição. Em 2012, havia condições razoavelmente favoráveis à aprovação do PL 567/2011 no Poder Legislativo e Executivo, por isso, naquele ano, o maior número de discursos contrários foi registrado. Por outro lado, é preciso avaliar nesta equação o crescimento político-eleitoral de vertentes conservadoras, sobretudo ligadas ao Partido Nacional, tradicionalmente opostas à agenda dos direitos reprodutivos. De fato, esse fenômeno é menor no Uruguai em comparação a outros países da região, além de que as posições não exprimem conotações regressivas na legislação, no sentido de proibir o aborto em caso de estupro ou risco de vida da mãe. Todavia, é um fato que indica uma tendência de crescimento nesse espectro do debate.

Essa constatação não está isenta de sofrer alterações mais significativas em cenários futuros. Isto dito, em virtude do aumento das posições conservadoras em torno do aborto, bem como em razão dos projetos de lei apresentados nos últimos anos26 26 São eles: 1°) PL 2755 de 2008, cujo objetivo era garantir o direito à vida e fornecer recursos para as famílias manterem e educarem seus filhos/as, arquivado em 2010 e 2015; 2°) PL 559 de 2010, com o intuito de garantir o direito à objeção de consciência, desobrigando profissionais de saúde a realizarem o aborto por razões éticas, filosóficas e devocionais, foi arquivado e desarquivado em 2015 (em tramitação); e 3°) PL 56 de 2015, o qual visa garantir e proteger a vida desde a concepção (em tramitação). , por exemplo, até então nenhuma proposição legislativa havia sido apresentada com o intuito de proteger a vida desde a concepção. Contudo, os índices aferidos no espectro mais regressivo do debate sobre os direitos reprodutivos não são ainda suficientemente representativos, mas permitem indicar um panorama para ponderar possíveis mudanças nesse quadro.

A laicidade do Estado no centro do debate e o crescimento das reações conservadoras

Por se tratar de um tema complexo em que estão imbricadas questões morais, religiosas, relacionadas às liberdades individuais, saúde pública, entre outras, os/as parlamentares posicionaram-se através de um leque variado de argumentos. Entre os argumentos mobilizados em cada discurso, foi identificado o argumento principal, ou seja, aquele que serviu como pilar de sustentação da fala. Na tabela abaixo, demonstramos os índices aferidos no contexto geral dos argumentos e aqueles empregados como principais. Nesta parte, também pretendemos demonstrar a existência de alguns padrões presentes nos pronunciamentos, quer dizer, determinadas posições elaboradas regularmente com base em um conjunto razoavelmente definido de argumentos. A partir dessas delimitações, passamos a analisar os dados expostos na tabela.

Tabela 2:
Distribuição dos discursos de acordo com os argumentos gerais e os argumentos principais assumidos pelos/as parlamentares, entre 1985-2016

A posição a favor da ampliação do aborto legal foi assumida em 167 discursos, e podemos assinalar cinco argumentos como os mais empregados para sustentar essa posição, pela ordem: 1°) Aborto é questão de saúde pública; 2°) Liberdade individual; 3°) Injustiça social; 4°) Controle da mulher sobre o próprio corpo; 5°) Laicidade do Estado.

O argumento mais citado nos discursos enfocava os problemas de saúde pública decorrentes da realização de uma interrupção da gravidez. Essa construção argumentativa parte do reconhecimento de que o aborto é uma realidade social concreta, que as mulheres recorrem a ele independentemente de status, crença e punições atribuídas ao ato. Desse modo, aponta-se a ineficácia das políticas repressivas de Estado, que tão somente promovem o redirecionamento da mulher às clínicas clandestinas. Neste ponto reside a injustiça social do fenômeno, pois mulheres com condições financeiras realizam o procedimento em clínicas seguras, já as mulheres pobres em sua grande maioria recorrem às clínicas clandestinas com condições sanitárias insalubres, significativamente nocivas à saúde, e responsáveis por boa parte das estimativas relacionadas à morte materna. Logo, a descriminalização visaria assegurar o tratamento médico seguro, em instituições públicas ou privadas, para preservar o bem-estar e a vida daquelas que desejam interromper a gestação.

O direito ao aborto é também estruturado preponderantemente com base na autonomia, autodeterminação individual e liberdade de consciência das mulheres, princípios consoantes à laicidade do Estado. Nesse registro, a descriminalização do aborto constitui-se como ferramenta institucional que outorga a possibilidade de uma decisão privada às mulheres sobre o planejamento de suas vidas. Isto em contraste à idealização social da maternidade, considerando que os ônus da gravidez e da criação dos filhos são arcados quase que exclusivamente pelas mulheres (Biroli 2013BIROLI, Flávia. (2013), Autonomia e desigualdades de gênero: contribuições do feminismo para a crítica democrática. Vinhedo: Editora Horizonte., 2015______. (2015), “Autonomia e justiça no debate sobre aborto: implicações teóricas e políticas”. Revista Brasileira de Ciência Política, nº 15: 37-68.).

O controle sobre o próprio corpo é componente fundamental para este ângulo de percepção sobre o fenômeno, porquanto que, historicamente, o corpo feminino sempre foi matéria inerente a decisões políticas e arranjos culturais, cuja intenção era (e é) exercer controle social sobre ele, sobretudo no âmbito reprodutivo e da sexualidade. Há pelo menos três estruturas portadoras dessa autoridade e que realizam essa forma de intervenção: o patriarcado, o qual estabelece o domínio do marido (ou pai) sobre a mulher e o potencial herdeiro; a estrutura religiosa, no que tange à construção do papel e da imagem feminina, bem como pelas justificativas teológicas para a ingerência corpórea; e a política, que, mediante interesses eventuais, exerce poder repressivo para garantir o desenvolvimento completo do não nascido. Assim, o direito ao aborto confere às mulheres a emancipação dessas estruturas que regulam seu corpo.

Os dados apresentados permitem constatar que, no debate legislativo uruguaio, a posição a favor da ampliação do aborto legal é superior às demais, seja na escala total e proporcional dos resultados, seja na escala longitudinal da série histórica. É possível verificar ainda que essa posição foi sustentada principalmente com base nos problemas de saúde pública, autonomia individual e rejeição à ingerência religiosa nesse debate. Por um lado, este panorama pode ser avaliado como reflexo da consolidação do regime laico no Uruguai, cujas raízes são derivadas de tensões e processos remanescentes do século XIX e início do século XX, por conseguinte, preservadas no contexto contemporâneo. Por outro lado, conforme argumenta Blancarte (2008BLANCARTE, Roberto. (2008), “El porqué de un Estado Laico”. In: ______. Los retos de la laicidad y la secularización en el mundo contemporáneo. México/DF: El Colegio de México.), a laicidade do Estado não se desenvolve sem que estruturas político-sociais reivindiquem a preservação de seus princípios como elementos regentes da democracia. No Uruguai, algumas forças político-sociais desempenharam o papel de inserir a discussão sobre o aborto na esfera legislativa e situar a laicidade do Estado no centro da deliberação, a destacar, o partido político Frente Ampla e os movimentos de mulheres.

A Frente Ampla surgiu em 1971, a partir de uma coalizão de grupos políticos de inspiração progressista e tendência de esquerda, em meio à crise econômica, à ruptura institucional e ao estabelecimento da ditadura militar nos anos de 1970. Essa coalizão de forças políticas viria a transformar o bipartidarismo uruguaio em multipartidarismo moderado. Tal reconfiguração do sistema partidário ocorreu mediante o crescimento eleitoral da Frente Ampla após a redemocratização, em 1985 (Garcé e Yaffé 2005GARCÉ, Adofo; YAFFÉ, Jaime. (2005), La Era Progresista. Montevideo: Fin de Siglo.). Desde então, o partido expandiu consideravelmente sua bancada nas duas casas legislativas, assim como se consolidou no Poder Executivo a partir de 2005, ao eleger três Presidentes de forma consecutiva.

O impacto que a Frente Ampla promoveu no sistema partidário não se resume somente à conquista de cargos eletivos, mas também pela redefinição dos papéis das forças que compõem esse sistema, visto que os partidos tradicionais, desde a redemocratização até 2005, se revezaram de forma alternada no Poder Executivo e se empenharam nesse período em implementar reformas neoliberais, no geral, impopulares aos uruguaios. Assim, a Frente Ampla logrou êxito ao se apresentar como alternativa eleitoral a esses partidos e suas propostas, justamente por defender os valores que eram os alicerces da cultura política dos uruguaios (desde o batllismo no início do século XX), tais como a defesa de posições estatistas e distributivas, e também da laicidade do Estado através de políticas em prol da igualdade (Lanzaro 2003LANZARO, Jorge. (2003), “Os Partidos Uruguaios: a transição na transição”. Revista Opinião Pública, vol. IX, nº 2: 46-72.). Com isso, situou-se em um espectro ideológico outrora ocupado pelo Partido Colorado.

A Frente Ampla é o principal partido do sistema uruguaio a defender a descriminalização do aborto. Na Cámara de Representantes, os/as parlamentares desse partido proferiram 158 discursos sobre o aborto entre 1985 e 2016; destes, 130 pronunciamentos posicionaram-se a favor da ampliação do aborto legal. Esse número representa 78% dos 167 discursos enquadrados nessa posição em toda a pesquisa, portanto, a ampla maioria dos discursos favoráveis à descriminalização do aborto.

É importante ressaltar que 155 discursos (do total de 158) dos/as parlamentares da Frente Ampla foram proferidos somente a partir de 1998. Não significa dizer que até esse ano a atuação era discreta em relação ao aborto, mas essa informação apenas constata que o peso político do partido até então era periférico e sua inserção no cenário político aconteceu de modo gradual após a redemocratização27 27 São eleitos, a cada legislatura, 99 deputados no Uruguai. Na legislatura de 1985-1990, a Frente Ampla não elegeu representantes; na legislatura de 1990-1995, atingiu 21 parlamentares; na de 1995-2000, foram 34; em 2000-2005, foram 40; em 2005-2010, chegou a 54; e em 2010-2015, 50 parlamentares. . Tal constatação permite associar a inscrição recorrente do tema do aborto na agenda parlamentar a partir dos anos 2000 e a aprovação de três projetos de lei (2002, 2008 e 2012), com o crescimento da Frente Ampla no legislativo no mesmo período. As razões para considerar essa associação repousam no protagonismo dos/as deputados/as do partido nessa época, tanto na deliberação em plenário como na elaboração de projetos de lei em prol da matéria.

Por seu turno, a atuação dos movimentos de mulheres na agenda do aborto no Uruguai é compreendida em três etapas. O período entre 1985 e 1999 representa a primeira fase, em que suas ações não se direcionaram no sentido de inserir a questão da descriminalização no debate parlamentar. A preocupação dos movimentos consistia em construir uma agenda consensual entre as organizações de mulheres, bem como promover a percepção, na interlocução com o Estado e a sociedade, de que as mulheres que recorriam ao aborto eram sujeitas de direito, cuja liberdade de consciência para decidir pela interrupção da gravidez estava sendo violada (Johnson, Rocha e Schenck 2015______. (2015), La inserción del Aborto en la Agenda político-pública uruguaya 1985-2013: Un análisis desde el Movimiento Feminista. Montevideo: Ed. ICP-FCS-UdelaR - Cotidiano Mujer.).

O período entre 2000 e 2009 representou a segunda etapa da atuação dos movimentos feministas, o qual oscilou entre a proximidade da conquista dos direitos reprodutivos e a reorganização de suas forças diante de frustrações e impasses. Nesse momento, os movimentos já haviam construído um discurso consolidado, integrando número significativo de organizações de mulheres. Além disso, a demanda em torno do problema foi capaz de ampliar sua base de apoio entre diferentes setores da sociedade civil. A Coordenação Nacional de Organizações Sociais pela Defesa da Saúde Reprodutiva, por exemplo, era também integrada pela Central dos Trabalhadores (PIT-CNT), movimentos pela diversidade sexual, organizações de saúde, organizações religiosas (como a Igreja Metodista) e por redes de jovens (Johnson, Rocha e Schenck 2015______. (2015), La inserción del Aborto en la Agenda político-pública uruguaya 1985-2013: Un análisis desde el Movimiento Feminista. Montevideo: Ed. ICP-FCS-UdelaR - Cotidiano Mujer.).

Um capítulo à parte nesta conjunção de forças foi a intensa mobilização dos profissionais de saúde em apoio à descriminalização do aborto, principalmente no início dos anos 2000, em virtude dos problemas de saúde pública relacionados à quantidade de abortos realizados no país e à elevação da mortalidade materna. Essa mobilização culminou na criação da organização Iniciativas Sanitarias contra el Aborto Provocado en Condiciones de Riesgo, contando com o apoio das principais instituições e organizações profissionais do país (Rostagnol 2008ROSTAGNOL, Susana. (2008), “El papel de l@s ginecólog@s en la construcción de los derechos sexuales en Uruguay”. In: K. Araújo; M. Prieto. Estudios sobre sexualidades en América Latina. Quito: Ed. Flacso, Sede Ecuador. , 2009).

Conforme sustentam Lilián Abracinskas e Alejandra Gómez (2007ABRACINSKAS, Lilián; GÓMEZ, Alejandra. (2007), “Desde la arena feminista hacia la escena política”. In: ______ (coord.). El aborto en debate. Dilemas y desafíos del Uruguay democrático. Proceso político y social 2001-2004. Montevideo: Ed. Mujer y Salud en Uruguay (MYSU).), a agenda extrapolou o círculo de discussões exclusivamente engendrado pelos movimentos feministas para se tornar, em certa medida, reivindicação cidadã. O resultado dessa mobilização no início da década de 2000 foi uma ampla adesão social. O levantamento realizado por Lucía Selios (2007SELIOS, Lucía. (2007), “La opinión pública, la democracia representativa y el aborto”. In: L. Abracinskas; A. López Gómez (coord.). El aborto en debate. Dilemas y desafíos del Uruguay democrático. Proceso político y social 2001-2004 . Montevideo: Ed. Mujer y Salud en Uruguay (MYSU) .) indica que as pesquisas de opinião realizadas entre 2001 e 2004 apontavam que 63% da população uruguaia era a favor da descriminalização do aborto. Apesar de aprovado em 2002 na Cámara de Representantes, o projeto de lei 3107/1993 foi vetado pela Cámara de Senadores em 2004 (Jones 2007JONES, Daniel. (2007), “El debate parlamentario sobre la Ley de Defensa de la Salud Reproductiva en Uruguay”. In: L. Abracinskas; A. López Gómez (coord.). El aborto en debate. Dilemas y desafíos del Uruguay democrático. Proceso político y social 2001-2004 . Montevideo: Ed. Mujer y Salud en Uruguay (MYSU) .).

Em 2006, outro projeto de lei ingressou no Poder Legislativo; todavia, a mobilização dos movimentos feministas veio a se tornar efetiva apenas em 2007. Neste contexto, é criada a campanha “Nosotras y nosotros también”, a qual reuniu 8.798 adesões de pessoas e de 116 organizações sociais, cuja premissa se assentava no direito à liberdade de decisão das mulheres. Assim, em 2007 a Cámara de Senadores aprovou o PL 536/2006, bem como a Cámara de Representantes em 2008. No entanto, o Presidente Tabaré Vázquez vetou partes do projeto sancionado no âmbito legislativo28 28 O Presidente Tabaré Vázquez e o Monsenhor Cotugno, ávido opositor à descriminalização, tinham uma relação muito próxima, pois se encontravam com frequência para conversar. Muitos pronunciamentos apontam que a proximidade e diálogo entre as lideranças tenha influenciado na decisão do Presidente em vetar o projeto. , sobretudo aquelas que regulamentavam a descriminalização do aborto. Segue abaixo o trecho da justificativa aos artigos vetados pelo Presidente:

[…] Esta lei afeta a ordem constitucional (artigos 7º, 8º, 36º, 40º, 41º, 42º, 44º, 72º e 332º) e compromissos assumidos pelo nosso país em tratados internacionais, entre outros o Pacto de San José de Costa Rica, aprovado pela Lei nº 15.737, de 8 de março de 1985, e a Convenção sobre os Direitos da Criança, aprovada pela Lei nº 16.137, de 28/09/1990. Com efeito, disposições como o artigo 42 de nossa Carta, que obriga expressamente a proteger a maternidade, e o Pacto de San José da Costa Rica - também convertido em direito interno como forma de reafirmar seu compromisso com a proteção e o cumprimento dos direitos humanos - contém disposições expressas, como os artigos 2º e 4º, que exigem que nosso país proteja a vida dos seres humanos desde sua concepção (Uruguay, Poder Ejecutivo, 01/12/2008URUGUAY. Poder Ejecutivo. Veto Presidencial al proyecto de ley 526/2006. Montevideo, 01/12/2008., tradução nossa)29 29 Do original: “[…] Esta ley afecta el orden constitucional (artículos 7º, 8º, 36º, 40º, 41º, 42º, 44º, 72º y 332º) y compromisos asumidos por nuestro país en tratados internacionales, entre otros el Pacto de San José de Costa Rica, aprobado por la Ley Nº 15.737 del 8/03/1985 y la Convención Sobre los Derechos del Niño aprobada por la Ley Nº 16.137 del 28/09/1990. En efecto, disposiciones como el artículo 42 de nuestra Carta, que obliga expresamente a proteger a la maternidad, y el Pacto de San José de Costa Rica - convertido además en ley interna como manera de reafirmar su adhesión a la protección y vigencia de los derechos humanos - contiene disposiciones expresas, como su artículo 2º y su artículo 4º, que obligan a nuestro país a proteger la vida del ser humano desde su concepción.” .

A Assembleia Geral, composta por deputados/as e senadores/as, reuniu-se para deliberar sobre a decisão do Poder Executivo. O resultado foi de 15 senadores/as contra o veto e 14 a favor; 46 deputados/as contra e 44 a favor. A maioria dos/as parlamentares da Frente Ampla votaram contra, e do Partido Nacional a favor, já no Partido Colorado houve divisão de votos. Apesar da maioria obtida nas duas casas legislativas, o resultado não foi suficiente para derrubar o veto do Presidente da República, tendo em vista que, conforme regra constitucional, era necessário atingir 3/5 de ambas as casas (Rostagnol 2009______. (2009), “Panorama do aborto no Uruguai”. In: M. I. Rocha; R. Barbosa. Aborto no Brasil e países do Cone Sul. Campinas: Editora Unicamp. ).

Este representa o momento de frustração e desgaste das forças sociais e políticas envolvidas na conquista dos direitos reprodutivos das mulheres. A rearticulação mais intensa começou na campanha eleitoral de 2009, dando início à terceira etapa de atuação dos movimentos de mulheres. A demanda pela descriminalização do aborto foi incorporada no programa de governo dos candidatos eleitos nas prévias da Frente Ampla, José Mujica e Danilo Astori. Esse impulso fomentou a reorganização das alianças entre os movimentos feministas e as demais forças sociais, desta vez sob a nomenclatura Coordenação pelo Aborto Legal. As mobilizações realizaram-se a partir de lemas como “El tiempo es ahora” e “¿Qué más hay que ver?”, cujo propósito era pressionar o sistema político e a agenda governamental para finalmente ratificar a legislação já aprovada em legislaturas anteriores (Johnson, Rocha e Schenck 2011JOHNSON, Nikki; ROCHA; Cecilia; SCHENCK, Marcela. (2011), “La sociedad civil ante la despenalización del aborto: opinión pública y movimientos sociales”. In: N. Johnson et al. (Des) penalización del aborto en Uruguay: prácticas, actores y discursos. Montevideo: Ed. Universidad de la República., 2015).

Sendo assim, em 2012, o projeto de lei 567/2011 esteve em apreciação em plenário, sendo registrados, em uma única sessão, 111 discursos. Ao final da sessão, o projeto foi aprovado na Cámara de Representantes, considerando que já havia sido sancionado no Senado. Dessa forma, esse projeto descriminalizou o aborto no Uruguai, ao estabelecer em seu primeiro artigo que “Toda mulher maior de idade tem o direito de decidir sobre a interrupção voluntária de sua gravidez durante as primeiras 12 semanas do processo de gestação”30 30 Do original: “Toda mujer mayor de edad tiene derecho a decidir la interrupción voluntaria de su embarazo durante las primeras doce semanas del proceso gestacional”. .

No outro espectro do debate, as posições contra o aborto (genérico) e a favor da manutenção da lei foram sustentadas a partir de um conjunto de argumentos. Os mais citados foram: 1°) Inviolabilidade do direito à vida, assinalado em situações em que o pronunciamento pontuava a vida humana como valor absoluto a ser protegido pelo Estado; 2°) Argumentos morais (não explicitamente religiosos), empregado quando o discurso afirmava que a interrupção voluntária da gravidez era um valor impróprio e nocivo à estabilidade de preceitos fundamentais à sociedade, contudo sem vincular esses argumentos a questões religiosas; 3°) Argumentos jurídicos, sempre que havia referência ao ordenamento jurídico, como a Constituição ou ao Código Penal; 4º) Argumentos científicos, assinalados nas situações em que o discurso se amparava em estudos científicos, por exemplo, para afirmar que a vida começa desde a concepção. Outros três argumentos foram preponderantemente citados junto a essas posições, porém sem o mesmo volume que os cinco argumentos destacados, são eles: argumentos religiosos, sempre que havia menção a alguma religião (instituições ou líderes) como base da manifestação da fala; argumentos demográficos, sempre que o discurso apontava para a baixa natalidade do Uruguai como razão para inviabilidade da matéria; objeção de consciência, assinalada quando o pronunciamento questionava o direito dos profissionais de saúde a não realizar o procedimento em virtude de questões religiosas ou filosóficas particulares.

A estrutura dos argumentos neste âmbito do debate considera que o embrião é inegavelmente uma pessoa desde a concepção; logo, a interrupção voluntária da gravidez se configuraria em crime de homicídio. Por um lado, essa hipótese busca se sustentar em dados científicos, notadamente em uma visão biologicista acerca do desenvolvimento embrionário e na existência do mapa genético (DNA) nas primeiras fases da gestação. Sendo assim, essa ideia procura se fundar na autoridade científica, quando consoante a pressupostos morais e religiosos. Isto dito, pois não há consenso no campo da ciência para afirmar categoricamente que o embrião é uma pessoa desde a concepção. De todo modo, esse argumento transformou-se em artifício para pressionar os poderes legislativos e o Poder Executivo. Por outro lado, os pronunciamentos também buscam sustentar que a descriminalização do aborto implicaria violações dos direitos humanos, dos princípios constitucionais e dos tratados internacionais em que o Uruguai é signatário, os quais asseguram o direito à vida, o que, nesta acepção, incluiria os não nascidos (Santos e Silva 2016SANTOS, Rayani Mariano; SILVA, Luis Gustavo Teixeira. (2016), “O direito à vida como ponto de partida para a análise do debate parlamentar sobre o aborto no Brasil e no Uruguai”. Revista Gênero, vol. 17, nº 1: 139-169.).

A constatação mais peculiar no debate uruguaio é a baixa frequência quanto ao emprego de argumentos religiosos. Por exemplo, no Brasil, os argumentos religiosos serviram de fundamentação para 342 discursos, o equivalente a 31,8% de todos os discursos. Mais relevante que isso é notar que, em 28% das falas (8 do total de 29 citações), esse argumento serviu para sustentar posição favorável à ampliação do aborto. Na maioria dos casos, os/as deputados/as que se pronunciaram dessa forma evocaram questões teológicas e as reflexões de líderes religiosos do Uruguai, para atestar que, mesmo de acordo com o pensamento religioso da Igreja Católica, a criminalização do aborto era um ato injusto. A fim de ilustrar, segue abaixo excerto do pronunciamento do deputado José Bayardi (Frente Ampla-Montevidéu), que realiza a leitura das reflexões de Luiz Pérez Aguirre, um dos principais líderes católicos do Uruguai e militante pela descriminalização do aborto:

Dizia Luiz Pérez Aguirre: “O aborto é e parece querer permanecer como uma teimosa e trágica realidade social”. […] “A mortalidade por aborto afeta mulheres pobres porque elas só têm acesso econômico a um aborto ilegal sem as garantias mínimas. É evidente que são as mulheres pobres que morrem em abortos clandestinos. Enquanto não realizarmos uma análise séria das causas e condições socioeconômicas e culturais do aborto, enquanto não iniciarmos um processo responsável de ajuste social obrigatório para eliminá-las, qualquer julgamento e punição das supostas culpadas não é nada mais do que um farisaísmo moralista, que lava mãos e consciência. Se somos realistas, temos que aceitar a evidência de que a realidade não se ajusta à justiça e, portanto, não é possível dar respostas morais únicas e iguais para todos os casos.” (Uruguay, Diario de Sesiones, 10/12/2002______. (2014), Reglamento de la Cámara de Representantes. Disponível em: https://legislativo.parlamento.gub.uy/temporales/6500455.HTML#. Acesso em 10/03/2017.
https://legislativo.parlamento.gub.uy/te...
:55, tradução nossa)31 31 Do original: “Decía (Luiz Pérez Aguirre): ‘El aborto es y parece querer permanecer una tozuda y trágica realidad social’. […] ‘La mortalidad por aborto afecta a las mujeres pobres porque solo tienen acceso económico a un aborto clandestino sin las mínimas garantías. Es evidente que son las mujeres pobres las que mueren en los abortos clandestinos. Mientras no logremos un análisis serio de las causas y las condiciones socioeconómicas y culturales del aborto, mientras no iniciemos un proceso responsable de obligatorio ajuste social para eliminarlas, todo juicio y castigo a las supuestas culpables no pasa de ser un fariseísmo moralista que se lava las manos y la conciencia. Si somos realistas, tenemos que aceptar la evidencia de que la realidad no se ajusta a justicia y no es por tanto posible dar respuestas morales efectivas únicas e iguales para todos los casos.’” .

O regime de laicidade do Estado construído no Uruguai é a principal variável explicativa para compreender o lugar periférico das convicções religiosas na estruturação dos discursos sobre o aborto, por conseguinte, na formatação da deliberação política. Não obstante, devemos ponderar que existe uma mudança no modo em que as posições religiosas são mobilizadas. Os argumentos parecem ser cada vez menos abertamente religiosos, embora permaneçam fundados em princípios e crenças. Esse fenômeno é caracterizado por Juan Marco Vaggione (2009VAGGIONE, Juan Marco. (2009), “Sexualidad, religión y política en America Latina”. Diálogos Regionales, Rio de Janeiro, ago. 2009: 1-64. Disponível em: Disponível em: https://laicismo.org/data/docs/archivo_923.pdf . Acesso em 18/10/2017.
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, 2012) como secularismo estratégico, uma vez que há uma mudança sensível na forma de argumentação em temas com impacto em preceitos morais e religiosos. Portanto, ocorre o deslocamento das elaborações convencionais, tais como “a vontade de Deus ou está escrito na bí blia”, para a utilização de outros sistemas de referência, sobretudo baseados em pressupostos científicos e jurídicos, para afirmar o direito à vida desde a concepção (ver também Faúndes e Vaggione 2012FAÚNDES, José Manuel Morán; VAGGIONE, Juan Marco. (2012), “Ciencia y religión (hétero)sexuadas: el discurso científico del activismo católico conservador sobre la sexualidad en Argentina y Chile”. Contemporânea: Revista de Sociologia da USFCAR, vol. 2, nº 1: 159-185.; Luna 2010LUNA, Naara. (2010), “Aborto e células-tronco embrionárias na Campanha da Fraternidade: ciência e ética no ensino da Igreja”. Revista Brasileira de Ciências Sociais, vol. 25, nº 74: 91-105., 2013______. (2013), “O direito à vida no contexto do aborto e da pesquisa com células-tronco embrionárias: disputas de agentes e valores religiosos em um Estado laico”. Religião & Sociedade, vol. 33, nº 1: 71-97.).

Esse fenômeno não é algo recente, pode ser datado pelo menos a partir da década de 1960 (Rosado-Nunes 2012ROSADO-NUNES, Maria José. (2012), “O tema do aborto na Igreja Católica: Divergências silenciadas”. Ciência e Cultura, vol. 64, nº 2: 23-31.). Essa transfiguração discursiva reflete uma tendência estratégica cada vez mais constante na atuação das forças religiosas em temas de forte apelo moral e/ou religioso. No Uruguai, há panorama definido a respeito desse processo de transfiguração discursiva dos pressupostos religiosos a outros sistemas de valores. Os argumentos religiosos são extremamente periféricos no conjunto de fundamentações, acrescentando o fato de que em muitos casos as manifestações religiosas são realizadas apenas para pontuar um lugar de fala do/a parlamentar ou introduzir referências laterais à crença ou a Deus. Portanto, praticamente inexistem discursos que empregam máximas como “só Deus dá a vida” e/ou “só ele pode tirá-la”, ou que se baseiam na bíblia para atestar o valor supremo da vida.

Segundo Juan Marco Vaggione (2009VAGGIONE, Juan Marco. (2009), “Sexualidad, religión y política en America Latina”. Diálogos Regionales, Rio de Janeiro, ago. 2009: 1-64. Disponível em: Disponível em: https://laicismo.org/data/docs/archivo_923.pdf . Acesso em 18/10/2017.
https://laicismo.org/data/docs/archivo_9...
, 2012), o apelo a recursos argumentativos cujas fontes são de matrizes seculares é decorrente dos limites demarcados pela laicidade do Estado enquanto construção normativa do político. Nesta situação, não se trata apenas de reforçar o princípio da laicidade diante do vigoroso ativismo religioso, mas de interrogar sobre a legitimidade de sua atuação no interior do processo democrático.

A ausência de manifestações explicitamente religiosas sobre a agenda pública relativa ao aborto não significa dizer que os elementos estruturantes desse tipo de acepção es tejam plenamente ausentes, o que podemos constatar é que são enunciados de outra forma. Conforme pontuamos, nos últimos anos é possível registrar o aumento de posições contrárias ao aborto no legislativo uruguaio, respaldadas principalmente por argumentos que ressaltam a inviolabilidade do direito à vida a partir de razões jurídicas e científicas. Sendo assim, a laicidade do Estado no Uruguai pode sofrer alterações mediante o crescimento político-eleitoral e social de clivagens conservadoras, representadas no âmbito institucional pelo Partido Nacional. Em reflexo desse possível cenário, a legislação sobre o aborto também pode sofrer recuos, haja vista os projetos de lei apresentados nos últimos anos com o intuito de proteger a vida desde a concepção. Como dissemos anteriormente, os dados aferidos por este estudo permitem indicar apenas uma tendência nesse sentido. Contudo, as rupturas no modelo de laicidade estabelecido no Uruguai dependerão de uma conjunção de dinâmicas sociais e políticas complexas.

Considerações finais

As evidências apresentadas neste texto permitem compreender as razões para o fato de o Uruguai ser tratado pelos/as analistas como exemplo paradigmático, a nível regional e internacional, em relação à adoção de políticas em prol da laicidade do Estado. Como vimos, as raízes desse processo são, em grande parte, fruto das tensões ocorridas na segunda metade do século XIX e início do século XX. Nesse período, a consolidação de clivagens políticas inspiradas pelo liberalismo, positivismo e concepções de inclinação à esquerda teve expressivo impacto na implementação de reformas políticas amparadas pela concepção dos direitos individuais e coletivos, assim como pelo afastamento de instituições e valores religiosos na constituição do Estado.

Na análise dos dados, demonstramos que os discursos a favor da ampliação do aborto legal são superiores em diferentes cenários, e a base de sustentação argumentativa para essas manifestações concentrou-se primordialmente nos problemas de saúde pública relacionados ao fenômeno, assim como na ideia de liberdade individual e de consciência das mulheres para decidir quanto à interrupção voluntária de suas respectivas gestações. Tão relevante quanto isso foram as constatações identificadas nas conotações empregadas nos pronunciamentos contrários ao aborto, haja vista o lugar periférico das convicções religiosas na estruturação dos discursos, por conseguinte, na formatação da deliberação política. A configuração de um regime laico consolidado é um dos principais indicadores explicativos desse fenômeno, pois, embora haja grupos e oposição ao aborto no legislativo uruguaio, a laicidade demonstrou impacto nos limites, termos e parâmetros em que se organizam as construções discursivas no espectro contrário da discussão.

Os resultados da investigação permitem aferir que o modelo de laicidade uruguaio permanece sólido. Em parte, esse processo pode ser avaliado como reflexo do contexto histórico de sua implementação no país, em que seus princípios foram incorporados como um dos alicerces na construção do Estado uruguaio e elemento regente da esfera pública. Por outro lado, a ascensão de forças políticas e sociais, como o partido Frente Ampla e os movimentos de mulheres, desempenhou o papel de reintroduzir seus aspectos basilares à consolidação de direitos, ou seja, situando a laicidade do Estado no centro da discussão pública, culminando na aprovação da descriminalização do aborto. Apesar disso, consideramos que a hipótese a respeito de possíveis rupturas nesse modelo não deve ser refutada de antemão. A ascensão de posições e movimentos conservadores no Uruguai no tocante à agenda dos direitos reprodutivos é um indicador relevante de definição do fenômeno. Porém, os dados deste estudo permitem apenas compartilhar a preocupação dos/as analistas, sem conseguir alcançar um diagnóstico razoavelmente conclusivo.

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  • 1
    Este artigo é um dos resultados de minha investigação no trabalho de tese, intitulado Sobre Corpos, Crucifixos e Liberdades: A laicidade do Estado analisada a partir do debate legislativo sobre o aborto no Brasil e no Uruguai (1985-2016), elaborado sob inestimável auxílio e orientação da Prof.ª Dra. Flávia Biroli. Agradeço imensamente as contribuições realizadas no âmbito da defesa pelas professoras Maria José Rosado Nunes (PUC-SP), Susana Rostagnol (UdelaR, Uruguai) e Danusa Marques (UnB). Agradeço também as relevantes considerações ao artigo realizadas pelos/as pareceristas anônimos/as da Revista Religião & Sociedade.
  • 2
    O projeto foi financiado pelo CNPq através do edital MCTI/CNPq/SPM-PR/MDA 32/2012. Agradeço a CNPq, CAPES, DPP/UnB e FAP/DF por colaborarem de diferentes formas para a realização deste trabalho.
  • 3
    O Partido Nacional (blanco), de inspiração conservadora, e o Partido Colorado, com inflexão progressista e ao centro, são remanescentes desses grupos políticos. É após este cenário de indefinições e disputas que as políticas laicas são implementadas; por isso, é plausível aferir que essas políticas nascem quase que em concomitância ao decurso de formação do Estado uruguaio.
  • 4
    Expulsos no século XVIII pela Coroa espanhola.
  • 5
    Católicos maçons eram comuns na cosmologia religiosa do período. No Uruguai, esta clivagem do catolicismo caracteriza-se por sua tendência liberal, não dogmática e antiultramonta. Esse fenômeno também ocorreu no Brasil e foi responsável pela ruptura temporária nas relações entre o Estado e a Igreja Católica em 1870.
  • 6
    Esta visão foi em grande parte construída pelo movimento católico ultramontano (acima das montanhas), que entendia a necessidade de retorno aos fundamentos políticos e sociais presentes na Idade Média. Daí a proposta de que os poderes terrenos deveriam estar subordinados ao Papa e ao direito canônico. Em muitos países, essa corrente do catolicismo teve papel significativo na luta contra o estabelecimento do Estado laico.
  • 7
    É considerado o grande responsável pela organização institucional da Igreja uruguaia, em que pese as debilidades estruturais do período; desempenhou a tarefa crucial em unificar o catolicismo em torno das diretrizes do Papa Pio IX e do ultramontanismo (Sansón 2011).
  • 8
    Como El Club Católico e Los Congresos Católicos. Esses congressos aconteceram em quatro oportunidades entre os anos de 1889 e 1911, em que se discutiam estratégias de resistência e temas da estrutura eclesial.
  • 9
    O baixo contingente de pessoas (sacerdotes e leigos), as dificuldades operacionais e estruturais são indicadores apresentados para entender essa interrupção.
  • 10
    No conjunto de mobilizações, há episódios mais inusitados, como o Banquete da Promiscuidade. Este era um evento que começou em Montevidéu no final do século XIX. Tratava-se basicamente de uma convocação pública (realizada por célebres líderes liberais do movimento anticlerical) para grandes “churrascadas” nos arredores da Catedral de Montevidéu, nada mais nada menos que na sexta-feira santa, data em que católicos não comem carne (Da Costa 1999).
  • 11
    Do original: “Desgraciadamente el desenvolvimiento de los principios liberales, ateos, racionalistas, positivistas y masónicos se han encarnado en el poder y desde allí hacen encarnizada guerra a la religión católica”.
  • 12
    Do original: “Es tan triste la situación presente! Es verdad; cada día la impiedad penetra más profundamente en la juventud y en las masas populares, y la indiferencia religiosa extiende su dominio de una manera pavorosa hasta entre los fieles. Es más grande de lo que pudiera manifestar la preocupación que me atormenta acerca del porvenir de la Iglesia y de la sociedad en nuestra patria”.
  • 13
    A Época Batllista representa o período entre 1903-1930, em que José Batlle y Ordoñez e seu grupo político vinculado ao Partido Colorado estiveram à frente do governo uruguaio e operaram reformas importantes em direção à modernização do Estado. O Batllismo, ainda hoje, é uma das principais correntes ideológicas no Uruguai, influenciando obviamente o Partido Colorado (ao centro) e também a Frente Ampla (mais à esquerda).
  • 14
    Somente a União Soviética possuía uma legislação de interrupção voluntária da gravidez no mundo. Graciela Sapriza (2011SAPRIZA, Graciela. (2011), “Historia de la (des)penalización del aborto en Uruguay. ‘Aborto libre’: la corta experiencia uruguaya (1934-1938)”. In: N. Johnson et al. (Des) penalización del aborto en Uruguay: prácticas, actores y discursos . Montevideo: Ed. Universidad de la República (UdelaR).) argumenta que, no Uruguai, a descriminalização do aborto em 1934 teve forte inflexão eugenista. Em 1938, o aborto tornou a ser criminalizado, com essa legislação permanecendo vigente até 2012, quando foi descriminalizado novamente. Convém ressaltar que a legislação de 1938 estipulava muitos casos de exceção, sobre os quais não se aplicava qualquer tipo de pena. Entre as atenuantes estão: gravidez com risco de saúde ou vida da mulher; estupro; penúria econômica e honra (Sapriza 2011SAPRIZA, Graciela. (2011), “Historia de la (des)penalización del aborto en Uruguay. ‘Aborto libre’: la corta experiencia uruguaya (1934-1938)”. In: N. Johnson et al. (Des) penalización del aborto en Uruguay: prácticas, actores y discursos . Montevideo: Ed. Universidad de la República (UdelaR).).
  • 15
    Gabriel Terra era filiado ao Partido Colorado e pertencia ao batllismo. Todavia, após eleito em 1930, afastou-se desse grupo político. Apesar de romper com a legalidade e a alternância no poder (identificada desde o século XIX), não há registros de rupturas significativas quanto à laicidade e à secularização (Guigou 2011).
  • 16
    Barrán (1988) registra que, entre a metade do século XIX e o início do século XX, houve intenso fluxo de correntes migratórias, a ponto de promover uma “revolução” demográfica, envolvendo em torno de 34% da população do país em 1860 e 18% em 1908 (Souza 2003). A experiência com o catolicismo ultramontano, que perseguia os protestantes na Europa, fez com que esses imigrantes se mobilizassem em prol da privatização do religioso, para que a partir do enfraquecimento do catolicismo pudessem desenvolver suas crenças (Guigou 2011).
  • 17
    Tomás Sansón (1998) usa esse termo para identificar que, no Uruguai, se produziu, por tudo já falado, uma igreja de “gueto”, um fenômeno sui generis para a história da instituição católica.
  • 18
    Interessante mencionar que, durante a ditadura, precisamente em 1978, uma proposta para descriminalizar o aborto foi apresentada pelo Departamento de Polícia de Montevidéu. Para discutir a ideia, o Ministério do Interior, coordenado pelo General Hugo Linares Brum, criou uma Comissão integrada por membros do Ministério da Justiça e do Interior, cujo resultado foi a elaboração de um projeto que estabelecia “o aborto por vontade da mulher dentro das primeiras 12 semanas de gestação” (“el aborto por voluntad de la mujer dentro de las primeras 12 semanas de gestación”). Não obstante, após discussões, a hierarquia militar rejeitou a aplicação da iniciativa (Rocha, Rostagnol e Gutiérrez 2009ROCHA, Maria Isabel Baltar da; ROSTAGNOL, Susana; GUTIÉRREZ, María Alicia. (2009), “Aborto y Parlamento: un estudio sobre Brasil, Uruguay y Argentina”. Revista Brasileira de Estudos Populacionais, vol. 26, nº 2: 219-336.).
  • 19
    Esse elemento foi fundamental na integração dos imigrantes, pois estes preservavam suas crenças em foro íntimo e eram absorvidos em plena igualdade pelo Estado, desde que respeitassem e se submetessem aos princípios citados.
  • 20
    A primeira fase do batllismo “termina” em 1930. Contudo, como dissemos, esta “ideologia” permanece hegemônica na cena política uruguaia e reaparece com força no chamado “segundo batllismo” (1942-1958), liderado pelo Presidente Luís Batlle Berres do Partido Colorado (sobrinho de José Batlle y Ordoñez).
  • 21
    Presidente do Uruguai nos períodos de 2005-2010 e 2015-2019.
  • 22
    A Frente Ampla surgiu em 1971, sendo um partido político resultado de uma coalizão de diversos grupos políticos de inspiração progressista e à esquerda. É possível identificar em seu interior outros partidos de inspiração religiosa, como, por exemplo, o Partido Demócrata Cristiano (fundado em 1962).
  • 23
    Os projetos de lei apreciados e/ou apresentados no mesmo período na Cámara de Representantes foram utilizados como fonte de pesquisa suplementar.
  • 24
    Do original: “En lo que me es personal, antes de despenalizar el aborto con la finalidad de mejorar las condiciones en que se realiza el aborto clandestino, me inclino por tomar las medidas tendientes a lograr disminuir la práctica del aborto. En la Conferencia Internacional sobre Población y Desarrollo llevada a cabo en El Cairo en el año 1994, se recomienda siempre asignar máxima prioridad a la prevención de los embarazos no deseados y se establece que habría que hacer todo lo posible por eliminar la necesidad del aborto, concluyendo terminantemente que en ningún caso se debe promover el aborto como método de planificación de la familia. […] Entonces, todo pasa por una buena educación y por la difusión con campañas de promoción de salud y prevención del aborto similares a las existentes con relación a otras enfermedades, cuyas estrategias sean elaboradas por un equipo multidisciplinario, tratando de llegar a la población de riesgo a través de lo que se conoce como multiplicadores de salud, con el fin de revertir las causas que provocan el problema.”
  • 25
    Do original: “Algunos se preguntan por qué actuar simultáneamente en los aspectos educativos y en el de la despenalización. ¿Por qué no actuar primero en lo educativo, evaluar los resultados de un posible plan a cinco años, por ejemplo, y en una segunda etapa proponernos estudiar y quizás aprobar un proyecto de este tipo? En primer lugar, los efectos de cualquier programa o plan educativo son a largo o mediano plazo y no inmediatos. Entonces, las respuestas son muy claras. A mi juicio, son de dos órdenes. La primera es que llevamos sesenta y cuatro años de vigencia de esta ley, con distintos Gobiernos, algunos con coincidencias ideológicas, políticas; pero sobre este tema llevamos sesenta y cuatros años y tenemos una práctica social sobre la cual existe un diagnóstico consensuado que demuestra que no se ha alcanzado el efecto que se pretendía, por lo menos en la letra. ¡Vaya si se habrá tenido tiempo de implementar esas políticas educativas que ahora se reclaman!”
  • 26
    São eles: 1°) PL 2755 de 2008, cujo objetivo era garantir o direito à vida e fornecer recursos para as famílias manterem e educarem seus filhos/as, arquivado em 2010 e 2015; 2°) PL 559 de 2010, com o intuito de garantir o direito à objeção de consciência, desobrigando profissionais de saúde a realizarem o aborto por razões éticas, filosóficas e devocionais, foi arquivado e desarquivado em 2015 (em tramitação); e 3°) PL 56 de 2015, o qual visa garantir e proteger a vida desde a concepção (em tramitação).
  • 27
    São eleitos, a cada legislatura, 99 deputados no Uruguai. Na legislatura de 1985-1990, a Frente Ampla não elegeu representantes; na legislatura de 1990-1995, atingiu 21 parlamentares; na de 1995-2000, foram 34; em 2000-2005, foram 40; em 2005-2010, chegou a 54; e em 2010-2015, 50 parlamentares.
  • 28
    O Presidente Tabaré Vázquez e o Monsenhor Cotugno, ávido opositor à descriminalização, tinham uma relação muito próxima, pois se encontravam com frequência para conversar. Muitos pronunciamentos apontam que a proximidade e diálogo entre as lideranças tenha influenciado na decisão do Presidente em vetar o projeto.
  • 29
    Do original: “[…] Esta ley afecta el orden constitucional (artículos 7º, 8º, 36º, 40º, 41º, 42º, 44º, 72º y 332º) y compromisos asumidos por nuestro país en tratados internacionales, entre otros el Pacto de San José de Costa Rica, aprobado por la Ley Nº 15.737 del 8/03/1985 y la Convención Sobre los Derechos del Niño aprobada por la Ley Nº 16.137 del 28/09/1990. En efecto, disposiciones como el artículo 42 de nuestra Carta, que obliga expresamente a proteger a la maternidad, y el Pacto de San José de Costa Rica - convertido además en ley interna como manera de reafirmar su adhesión a la protección y vigencia de los derechos humanos - contiene disposiciones expresas, como su artículo 2º y su artículo 4º, que obligan a nuestro país a proteger la vida del ser humano desde su concepción.”
  • 30
    Do original: “Toda mujer mayor de edad tiene derecho a decidir la interrupción voluntaria de su embarazo durante las primeras doce semanas del proceso gestacional”.
  • 31
    Do original: “Decía (Luiz Pérez Aguirre): ‘El aborto es y parece querer permanecer una tozuda y trágica realidad social’. […] ‘La mortalidad por aborto afecta a las mujeres pobres porque solo tienen acceso económico a un aborto clandestino sin las mínimas garantías. Es evidente que son las mujeres pobres las que mueren en los abortos clandestinos. Mientras no logremos un análisis serio de las causas y las condiciones socioeconómicas y culturales del aborto, mientras no iniciemos un proceso responsable de obligatorio ajuste social para eliminarlas, todo juicio y castigo a las supuestas culpables no pasa de ser un fariseísmo moralista que se lava las manos y la conciencia. Si somos realistas, tenemos que aceptar la evidencia de que la realidad no se ajusta a justicia y no es por tanto posible dar respuestas morales efectivas únicas e iguales para todos los casos.’”

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    May-Aug 2018

Histórico

  • Recebido
    01 Abr 2018
  • Aceito
    10 Jun 2018
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