Acessibilidade / Reportar erro

GRACILIANO RAMOS NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA: UM PROJETO FRUSTRADO* * Este artigo resulta de pesquisa realizada junto ao PPGS-USP, e contou com apoio financeiro da CAPES. Apresentei uma versão dele no 44º Encontro Anual da ANPOCS, “SPG03 - Análises de trajetórias e uso de dados biográficos nas Ciências Sociais”.

GRACILIANO RAMOS DURING THE BELLE ÉPOQUE OF RIO DE JANEIRO: A FRUSTRATED PROJECT

Resumo

Este artigo recupera as primeiras investidas literárias de Graciliano Ramos, quando ainda não contava com o reconhecimento que lhe seria conferido a partir da década de 1930. Ao reconstruir as trajetórias social e intelectual do então pretendente a escritor, esta pesquisa procurou problematizá-las com o intuito de evidenciar como contribuíram para a má sorte de suas primeiras experiências no âmbito cultural, infortúnio esse tributário também da maneira como o então incipiente campo literário brasileiro estava estruturado.

Palavras-chave:
Graciliano Ramos; Literatura brasileira; Campo literário; Sociologia da cultura; Intelectuais

Abstract

This article recovers Graciliano Ramos’ first literary advances, while he did not have the recognition that he would receive from the 1930s onwards. By reconstructing the social and the intellectual trajectories of the aspiring writer, this study aimed to problematize them to show how they contributed to the misfortunes of his first experiences in the cultural environment, misfortunes that are also due to the way in which the incipient Brazilian literary field was structured.

Keywords:
Graciliano Ramos; Brazilian literature; Literary field; Sociology of culture; Intellectuals

INTRODUÇÃO

As trajetórias social e intelectual1 1 A análise da trajetória de Graciliano Ramos valeu-se dos estudos de Bourdieu (1996) e Elias (1995). do escritor Graciliano Ramos são bastante conhecidas, mas suas primeiras investidas no âmbito da cultura, ainda durante a juventude, foram pouco exploradas. Elas evidenciam as exigências colocadas aos postulantes às carreiras intelectuais - no caso dele, o jornalismo e a literatura -, bem como aspectos do incipiente campo literário2 2 A noção de campo literário aqui utilizada apoia-se nos estudos de Bourdieu (1996) acerca do caso francês, diverso do brasileiro. Não se ignora o fato de no Brasil não haver, pelo menos até a década de 1940, as condições que contribuíram para a autonomização do campo na França. Contudo, já havia no país regras de funcionamento, valores e interesses compartilhados por aqueles que se lançaram na vida literária a fim de se tornarem escritores profissionais. Para uma discussão acerca do caso brasileiro, consultar Johnson (1995). brasileiro em meados da década de 1910. Nesse sentido, o entendimento dos constrangimentos que o levaram à frustração de seus objetivos exige a reconstrução da sua biografia anterior à estreia como romancista, na década de 1930, e das características constituintes do campo literário (carioca) do início do século XX.

Disso emergem questões importantes relacionadas às fontes utilizadas - cartas, biografias, memórias e entrevistas -, como a intencionalidade daquele que as produz, a possibilidade de o intérprete, orientado pelos próprios interesses, dar outro significado ao que o texto pretendia e também os riscos de se tomar ou reconstruir uma trajetória de maneira linear e teleológica.

Skinner (1969Skinner, Quentin. (1969). Meaning and understanding in the history of ideas. History and Theory, 8/1, p. 3-53.) discorre sobre a produção de significado por meio do uso da linguagem. Trata-se de observar as condições em que ocorrem as comunicações linguísticas a fim de evitar interpretações equivocadas. Isso porque o entendimento de uma sentença não corresponde, necessariamente, à apreensão do seu significado. De acordo com ele, o mesmo ocorre com a interpretação de textos. Assim, apenas através da compreensão desses dois aspectos da comunicação é possível discernir a intenção de um autor, isto é, o que ele pretendia comunicar quando escreveu em determinado momento e para certo destinatário. Ao conferir primazia ao autor, Skinner parece alertar para o perigo de as expectativas do intérprete desviarem a intenção daquele. No entanto, o autor é reticente quanto à possibilidade de eliminar totalmente esse risco.

Miceli e Myers (2019Miceli, Sergio & Myers, Jorge. (orgs.). (2019). Retratos latino-americanos: a recordação letrada de intelectuais e artistas do século XX. São Paulo: Edições Sesc.), em outro viés, entendem a escrita memorialística como uma prática social, discriminando regras, materiais e condições de possibilidade específicas. Dessa maneira, as intenções de um autor não podem ser apreendidas apenas por meio do texto, envolvendo também a reconstrução do contexto social no qual se dá sua produção. A intencionalidade também sofreria variação em função da hierarquia dos gêneros e subgêneros, do tipo de texto que se produz, como biografia, autobiografia ou memórias. Além desses aspectos, Miceli e Myers chamam a atenção para o intervalo de tempo decorrido entre a escrita memorialística e a ocorrência dos fatos, pois isso influenciaria a recuperação e interpretação dos acontecimentos.

Quanto à intenção de Graciliano Ramos apostar em uma carreira literária, procurou-se neste trabalho recuperá-la por meio da mobilização e cruzamento de biografia, memórias, cartas e entrevistas de diferentes momentos, materiais nos quais é abordada sua passagem pelo Rio de Janeiro em meados da década de 1910.

Bourdieu (2006Bourdieu, Pierre. (2006). A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes & Amado, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 183-191.) alerta para o risco da utilização de materiais biográficos; mais especificamente, pondera acerca do equívoco de a história de vida ser recuperada como uma sucessão de acontecimentos com começo, meio e fim, dotada de sentido e coerência construídos artificialmente. Segundo ele, tal “ilusão biográfica” poderia vir à tona tanto ao produtor como ao intérprete. Evitar esse erro exigiria reconstruir o “espaço dos possíveis”, vigente em cada etapa de uma trajetória e em relação ao qual as “tomadas de posição” pelos agentes se dariam.

Nessa direção, em vista das reservas que se deve adotar ao utilizar materiais desse tipo, foi reconstruída tanto a trajetória de Graciliano Ramos como o campo no qual circulou, com o objetivo de dar inteligibilidade sociológica a suas ações.

CONDICIONANTES SOCIAIS E INTELECTUAIS DE GRACILIANO RAMOS

Primeiro dos dezesseis filhos de Sebastião Ramos de Oliveira e Maria Amélia Ferro e Ramos, Graciliano nasceu em Quebrangulo, Alagoas, em outubro de 1892 (Moraes, 2012Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.: 23)3 3 Graciliano tinha, ainda, uma irmã (natural) mais velha, a quem chamavam de Mocinha (Ramos, 2012: 163-170). . Em suas memórias, o avô paterno foi retratado como um homem hesitante, que durante a vida teria oscilado entre o comércio e a arte. Sem tino para os negócios, teve seu patrimônio dilapidado, daí seu desprestígio entre os parentes (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 22-23), que provavelmente valorizavam o sucesso econômico em detrimento de um meio de vida voltado à produção simbólica. Esperava-se dos homens uma postura pragmática - nesse caso representada pela condução do engenho -, enquanto as mulheres poderiam se perder em “miudezas”. Ao traçar o perfil do avô materno, no entanto, essa imagem ganha contornos mais nítidos, já que ele foi caracterizado como um homem forte e austero, dedicado à criação de gado e com pleno domínio do ramo em que atuava. Obstinado, soube, diferentemente do avô paterno, recompor-se das perdas financeiras (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 24), gozando, talvez por isso, de maior prestígio.

Maria Amélia teve-o aos quatorze anos, enquanto Sebastião Ramos, bem mais velho, tinha trinta e oito (Moraes, 2012Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.: 23). Conforme se depreende da caracterização que Graciliano fez dos avós, seus pais descendiam de famílias de proprietários rurais que desfrutavam de condição financeira distintas. No início dos anos de 1890, a família de Graciliano vivia modestamente dos ganhos obtidos do comércio de tecidos levado adiante por seu pai em Quebrangulo, Alagoas. Em meados dessa década, persuadido pelos sogros, Sebastião Ramos vendeu sua loja e migrou junto da família para Buíque, Pernambuco, a fim de investir na criação de gado (Moraes, 2012Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.: 23-24), mas o negócio não prosperou. Buscando uma alternativa, decidiram mudar para uma vila, na mesma cidade, onde a atividade comercial foi retomada. Negócio transitório, serviu como meio de obter recursos para voltarem a Alagoas (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 171)4 4 Ainda que os Ramos tenham se instalado provisoriamente nessa vila, em Buíque, e que o comércio aberto por Sebastião fosse transitório, ele adquiriu um sítio na mesma localidade. Essa aquisição ajuda a esclarecer a real situação financeira da família, que, apesar das dificuldades que surgiram como consequência da condição climática adversa, possuía capital tanto para o comércio quanto para compra de uma propriedade rural. Em uma passagem de suas memórias, Graciliano discorre sobre a condição econômica de seu pai à época do retorno para Alagoas. Tratava-se, conforme esclarece, de uma situação razoável - mais exatamente, localizada em um patamar médio (Ramos, 2012: 176). .

Outro aspecto importante é a formação educacional de Graciliano: notadamente irregular, entrecortada por violência, causou-lhe sofrimento. Acompanhando os deslocamentos da família, frequentou algumas escolas entre Pernambuco e Alagoas (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .). Em comum, havia a má qualidade do ensino e o ambiente hostil.

Foi por esses tempos que Graciliano aproximou-se do tabelião Jerônimo Barreto. Dono de uma biblioteca particular, emprestou livros para o jovem, que, a despeito da irregularidade de seus estudos, adquiria paulatinamente o gosto pela leitura (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 229-235). Com pouco mais de onze anos, e evidentemente sem maturidade intelectual, entusiasmou-se com a possibilidade de fundar um periódico. Ao lado de um primo, Cícero, e de um funcionário dos Correios, Mário Venâncio, que também era professor de geografia no colégio em que Graciliano estudava, ajudou a fundar O Dilúculo5 5 Graciliano esclarece que ele e o primo - nomeados como diretores do periódico - eram, na verdade, testas de ferro de Mário Venâncio, quem, de fato, conduzia a publicação (Ramos, 2012: 248). , “folha impressa em Maceió, com duzentos exemplares de tiragem quinzenal, trazidos pelo estafeta Buriti, que vendia revistas e declamava pedaços do Moço Louro. O desgraçado título foi escolha do nosso mentor, fecundo em palavras raras” (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 246).

Nesse periódico saiu o primeiro conto de Graciliano, intitulado O Pequeno Mendigo6 6 Esse conto foi remendado por Mário Venâncio. Segundo Graciliano, esses e outros trabalhos “saíram com tantos arrebiques e interpolações que do original pouco se salvou” (Ramos, 2012: 248). . Modesta, a revista circulou por menos de um ano, totalizando dezessete números. Como índice do incipiente desenvolvimento das atividades intelectuais na cidade, pode-se tomar ainda a organização de uma sociedade teatral, a Escola Dramática Pedro Silva e também a Instrutora Viçosense, esta última sem atividades regulares. De todo modo, desse momento em diante, Graciliano conseguiu emplacar algumas publicações (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 245-250). Ainda que seu gosto e disposição para a leitura, bem como o envolvimento com esses modestos projetos editoriais tenham uma carga anedótica, não deixam de evidenciar a disposição autodidata dele.

Em 1905, devido à inexistência de ginásios em Viçosa, o que impediria a continuidade dos estudos formais, seus pais o matricularam no Colégio Quinze de Março, de Maceió, para onde teve de se mudar, retornando ao convívio da família apenas nos períodos das férias7 7 Em uma dessas ocasiões, e mais uma vez por iniciativa de Mário Venâncio, Graciliano contribuiu com a edição do jornal Echo Viçosense, cujo encerramento se antecipou por causa do suicídio do amigo, após a veiculação de apenas dois números (Moraes, 2012: 32-33). . Nesse período, Graciliano escreveu poemas e sonetos, e alguns foram publicados na revista carioca O Malho, no Jornal de Alagoas, Correio de Maceió e na revista Argos (Moraes, 2012Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.: 32-36).

No entanto, o acontecimento mais sugestivo desses cinco anos em que permaneceu em Maceió foi o convite do Jornal de Alagoas, em 1910, para participar de um inquérito literário8 8 Para a leitura do inquérito e notas, consultar Lebensztayn e Salla (2014: 51-65). . Ainda que o significado disso deva ser matizado, pois se tratava de um periódico local, de um estado periférico do ponto de vista da produção literária e da construção dos juízos, não parece sem importância, já que nos anos subsequentes Graciliano intensificaria suas investidas com o propósito de ingressar numa carreira intelectual.

Ao concluir essa etapa dos estudos, Graciliano foi de Maceió para Palmeira dos Índios, cidade na qual ficava a nova residência da família. Ao adquirir casa, loja e fábrica para descaroçar algodão, Sebastião Ramos convocou o filho mais velho para ajudá-lo. Deixando então os encargos da loja a ele, dedicou-se à lavoura e à pecuária. Mais do que isso, a atitude do pai talvez tivesse o propósito de evidenciar ao filho que havia reservado a ele a transmissão do patrimônio e, em consequência, as responsabilidades concernentes à reprodução material da família.

Imediatamente, o retorno de Graciliano representou, por um lado, a suspensão de qualquer intenção de transitar em alguma eventual roda de intelectuais de Maceió9 9 Por ora, não foi possível verificar se havia qualquer roda intelectual, em Maceió, no início da década de 1910. No entanto, a aplicação do já referido inquérito literário pelo Jornal de Alagoas e a existência de uma revista literária, Argos, indicam que alguma atividade literária era praticada, daí a suposição de que pudesse haver formações daquele tipo. e, por outro, o fim dos seus estudos formais. Ainda que o autodidatismo pudesse compensar essa interrupção, a falta de um título escolar poderia limitar suas possibilidades de deixar o comércio e ingressar numa atividade intelectual prestigiada. Soma-se a isso o modesto cabedal de relações sociais que possuía, resumido aos amigos da família Mota Lima10 10 Ainda que o mercado de postos públicos fosse incipiente, condição que seria alterada com a ascensão de Vargas ao poder central (Miceli, 2001b), pode-se supor que um título escolar poderia trazer vantagens mesmo na obtenção de posições melhores, por exemplo, no interior das redações ou o ingresso em jornais mais ou menos prestigiados. .

Nos quase quatro anos em que permaneceu em Palmeira dos Índios, Graciliano dividiu-se entre o trabalho na loja da família e a criação literária, compartilhada com Joaquim Pinto da Mota Lima Filho11 11 Filho do farmacêutico Joaquim Pinto da Mota Lima - conhecido como Dr. Mota -, Joaquim Pinto da Mota Lima Filho mais tarde se tornaria jornalista, trabalhando no Rio de Janeiro. Seus irmãos - Rodolfo, Pedro e Paulo Mota Lima - também se dedicaram ao jornalismo. A família mantinha relações com políticos locais, dentre os quais, Pedro da Costa Rego, governador de Alagoas no decênio de 1920, e Álvaro Paes, que também esteve à frente do estado, mais exatamente, no momento que Graciliano dirigiu a Imprensa Oficial (Ramos, 2012). , que também se dedicava à literatura. Num trecho extraído de uma carta enviada ao amigo, de 2 de fevereiro de 1914, isso pode ser visto:

Que é dos sonetos, miserável? Que é da correspondência francesa que prometeste? Não te mando agora alguma coisa, como combinamos, porque ainda estou a trabalhar naquele conto que me deixaste a fazer. Desenvolvi-o, ampliei-o, estão escritas já quase setenta tiras. Se chegar a concluí-lo - o que acho difícil, quase impossível, porque caí na tolice de me meter em certas funduras - talvez te mande uma cópia” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 20-21).

Se as referências à sua produção, bem como a publicação esporádica de sonetos e crônicas no Jornal de Alagoas, Correio de Maceió e O Malho, tornam claros os investimentos de Graciliano numa possível carreira literária, o incômodo manifestado pelo fato de dividir-se entre a literatura e o trabalho ordinário, na loja da família, corrobora suas intenções. Em carta de 20 de julho de 1914, remetida a Joaquim, há indícios disso:

Depois de procurar por muito tempo alguma ocupação, resolvi-me a ensinar alguma coisa à rapaziada palmeirense. Tenho quinze alunos. Posso dizer que, pela primeira vez em minha vida, tenho ganho algum dinheiro honradamente. […] Tenho a vaga esperança de abandonar esta porcaria [o trabalho na loja]. E pergunto a mim mesmo que é que vou fazer. Tenho pensado em ser padre. (Seriamente, tenho pensado em ser padre.) Parece-me que é a única profissão compatível com meu gênio (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 34-35).

A atuação como professor e a esperança de deixar o comércio - ainda que a incerteza quanto às possibilidades profissionais também apareça nesse trecho de carta - servem como amostras de suas pretensões na esfera intelectual, ensejadas pelo binômio incômodo-expectativa experimentado pelo então jovem comerciante-escritor12 12 Alusão à condição de funcionário-escritor (Miceli, 2001b). Utilizei o termo comerciante-escritor no sentido de demarcar a situação adversa vivenciada por Graciliano Ramos, que tinha de deixar em segundo plano a atividade que lhe custava mais caro. . A hesitação de Graciliano acerca de uma profissão alternativa é logo dissolvida, emergindo uma solução auspiciosa. O excerto seguinte, extraído da mesma carta de 20 de julho de 1914 é, nesse sentido, esclarecedor: “Ontem, durante o dia e durante a noite, tomei uma grande resolução. Parece-me que vou para o Rio. Queres ir comigo? Se estás firme em teu propósito de azular e se te não desagrada a companhia deste selvagem da Palmeira, podemos cavar a vida juntos” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 36-37).

Tratar-se-ia de migrar para o Rio de Janeiro e procurar trabalho na imprensa, conforme depreende-se da carta remetida ao pai em 21 de agosto de 1914:

Creio que em Maceió não tenho amigos que se possam interessar tanto pela minha vida e pelo meu bem-estar. Que é que essa gente de Maceió sabe a respeito de minhas resoluções? Não quero emprego no comércio - antes ser mordido por uma cobra. Sei também que há dificuldades em se achar um emprego público. Também não me importo com isso. Vou procurar alguma coisa na imprensa, que agora, com a guerra, está boa a valer, penso (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 37-38).

Se o comércio e o emprego público, para Sebastião Ramos, figuravam como carreiras possíveis ao filho, a recusa de Graciliano às sugestões do pai - sua ida para Maceió e o emprego no comércio - torna patente a opção de Graciliano por uma carreira intelectual. Mais do que isso, demonstra a clareza que tinha sobre as possibilidades de levar adiante tal projeto, pois não vacilou em optar por migrar para a então capital do país - local onde os juízos e as reputações eram formados - ao invés de Maceió, tampouco em qual ramo profissional tentar se inserir, a imprensa, que, à época, figurava como a principal opção para aqueles que almejavam a carreira literária, empregando vários escritores13 13 Segundo Miceli, “na República Velha […] toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. Os escritores profissionais viam-se forçados a ajustar-se aos gêneros havia pouco importados da imprensa francesa: a reportagem, a entrevista, o inquérito literário e, em especial, a crônica” (Miceli, 2001a: 17). .

RETRATO DO CAMPO LITERÁRIO NA BELLE ÉPOQUE CARIOCA

No Rio de Janeiro do início do século XX, a conquista de prestígio intelectual estava ligada à adequação ao novo estilo de vida que começou a ser cultivado na cidade e, principalmente, ao pertencimento aos salões mundano-literários que foram criados durante o período.

Para essa readequação das condutas contribuiu também a fundação da Academia Brasileira de Letras. O oficialismo com que essa instituição se revestiu, exigindo de seus membros efetivos e postulantes comedimento, contribuiu sobremaneira para o aburguesamento dos escritores (Broca, 2005Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.: 39-40).

Dessa maneira, a presença nos salões - mais exatamente, fazer parte dos grupos restritos que neles circulavam -, a adequação ao tipo de sociabilidade vigente nesses espaços, bem como a moderação exigida pelo oficialismo literário, num movimento de afastamento em relação ao estilo de vida boêmio, evidenciam que a vida literária estava sendo reorganizada e, nesse processo, outros expedientes entraram em cena no reordenamento das disputas nesse campo que ainda se estruturava.

Os espaços privilegiados para o estabelecimento de laços de cumplicidade recíprocos eram as livrarias. No final do século XIX e início do XX, muitas delas serviram como ponto de encontro dos escritores, sendo a Garnier a mais importante, por reunir diversos grupos, com destaque para o de Machado de Assis, que incluía Lúcio de Mendonça, Nabuco, Taunay, José Veríssimo e Coelho Neto14 14 Havia outras livrarias no Rio de Janeiro, frequentadas por grupos distintos. Dentre elas, destacam-se as livrarias Quaresma, Briguiet, Laemmert e Azevedo (Broca, 2005: 83). . A roda formada por esses escritores diferenciava-se das demais por agregar as personalidades mais celebradas do período e, sobretudo, porque controlava o acesso à Academia Brasileira de Letras, que conferia distinção, pelo menos simbólica, àqueles que eram eleitos para ocuparem uma de suas poucas cadeiras15 15 O entendimento de que a Academia Brasileira de Letras conferia reconhecimento aos seus membros pode ser apreendido pelas tentativas de organização de instituições similares, em flagrante oposição. Acompanhando o inventário de Broca (2005), foram três iniciativas nesse sentido. A primeira delas, encabeçada por Paula Nei, deu-se logo que a Academia Brasileira de Letras fora fundada. Tratava-se, objetivamente, de uma oposição, pois dela participariam intelectuais que não figuravam na primeira academia. O projeto, entretanto, não se efetivou. Em 1911, agora por iniciativa do jornal A Imprensa, de Alcindo Guanabara, foi lançado o projeto da Academia dos Novos, que a despeito de causar interesse entre as rodas literárias, fracassou ainda no período de realização das eleições para a escolha dos seus membros. Anos depois, em 1914, houve nova investida. Dessa vez, no entanto, a instituição teria uma finalidade de cunho profissional. A Sociedade Brasileira dos Homens de Letras pretendia atuar na proteção dos escritores. Contudo, a esse respeito, pouco ou nada fez, promovendo principalmente conferências, palestras e saraus artísticos. .

Nesse período, o incipiente campo literário carioca comportava, ainda, outro expediente que concorria para dar visibilidade aos escritores e, eventualmente, dar-lhes prestígio: a propaganda. Ela, e mesmo a autopropaganda, foi vastamente utilizada, e, para tanto, os escritores valeram-se das conferências, que se multiplicavam nos primeiros anos do século XX.

Quanto aos escritores, inclinavam-se para o gênero, não somente pelo lucro financeiro, como porque nessa época, em que o sensacionalismo começava a se implantar em nossas letras, e ainda não se dispunha do sistema de propaganda literária de hoje, pronunciar uma conferência constituía um dos melhores meios de dar na vista, de chamar a atenção para a própria pessoa, fazer o próprio reclame, enfim (Broca, 2005Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.: 198).

No mesmo sentido poderia incorrer a crítica literária. Pouco diferenciada, geralmente ocupava-se em orientar os leitores acerca das novas edições de livros. Tendo em vista essa função primordial, os críticos frequentemente privilegiavam seus companheiros de roda intelectual fazendo-lhes propaganda.

Outro condicionante pesou sobre os pretendentes à carreira literária: o fato de os escritores oriundos de outros estados terem de migrar para o centro da produção cultural, lugar onde se formavam as reputações nacionais. Além disso, havia a necessidade de se ter contatos influentes para que as distâncias entre as regiões se encurtassem e a recepção do aspirante a escritor pudesse ocorrer sem tanta dificuldade.

Uma maneira de satisfazer essa condição era o emprego na imprensa, pois

não se pode negar que os jornais, proporcionando trabalho aos intelectuais, mesmo quando se tratava de simples rotina de redação, sem nenhum cunho literário, facilitava a vida de muitos deles, dando-lhes um second métier condigno, no qual podiam, certamente, criar ambiente para as atividades do escritor. Lembremo-nos de que a imprensa propiciara, como continua a propiciar, a mudança para a metrópole de grande número de intelectuais, que não conseguiriam realizar-se literariamente se permanecessem no recanto nativo da província (Broca, 2005Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.: 286).

A INVESTIDA LITERÁRIA DE GRACILIANO RAMOS NO RIO DE JANEIRO

Conforme visto, duas alternativas abriram-se para o jovem Graciliano: ganhar a vida em Maceió, trabalhando no comércio - hipótese que o manteria, provavelmente, afastado da atividade intelectual -, ou migrar para o Rio de Janeiro na tentativa de encontrar alguma ocupação na imprensa - passo inicial no caminho para alcançar seu objetivo, que era a efetivação da carreira de escritor, atestada pela troca literária observada nas correspondências com seu amigo Joaquim Pinto da Mota Lima Filho e pela publicação de trabalhos em jornais e revistas de Alagoas e Rio de Janeiro. Ele partiu para o Rio em agosto de 1914.

Com quase 22 anos, Graciliano chegava à capital do país. Algumas semanas após desembarcar na cidade, conseguiu empregar-se como foca16 16 Termo utilizado, à época, para se referir aos iniciantes nos jornais. no jornal Correio da Manhã, passando, depois, à suplente de revisão. Num primeiro momento, procurando meios para estabelecer-se, recorreu a duas modalidades de redes de relações sociais. Uma delas, mais sólida, baseava-se em laços de amizades antigas. Como dito anteriormente, Graciliano era amigo dos Mota Lima, principalmente de Joaquim, seu parceiro na criação literária e com quem veio para o Rio de Janeiro. Ainda, a cidade era a morada de Rodolfo, irmão de Joaquim, que já trabalhava como jornalista. Dessa forma, Graciliano pôde contar com eles durante sua permanência na capital17 17 Em carta remetida à irmã Leonor Ramos, de 05 de outubro de 1914, Graciliano ratifica a estreiteza dos laços de amizade com os irmãos Mota Lima, já que nos momentos de folga ele frequentava a casa de Rodolfo (Ramos, 2011: 42). Quanto à mobilização dessa relação a fim de obter apoio ou vantagem, ainda que não haja elementos conclusivos para afirmar que foi Rodolfo quem o ajudou na obtenção do trabalho no Correio da Manhã - situação plausível, pois este era jornalista, pelo menos em 1911 foi redator do jornal e, supõe-se, com trânsito entre os colegas de profissão, talvez fosse um dos poucos conhecidos de Graciliano na cidade -, mais tarde ele auxiliaria o amigo na tentativa de lhe conseguir uma ocupação na Gazeta de Notícias. . A outra modalidade ligava-se a um tipo de solidariedade relacionada ao pertencimento geográfico. Tratava-se de um cabedal de relações mais frouxo, do qual participavam pessoas que, como ele, haviam migrado de Alagoas. Exemplo disso é dado num trecho extraído da correspondência remetida a sua mãe, Maria Amélia, de 20 de outubro de 1914:

Encontrei-me uma segunda vez com o Pedro Constant. Não sei se ele terá escrito, para aí, segundo o desejo de d. Iaiá. Talvez não. Tenho visto pouquíssimos alagoanos. Têm-me dito que a colônia alagoana aqui é a pior de todas. E eu creio que é mesmo. O sujeito que me prometeu arranjar um lugar na redação do Século é o tipo que eu mais aborreço. Tenho-lhe uma antipatia medonha. O mesmo deve ele dizer de mim. Que valor merece uma promessa assim? O Brito também não fez nada. Promessas… (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 46).

Aos poucos Graciliano foi angariando novas amizades mais ou menos vantajosas, passíveis de serem mobilizadas em seu favor. Indicado pelo diretor de revisão do Correio da Manhã, assumiu a suplência de revisão do jornal O Século. Ambas as ocupações eram subalternas - na prática, ele somente exercia alguma atividade quando os titulares dos cargos não apareciam nas respectivas redações dos jornais - e remuneravam mal18 18 Com o propósito de complementar a renda auferida com os trabalhos desenvolvidos nos jornais, a família de Graciliano lhe enviava os rendimentos referentes a algumas cabeças de gado que ele possuía (Ramos, 2011: 63). .

Apesar dos modestos rendimentos que obtinha com os trabalhos de revisor, que representavam as possibilidades de ocupação possíveis para um autodidata - sem título escolar que o projetasse nas disputas por melhores postos na imprensa -, e destituído de um cabedal de relações sociais consistente do qual também pudesse tirar mais que indicações para posições subalternas em jornais, Graciliano dispunha de algo precioso para quem desejava levar paralelamente uma carreira na literatura: tempo ocioso19 19 Conforme foi visto, o trabalho nos jornais representava uma segunda ocupação até mesmo para escritores que já tinham conquistado algum prestígio, ou mesmo obtido a consagração literária. Daí enfatizar o caráter subalterno do trabalho desenvolvido por Graciliano Ramos nos jornais, bem como as irrelevantes possibilidades que se abririam a ele devido aos poucos capitais de que dispunha. .

Várias das correspondências que remeteu à família nesse período dão ideia de sua produção literária, servindo, desse modo, como atestado de que mais do que exercer alguma atividade intelectual, nutria esperanças de levar adiante a carreira de escritor. Escrevia para pequenos jornais por encomenda dos amigos de redação, conforme dois excertos extraídos das cartas enviadas à irmã, Leonor Ramos, com quem dividia as notícias sobre suas investidas literárias. Na primeira missiva, de 8 de dezembro de 1914, diz: “Vou escrever agora um soneto para o jornal de um amigo que me pediu qualquer coisa para publicar. Quanta honra para um pobre marquês…” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 49). No mesmo sentido, em 14 de dezembro de 1914, alega estar “condenado a entregar, dentro de quatro dias, um soneto e um artigo para dois jornalecos de dois rapazes que trabalham na revisão do Correio” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 51).

Não se restringindo aos pequenos jornais, publicou tanto no Paraíba do Sul quanto no Jornal de Alagoas20 20 Ao se tomar como referência os textos publicados em Ramos (2015), durante sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, Graciliano teve três publicações no Jornal de Alagoas e treze no Paraíba do Sul. Isso vai ao encontro do que foi dito sobre sua intenção de se firmar como escritor. . Isso não representava, todavia, inserção vantajosa no meio literário carioca, que exigia mais dos escritores recém-chegados e sem qualquer recomendação de um conterrâneo que conhecesse alguém bem situado na capital. Como foi visto, os escritores que ocupavam posições dominantes restringiam-se a um seleto grupo que orbitava em torno dos que controlavam o acesso à Academia Brasileira de Letras, à época, principal instância de consagração literária. Em entrevista concedida a Homero Senna, em 1948, Graciliano deixaria evidente sua distância em relação aos escritores prestigiados dos anos 1910:

- Nessa sua primeira viagem à “corte” procurou aproximar-se de algum escritor, fez camaradagem literária?

- Nenhuma. Os escritores daquele tempo eram cidadãos que, nas livrarias e nos cafés, discutiam colocação de pronomes e discorriam sobre Taine. Machado e Euclides já haviam morrido, e os anos de 1914-1915, em que estive aqui, assinalam, na literatura brasileira, uma época cinzenta e anódina, de que é bem representativo um tipo como Osório Duque Estrada, que então pontificava… (Lebensztayn & Salla, 2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 192).

Além da constituição de alianças que, de alguma maneira, pudessem ser mobilizadas a fim de se obter benefícios, como, por exemplo, votos nas eleições para a Academia e indicações para postos mais vantajosos nos jornais, já foi mencionado que a propaganda, ou a autopropaganda, era expediente necessário na construção das reputações. Claro que para um desconhecido, como era Graciliano, os benefícios que poderia receber restringiam-se à indicação para cargos na imprensa que remunerassem melhor e lhe dessem tempo para escrever seus trabalhos e, também, auxílio para que pudesse publicar em jornais e revistas de algum prestígio. Sem ter com quem contar, ele logo compreendeu a força de tais imperativos. Num trecho extraído de carta endereçada a sua mãe, de 4 de fevereiro de 1915, isso fica claro:

O que eu sinto é morar numa terra onde só se pode conseguir alguma coisa com muito reclamo. Aqui tudo se resume nisto: cada sujeito faz propaganda de si mesmo. Um indivíduo que é burro fala em voz alta, de papo, grita, diz e às vezes chega a fazer figura diante de outros que são mais burros do que ele. Um animal que tem algum talento afeta uma atitude ultra-humana, quase divina - não conversa: prega; não dá sua opinião sobre coisa nenhuma: afirma, assevera, pontifica. É dogmático e é intolerante. Não admite que se diga nada que vá contrariar suas doutrinas. É como os padres da Igreja. Enfim tudo reclamo. Um tipo escreve um livro e vai, ele próprio, engrandecer, pelos jornais, o livro que escreveu. Muitas coisas más conseguem tornar-se boas assim. Eu digo comigo mesmo que o meu vizinho é um asno; mas tenho interesse em dizer em público que ele é um gênio. É o elogio pago. Tudo reclamo, em toda parte, a toda hora, sob todas as formas. […] Veja a senhora como as coisas aqui são. Tudo reclamo. E o pobre-diabo que for tímido, que não declarar que é um gênio, é uma criatura morta. Ora eu estou arrependido de ter feito hoje uma asneira. Um rapaz meu conhecido apresentou-me a um poeta, dizendo que eu era um literato. E eu caí na tolice de dizer que o não era. Dei uma grande patada, não há dúvida. Eu devia ter ficado calado ou, melhor, ter entrado a dizer sandices sobre arte e sobre outras coisas que não conheço. Era o que eu devia ter feito. É o que todos fazem… (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 59-61).

Não apenas tomou conhecimento das regras do jogo como lamentou por ter se furtado a participar dele. Sem propaganda, ficaria invisível; sem alianças, tornar-se-ia custoso ser reconhecido como escritor num meio literário que privilegiava esses expedientes21 21 Não se defende, com isso, que a obra não desempenhasse qualquer função tanto na inserção dos escritores nos meios literários quanto em sua manutenção neles. É evidente que sim. Todavia, num campo pouco autônomo - ainda que se avalie que essa autonomia é sempre relativa, já que alguma dependência sempre existirá em relação a algum agente externo, conforme Sapiro (2004) -, e em virtude do instrumental teórico-metodológico adotado, optou-se, neste trabalho, por tratar das condicionantes não literárias que atuavam no campo literário ainda em estruturação. . Ademais, do excerto, pode-se extrair características mais gerais da imbricação entre o mundanismo e a cultura, apreendida tanto pelo tipo de conduta que tal relação suscitava - marcada, às vezes, pela afetação, esnobismo e superficialidade -, como pelo tratamento dispensado à própria cultura, notadamente espetaculoso.

EXPECTATIVA E FRUSTRAÇÃO: PROJETO LITERÁRIO ADIADO

Em maio de 1915, Graciliano demonstrava certo desconforto com sua situação, que se mantinha praticamente inalterada desde que desembarcara no Rio de Janeiro em meados de 1914. Em meio às dúvidas desencadeadas por esse estado de coisas, deixou os jornais para os quais trabalhava, admitindo, inclusive, a possibilidade de retornar para Palmeira dos Índios. Aparentemente incrédulo, condicionou sua permanência na capital do país à efetivação em algum jornal, e, para tanto, contava apenas com os amigos de Alagoas - os irmãos Joaquim e Rodolfo Pinto da Mota Lima - e poucos contatos nos jornais Correio da Manhã e O Século - Falcão, respectivamente diretor e redator desses jornais, além de Cordeiro, companheiro nos tempos em que trabalhavam no último e, então, chefe de revisão do Rio22 22 De acordo com correspondência de 24 de maio de 1915, endereçada ao pai, Cordeiro havia dito a Graciliano que tentaria arranjar-lhe emprego na revisão do Rio por quatro mil-réis diários. Rodolfo, por sua vez, procuraria alguma ocupação na Gazeta de Notícias. No entanto, para Graciliano, tratava-se de coisas “muito difíceis. Eu tenho bons camaradas, capazes de fazer um favor… se pudessem. Um sargento do exército não pode fazer nada. Mas são bons amigos, não tem dúvida. Ao menos a gente sabe que eles não podem ter intenção de explorar-nos, porque nada temos. Também nós não podemos explorá-los” (Ramos, 2011: 73). . Um mês e meio depois, suas perspectivas já eram outras, beirando mesmo o entusiasmo devido às brechas abertas a ele no âmbito literário. Numa longa carta remetida à irmã Leonor Ramos, de 10 de julho de 1915, Graciliano, entre outras coisas, discorre sobre o assunto:

Queres que te fale de minhas produções? Pois falemos, já que o não posso fazer com minha mãe, que não entende nada disso, nem com meu pai, homem de negócios, muito positivo. […] Pois, como te disse, tenho feito alguns traços. O diretor do jornal que os publica, meu amigo Falcão, […], que é redator do Século, pediu-me para escrever uma notícia sobre um livro. […] O homem gostou da notícia, pediu-me um artigo para o jornal dele. Depois insistiu para que eu sustentasse uma seção. Ficamos bons amigos. […] Depois me disse que um redator da Revista Americana lhe havia pedido um trabalho. Como ele não tem nada por enquanto, exigiu que eu lhe desse uma de minhas novelas. Dei-lhe, para que escolhesse, as duas que ele já conhecia e uma terceira, Um retardatário, sobre a qual o homem prometeu dar-me uma opinião sincera. […] Segundo ele, aquela joça está magnífica. Contou-me os trâmites que havia seguido o pobre Retardatário. Antes de entregá-lo à revista de que te falei, encontrou o secretário da Concórdia, que abriu a historieta casualmente e leu a primeira tira. Depois da primeira, leu a segunda. Depois a terceira, a quarta, a quinta, assim por diante até a vigésima quinta. E tomou-a, para publicar em sua revista. O Falcão veio ter comigo, satisfeito. O homem tinha feito elogios à novela em quantidade. E as lamentações do estilo - “um rapaz de talento… e vive obscuro… e não consegue nada porque tem talento… aqui só vencem os cabotinos…” Uma caterva de patranhas enfim. […] Esse amável Mecenas, que tomou a difícil tarefa de fazer que eu aparecesse, não ficou muito contente por ter dado outro destino ao conto que ele destinava à Revista Americana, uma publicação dirigida por sujeitos muito graúdos. Mas consolou-me - a Concórdia não é coisa acanalhada, é uma ótima revista, muito benfeita, no formato da Ilustração Francesa, impressa em papel couché. Demais ainda havia duas novelas que podiam ser publicadas na Revista Americana. […] O pior é que esse bom amigo pediu-me dois miseráveis traços, já publicados em seu jornal com uma infinidade de pastéis, para entregar à Gazeta de Notícias. Não sei se o deva fazer, porque aquilo é rabiscado ao correr da pena, sem preocupações de forma. Entretanto, devo dá-las hoje. […] Também me desgosta saber que o sujeito da Concórdia exigiu um retrato meu e umas notas sobre minha pessoa. É uma coisa extremamente desagradável, principalmente quando a gente não tem retrato e vive encolhido no seu canto, com medo de aparecer. Mas o meu amigo do Paraíba quer que eu apareça. […] Enfim manda-se a modéstia ao diabo. Vive sempre a gente a ter dúvida sobre se vale ou não alguma coisa. Quando se é moço, é-se arrojado a valer, tem-se o desplante impagável de andar jogando à publicidade todas as sandices que vão pingando do bico da pena. Depois, com a idade, vem o receio, a dúvida. “Isto prestará? Valerá a pena lançar isto?” E o que fazemos hoje e nos parece bom afigura-se-nos amanhã detestável. E perguntamos a nós mesmos: - “A opinião de Fulano terá sido sincera? Essa gente procederá de boa fé?” […] Vem-nos por fim uma reflexão decisiva. Se nossas produções ficarem inéditas, nunca poderemos, por nosso próprio julgamento, saber se elas prestam. […] É preciso ser afoito, imodesto, cínico até. Não poderás saber a quantidade de pedantismo necessária a um tipo desta terra, onde tudo é fita, para embair a humanidade. […] Eu sou de uma timidez obstinada. Não posso corrigir-me. E, contudo, preciso modificar-me, fazer reclame, estudar pose. Santo Deus! É terrível! […] Mas talvez consiga a gente mandar a modéstia à fava. Aqui um sujeito calado é um sujeito burro. Fala-se, portanto, embora para não dizer nada. E, pensando bem, chega-se a esta conclusão - um animal que, aos treze anos, publicava sonetos idiotas no Correio de Maceió e no Malho (barbaridades, está claro!) pode, talvez, aos vinte e três quase, não tendo perdido todo seu tempo, fazer qualquer página passável. É verdade ou não é verdade? E aí está por que eu vou publicar em revistas sérias, onde gente grande colabora, coisas sobre a vida em Palmeira dos Índios, o único lugar que mais ou menos conheço, porque lá vivi quando já tinha idade de pensar. Dize, pois, a meu pai que não estou perdendo o tempo de todo. Se não me sair mal, pode ser que, para o futuro, faça alguma coisa. Se me sair mal, paciência… O que é verdade é que nunca estou desocupado (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 76-80).

Criação e trocas literárias, constituição de alianças vantajosas, produção por encomenda, superação do acanhamento e publicidade. Todos esses assuntos, que depreendidos dessa correspondência, levam a afirmar que a intenção encetada por Graciliano quando migrara de Alagoas não se bastava em desenvolver alguma atividade intelectual. Seu projeto era outro: tornar-se escritor, desejo que provavelmente nutria desde que começara a publicar em jornais e revistas, ainda na adolescência. O entusiasmo que pode ser observado na correspondência quando conta à irmã as possibilidades literárias que pareciam se abrir a ele segue esse mesmo sentido, e publicar em “revistas sérias, onde gente grande colabora” estava entre seus objetivos.

Definitivamente, ele não apenas compreendera as regras do jogo como parecia disposto a praticá-las. Ainda sem dispor de relações que o colocassem em contato direto com as rodas literárias, Falcão passou a figurar como seu “mecenas”, pois foi ele quem fez a mediação com as instâncias literárias que detinham maior prestígio, as quais, de alguma maneira, poderiam recompensar simbolicamente Graciliano. Daí, talvez, não ter se oposto a produzir por encomenda - algo que o incomodaria por ser “rabiscado ao correr da pena, sem preocupações de forma” - e a ceder diante da necessidade de fazer propaganda de si, quinhão que teria de pagar para não permanecer invisível.

Graciliano há tempos sabia da importância dos jornais, à época, para os literatos. Isso fica evidente na carta remetida a sua irmã, pois vê-se que suas possibilidades de publicação se restringiam aos jornais e revistas. Mesmo antes já parecia ter clareza disso, ao responder uma das perguntas do inquérito literário promovido pelo Jornal de Alagoas, em 1910. Para ele, “o jornal é absolutamente necessário, indispensável mesmo à literatura, principalmente em um lugar onde apenas de longe em longe aparece um livro” (Lebensztayn & Salla, 2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 54).

Valendo-se, ainda, das modestas prerrogativas de seu capital social, conseguiu um posto no jornal A Tarde, mais um passo no sentido de permanecer no Rio de Janeiro com o propósito de vingar na carreira literária. Antes disso, porém, recebera notícias alarmantes vindas de Palmeira dos Índios sobre a saúde de familiares. Dessa maneira, natural que colocasse em xeque tanto sua permanência na capital do país quanto suas perspectivas acerca da carreira. Em carta de 26 de agosto de 1915, endereçada ao pai, diz:

Fala o senhor em ser minha carreira prejudicada por minha volta para o Norte. Eu, com franqueza, não sei bem se tenho carreira. O que acho natural, acessível a mim, é o que acima disse - trabalhar em dois jornais, ter um ordenado medíocre, viver modestamente e só. Futuro de outra espécie, coisa maior, não tenho, não posso ter. Pelo menos é o que me parece. Tenho o bom-senso de julgar-me aproximadamente analfabeto. É claro que há muitos analfabetos que vencem, mas são criaturas que sabem cavar. E eu sou uma espécie de idiota. Se me dessem qualquer coisa superior às bagatelas de que falei, ficaria eu surpreendido (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 88).

Prova cabal de que o encaminhamento dos fatos - o retorno para Alagoas e, em consequência, a suspensão do seu projeto literário - causava-lhe ressentimentos pode ser visto no trecho final da mesma carta: “N.B. De lá recebo frequentemente conselhos e pedidos para que volte; aqui estão sempre a aconselhar-me que fique. O que é mau é abandonar uma coisa que começa a aparecer depois de uma espera longa” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 88).

Tratava-se, de um lado, da obtenção de um trabalho que garantisse sua reprodução material e tempo livre para dedicar à literatura - ambos requisitos satisfeitos pelo emprego, relativamente vantajoso, obtido no jornal A Tarde - e, por outro, de um mediador que o tornasse visível nos meios literários, condição que começava a ser cumprida graças à mediação feita pelo amigo Falcão, que conseguira publicá-lo numa revista “séria”.

A frustração das expectativas de Graciliano veio com a confirmação do falecimento de membros de sua família, vitimados pela peste bubônica, fato que o fez regressar para Palmeira dos Índios, de onde havia saído, há pouco mais de um ano, com o objetivo explícito de atuar na imprensa. Todavia, ao se levar em consideração suas investidas no âmbito literário - como a produção sistemática, inclusive por encomenda, e o estabelecimento de alianças relativamente vantajosas com a intenção de obter melhores condições para publicação, que envolviam mediação e publicidade -, evidenciadas pelas correspondências trocadas com familiares, pode-se assumir que seu alvo era mesmo a carreira literária.

Assim, seu retorno para Alagoas ocorreu quando ele parecia dar alguns passos mais firmes nesse sentido - passos tímidos, evidentemente, pois se tratava de alguém desconhecido nos círculos literários cariocas e sem trunfos a serem mobilizados em seu favor -, antes que tivesse esgotado todos os meios de levar adiante seu mais caro propósito, almejado desde a partida para o Rio de Janeiro. O sentimento de frustração pode ser apreendido em outro trecho da entrevista que Graciliano concedeu a Homero Senna, da Revista do Globo, em 1948. Mais de trinta anos após sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, e já legitimado no meio literário, diz:

[…] Depois de curta e nada sedutora permanência na capital, achei melhor voltar para Palmeira dos Índios, onde já havia deixado um caso sentimental e onde minha família estava sendo toda dizimada pela bubônica. Num só dia perdi dois irmãos. Alarmado, e também desgostoso com a vida que aqui levava, tratei de voltar para Alagoas. Em outubro de 1915 casei-me e estabeleci-me com loja de fazendas em Palmeira dos Índios. A mesma loja que fora de meu pai (Lebensztayn & Salla, 2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 192).

Devido às constrições do campo literário carioca daquela época, que não foram superadas, Graciliano praticamente se resigna ao destino que o pai o reservara, assumindo os negócios comerciais da família. Evidentemente sem saber se outra possibilidade no mesmo sentido surgiria, tampouco se seria algo viável, não abandonou a literatura. Observando à distância, e tomando o cuidado para não recair na “ilusão biográfica”, talvez seja possível dizer que se tratou de um adiamento de suas ambições literárias. Na já referida entrevista para Homero Senna, isso pode ser dimensionado:

- Nessa ocasião já tinha preocupações literárias?

- Lia muito e escrevia coisas que inutilizava ou publicava com pseudônimos.

[…]

- Fazia versos?

- Aprendi isso, para chegar à prosa, que sempre achei muito difícil. Tendo vivido quinze anos completamente isolado, sem visitar ninguém, pois nem as visitas recebidas por ocasião da morte de minha mulher eu paguei, tive tempo bastante para leituras. Depois da Revolução Russa, passei a assinar vários jornais do Rio. Desse modo me mantinha mais ou menos informado, e os livros, pedidos pelos catálogos, iam-me daqui, do Alves e do Garnier, e principalmente de Paris, por intermédio do Mercure de France (Lebensztayn & Salla, 2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 192-193).

Mesmo que Graciliano tenha se afastado do trabalho intelectual imediatamente após voltar para Alagoas, esse bloqueio foi aos poucos superado, conforme sugerem seu depoimento e as cartas remetidas ao amigo Joaquim entre 1921 e 1926 (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 93-111). Nessas correspondências, passados alguns anos de sua saída do Rio de Janeiro, pode-se verificar sinais de frustração em relação à experiência que tivera. Em carta de 10 de maio de 1921, relata:

Embora minha atividade aqui se concentre em coisas que andam muito distantes do cérebro, não deixei de procurar nos jornais do Rio algum vestígio de tua passagem. Procurei em vão. Do Rodolfo, sim, tenho visto alguns artigos de crítica literária no Correio, assinados M.L. Não te direi se os acho bons, que, afastado como vivo das coisas da inteligência, minha opinião no assunto, embora fosse a mais lisonjeira possível, causaria riso, talvez, a vocês outros que aí vivem. É magnífico a gente conhecer-se. E quando se vai do outro lado do monte, como eu, tendo feito voltas e voltas sem chegar ao cimo, sempre é uma virtude conformar-se com a própria decadência e não ter inveja e ódio aos que sobem. […] Já teria voltado para aí, se tivesse ficado só. Malgrado as desilusões, a cidade ainda me tenta. Se um dia me for possível, voltarei (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 93-95)23 23 Na entrevista a Homero Senna, Graciliano diz que por volta de 1930 não tinha interesse nas carreiras jornalística e literária, por isso não teria enviado artigos pedidos pelo poeta, crítico e editor Augusto Frederico Schmidt (Lebensztayn & Salla, 2014: 195). Aqui é possível observar o risco da utilização de materiais biográficos. Já consagrado, Graciliano pode ter ressignificado sua primeira experiência no Rio de Janeiro. Nesse processo, pode-se supor, atuaram tanto o tempo decorrido entre os acontecimentos pretéritos e a recuperação dos fatos mediada pelo entrevistador como os capitais de que dispunha e posições que ocupava no campo nos diferentes momentos. Como meio de matizar o suposto desinteresse que tinha por uma carreira intelectual, deve-se levar em consideração o conteúdo e mesmo o tom da carta que remeteu a Joaquim, que ficara no Rio de Janeiro. Diferentemente da entrevista, na correspondência a possibilidade de dissimular seu interesse pela literatura parece menor, pois além de serem amigos, o relato estava no âmbito do privado. Não se deve perder de vista também todo o esforço que fizera na sua curta passagem pelo Rio de Janeiro em meados dos anos 1910 e, principalmente, sua entrada para a roda de Maceió, o empenho, dele e do grupo, para conseguir editor para seus primeiros romances, ainda no início da década de 1930, conforme Mendonça (2020). .

Parecia viver sob uma tensão entre a expectativa e a frustação, expressada pelo desejo de voltar ao Rio de Janeiro e, pode-se supor, retomar alguma atividade intelectual profissional. Além das leituras a que remeteu, são evidências da sua retomada literária suas contribuições para um periódico local24 24 Entre janeiro e abril de 1921, Graciliano teve doze textos publicados em O Índio, de Palmeira dos Índios (Ramos, 2015). Ele ainda contribuiu com a redação dos primeiros quatorze números do referido jornal (Ramos, 2011: 97). e o início da redação de Caetés, por volta de 1925.

No entanto, malogradas suas investidas ainda no Rio de Janeiro, o momento de inflexão definitiva na carreira de Graciliano ocorreria apenas entre o fim da década de 1920 e início de 1930, período em que ele se aproxima das elites oligárquicas de Palmeira dos Índios, ocupando a prefeitura do município e, depois, de políticos da capital de Alagoas, mudando-se para lá a fim de assumir cargos na administração do estado. É então que o ainda pretendente a escritor, em torno dos quarenta anos de idade, passa a frequentar a roda de intelectuais, majoritariamente jovens, que residia em Maceió, dentre os quais, José Lins do Rego, Valdemar Cavalcanti, Aurélio Buarque de Holanda, Santa Rosa e, mais tarde, Rachel de Queiroz. Isso tornaria possível sua inserção nos meios literários, inclusive no Rio de Janeiro, que ainda figurava como o polo mais importante do ponto de vista da consagração literária.

Neste texto não será abordada a nova fase da trajetória do escritor, já que ultrapassa os propósitos deste trabalho, mas sugere-se que sua experiência pregressa, ainda que frustrada, serviu de lastro para suas investidas posteriores.

REFERÊNCIAS

  • Bourdieu, Pierre. (2006). A ilusão biográfica. In: Ferreira, Marieta de Moraes & Amado, Janaína (orgs.). Usos & abusos da história oral. Rio de Janeiro: Editora FGV, p. 183-191.
  • Bourdieu, Pierre. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras.
  • Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.
  • Elias, Norbert. (1995). Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar.
  • Johnson, Randal. (1995). A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945). Revista USP, 26, p. 164-181.
  • Mendonça, Wellington Pascoal de. (2020). Graciliano Ramos e a roda de Maceió. Sociedade e Estado, 35/3, p. 957-980.
  • Miceli, Sergio & Myers, Jorge. (orgs.). (2019). Retratos latino-americanos: a recordação letrada de intelectuais e artistas do século XX. São Paulo: Edições Sesc.
  • Miceli, Sergio. (2001a). Poder, sexo e letras na República Velha. In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , p. 13-68.
  • Miceli, Sergio. (2001b). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , p. 69-291.
  • Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.
  • Ramos, Graciliano. (2015). Linhas tortas. 22. ed. Rio de Janeiro: Record.
  • Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .
  • Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .
  • Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .
  • Sapiro, Gisèle. (2004). Elementos para uma história do processo de autonomização: o exemplo do campo literário francês. Tempo Social, 16/1, p. 93-105.
  • Skinner, Quentin. (1969). Meaning and understanding in the history of ideas. History and Theory, 8/1, p. 3-53.

NOTAS

  • 1
    A análise da trajetória de Graciliano Ramos valeu-se dos estudos de Bourdieu (1996Bourdieu, Pierre. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras.) e Elias (1995Elias, Norbert. (1995). Mozart: sociologia de um gênio. Rio de Janeiro: Zahar.).
  • 2
    A noção de campo literário aqui utilizada apoia-se nos estudos de Bourdieu (1996Bourdieu, Pierre. (1996). As regras da arte: gênese e estrutura do campo literário. São Paulo: Companhia das Letras.) acerca do caso francês, diverso do brasileiro. Não se ignora o fato de no Brasil não haver, pelo menos até a década de 1940, as condições que contribuíram para a autonomização do campo na França. Contudo, já havia no país regras de funcionamento, valores e interesses compartilhados por aqueles que se lançaram na vida literária a fim de se tornarem escritores profissionais. Para uma discussão acerca do caso brasileiro, consultar Johnson (1995Johnson, Randal. (1995). A dinâmica do campo literário brasileiro (1930-1945). Revista USP, 26, p. 164-181.).
  • 3
    Graciliano tinha, ainda, uma irmã (natural) mais velha, a quem chamavam de Mocinha (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 163-170).
  • 4
    Ainda que os Ramos tenham se instalado provisoriamente nessa vila, em Buíque, e que o comércio aberto por Sebastião fosse transitório, ele adquiriu um sítio na mesma localidade. Essa aquisição ajuda a esclarecer a real situação financeira da família, que, apesar das dificuldades que surgiram como consequência da condição climática adversa, possuía capital tanto para o comércio quanto para compra de uma propriedade rural. Em uma passagem de suas memórias, Graciliano discorre sobre a condição econômica de seu pai à época do retorno para Alagoas. Tratava-se, conforme esclarece, de uma situação razoável - mais exatamente, localizada em um patamar médio (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 176).
  • 5
    Graciliano esclarece que ele e o primo - nomeados como diretores do periódico - eram, na verdade, testas de ferro de Mário Venâncio, quem, de fato, conduzia a publicação (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 248).
  • 6
    Esse conto foi remendado por Mário Venâncio. Segundo Graciliano, esses e outros trabalhos “saíram com tantos arrebiques e interpolações que do original pouco se salvou” (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .: 248).
  • 7
    Em uma dessas ocasiões, e mais uma vez por iniciativa de Mário Venâncio, Graciliano contribuiu com a edição do jornal Echo Viçosense, cujo encerramento se antecipou por causa do suicídio do amigo, após a veiculação de apenas dois números (Moraes, 2012Moraes, Dênis de. (2012). O velho Graça: uma biografia de Graciliano Ramos. São Paulo: Boitempo.: 32-33).
  • 8
    Para a leitura do inquérito e notas, consultar Lebensztayn e Salla (2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 51-65).
  • 9
    Por ora, não foi possível verificar se havia qualquer roda intelectual, em Maceió, no início da década de 1910. No entanto, a aplicação do já referido inquérito literário pelo Jornal de Alagoas e a existência de uma revista literária, Argos, indicam que alguma atividade literária era praticada, daí a suposição de que pudesse haver formações daquele tipo.
  • 10
    Ainda que o mercado de postos públicos fosse incipiente, condição que seria alterada com a ascensão de Vargas ao poder central (Miceli, 2001bMiceli, Sergio. (2001b). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , p. 69-291.), pode-se supor que um título escolar poderia trazer vantagens mesmo na obtenção de posições melhores, por exemplo, no interior das redações ou o ingresso em jornais mais ou menos prestigiados.
  • 11
    Filho do farmacêutico Joaquim Pinto da Mota Lima - conhecido como Dr. Mota -, Joaquim Pinto da Mota Lima Filho mais tarde se tornaria jornalista, trabalhando no Rio de Janeiro. Seus irmãos - Rodolfo, Pedro e Paulo Mota Lima - também se dedicaram ao jornalismo. A família mantinha relações com políticos locais, dentre os quais, Pedro da Costa Rego, governador de Alagoas no decênio de 1920, e Álvaro Paes, que também esteve à frente do estado, mais exatamente, no momento que Graciliano dirigiu a Imprensa Oficial (Ramos, 2012Ramos, Graciliano. (2012). Infância. 47. ed. Rio de Janeiro: Record .).
  • 12
    Alusão à condição de funcionário-escritor (Miceli, 2001bMiceli, Sergio. (2001b). Intelectuais e classe dirigente no Brasil (1920-1945). In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , p. 69-291.). Utilizei o termo comerciante-escritor no sentido de demarcar a situação adversa vivenciada por Graciliano Ramos, que tinha de deixar em segundo plano a atividade que lhe custava mais caro.
  • 13
    Segundo Miceli, “na República Velha […] toda a vida intelectual era dominada pela grande imprensa, que constituía a principal instância de produção cultural da época e que fornecia a maioria das gratificações e posições intelectuais. Os escritores profissionais viam-se forçados a ajustar-se aos gêneros havia pouco importados da imprensa francesa: a reportagem, a entrevista, o inquérito literário e, em especial, a crônica” (Miceli, 2001aMiceli, Sergio. (2001a). Poder, sexo e letras na República Velha. In: Intelectuais à brasileira. São Paulo: Companhia das Letras , p. 13-68.: 17).
  • 14
    Havia outras livrarias no Rio de Janeiro, frequentadas por grupos distintos. Dentre elas, destacam-se as livrarias Quaresma, Briguiet, Laemmert e Azevedo (Broca, 2005Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.: 83).
  • 15
    O entendimento de que a Academia Brasileira de Letras conferia reconhecimento aos seus membros pode ser apreendido pelas tentativas de organização de instituições similares, em flagrante oposição. Acompanhando o inventário de Broca (2005Broca, Brito. (2005). A vida literária no Brasil. 1900. Rio de Janeiro: José Olympio.), foram três iniciativas nesse sentido. A primeira delas, encabeçada por Paula Nei, deu-se logo que a Academia Brasileira de Letras fora fundada. Tratava-se, objetivamente, de uma oposição, pois dela participariam intelectuais que não figuravam na primeira academia. O projeto, entretanto, não se efetivou. Em 1911, agora por iniciativa do jornal A Imprensa, de Alcindo Guanabara, foi lançado o projeto da Academia dos Novos, que a despeito de causar interesse entre as rodas literárias, fracassou ainda no período de realização das eleições para a escolha dos seus membros. Anos depois, em 1914, houve nova investida. Dessa vez, no entanto, a instituição teria uma finalidade de cunho profissional. A Sociedade Brasileira dos Homens de Letras pretendia atuar na proteção dos escritores. Contudo, a esse respeito, pouco ou nada fez, promovendo principalmente conferências, palestras e saraus artísticos.
  • 16
    Termo utilizado, à época, para se referir aos iniciantes nos jornais.
  • 17
    Em carta remetida à irmã Leonor Ramos, de 05 de outubro de 1914, Graciliano ratifica a estreiteza dos laços de amizade com os irmãos Mota Lima, já que nos momentos de folga ele frequentava a casa de Rodolfo (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 42). Quanto à mobilização dessa relação a fim de obter apoio ou vantagem, ainda que não haja elementos conclusivos para afirmar que foi Rodolfo quem o ajudou na obtenção do trabalho no Correio da Manhã - situação plausível, pois este era jornalista, pelo menos em 1911 foi redator do jornal e, supõe-se, com trânsito entre os colegas de profissão, talvez fosse um dos poucos conhecidos de Graciliano na cidade -, mais tarde ele auxiliaria o amigo na tentativa de lhe conseguir uma ocupação na Gazeta de Notícias.
  • 18
    Com o propósito de complementar a renda auferida com os trabalhos desenvolvidos nos jornais, a família de Graciliano lhe enviava os rendimentos referentes a algumas cabeças de gado que ele possuía (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 63).
  • 19
    Conforme foi visto, o trabalho nos jornais representava uma segunda ocupação até mesmo para escritores que já tinham conquistado algum prestígio, ou mesmo obtido a consagração literária. Daí enfatizar o caráter subalterno do trabalho desenvolvido por Graciliano Ramos nos jornais, bem como as irrelevantes possibilidades que se abririam a ele devido aos poucos capitais de que dispunha.
  • 20
    Ao se tomar como referência os textos publicados em Ramos (2015Ramos, Graciliano. (2015). Linhas tortas. 22. ed. Rio de Janeiro: Record.), durante sua primeira passagem pelo Rio de Janeiro, Graciliano teve três publicações no Jornal de Alagoas e treze no Paraíba do Sul. Isso vai ao encontro do que foi dito sobre sua intenção de se firmar como escritor.
  • 21
    Não se defende, com isso, que a obra não desempenhasse qualquer função tanto na inserção dos escritores nos meios literários quanto em sua manutenção neles. É evidente que sim. Todavia, num campo pouco autônomo - ainda que se avalie que essa autonomia é sempre relativa, já que alguma dependência sempre existirá em relação a algum agente externo, conforme Sapiro (2004Sapiro, Gisèle. (2004). Elementos para uma história do processo de autonomização: o exemplo do campo literário francês. Tempo Social, 16/1, p. 93-105.) -, e em virtude do instrumental teórico-metodológico adotado, optou-se, neste trabalho, por tratar das condicionantes não literárias que atuavam no campo literário ainda em estruturação.
  • 22
    De acordo com correspondência de 24 de maio de 1915, endereçada ao pai, Cordeiro havia dito a Graciliano que tentaria arranjar-lhe emprego na revisão do Rio por quatro mil-réis diários. Rodolfo, por sua vez, procuraria alguma ocupação na Gazeta de Notícias. No entanto, para Graciliano, tratava-se de coisas “muito difíceis. Eu tenho bons camaradas, capazes de fazer um favor… se pudessem. Um sargento do exército não pode fazer nada. Mas são bons amigos, não tem dúvida. Ao menos a gente sabe que eles não podem ter intenção de explorar-nos, porque nada temos. Também nós não podemos explorá-los” (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 73).
  • 23
    Na entrevista a Homero Senna, Graciliano diz que por volta de 1930 não tinha interesse nas carreiras jornalística e literária, por isso não teria enviado artigos pedidos pelo poeta, crítico e editor Augusto Frederico Schmidt (Lebensztayn & Salla, 2014Lebensztayn, Ieda & Salla, Thiago Mio. (orgs.). (2014). Conversas: Graciliano Ramos. Rio de Janeiro: Record .: 195). Aqui é possível observar o risco da utilização de materiais biográficos. Já consagrado, Graciliano pode ter ressignificado sua primeira experiência no Rio de Janeiro. Nesse processo, pode-se supor, atuaram tanto o tempo decorrido entre os acontecimentos pretéritos e a recuperação dos fatos mediada pelo entrevistador como os capitais de que dispunha e posições que ocupava no campo nos diferentes momentos. Como meio de matizar o suposto desinteresse que tinha por uma carreira intelectual, deve-se levar em consideração o conteúdo e mesmo o tom da carta que remeteu a Joaquim, que ficara no Rio de Janeiro. Diferentemente da entrevista, na correspondência a possibilidade de dissimular seu interesse pela literatura parece menor, pois além de serem amigos, o relato estava no âmbito do privado. Não se deve perder de vista também todo o esforço que fizera na sua curta passagem pelo Rio de Janeiro em meados dos anos 1910 e, principalmente, sua entrada para a roda de Maceió, o empenho, dele e do grupo, para conseguir editor para seus primeiros romances, ainda no início da década de 1930, conforme Mendonça (2020Mendonça, Wellington Pascoal de. (2020). Graciliano Ramos e a roda de Maceió. Sociedade e Estado, 35/3, p. 957-980.).
  • 24
    Entre janeiro e abril de 1921, Graciliano teve doze textos publicados em O Índio, de Palmeira dos Índios (Ramos, 2015Ramos, Graciliano. (2015). Linhas tortas. 22. ed. Rio de Janeiro: Record.). Ele ainda contribuiu com a redação dos primeiros quatorze números do referido jornal (Ramos, 2011Ramos, Graciliano. (2011). Cartas. Rio de Janeiro: Record .: 97).
  • *
    Este artigo resulta de pesquisa realizada junto ao PPGS-USP, e contou com apoio financeiro da CAPES. Apresentei uma versão dele no 44º Encontro Anual da ANPOCS, “SPG03 - Análises de trajetórias e uso de dados biográficos nas Ciências Sociais”.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    28 Nov 2022
  • Data do Fascículo
    2022

Histórico

  • Recebido
    20 Abr 2020
  • Revisado
    05 Ago 2021
  • Aceito
    18 Jan 2022
Universidade Federal do Rio de Janeiro Largo do São Francisco de Paula, 1, sala 420, cep: 20051-070 - 2224-8965 ramal 215 - Rio de Janeiro - RJ - Brazil
E-mail: revistappgsa@gmail.com