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A mistificação do trabalho precarizado invisível e o crowdsorcing

The mystification of invisible precarious work and crowdsorcing

Resumo:

Este artigo propõe-se a analisar o recente fenômeno do crowdsourcing, que se apresenta como um novo estatuto mistificador entre a terceirização e a informalidade, a partir da ação coletiva. Trata-se de uma massa humana que não atua sob a lógica fragmentada da ação individual, mas em conformidade com o coletivo. Sua existência está subordinada ao intenso uso de tecnologias informacionais, sendo as plataformas digitais o lócus privilegiado de seu desenvolvimento, além de possibilitar a inserção de usuários e consumidores e de atividades laborais invisíveis.

Palavras-chaves:
Mistificação; Plataformas digitais; Tecnologias informacionais; Trabalho precarizado invisível

Abstract:

This article aims to analyze the recente phenomenon of crowdsourcing, which presentes itself as a new mystifying status between outsourcing and informality, based on collective action. It is a human mass that does not act under the fragmented logic of individual action, but of a colletive whole. Its existence is subordinated to the intense use of informational Technologies. With digital plataforms being the privileged locus of its development, in addition to enabling the insertion of users and consumers and invisble work activities.

Keywords:
Mystification; Digital platforms; Information Technologies; Invisible precarious work

Introdução

O objetivo deste artigo é analisar criticamente um fenômeno crescente no mundo do trabalho contemporâneo: o crowdsourcing. Trata-se de uma tendência em curso que está materializada progressivamente em diversas esferas da vida social, sustentada pela incorporação de novos aparatos informacionais e por plataformas digitais. Nossa compreensão é de que o crowdsourcing estabelece um novo e instigante patamar nos processos de terceirização. A esse respeito, nós o qualificamos como trabalho precarizado invisível, resultado de uma combinação entre processos mascarados de terceirização e de informalidade, que se desenvolvem no contexto de intensas transformações na sociedade capitalista contemporânea. Para contextualizar essa problemática, analisamos o crowdsourcing e as novas tecnologias informacionais, a partir do uso de plataformas digitais de trabalho, dos mecanismos de controle sobre os trabalhadores e da inserção de usuários e consumidores em atividades laborais não remuneradas.

No transcorrer das últimas décadas, o que tem se verificado é uma multiplicidade de formas da precarização do trabalho, que se manifestam com características de rápida fluidez e forte mistificação. Mas o que diferencia o crowdsourcing, diante de outras formas de trabalho precarizado, são essencialmente três elementos: 1. seu aspecto mistificador, que metamorfoseia a atividade laboral como sendo apenas formas de lazer ou interação social; 2. sua existência é profundamente dependente e subordinada ao uso intensivo de tecnologias informacionais, mediadas pelas chamadas plataformas digitais; 3. refere-se à participação de usuários e consumidores como partícipes no desenvolvimento de tarefas sem remuneração. Além disso, o que hoje aparece como um de seus aspectos relativamente inéditos é que a inserção das novas formas precárias de trabalho ocorre em todas as esferas do mundo do trabalho, atingindo, inclusive, os trabalhadores com maior grau de qualificação.

Ao longo do desenvolvimento da acumulação capitalista, desde as últimas décadas do século XX, com o estreitamento dos espaços para o movimento expansionista do metabolismo do capital, importantes mudanças ocorreram na esfera política e econômica, notadamente nas relações de produção. O saneamento desses obstáculos, necessariamente paliativo, tem exigido que o capital estabeleça um intenso ataque aos trabalhadores. Essa ofensiva ganha densidade com o crescimento do desemprego, com o alargamento do fosso de desigualdades sociais, o rebaixamento dos salários diretos e indiretos, bem como com a redução ou supressão das formas de relativa estabilidade e de direitos trabalhistas.

A expressão dessas mudanças foi urdida por meio de um amplo processo de reestruturação produtiva, que permanece em andamento, cujo objetivo fundamental destina-se à recuperação ou ampliação das taxas de acumulação e à aceleração da velocidade do ciclo de valorização do valor. Nesse sentido, a inserção de novas tecnologias tanto cumpre a função de potencializar o uso da força de trabalho, como constitui novas nuances fetichizantes, próprias da transformação da força de trabalho em mercadoria. As plataformas digitais de trabalho e o fenômeno do crowdsourcing são exemplos disso. Nesse contexto, a precariedade vital do trabalho, como lógica inerente à ordem capitalista, desenvolve-se num movimento de frenética ampliação e por meio de uma multiplicidade de expressões. Por consequência, há a elevação e instauração de um novo patamar qualitativo de sua existência, potencialmente ainda mais mistificador.

1. Precarização e flexibilidade no capitalismo contemporâneo

No curso do desenvolvimento das transformações sociais na dinâmica capitalista das últimas décadas, alguns fenômenos lhe deram forma e tessitura, como uma espécie de núcleo diretivo. Tais mutações objetivaram permitir a ampliação das taxas de exploração, sem anistiar trabalhadores de nenhuma fronteira ou bandeira, ainda que os trabalhadores da periferia tenham sofrido consequências historicamente mais acentuadas. Desregulamentação do mercado de trabalho, retração do emprego formal e expansão do quantitativo de trabalhadores terceirizados e em tempo parcial são apenas uma fração ilustrativa de vários fenômenos que já fazem parte da dinâmica capitalista, mas que foram significativamente intensificados desde o final da década de 1970 e novamente potencializados após a crise de 2008.

Entre os movimentos e as diversas tendências atuais no mundo do trabalho, a terceirização se apresenta como um dos aspectos que mais diretamente impactaram as condições de vida da massa trabalhadora. A rigor, a terceirização não é uma expressão circunscrita ao capitalismo contemporâneo. No processo de desenvolvimento da Revolução Industrial, já comparecia a figura de intermediários entre o capitalista principal, detentor de capital, e os trabalhadores que produziam e eram normalmente remunerados no formato de salário por peça. Com mais incidência em algumas áreas, era comum a existência dos sweatshop1 1 Em sua origem, ainda no século XIX, o termo sweatshop designava o espaço da oficina doméstica, como uma extensão do trabalho na fábrica. Há também outro termo menos utilizado, porém mais específico, denominado de homework, que se refere propriamente à produção industrial realizada no ambiente domiciliar. . Esse termo apontava para as atividades, fundamentalmente relacionadas à produção têxtil, realizadas na casa dos trabalhadores, em oficinas domésticas. Marx, ao tratar sobre a contratação de trabalhadores no formato de salário por peça, analisou que esse tipo de terceirização resultava na elevação dos níveis de exploração sobre os trabalhadores. A esse respeito, facultemos a palavra ao próprio autor:

[...] a interposição de parasitas entre o capitalista e o trabalhador assalariado, o subarrendamento do trabalho (subletting of labour). O ganho dos intermediários decorre exclusivamente da diferença entre o preço do trabalho que o capitalista paga e a parte desse preço que eles realmente deixam chegar ao trabalhador. Esse sistema chama-se na Inglaterra caracteristicamente de swating-system (sistema de suador). [...] Dado o salário por peça, é naturalmente do interesse pessoal do trabalhador aplicar sua força de trabalho o mais intensamente possível, o que facilita ao capitalista elevar o grau normal de intensidade (Marx, 1996MARX, K. O Capital - Crítica da Economia Política. Livro primeiro, tomo 2. São Paulo: Nova Cultural, 1996., p. 184).

O ímpeto para ampliar a contratação de trabalhadores pela via da terceirização é moldado por um movimento orientado para a máxima intensidade no uso do trabalho vivo. Essa pressão apresenta uma força dupla de atuação. Por um lado, do capitalista, detentor do capital originário; por outro, do capitalista intermediário, resultando num processo de exploração por “duas mãos”.

Se no século XIX a terceirização passava em larga medida pelo formato de salário por peça, já, no contexto do capitalismo contemporâneo, a terceirização se expandiu e ganhou novos e fetichizantes contornos. Ao contrário do que em uma apreciação superficial possa parecer, a terceirização não tem relação com formas de desenvolvimento capitalista arcaicas ou pouco desenvolvidas. Grandes monopólios do setor de informática, eletrônicos, vestuário, calçados, produtos esportivos e serviços logísticos, apenas para ficarmos nesses exemplos mais visíveis, utilizam-se amplamente da terceirização em quase todas suas áreas de atividade. Esse movimento ocorre desde a concepção do produto, passando pela parte fabril, até a logística empregada para distribuição.

Os monopólios que atuam nessas áreas, apesar de dispersarem diversas de suas atividades por meio da terceirização, continuam a controlar com precisão o que é produzido, o tempo de processamento e o custo de realização, sem necessariamente produzirem algo de forma direta. Com isso, uma massa de trabalhadores, ainda que muitos sob condições de informalidade, dispersa em outras empresas terceirizadas ou atuando em diferentes espaços geográficos, pode permanecer sob o rígido controle. Essa lógica de gerenciamento trata-se de um elemento vital para empresas repassarem custos e riscos de seu negócio para os trabalhadores (Abílio; Amorim; Grohmann, 2021ABÍLIO, L. C.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, maio-ago. 2021. p. 26-56.).

A dispersão dos elementos produtivos é acompanhada por sofisticadas engrenagens de controle sobre o trabalho vivo, com amplo suporte de tecnologias informacionais. Para além do rigor propiciado pelo “cronômetro” taylorista sobre o tempo de trabalho, os aparatos tecnológicos de informação e comunicação estabelecem um nível mais elevado de controle, superando barreiras geográficas e acompanhando o comportamento de consumidores. Além disso, do ponto de vista de tendências em uso, os mecanismos de gerenciamento sobre o trabalho vivo desenvolvido nas últimas décadas apontam para uma relativa transferência desse controle para o próprio trabalhador, ainda que isso ocorra em um formato de autogerência subordinada, sob o constante constrangimento do medo do desemprego, da avaliação contínua de seu desempenho e da ameaça da concorrência de outros trabalhadores.

Há outro elemento mistificador presente nas atuais manifestações da terceirização. Trata-se do aspecto de que empresas com robustas mediações tecnológicas em suas atividades não comparecem, aparentemente, como contratantes de trabalhadores. Sua forma de apresentação é de mediadora da oferta e da procura de força de trabalho (Abilio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116.). É o caso das plataformas digitais, que costumam se apresentar apenas como fornecedoras de tecnologia para os trabalhadores e para as empresas.

Nesses termos, a orientação dada pelas relações de produção capitalistas no mundo contemporâneo situa-se na busca pela ampliação das possibilidades de formatos e métodos de compra e de consumo de trabalho vivo, sendo esse um traço saliente da chamada flexibilização. O intuito é de, além de repassar os riscos para o trabalhador, acelerar a intensidade e o ritmo laboral. Como Rosso (2017ROSSO, S. O ardil da flexibilidade. Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017.) sugere, ao introduzir e ampliar a flexibilização no trabalho, o capital procura mecanismos que possibilitem “tempos de não trabalho em tempos de trabalho, trazendo para a esfera de controle do capital horas laborais que estavam sistematicamente fora de sua dominação” (Rosso, 2017ROSSO, S. O ardil da flexibilidade. Os trabalhadores e a teoria do valor. São Paulo: Boitempo, 2017., p. 15).

Assim, a flexibilização dos períodos e horas trabalhadas permite, por exemplo, a incorporação de frações do tempo da vida humana que antes não eram usuais ou plenamente utilizadas, como horas à noite, fins de semana ou feriados. Assim, busca-se um trabalhador que esteja permanentemente disponível para as necessidades do capital. Sintetizando em um termo: um trabalhador just-in-time. Sobre esse aspecto, Abílio (2020ABÍLIO, L. C. Uberrização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. p. 111-124., p. 112) comenta que “a figura do trabalhador just-in-time desafia categorias do que é e o que não é trabalho, complicando o que poderia ser uma configuração contemporânea da remuneração por peça”.

A flexibilização do trabalho, no contexto da mundialização do capital, constitui hoje certa lógica ordenadora das relações de produção e que se espraiou mundialmente. Trata-se de uma tendência que impacta o mercado de trabalho, atingindo trabalhadores que, apesar das credenciais e qualificações obtidas, não são anistiados de escapar das múltiplas formas de precarização. É parte essencial dessa dinâmica o impulso acelerado no sentido de “flexibilizar” as relações de trabalho e a supressão da rigidez no mercado de trabalho, herança do modelo fordista. Quanto à imbricação indissociável entre flexibilização e precarização, MészárosMÉSZÁROS, I. Para além do capital. São Paulo: Boitempo, 2002. assinala que “a ‘flexibilidade’ em relação às práticas de trabalho - a ser facilitada e forçada por meio da desregulamentação em suas várias formas - corresponde, na verdade, à desumanizadora precarização da força de trabalho” (Mészáros, 2015MÉSZÁROS, I. Desemprego e Precarização: um grande desafio para a esquerda. In: ANTUNES, Ricardo (org.). Riqueza e Miséria do Trabalho no Brasil I. São Paulo: Boitempo, 2015. p. 27-44., p. 34).

No tocante ao padrão de acumulação flexível e à inserção de trabalhadores em empresas terceirizadas que atuam no formato das plataformas digitais, o ingresso ocorre sem a existência da contratação nos padrões tradicionais. Com isso, há a retirada da necessidade de seleção e a eliminação de um limite quantitativo de vagas previamente definidas. O acesso é por meio de um processo de adesão2 2 Sobre as formas de recrutamento e subordinação de trabalhadores nas plataformas digitais, Abílio, Amorim e Grohmann (2021, p. 39-40) argumentam que “o contrato de trabalho agora transfigura-se em um contrato de adesão. Entretanto, as empresas têm sido bem-sucedidas em monopolizar setores de atuação e controlar enormes contingentes de trabalhadores. A própria relação de subordinação se informaliza. Essa informalização envolve a perda de predeterminações claras ou estáveis sobre a jornada de trabalho, sobre a distribuição do trabalho e até mesmo sobre sua precificação”. do trabalhador à plataforma, com anódina ou nenhuma regra restritiva para o aceite. Mas o que aparenta como flexibilidade para o ingresso guarda em seu interior uma rigidez quanto às exigências de adequação do trabalhador às regras de engajamento e permanente disponibilidade para o trabalho. Não existindo uma oferta de trabalho nos padrões convencionais, o que as empresas oferecem é a possibilidade de o trabalhador ingressar na plataforma e comprometer-se com rigor no seu coercitivo autogerenciamento. Essa lógica de autocoercitividade sinaliza que o trabalho alienado atingiu um estágio de magnitude tão brutal que o despotismo do controle é exercido pelo trabalhador contra si próprio.

2. As formas de consumo da força de trabalho pelas plataformas digitais

De acordo com Antunes (2023ANTUNES, R. Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma: três teses sobre a nova era de desantropomorfização do trabalho. In: ANTUNES, R. (org.). Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 13-39.), a digitalização do trabalho não é algo improvisado ou recente, mas sim um processo complexo iniciado nos anos 1970. Nas décadas de 1980-1990, a informatização e a automação foram predominantes no setor industrial. No século XXI, vemos o surgimento da indústria 4.0 e a ampliação das formas de conectividade, do cloud work, com a expansão informacional para o setor de serviços (Antunes, 2023ANTUNES, R. Trabalho e (des)valor no capitalismo de plataforma: três teses sobre a nova era de desantropomorfização do trabalho. In: ANTUNES, R. (org.). Icebergs à deriva: o trabalho nas plataformas digitais. São Paulo: Boitempo, 2023. p. 13-39.). O conjunto de mudanças no mundo do trabalho foi processado no interior de uma significativa alocação de novos aparatos tecnológicos, tendo as plataformas digitais ocupado um espaço relevante como contratantes de uma massa de força de trabalho, essencialmente precarizada. Conforme sistematiza Braga (2021BRAGA, R. As faces ignoradas do uberismo. Site Outras Palavras. Publicado em 2021. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/videos/ruy-braga-descreve-as-faces-ignoradas-do-uberismo . Acesso em: 14 jan. 2023.
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), a “plataformização” do trabalho apresenta três grandes formatos, os quais apresentamos a seguir.

O primeiro formato descrito por Braga (2021BRAGA, R. As faces ignoradas do uberismo. Site Outras Palavras. Publicado em 2021. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/videos/ruy-braga-descreve-as-faces-ignoradas-do-uberismo . Acesso em: 14 jan. 2023.
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) é o das plataformas do tipo quick work. Nesse modelo, os trabalhadores se cadastram e passam a fazer tarefas repetitivas, simples e fragmentadas, as quais teriam um maior custo caso fossem automatizadas. A lógica orientadora para utilização dessas plataformas é a do custo mais barato na contratação de trabalhadores ultraprecarizados, dispostos a cumprir jornadas elevadas e receber baixíssima remuneração. Um exemplo é a plataforma Amazon Mechanical Turk (Braga 2021BRAGA, R. As faces ignoradas do uberismo. Site Outras Palavras. Publicado em 2021. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/videos/ruy-braga-descreve-as-faces-ignoradas-do-uberismo . Acesso em: 14 jan. 2023.
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; Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberrização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. p. 111-124.). Nela, empresas de distintas partes do mundo disponibilizam variados tipos de tarefa, enquanto a Amazon faz a intermediação na busca de trabalhadores. Essa força de trabalho passa a desenvolver as atividades sem nenhuma regra de limite quanto à jornada máxima a ser cumprida, atuando numa esfera pantanosa e obscura de relações internacionais de trabalho, sem nenhum lastro legal de proteção laboral.

O segundo formato é o das plataformas de freelancer. Essas se colocam como intermediárias entre profissionais com algum grau de qualificação e os clientes interessados em contratar. Além de não estarem protegidos por normas trabalhistas, o profissional cadastrado não tem a garantia de que o tempo de trabalho utilizado para realizar determinada atividade seja efetivamente remunerado. Isso ocorre, por exemplo, na hipótese de o cliente não considerar o projeto desenvolvido como satisfatório. Dessa forma, esses trabalhadores assumem todos os riscos de sua atividade. Dado ao amplo leque de possibilidades de atuação profissional, existe um quantitativo bastante significativo de plataformas que atuam nesse segmento.

O terceiro formato descrito por Braga (2021BRAGA, R. As faces ignoradas do uberismo. Site Outras Palavras. Publicado em 2021. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/videos/ruy-braga-descreve-as-faces-ignoradas-do-uberismo . Acesso em: 14 jan. 2023.
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) é o das plataformas de trabalho territorial. Tal qual nos formatos anteriores, não há o reconhecimento de vínculos empregatícios, também inexistem direitos assegurados e as jornadas costumam ser prolongadas e exaustivas. As atividades desenvolvidas pelas empresas proprietárias dessas plataformas apresentam baixo grau de regulamento para funcionamento. Seus serviços estão principalmente relacionados à mobilidade urbana - entrega de alimentos e de objetos -, entre outros serviços. A partir de estruturas de gerenciamento estratificadas por algorítmicos, as plataformas executam arbitrárias formas de controle com o intuito de compelir os trabalhadores a permanentemente manter intensos ritmos. É dessa forma que o impulso à produtividade é um requisito essencial para os trabalhadores continuarem ativos na plataforma e aptos a receberem novas tarefas/serviços. A plataforma Uber é o exemplo mais simbólico e conhecido desse formato, mas longe de ser o único.

Essa sistematização realizada por Braga (2021BRAGA, R. As faces ignoradas do uberismo. Site Outras Palavras. Publicado em 2021. Disponível em: Disponível em: https://outraspalavras.net/videos/ruy-braga-descreve-as-faces-ignoradas-do-uberismo . Acesso em: 14 jan. 2023.
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) se trata apenas de um desenho geral de características básicas de atuação das plataformas digitais. Contudo, há que se considerar que a multiplicidade de formas e mecanismos, que envolvem a utilização de intensa base informacional nas atividades laborais, está em pleno desenvolvimento de novas estratégias. Nesse cenário, as tecnologias informacionais são alocadas tanto para acelerar os circuitos de valorização de capital, quanto para controlar a força de trabalho. Na academia, nas instituições governamentais e no universo empresarial, há diferentes termos para designar essa intensa utilização das tecnologias da informação como matrizes organizadoras de trabalho. Alguns dos termos mais comuns são gig economy, platform economy, sharing economy, on demandd economy, uberização ou trabalho digital.

Conforme argumenta Antunes e Filgueiras (2020ANTUNES, R.; FILGUEIRAS, V. Plataformas Digitais, uberização do trabalho e regulação no capitalismo contemporâneo. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0. São Paulo: Boitempo, 2020. p. 59-78.), sobre os conceitos citados acima, existem mais dissenso do que consenso. Mas, a despeito da existência de diferentes interpretações argumentativas, o que há em comum é que o uso de qualquer tecnologia no interior das regras capitalistas não logra como objetivo atenuar o ritmo de trabalho, muito pelo contrário. Ademais, como as máquinas não produzem riqueza, pois trata-se de capital morto, é preciso que elas sejam “[...] lambidas pelo fogo do trabalho, apropriadas por ele como seus corpos” (Marx, 1988MARX, K. O Capital - Crítica da Economia Política. Livro primeiro, tomo 1. São Paulo: Nova Cultural, 1988., p. 146). Assim, é necessário que o trabalhador seja jungido a extenuar suas forças físicas e cognitivas frente à força inanimada da máquina e dos impulsos informacionais.

Para além desse traço constitutivo do capitalismo quanto à utilização do maquinário e à contínua inserção de novas tecnologias, merece especial atenção a emergência de instigantes formas de mistificação. A ampliação do uso de aparatos informacionais tem possibilitado a imersão de novas figuras nas relações de produção. A complexidade das atividades mediadas por tecnologias informacionais envolve não apenas ações e estratégias constantemente renovadas, como também insere e desenvolve novos elementos fetichizantes. Um emblemático exemplo é a participação massiva de usuários/consumidores, os quais atuam como fornecedores de serviços gratuitos para empresas ou exercem tarefas típicas de agentes de controle sobre os trabalhadores. Esse é o solo originário do abstruso fenômeno do crowdsourcing.

3. Crowdsourcing e o trabalho precário invisível

Jeff Howe (2006HOWE, J. The rise of crowdsourcing. Wired Magazine, São Francisco/CA, v. 6, n. 14, p. 1-4, jun. 2006.) foi quem cunhou o termo crowdsourcing, compreendendo tratar-se de um novo estágio da terceirização. Esse fenômeno pode ser sumariamente entendido como uma forma abrangente e, principalmente, mais complexa de terceirização. Sua lógica de funcionamento requer o envolvimento de uma multidão (crowd) de pessoas agem “colaborativamente” para efetuar tarefas. Ou seja, atividades podem ser concretizadas sem que seus executores sejam necessariamente remunerados3 3 Aqui é preciso ponderar esse aspecto da remuneração com o necessário cuidado, uma vez que, apesar de a direção de nossa análise estar voltada para analisar os casos de fornecimento gratuito de tempo de trabalho por usuários/consumidores, há situações em que há remuneração para as pessoas envolvidas em atividades baseadas em crowdsourcing. pela sua realização.

Em razão da complexidade e do cipoal de enredamentos que esse fenômeno suscita, associado ainda à reduzida massa crítica sobre o tema, convém ser razoável contextualizá-lo com alguns exemplos. De acordo com Abílio (2020bABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116.), a materialização desse processo ocorreu no começo dos anos 2000, quando a National Aeronautics and Space Administration (NASA) desenvolveu o projeto Clickworkers. Com sua aplicação, foi constatado que era possível transferir atividades que, a priori, exigiria um volume expressivo de assalariados qualificados, para que elas fossem realizadas gratuitamente por uma multidão de pessoas.

O projeto consistia, essencialmente, em analisar e classificar uma enorme quantidade de imagens de crateras da superfície do planeta Marte. Sob o slogan de “contribuição para o futuro”, qualquer pessoa do mundo poderia aceitar voluntariamente participar dele. Recebendo resumidas informações sobre como classificar cada imagem, a pessoa já poderia iniciar suas atividades. Assim, uma multidão de usuários se debruçou para “contribuir” com esse projeto. Para os internautas, a sensação era de que esse tipo de interação se tratava de um mero passatempo ou diversão. Para a NASA, a ação da multidão possibilitava poupar elevados custos com força de trabalho qualificada, que, por dedução, seria necessária para sua execução.

Após testar a massa de navegadores engajados, a NASA comprovou que a crowd era não somente tão eficiente, como também mais rápida no cumprimento da tarefa (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberrização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. p. 111-124.). Portanto, tornava-se mais vantajoso seu uso do que o recrutamento assalariado de um contingente de geólogos, engenheiros e outros técnicos. A multidão agindo gratuitamente, num tipo de interação que misturava trabalho e lazer, sem fronteiras claramente definidas entre uma atividade e outra, comprovou que a ação engajada de uma massa de pessoas propiciava mais agilidade, além de redução de custos.

Essa experiência inicial foi indutora do desenvolvimento de novas plataformas e de renovadas experiências de utilização da multidão em atividades para as empresas. Um dos mais interessantes arquétipos para análise é a plataforma InnoCentive, que, como o nome indica, busca engajar trabalhadores sob o lema do incentivo à inovação (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberrização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. p. 111-124.). A partir de setembro de 2020, a plataforma foi adquirida pela Wazoku e hoje é com esse nome que é encontrada, oferecendo os mesmos serviços da InnoCentive. A plataforma tem o cadastro de algumas grandes empresas que atuam globalmente e ofertam na plataforma desafios para serem solucionados. O intuito é mobilizar em escala mundial profissionais com elevadas credenciais educacionais, para que eles resolvam os desafios propostos.

Os trabalhadores ou pesquisadores que desenvolvem as soluções aceitas pelas empresas são recompensados com valores previamente estipulados e informados, que, em geral, variam entre U$ 15.000 e U$ 100.000, o que significa um baixo investimento, considerando os vultuosos valores necessários para o desenvolvimento de novos projetos de pesquisa e inovação. Contudo, há um conjunto de profissionais que também dedicou seu tempo e sua capacidade intelectual, e investiu recursos financeiros e materiais para tentar desenvolver determinada solução proposta na plataforma, mas que, ao final do desenvolvimento da atividade, nada receberam. Trabalharam gratuitamente como parte de uma força social engajada, mas, como não tiveram seus projetos escolhidos, não receberam nenhuma remuneração pelo tempo dedicado. Essa força de trabalho, resultado da soma de tarefas realizadas por uma multidão, é aparentemente apagada, ocultada do processo coletivo de construção da solução, daí o por que denominamos de trabalho precarizado invisível.

Quando comparamos esses elementos, acima descritos, com os de um motorista cadastrado em plataformas como no caso da empresa Uber ou de outras similares, constatamos que o motorista também investe na aquisição ou no aluguel do automóvel ou da motocicleta, sendo igualmente responsável pela manutenção do veículo e compra de combustível. Esses trabalhadores arcam com os custos de eventuais acidentes, bem como com qualquer situação outra não previsível e que o impeça de continuar trabalhando. Podem ainda percorrer dezenas de quilômetros ou permanecer várias horas disponíveis, sem ser acionados nem receber nada. Assim, embora estejamos tratando de trabalhadores com níveis de qualificação bastante distintos, de um lado, o motorista da Uber e, do outro, o cientista da InnoCentive, converge entre os dois a condição de precarizado, da incerteza quanto à sua atividade e dos riscos que são compelidos a assumir.

Como um componente de maior complexidade do crowdsourcing, acrescentamos a análise sobre a ação dos consumidores, que efetuam atividades de controle sobre a força de trabalho. Tal interação ocorre quando o consumidor realiza a avaliação de motoristas, de entregadores, ou de fornecimento de outros serviços. Esses consumidores vigilantes (Abílio, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116.), agindo como multidão, ofertam gratuitamente informações para que as empresas fornecedoras ou as proprietárias das plataformas atestem o nível de qualidade dos serviços prestados e a produtividade dos trabalhadores. Com isso, há uma diminuição de custos com pessoal necessário para fazer esse gerenciamento.

No tocante especificamente sobre a atuação de consumidores por meio do crowdsourcing, Abílio argumenta:

A avaliação pelos consumidores, determinada e administrada pela empresa, será utilizada simultaneamente como meio fundamental de vigilância e estímulo à produtividade do trabalhador. O ranqueamento que dela resulta dá visibilidade ao mesmo tempo que estimula a concorrência entre os trabalhadores (Abílio, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116., p. 121).

O gerenciamento dessa força de trabalho precarizada, a partir das formas tradicionais de controle, exigiria um batalhão de trabalhadores improdutivos de mais-valia para mensurar a performance de motoristas, entregadores e outros prestadores de serviços. Por conseguinte, a utilização de métodos usuais de controle resultaria em custos mais elevados com o recrutamento e o pagamento de trabalhadores. Com o uso da multidão de usuários/consumidores, essas atividades de controle passam a ser executadas pelas mesmas pessoas que consomem os serviços.

Soma-se, a esse aspecto, outra relevante característica. O crowdsourcing corresponde ao modelo de interação entre os trabalhadores/usuários e as empresas, o que deriva numa transformação do trabalho socialmente legitimado, em “trabalho amador” e em atividades aparentemente “colaborativas” de usuários dos serviços (Abílio, 2020ABÍLIO, L. C. Uberrização: gerenciamento e controle do trabalhador just-in-time. In: ANTUNES, R. (org.). Uberização, trabalho digital e indústria 4.0 . São Paulo: Boitempo, 2020. p. 111-124.). Essas formas de interação se alojam numa nebulosa mistura do que é trabalho, do que é lazer ou atividade de cooperação social. Essas ações sintetizadas entre o labor e o lúdico também inserem modelos de mobilização de trabalho vivo por meio da gamificação, tendo como estratégia o constante estímulo ao cumprimento de desafios e ao alcance de metas. O resultado é que esse tipo de ação ajuda a escamotear em turvas camadas o que seria tempo de trabalho, como sendo mera interação social ou lazer.

Por último, mas sem que isso signifique que as formas mistificadoras de crowdsourcing se esgotem nesses sumários exemplos, há ainda a atividade da multidão de usuários que atua nas redes sociais. Ações banais, simples e até corriqueiras do cotidiano, como as de postar fotos, “curtir” outras postagens e inserir comentários, alimentam um volumoso conteúdo de informações para os bancos de dados das megacorporações tecnológicas, as chamadas big techs, como a Meta e o Google. A questão instigante é que, sem a existência desses conteúdos e informações postadas de forma massiva e em escala global pelos usuários, o tráfego de pessoas nas redes e a massa de informações disponibilizada cairiam drasticamente, colapsando a capacidade de atrair anunciantes, venda de dados e, consequentemente, diminuição de lucros. Dessa forma, a crowd tem importância ímpar e essencial para que as big techs obtenham suas obscenas taxas de lucratividade.

Em razão da complexidade que envolve a questão do ocultamento da força de trabalho materializada sob a forma de uma multidão, vale a pena nos valermos de algumas brevíssimas aproximações teóricas da crítica da economia política. É mister que o interesse do capitalista é obter lucro. Para tanto, investe seu capital na expectativa de que, ao final do processo, ocorra valorização do dinheiro inicialmente alocado. Parte desse capital inicial é direcionado para aquisição de força de trabalho, seja atuando diretamente na empresa ou em outras prestadoras de serviços terceirizadas. Até aqui, essa lógica geral integra tanto a dinâmica de empresas capitalistas tradicionais, como a das big techs. No caso dos grandes monopólios de tecnologia, esses trabalhadores atuam na parte de desenvolvimento de programas, manutenção de infraestrutura, análise de sistemas e outras dezenas de atividades, sendo remunerados comumente por um salário.

Ocorre que, com o crowdsourcing, a partir da ação coletiva da multidão fornecendo serviços e informações, as possibilidades de lucratividade são potencializadas mediante a atividade de atores que comparecem quase que de forma invisível. Trata-se de uma massa humana que atua sem crachá, não tem rostos definidos, nem está sob a lógica fragmentada da ação individual, mas que, inserida nas dinâmicas informacionais das empresas, possibilita a redução de custos com a contratação de força de trabalho assalariada. Sobre tais aspectos, Dantas e Raulino (2020DANTAS, M.; RAULINO, G. Trabalho da audiência e renda informacional no Facebook e no YouTube. Revista Eptic. v. 22, n. 1, jan.-abr. 2020. p. 123-141., p. 131) assinalam que “o trabalho não remunerado oferece uma ampla gama de dados a serem valorizados pelo capital”. Portanto, a multidão utilizada nesse formato comparece agindo para potencializar lucros.

O que essas análises nos revelam é que as mistificações, que são imanentes à transformação da força de trabalho em mercadoria, produzem fenômenos surpreendentes e instigantes. Já na segunda metade da década de 2000, Teixeira (2008TEIXEIRA, F. Marx no século XXI. São Paulo: Cortez, 2008.) apontava a existência dos chamados trabalhadores sem contracheque. Essa modalidade seria desempenhada pelos consumidores ou por meio do trabalho voluntário. Podemos considerar que tais tendências no atual cenário têm se mostrado com contornos arcanos, mediadas pelo uso intenso de tecnologias informacionais. A essa forma de sintetizar fenômenos que mascaram uma apropriação de tempo de trabalho coletivo, sem nenhuma remuneração e com o consentimento do consumidor/trabalhador, chamamos precarização invisível do trabalho.

Considerações finais

A sociedade capitalista é permeada em todas as suas relações pela presença da mercadoria como eixo norteador das atividades humanas. Com isso, é inseparável a existência da mercadoria de seus elementos mistificadores, tal qual Marx descreve no item 4 do primeiro capítulo de O Capital, O caráter fetichista da mercadoria e seu segredo. Ao lado dos fenômenos verificáveis na sua imediaticidade, convive aquilo que está oculto; que até pode ser captado pelos sentidos, mas não facilmente compreendido. Como não existe identidade entre o capitalismo e a humanidade, o que se desdobra dessa relação é a alienação e a fetichização de fenômenos sociais. É nesse contexto que se insere o crowdsourcing.

No conjunto de transformações sociais das últimas décadas, ocorre uma intensiva introdução de novos aparatos informacionais, a ampliação das formas de conectividade tecnológica entre os indivíduos e a formatação de novos padrões de controle sobre os trabalhadores. É no interior de tais determinações que as mediações tecnológicas situadas entre capital e trabalho estabelecem novas mistificações. Em vez de inimiga, a tecnologia é apresentada como uma parceira mediadora de soluções, como um meio de aplainar as insanáveis contradições da relação entre capital e trabalho. No lugar do estatuto de trabalhador assalariado, é ofertada a ideia do colaborador, do suposto gerenciador de seu tempo e de suas tarefas.

É bem verdade que a permanente alteração da base técnica e a contínua incorporação de novos padrões de gestão da força de trabalho não são aspectos decorrentes de recentes mudanças no mundo do trabalho. A rapidez do desenvolvimento das forças produtivas é uma característica íntima do modo de produção capitalista. Nas palavras de Marx e Engels, no Manifesto Comunista, “a burguesia não pode existir sem revolucionar constantemente os meios de produção e, por conseguinte, as relações de produção e, com elas, todas as relações sociais” (2003MARX, K.; ENGELS, F. Manifesto Comunista. São Paulo: Instituto José Luís e Rosa Sundermann, 2003., p. 29). É uma constante necessidade de que o metabolismo de acumulação de capital permaneça processualmente a reinventar-se, de maneira a ofertar continuamente as condições técnicas, operacionais e ideológicas para apropriação de sobretrabalho. No âmbito da técnica, a tendência de crescimento da composição orgânica de capital, mediante maior investimento em capital constante e o consequente decréscimo do capital variável, é um aspecto da acumulação capitalista, que permanece rigorosamente válido.

No presente estágio da sociabilidade burguesa, os grandes monopólios ininterruptamente comandam um processo de acelerado desenvolvimento e introdução de novos maquinários informacionais-digitais. Essas transformações se materializam na elevação da produtividade e no crescimento do montante de riqueza produzida. Entretanto, tais mudanças não ocorrem de forma desvinculada do solo societário que a desenvolve e lhe dá forma. Em razão desse indissociável vínculo, no interior das relações capitalistas, esse desenvolvimento tem transformado as forças produtivas em potências que se voltam contra os trabalhadores. Isso porque as inovações científicas e tecnológicas não são orientadas por um desenvolvimento desenraizado do solo social no qual a ciência está firmada. Suas diretrizes não seguem uma direção de avanços autoinduzidos, como uma evolução darwiniana (Novaes, 2007NOVAES, H. O fetiche da tecnologia: a experiência das fábricas recuperadas. São Paulo: Expressão Popular, 2007.).

Com a contínua incorporação de novos aparatos tecnológicos e as novas configurações de flexibilização, são desenvolvidos complexos arranjos moldados para a utilização da força de trabalho crescentemente precarizada. Um exemplo disso são as plataformas digitais, as quais erigem formas mistificadoras da relação entre o desenvolvimento das forças produtivas e o consumo do trabalho vivo. Essa massa de trabalhadores, consumidores e usuários sem vínculos formais nem “feições definidas” realizam atividades que não sofrem os limites das barreiras geográficas. Ao mesmo tempo que está dispersa espacialmente, encontra-se interligada por mecanismos tecnológicos de controle centralizados nos monopólios.

No que concerne especificamente ao crowdsourcing, cabe ainda argumentar que, apesar de contextualizarmos alguns exemplos como forma de materializá-lo, seu grau de amplitude e complexidade pode facilmente desdobrar-se para diversas outras áreas, muito diferentes das descritas neste artigo. Assim, a capacidade de aderência de utilização dessa multidão engajada e seu leque de possibilidades ainda deverão ser objeto de futuras análises. Para além de arquétipos específicos, o que Abílio (2020bABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116., p. 120) aponta é que “hoje o crowdsourcing atravessa de ponta a ponta o mundo do trabalho, abarcando diferentes ocupações, qualificações, níveis de remuneração”. É dessa maneira que o crowdsourcing se põe como algo desafiador para compreensão de sua fluidez - possiblidade de uso e formas de interação, uma vez que borra as linhas fronteiriças entre o que seria consumo de trabalho vivo e o que não é (Abílio, 2020bABÍLIO, L. C. Uberização: a era do trabalhador just-in-time? Estudos Avançados. v. 34, n. 98, 2020b. p. 111-116.). Outrossim, há também o estabelecimento de um status mais complexo do que poderíamos classificar como uma inaudita articulação entre terceirização e informalidade, ao menos nos padrões mais conhecidos. Ao requerer uma multidão de agentes participativos que desenvolvem atividades nano, forma-se uma massa colossal de força de trabalho gratuita e engajada.

Decerto, do ponto de vista de análise desse fenômeno, não é possível, apartando individualmente cada trabalhador/usuário do corpo coletivo da crowd, identificar, nas micro ou nano atividades desenvolvidas por eles, contornos claramente nítidos de formas laborais. O que existe aí é um gelatinoso amálgama entre o que seria trabalho, atividades amadoras, lazer e interação social. A questão é que a própria lógica de funcionamento do crowdsourcing não está centrada na ação individual. Exatamente por isso, as possibilidades de sua compreensão estão inescapavelmente enredadas na análise intricada de soma e síntese de atos de milhares de pessoas. Por último, há que considerar que força coletiva da multidão não apenas expressa um patamar quantitativo obviamente mais elevado, como promove qualitativamente um novo e enigmático estatuto quanto ao uso do trabalho vivo.

Referências

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  • 1
    Em sua origem, ainda no século XIX, o termo sweatshop designava o espaço da oficina doméstica, como uma extensão do trabalho na fábrica. Há também outro termo menos utilizado, porém mais específico, denominado de homework, que se refere propriamente à produção industrial realizada no ambiente domiciliar.
  • 2
    Sobre as formas de recrutamento e subordinação de trabalhadores nas plataformas digitais, Abílio, Amorim e Grohmann (2021ABÍLIO, L. C.; AMORIM, H.; GROHMANN, R. Uberização e plataformização do trabalho no Brasil: conceitos, processos e formas. Sociologias, Porto Alegre, ano 23, n. 57, maio-ago. 2021. p. 26-56., p. 39-40) argumentam que “o contrato de trabalho agora transfigura-se em um contrato de adesão. Entretanto, as empresas têm sido bem-sucedidas em monopolizar setores de atuação e controlar enormes contingentes de trabalhadores. A própria relação de subordinação se informaliza. Essa informalização envolve a perda de predeterminações claras ou estáveis sobre a jornada de trabalho, sobre a distribuição do trabalho e até mesmo sobre sua precificação”.
  • 3
    Aqui é preciso ponderar esse aspecto da remuneração com o necessário cuidado, uma vez que, apesar de a direção de nossa análise estar voltada para analisar os casos de fornecimento gratuito de tempo de trabalho por usuários/consumidores, há situações em que há remuneração para as pessoas envolvidas em atividades baseadas em crowdsourcing.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    13 Nov 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    30 Jul 2023
  • Aceito
    15 Set 2023
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