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FRAGMENTOS DE CORPOREIDADES FEMININAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL: UMA APROXIMAÇÃO FENOMENOLÓGICA1 1 Artigo oriundo de tese - Corpos negados na violência conjugal, apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Enfermagem da Universidade Federal do Paraná (UFPR), em 2013. Pesquisa desenvolvida com apoio financeiro parcial da Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.

RESUMO

Pesquisa fenomenológica desenvolvida na Delegacia da Mulher em Guarapuava, Paraná, que teve como objetivo compreender o significado de coexistir com o agressor após a denúncia da violência conjugal na Delegacia da Mulher. Os dados foram obtidos mediante entrevistas com 14 mulheres vítimas de violência conjugal que permaneceram no convívio com os agressores após denunciálos. Os discursos foram interpretados à luz do referencial filosófico de Maurice Merleau-Ponty. Os resultados revelaram que os corpos femininos vítimas de violência perceberam sua imagem corporal modificada, distorcida e negativa. O sentido da coexistência com o agressor encontra sustentação na destruição da imagem corporal, que foi fragilizada, reduzindo as capacidades de enfrentamento desses corpos, por se sentirem ameaçados, inferiorizados e inseguros em relação ao outro, fato que contribuiu para perpetuar o ciclo da violência. Destarte, percebe-se a necessidade de profissionais capacitados para captar o invisível no visível, a fim de cuidar desses corpos na sua multidimensionalidade.

Violência doméstica; Violência contra a mulher; Cuidados de enfermagem

ABSTRACT

This was a phenomenological study undertaken at the Women's Police Station in Guarapuava in the Brazilian state of Paraná that aimed to understand the significance of living with the offender after filing a domestic violence report at the station. Data were collected by means of interviews with 14 women victims of domestic violence, who continued to live with their attackers after reporting them. The women's discourses were interpreted through the lens of the framework of French philosopher Maurice MerleauPonty. The results showed that the victims' body images were modified, distorted, and negative. Coexistence with the offenders was sustained through destruction and weakening of the victims' body image, thereby reducing their coping skills because they felt threatened, insecure, and inferior to the other, which perpetuated the cycle of violence. In conclusion, there is a need for professionals trained to capture the invisible beneath the visible, in order to take care of abused women in their multidimensionality.

Domestic violence; Violence against women; Nursing care

RESUMEN

Investigación fenomenológica desarrollada en Comisaría de la Mujer en Guarapuava, Paraná, que tenía como objetivo: comprender el significado de convivir con el agresor después de la delación de la violencia conyugal en la Comisaría de la Mujer. Los datos fueron recolectados a través de entrevistas a 14 mujeres víctimas de violencia doméstica que permanecieron en contacto con los asaltantes tras denunciar a ellos. Los discursos fueron interpretados a la luz del marco filosófico de Maurice Merleau-Ponty. Los resultados revelaron que los cuerpos femeninos víctimas de la violencia se dieron cuenta de su imagen corporal modificada, distorsionada y negativa. El sentido de la convivencia con el agresor encuentra apoyo en la destrucción del imagen corporal, que fue debilitado, lo que reduce las habilidades de afrontamiento de estos cuerpos, porque se han sentido amenazados, inferiorizados e inseguros frente al otro, lo que contribuyó a perpetuar el ciclo de la violencia. Así, podemos ver la necesidad de profesionales capacitados para capturar lo invisible en lo visible con el fin de hacerse cargo de esos organismos en su multidimensionalidad.

Violencia doméstica; Violencia contra la mujer; Atención de enfermería

INTRODUÇÃO

O ser humano, ao ser lançado no mundo, vivencia múltiplas experiências, porquanto o mundo é o espaço das relações consigo e com o outro. Este processo caracteriza-se em um coexistir que é expresso de diversas maneiras, mas quando ocorre de forma conflituosa pode desencadear a violência nas suas várias formas de manifestação. Entre elas, destaca-se a violência conjugal perpetrada contra a mulher, foco desta pesquisa.

A violência perpetrada contra a mulher é considerada um fenômeno mundial por afetar milhares de mulheres, motivo pelo qual a torna um grave problema de saúde pública, em virtude de que seus efeitos são capazes de comprometer a saúde de todas as pessoas envolvidas, sejam elas, vítimas, seus agressores ou a população.1Silva PA, Kerber NPC, Santos SSC, Netto de Oliveira AM, Silva MRS, Luz GS. La violencia contra la mujer en el ámbito familiar: estudio teórico sobre la cuestión de gênero. Enfermería Global. 2012 Abr; (27):251-8.

No espaço privado, a violência conjugal refere-se a condutas existentes no contexto de um relacionamento íntimo por motivos variados.2Lamoglia CVA, Minayo MCS. Violência conjugal, um problema social e de saúde pública: estudo em uma delegacia do interior do Estado do Rio de Janeiro. Ciênc Saúde Coletiva [online]. 2009 [acesso 2013 Jul 11]; 14(2). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/csc/v14n2/a28v14n2.pdf
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Sua definição é ampla, inclui qualquer tipo de violência ocorrida nos relacionamentos e não é restrita àqueles nos quais os companheiros estão ou estiveram legalmente casados, nem é limitada pelo sexo da vítima ou do perpetrador, entretanto, existe maior probabilidade de sua ocorrência quando ambos coabitam ou mantêm contato frequente.3Almeida I, Soeiro C. Avaliação de risco de violência conjugal: versão para polícias (SARA: PV). Aná Psicológica. 2010 Jan; 28(1):179-92.

A violência contra a mulher encontra sustentação nas diferenças de gênero e nas desigualdades de poder entre homens e mulheres, e isso foi evidenciado em estudo realizado no Sudão, o qual revelou uma aceitação da violência praticada contra mulheres. Tanto mulheres como homens ainda concordam com as normas tradicionais de gênero e apoiam atitudes de homens e mulheres baseadas na violência de gênero.4 Scott J, Averbach S, Modest AM, Hacker MR, Cornish S, Spencer D, et al. An assessment of gender inequitable norms and gender-based violence in South Sudan: a community-based participatory research approach. Conflict Health. 2013; 7(4):1-11.

Na atualidade, a erradicação da violência contra a mulher está pautada na perspectiva da violência de gênero, e tem-se orientado que seu impacto e sequelas devem ser foco de atenção mediante a realização de novos estudos. Diante disso, além de estabelecer medidas legislativas e penais, como uma estratégia para reduzir a frequência dos atos abusivos, esta abordagem tradicional do problema precisa ser complementada com enfoque na educação e em medidas preventivas orientadas para a construção da igualdade de gênero.5Delgado-Álvarez MC, Gómez MCS, Jara PAFD. Atributos y estereotipos de género asociados al ciclo de la violencia contra la mujer. Universitas Psychol. 2012; 11(3):769-77.

A violência cometida por parceiro íntimo é compreendida como um problema de saúde pública por provocar impacto para a saúde física, reprodutiva e mental das mulheres, sendo que o tipo de violência mais significativo na percepção das mulheres vítimas é aquele que provoca danos emocionais. Diante disso, vale ressaltar que, para compreender essas mulheres a fim de dar-lhes suporte e atender suas necessidades, é mister entrar no seu mundo vivido.6Taherkhani S, Negarandeh R, Simbar M, Ahmadi F. Iranian women's experiences with intimate partner violence: a qualitative study. Health Promot Perspect. 2014; 4(2):230-9.

Sob esse olhar, é relevante destacar que as mulheres vítimas de violência vivenciam experiências que deixam marcas visíveis e invisíveis nos corpos, afeta a totalidade feminina e provoca transformações no seu ser e estar no mundo, mediante a expressão de uma multiplicidade de sintomas.7Labronici LM. Resilience in women victims of domestic violence: a phenomenological view. Texto Contexto Enferm [online]. 2012 Jul-Set [acesso 2013 Jul 11]; 21(3):625-32. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072012000300018&script=sci_arttext&tlng=en
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Entre esses, é relevante destacar que as mulheres vítimas também desenvolvem sintomas de depressão e estresse pós-traumático.8Buesa S, Calvete E. Violencia contra la mujer y síntomas de depresión y estrés postraumático: el papel del apoyo social. Int J Psychol Psychological Ther. 2013; 13(1):31-45.

O impacto provocado pela violência praticada pelos parceiros faz com que as mulheres procurem mais os serviços de saúde em função da gravidade da situação vivida e pela frequente repetição dos episódios.9 Schraiber LB, Barros CRS, Castilho EA. Violence against women by intimate partners: use of health services. Rev Bras Epidemiol. 2010 Jun; 13(2):237-45.Embora o setor da saúde continue privilegiando as intervenções pautadas no modelo biomédico, e a maioria das práticas ainda se restrinjam ao tratamento das lesões,1010 Meneghel SN, Hirakata VN. Femicides: female homicide in Brazil. Rev Saúde Pública [online]. 2011 [acesso 2013 Fev 16]; 45(3). Disponível em: http:// www.scielo.br/pdf/rsp/v45n3/1931.pdf
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é necessário destacar que as mulheres esperam receber, nos serviços de saúde, ações humanizadas de acolhimento, respeito, dignidade e solidariedade.1111 Faria AL, Araújo CAA, Baptista VH. Assistência à vítima de violência sexual: a experiência da Universidade de Taubaté. Rev Eletr Enferm. [online]. 2008 [acesso 2010 Out 19]; 10(4). Disponível em: http://www.fen.ufg.br/fen_revista/v10/n4/ pdf/v10n4a26.pdf
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Destarte, os serviços de saúde revelam-se uma importante porta de entrada para apoiar e proteger as mulheres em situação de violência conjugal. Deste modo, as políticas públicas existentes no Brasil recomendam que a atenção a essa população seja concebida na perspectiva ampliada de saúde, ou seja, as ações precisam transcender o simples diagnóstico e o cuidado das lesões físicas ou emocionais, e é necessário, sobretudo, congregar uma mudança de atitudes, crenças e práticas.1212 Nascimento EFGA, Ribeiro AP, Souza ER. Perceptions and practices of Angolan health care professionals concerning intimate partner violence against women. Cad Saúde Pública. 2014 Jan-Jun; 30(6):1229-38. A partir dessa perspectiva, percebe-se que para compreender e satisfazer as necessidades dessas mulheres, é imperativo ultrapassar a dimensão técnica e trilhar o caminho da subjetividade humana.

Para apreender a subjetividade humana e transcender a superficialidade, é preciso entrar no mundo dessas mulheres a fim de captar seu vivido mediante a percepção e escuta atenta,1313 Labronici LM, Fegadoli D, Correa MEC. O significado da violência sexual na manifestação da corporeidade: um estudo fenomenológico. Rev Esc Enferm USP. 2010 Jun; 44(2):401-6. uma vez, que ao coexistirem com o agressor após a denúncia da violência conjugal, elas atribuem um significado que se manifesta na forma de expressão do seu corpo, na sua corporeidade.

O corpo vive experiências e interage com o outro e com o mundo, e isso é possível porquanto vai além da dimensão física, na qual é compreendido apenas como uma separação de órgãos e sistemas. Trata-se de diferentes partes que se entrelaçam mediante um esquema corporal, o corpo próprio.1414 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2011. Assim, ao compreender que a experiência da violência conjugal, vivida pelas mulheres que coexistem com o agressor após a denúncia, pode deixar marcas visíveis e invisíveis em seus corpos, e que pode transformar o seu ser e estar no mundo, emerge o seguinte questionamento: a coexistência da mulher vítima de violência conjugal com o agressor após denunciá-lo modifica sua corporeidade?

Desta forma, esta pesquisa teve como objetivo: compreender o significado de coexistir com o agressor após a denúncia da violência conjugal na Delegacia da Mulher.

O CAMINHO METODOLÓGICO

Trata-se de pesquisa fenomenológica, fundamentada no referencial de Maurice Merleau-Ponty, filósofo existencialista, para o qual a fenomenologia é compreendida como o estudo das essências e que possibilita compreender o homem a partir de sua facticidade. É uma filosofia que repõe as essências na existência, é a própria experiência na busca de um sentido, e que procura compreender o homem na sua totalidade existencial, integrado a um mundo vivido. É uma descrição direta da experiência enquanto corpo, consciência encarnada, um relato do espaço, do tempo e do mundo vivido.1414 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2011.

A escolha pela fenomenologia de Merleau -Ponty ocorreu porque, para compreender o fenômeno de ser mulher vítima de violência conjugal e coexistir com o agressor após denunciá-lo, foi necessário caminhar em direção a um método que possibilitasse a compreensão da experiência vivida, a qual fica armazenada e passa a fazer parte desses corpos femininos. A compreensão7Labronici LM. Resilience in women victims of domestic violence: a phenomenological view. Texto Contexto Enferm [online]. 2012 Jul-Set [acesso 2013 Jul 11]; 21(3):625-32. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072012000300018&script=sci_arttext&tlng=en
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torna-se possível ao analisar e interpretar a subjetividade que se encontra armazenada no corpo e se projeta para fora através da linguagem, permitindo o desvelamento da essência do fenômeno.

O local que possibilitou a aproximação com as mulheres em situação de violência conjugal e a obtenção das descrições do fenômeno vivido foi a Delegacia da Mulher, no Município de Guarapuava, Paraná. A referida delegacia foi estabelecida no município, no ano de 1996, e tem a finalidade de atender, exclusivamente, os casos de violência doméstica contra as mulheres. Nesse local são registradas, em média, 895 ocorrências ao ano.1515 Raimondo ML, Labronici LM, Larocca LM. Retrospecto de ocorrências de violência contra a mulher registradas em uma delegacia especial. Cogitare Enferm. 2013 Jan-Mar; 18(1):43-9.

Participaram da pesquisa 14 mulheres com idades entre 18 e 59 anos, que após denunciarem seus companheiros agressores, retornaram ao convívio com os mesmos. A aproximação inicial com essas mulheres ocorreu mediante contato de uma profissional da instituição, que mencionou a pesquisa e realizou o convite para a participação. Após a manifestação de interesse, houve a apresentação formal do projeto pela pesquisadora e agendou-se a realização da entrevista. O encontro individual com cada mulher foi marcado de acordo com a disponibilidade de cada uma, em espaço privativo na Delegacia da Mulher.

A obtenção das entrevistas ocorreu durante o período de março a agosto de 2012, mediante entrevista fenomenológica, cuja solicitação inicial foi: Fale-me sobre a sua experiência de viver o dia a dia com seu companheiro após ter realizado a denúncia de violência na Delegacia da Mulher.

As entrevistas foram gravadas em dispositivo digital e, posteriormente, transcritas na íntegra. Em seguida, foi realizada a análise de acordo com a trajetória metodológica,1616 Giorgi A. Sobre o método fenomenológico utilizado como modo de pesquisa qualitativa nas ciências humanas: teoria e prática. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012. p.386-409. e a interpretação alicerçada no pensamento do filósofo Maurice Merleau-Ponty. Ressalta-se que as entrevistas foram encerradas no momento em que se percebeu a convergência nas descrições, e evidenciou-se que o conteúdo dos discursos respondeu ao questionamento e ao objetivo da pesquisa.

A análise é composta por cinco etapas: a primeira envolve a coleta dos dados verbais e ocorre mediante uma descrição ou entrevista, com vistas a fazer aparecer detalhadamente a experiência vivida. A segunda etapa exige uma leitura global dos discursos, a fim de apreender o sentido geral dos dados, a composição de suas partes, e deve ser realizada antes de iniciar sua análise. Na terceira etapa deve ocorrer a releitura das descrições para que sejam captadas as unidades de sentido expressas na linguagem comum e ingênua do sujeito, mediante uma postura de abertura do pesquisador. Na quarta etapa as unidades de sentido devem ser examinadas, exploradas e descritas novamente em linguagem especializada para evidenciar um caráter de "aprendizagem" da descrição ingênua. A quinta etapa compreende a síntese dos resultados, na qual cada unidade de significação encontrada é reduzida à sua essência. Tendo em vista o fenômeno estudado são definidas quais dessas unidades são fundamentais para descrever a estrutura essencial da experiência vivida.1616 Giorgi A. Sobre o método fenomenológico utilizado como modo de pesquisa qualitativa nas ciências humanas: teoria e prática. In: Poupart J, Deslauriers JP, Groulx LH, Laperrière A, Mayer R, Pires A. A pesquisa qualitativa: enfoques epistemológicos e metodológicos. Petrópolis (RJ): Vozes; 2012. p.386-409.

O processo analítico iniciou-se pela leitura global e atenta da descrição do vivido das mulheres vítimas de violência conjugal, possibilitando uma visão global da percepção dos corpos femininos que coexistiam com o agressor após a denúncia, para posteriormente iniciar sua análise fenomenológica.

Com uma postura de abertura, foi realizada a releitura atentiva de cada entrevista a fim de encontrar nos discursos as unidades de significação, que, na sequência, foram transformadas em linguagem fenomenológica, com o intento de revelar o que cada uma dessas unidades continha. Nesta etapa originaram-se as expressões: "Percepção dos corpos femininos modificados pela violência conjugal ao longo de sua trajetória existencial"; "Corpos femininos feridos, inferiorizados, sujeitados e anulados pelo agressor"; "Corpos femininos entristecidos, angustiados, reduzidos a fragmentos de uma totalidade". Na última etapa as unidades de significação foram sintetizadas, considerando os pontos de convergência do fenômeno estudado e, assim, transformadas em uma "estrutura essencial", a partir da qual emergiu o tema: "fragmentos de corporeidades femininas vítimas de violência conjugal".

Em relação aos aspectos éticos, a pesquisa foi aprovada pelo Comitê de Ética em Pesquisa (CEP) do Setor de Ciências da Saúde da Universidade Federal do Paraná, sob o número CEP-SD/UFPR: 1304.005.12.03. Os dados de identificação das participantes foram mantidos em absoluto sigilo e seu anonimato foi garantido pela substituição de seu nome pela letra "E" (Entrevista), seguida de algarismos arábicos em ordem crescente de realização da entrevista (E1 a E14).

A COMPREENSÃO DO FENÔMENO: FRAGMENTOS DE CORPOREIDADES FEMININAS VÍTIMAS DE VIOLÊNCIA CONJUGAL

O fenômeno em tela revela que há, na relação vivenciada entre corpos femininos vítimas de violência conjugal e seus companheiros, uma complexa trama existencial absolutamente conflituosa, na qual o agressor, tanto antes quanto após ser denunciado, utiliza-se de uma linguagem degradante e ofensiva para atingi-los intencionalmente, no sentido de distorcer sua imagem corporal, e isso pode ser constatado nos fragmentos dos discursos: [...] ele fica me olhando, e diz que do jeito que as coisas estão indo, eu vou ficar gorda e desdentada, que vou explodir. Diz que meu cabelo parece um bombril, e é por isso que ando sempre com ele preso em um rabicó. Quando chego do serviço, depois de um dia inteiro de serviço, tenho muita fome, e é por isso que engordo, e ele fica lá, do mesmo jeito (E9).

[...] ele me chama de prostituta, de biscate, vagabunda, vadia. Essas palavras. Isso acontece porque eu tive três crianças antes de casar com ele. Eu tinha as crianças e fiquei viúva (E4).

A violência perpetrada, por longos períodos, tem a capacidade de fragilizar as mulheres, tornando-as mais vulneráveis e, assim, reduzindo suas condições de enfrentamento. O vivido da violência conjugal compromete a autoimagem feminina que, ao longo do tempo, passa a adquirir um caráter negativo, distorcido e visível1717 Souto CMRM, Braga VAB. Marital life experiences: women's positioning. Rev Bras Enferm. [online]. 2009 [acesso 2013 Set 12]; 62(5). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v62n5/03.pdf
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dessa carne, matéria constituinte do corpo.18 18 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo (SP): Perspectiva; 2012."O corpo não é apenas um objeto entre outros objetos, um complexo de qualidades entre outros, ele é um objeto sensível a todos os outros, que ressoa para todos os sons, vibra para todas as cores, e que fornece às palavras a sua significação primordial através da maneira pela qual ele as acolhe."14:317

Há que se destacar que a carne trabalhada interiormente, mediante a lapidação existencial do ser bruto é necessária para a construção da imagem corporal, que deve ser contínua com o intuito de dar forma harmoniosa e um sentido ao corpo fenomenal, ao elemento do ser, porquanto, a carne é feita da abertura espacio-temporal e é o meio formador do objeto e do sujeito, razão pela qual não deve ser percebida na perspectiva de uma divisão, mas como uma totalidade.1818 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo (SP): Perspectiva; 2012.

A carne é um entrelaçamento, um quiasma, um corpo fenomenal, um corpo sentindo e não somente um corpo objetivo.1818 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo (SP): Perspectiva; 2012. Sob esse olhar fenomenológico, é possível apreender que cada situação vivida possibilita a construção e a reconstrução, enfim, a modificação da imagem corporal, da corporeidade.

As corporeidades femininas, ao acolherem a linguagem pejorativa expressa pelos agressores, incorporaram-na, e isso fragmentou a percepção da totalidade que tinham de si, impedindo-as de lapidarem-se mediante um balanço existencial, fato que contribuiu para nutrir e perpetuar o ciclo da violência. A coexistência com um companheiro, que mesmo após a denúncia proferia palavras ofensivas, possibilitou uma nova configuração das percepções do eu, do outro e do mundo e, a partir disso, fez com que fossem construídas novas camadas distorcidas de impressões do eu.

As camadas de impressões do eu são construídas porque o corpo tem a capacidade de se conectar formando um elo entre si mesmo e o outro, assim como também se reconecta consigo mesmo mediante a intersubjetividade.1414 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2011. Nesta, o corpo do outro é sempre uma imagem para si, e seu corpo sempre uma imagem para o outro.1919 Huisman B, Ribes F. Les philosophes et le corps. Paris (FR): Dunod; 1992.

O corpo é, para si mesmo, a imagem que crê que o outro tem. Desta forma, é assim que se institui toda uma tática entre os seres através do seu corpo, e sem que se deem conta, há, frequentemente, nesta relação, uma estratégia de dois polos, na qual sedução e intimidação podem coexistir.1919 Huisman B, Ribes F. Les philosophes et le corps. Paris (FR): Dunod; 1992.

Os agressores, os outros polos da relação, representam uma ameaça que intimida os corpos femininos, assombra-os o tempo todo, de forma a atingi-los intencionalmente, mediante diferentes formas de expressão da violência e que gradativamente modifica a imagem corporal positiva construída ao longo de sua trajetória existencial.

Os corpos femininos percebem modificações na imagem corporal, assim como as distorções nela ocorridas. Antes de sofrerem violência conjugal, percebiam-se, talvez não na sua totalidade, mas com uma visão mais satisfatória do que aquela que se mostra na atualidade, e isso pode ser constatado nos fragmentos dos discursos: [...] eu me lembro de antigamente. Eu era mais bonita, mais feliz, mais bonita por dentro e por fora. Meu cabelo era lindo, e meu corpo era perfeito. Eu era livre, e não vivia como hoje: prisioneira em minha própria casa. Podia conversar e me relacionar com as pessoas [...]. Com o passar do tempo fui me acabando, e hoje acho feio até o que antes não achava. Além de apanhar e ficar com esses hematomas e cicatrizes, pelo que eu passo com ele, fui perdendo a vontade de me cuidar [...]. Também, para que me cuidar, se quando me olho, me vejo e me enxergo assim, toda destruída, machucada, por dentro e por fora (E9); [...] esses dias quando eu passei na frente do espelho e me vi, percebi que ele acabou comigo. Me deixou toda roxa. Tirou o meu queixo fora do lugar. Deixou o meu olho coberto de sangue, e ficou preto. Ele quase tirou minha coluna fora do lugar. [...]ele me destruiu (E1).

Os corpos femininos percebem-se destruídos pelo outro, porém, permanecem prisioneiros mesmo após a denúncia. Não se reconhecem mais na temporalidade do aqui e agora, e apenas conseguem ter uma lembrança boa, positiva, ao voltar seu olhar para o passado. Sob essa perspectiva, os questionamentos que podem ser feitos são: Se o que se mostra não espelha a percepção que os corpos femininos tinham de si no passado, então, quem são eles agora? O que os faz permanecerem acorrentados ao ciclo da violência mesmo após a denúncia?

A permanência com o companheiro após a agressão manifesta-se entre a maioria das mulheres, porque se sentem incapazes de negociar mudanças voltadas ao enfrentamento da situação, e diante do vivido percebem-se inferiores, inseguras, desvalorizadas e desamparadas em relação ao outro.1717 Souto CMRM, Braga VAB. Marital life experiences: women's positioning. Rev Bras Enferm. [online]. 2009 [acesso 2013 Set 12]; 62(5). Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/reben/v62n5/03.pdf
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Ao denunciar seus agressores, esperam romper com o ciclo da violência, por desejarem a separação, e porque esperam ter paz, a fim de retomar seus planos e suas vidas.2020 Vieira LB, Padoin SMM, Oliveira IES, Paula CC. Intencionalidades de mulheres que decidem denunciar situações de violência. Acta Paul Enferm. 2012; 25(3):423-9.

Muitas mulheres agredidas mencionam medo de represália, perda do suporte financeiro e apoio da família e amigos, dependência emocional, além de alimentar o sentimento de amor ao parceiro, o desejo de lutar pelo bem da família e dos filhos, assim como a esperança da mudança de comportamento do companheiro.2121 Silva RA, Araújo TVB, Valongueiro S, Ludermir AB. Facing violence by intimate partner: the experience of women in an urban area of Northeastern Brazil. Rev Saúde Pública [online]. 2012 [acesso 2013 Ago 11]; 46(6). Disponível em: http://www.scielo.br/ pdf/rsp/v46n6/en_ao3594.pdf
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Esses são elementos armazenados na subjetividade, que por um lado alimentam o ciclo da violência e, por outro, parecem criar uma dependência emocional.

A permanência dos corpos femininos no ciclo da violência resulta em uma absoluta falta de ânimo em relação à vida, em uma ausência de desejos, de cuidado consigo, uma vez que, na percepção dessas mulheres, parece não haver nenhum estímulo para que o oposto se concretize. Esses corpos vão armazenando, em seu ser, mágoas, dores e cicatrizes visíveis e invisíveis. Sob o olhar fenomenológico, é possível compreender que a percepção que E1 e E9 têm de si, e que se mostra mediante a descrição na temporalidade do aqui e agora, são concretas e carregadas de negatividade.

Os corpos femininos, ao coexistirem com os agressores, são afetados pela história construída e vivida por ambos no momento em que são submetidos à pior degradação ontológica que o corpo feminino pode ser sujeitado: a violência sexual associada à psicológica e à moral, e isso é percebido nos fragmentos dos discursos a seguir: [...] tenho vergonha de dizer que até a mão inteira ele quer por lá dentro [no canal vaginal], e se eu não deixo, ele me bate e ameaça que vai me matar [...] (E14); [...] um dia eu estava chegando em casa, na rua de casa, quando desci do ônibus e cruzei com um ex [antigo namorado], e ele me cumprimentou e, então, eu cumprimentei ele. Nisso, ele [o companheiro] vinha vindo e viu. Isso foi o suficiente para me arrastar pela rua me xingando, dizendo que não valia nada, que era uma biscate que dava bola pra todo mundo. Ele fez isso de propósito pra que as pessoas pensem que não tenho valor nenhum (E11).

O comportamento primata manifestado por um dos agressores ao praticar a violência sexual revela uma invasão bárbara do que é considerado sagrado, o corpo feminino, e que se configura uma violação dos direitos humanos. A invasão do corpo e a violação desses direitos não é visível apenas mediante a prática da violência sexual, uma vez que também é perpetrada por gestos, pelo movimento e pelas palavras, traduzidas na violência psicológica e moral.

Os gestos, os movimentos e as palavras compõem uma linguagem estabelecida entre corporeidades que têm a capacidade de perceber e sentir, enquanto corpos próprios, consciências encarnadas envolvidas em um esquema corporal.1414 Merleau-Ponty M. Fenomenologia da percepção. São Paulo (SP): Martins Fontes; 2011. Assim, a forma como os corpos femininos acolhem essa linguagem é distinta, como também são diferentes suas implicações para a vida e para a saúde.

A forma como cada corpo vivencia as consequências da violência é diferente, porquanto cada ser humano é único e singular, e traz em seu ser a bagagem cultural e histórica vivenciada na trajetória existencial. Todavia, o medo passa a ser sentido cotidianamente, manifestado na corporeidade, e isso faz com que se percebam vítimas, reféns constantes de seus companheiros.1313 Labronici LM, Fegadoli D, Correa MEC. O significado da violência sexual na manifestação da corporeidade: um estudo fenomenológico. Rev Esc Enferm USP. 2010 Jun; 44(2):401-6.

A vivência das mulheres vítimas de violência conjugal é algo indecifrável, pois seu cotidiano é permeado pela incerteza de não saberem quando e como serão espancadas. Diante da violência sexual, adotam uma atitude de submissão, além de se sentirem sozinhas e profundamente magoadas por se perceberem obrigadas a se submeterem a objeto sexual do outro.2222 Monteiro CFS, Souza IE. Vivência da violência conjugal: fatos do cotidiano. Texto Contexto Enferm. 2007 Jan-Mar; 16(1):26-31.

A submissão dos corpos femininos vítimas de violência conjugal revela sua absoluta anulação diante do outro, e é como se entregassem a vida nas mãos daquele que deveria ser seu companheiro, cúmplice, e porque não dizer amigo, que ao invés de mostrar-se disponível para vivenciar uma relação plena, quiasmática, sem limites para cuidar, respeitar e amar, parece transformá-los em sua propriedade, objeto de dominação e imposição de poder.

O comportamento agressivo dos companheiros afetou as corporeidades femininas e comprometeu sua autoestima, e isso pode ser constatado nos fragmentos dos discursos: [...] hoje me sinto feia e gorda. Acho que é por isso que ele perdeu o interesse por mim e me maltrata [...] continua tudo igual [depois da denúncia] (E6); [...] eu me sinto um lixo, muito pequena, sem valor nenhum, tão miserável por ter que me sujeitar a dormir na mesma cama que ele. Tenho vergonha [...] me sinto humilhada, triste (E3); [...] quando me olho no espelho vejo que não restou mais nada. [...] não tenho mais vontade de me cuidar, me vejo feia, me sinto feia (E1).

Ao se verem diante do espelho, os corpos femininos não conseguem mais se reconhecer e se perceber enquanto totalidade, porquanto a percepção positiva que tinham de si e que estava armazenada em sua memória foi lentamente destruída pelo outro.

É relevante evidenciar que, durante a existência, a pessoa cria uma imagem de si a qual influencia em todas as suas escolhas. A partir disso, os adjetivos que definem as características que constituem o eu, formam o sentimento da autoestima (parte afetiva do self, extensão na qual o indivíduo admira ou valoriza o eu). A parte afetiva do self (indivíduo como totalidade), faz com que cada pessoa tenha a capacidade de se sentir satisfeito ou desamparado consigo. Assim, uma autoestima elevada favorece a valorização de experiências positivas vividas, porém, aquelas que são negativas geram ansiedade e depressão.2323 Erthal TCS. Psicoterapia Vivencial: uma abordagem existencial em Psicoterapia. São Paulo (SP): Livro pleno; 2004.

A baixa autoestima, associada a quadros clínicos de ansiedade e depressão, faz parte do cotidiano das mulheres vítimas de violência no contexto doméstico e constituem um forte fator de risco que pode comprometer em diferentes níveis sua saúde mental,2424 Zancan N, Wasserman VG. Marcas Psicológicas da Violência Doméstica contra a Mulher. Rev Psicol IMED. 2013 Jan-Jun; 5(1):40-6. e isso pode ser constatado nos fragmentos dos discursos: [...] eu não sou isso que ele me xinga, mas fico muito mal e triste. Eu tive até que tomar remédio pra depressão. Por causa desses xingamentos, eu chego até a me sentir uma mulher vadia. Chego a pensar que sou isso mesmo [chora] (E5); [...] eu choro muito, fico nervosa e me ataca os nervos. Pensei em me internar porque achava que iria morrer. [...] com isso eu fico nervosa. Dói a cabeça e já me deu depressão [...].Ontem à noite tomei quase um vidro de dipirona. Quando minha pressão fica alta tomo dipirona para baixar (E2); [...] vivo angustiada, triste [...]. Fico trancada no quarto com os filhos, morrendo de medo, chorando e sem comer até no outro dia. Às vezes não saía do quarto nem pra comer [...]. Hoje eu e os filhos vamos na psicóloga para tentar superar isso (E4).

A realidade de vivenciar situações de violência faz com que ocorram distúrbios como transtorno pós-traumático, ansiedade generalizada, depressão, abuso de álcool e drogas e tentativas de suicídio.2525 Ministério da Saúde (BR). Secretaria de Atenção à Saúde. Departamento de Ações Programáticas Estratégicas. Prevenção e tratamento dos agravos resultantes da violência sexual contra mulheres e adolescentes: norma técnica. Brasília (DF): MS; 2012. Desta forma, esses traumas, que afetam a totalidade das mulheres, requerem o desenvolvimento de ações expressivas, relacionadas à sua subjetividade.

Diante disso, é necessária a existência e ampliação de uma rede articulada de serviços que envolvam a polícia, o poder judiciário, a assistência psicossocial e os serviços de saúde, com profissionais que se mostrem disponíveis para apoiar, acolher e realizar encaminhamentos necessários às mulheres vítimas.2121 Silva RA, Araújo TVB, Valongueiro S, Ludermir AB. Facing violence by intimate partner: the experience of women in an urban area of Northeastern Brazil. Rev Saúde Pública [online]. 2012 [acesso 2013 Ago 11]; 46(6). Disponível em: http://www.scielo.br/ pdf/rsp/v46n6/en_ao3594.pdf
http://www.scielo.br/ pdf/rsp/v46n6/en_a...
Nesse aspecto, há que se destacar a atuação da enfermeira no cuidado a essa população.

É relevante evidenciar que o cuidar em enfermagem à mulher vítima de violência sexual, exige mais do que as habilidades técnicas. Requer uma atenção individualizada que transcenda a dimensão de curar e tratar. A possibilidade de um cuidar acolhedor pela enfermagem permite ter um olhar sensível e humano para a saúde da mulher, com a finalidade de recuperar sua autoestima, sua saúde mental e sua qualidade de vida.2626 Morais SCRV, Monteiro CFS, Rocha SS. O cuidar em enfermagem à mulher vítima de violência sexual. Texto Contexto Enferm. 2010 Jan-Mar; 19(1):155-60.

A experiência de construir uma relação profissional diferenciada poderá se concretizar mediante a adoção de uma postura atenta, de sensibilidade, empatia e escuta, uma vez que, cuidar é ouvir, é sentir e, ao mesmo tempo, se for preciso, saber calarse para possibilitar que o outro se expresse.7Labronici LM. Resilience in women victims of domestic violence: a phenomenological view. Texto Contexto Enferm [online]. 2012 Jul-Set [acesso 2013 Jul 11]; 21(3):625-32. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0104-07072012000300018&script=sci_arttext&tlng=en
http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S010...
Nessa perspectiva, há a necessidade de um movimento de sobrevoo, de distanciamento e, concomitantemente, de aproximação, que revela um infinito de possibilidades voltadas para a construção de uma relação quiasmática e de complementaridade,1818 Merleau-Ponty M. O visível e o invisível. São Paulo (SP): Perspectiva; 2012. essencial em uma relação de cuidado.

Ao construir uma relação de cuidado, a enfermeira deve possibilitar a expressão das necessidades dos corpos femininos, suas angústias, medos e dúvidas, enfim, a expressão do outro na sua totalidade. É mister ter um olhar hermenêutico, aquele capaz de interpretar, captar o invisível mediante o visível que está diante de si e, a partir disso, ter a sensibilidade para identificar as necessidades que darão origem às ações de cuidado, sem preconceitos de qualquer natureza.

CONCLUSÃO

Ao concluir a trajetória percorrida, com base na descrição do vivido dos corpos femininos vítimas de violência conjugal, foi possível perceber que, mesmo após denúncia, não existia uma relação conjugal harmoniosa, quiasmática e aberta a possibilidades, visto que o comportamento manipulador e dominador dos agressores não se modificou e impediu a expressão desses corpos enquanto corporeidades.

A violência perpetrada pelos companheiros, nas suas mais perversas formas de expressão, contribuiu para transformar os corpos femininos em corpos objeto. Diante disso, envolvidos pelas circunstâncias cotidianas conflituosas, esses corpos encontravam-se mergulhados em uma situação na qual demonstraram não estar preparados para enfrentar.

O desvelar do fenômeno mostrou que, a partir do vivido, as corporeidades femininas foram incorporando a linguagem degradante e pejorativa expressada pelos agressores, e quando viram o reflexo de si diante do espelho, perceberam e reconheceram uma imagem corporal distorcida, fragmentada e negativa.

A permanência no ciclo da violência conjugal contribuiu para que a percepção positiva, que os corpos femininos tinham de si, e que haviam construído ao longo de sua trajetória existencial, fosse gradativamente destruída, fenômeno que culminou na diminuição da autoestima e modificou seu ser e estar no mundo. Este fenômeno impediu-os de superar o sofrimento e enfrentar o vivido a fim de prosseguir sua trajetória existencial em busca de um novo sentido.

O sentido para a coexistência dos corpos femininos com o agressor após a denúncia encontra sustentação no fenômeno da destruição da imagem corporal, uma vez que isso pode ter colaborado para fragilizar esses corpos, reduzindo suas capacidades de enfrentamento, por se sentirem ameaçados, inferiorizados e inseguros em relação ao outro, fato que contribuiu para perpetuar a permanência no ciclo da violência.

Destarte, esta pesquisa possibilita reflexões para o cuidado de enfermagem, já que revela a necessidade de intervir na promoção da saúde desses corpos. Entretanto, para que isso ocorra, é necessário que a enfermeira, enquanto corpo cuidador, ultrapasse a dimensão técnica, a fim de proporcionar um cuidado sensível que permita ao outro aproximar-se para que possa expressar suas necessidades.

A enfermeira precisa adotar uma postura diferenciada diante dos corpos femininos vítimas de violência conjugal, de modo a captar o invisível no visível, que somente se mostrará mediante uma postura de abertura, aproximação, acolhimento e respeito, com vistas à identificação de suas reais necessidades de saúde, para que sejam cuidados na sua multidimensionalidade.

A compreensão do fenômeno em tela, sob o olhar fenomenológico de Maurice Merleau-Ponty, apresenta-se como uma possibilidade para o planejamento do cuidado de enfermagem, bem como para a realização de outras pesquisas científicas, de modo que novas camadas de percepções relacionadas à violência conjugal possam ser desveladas.

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    July-Sep 2015

Histórico

  • Recebido
    30 Set 2014
  • Aceito
    12 Maio 2015
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