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Tempo, história e historiografia: entrevista com François Hartog

Resumo:

Entrevista concedida pelo professor François Hartog à Tempo em Paris, no dia 11 de novembro de 2019, em que trata de suas investigações em historiografia e de seu mais recente livro, Chronos. L’Occident aux prises avec le temps (no prelo).

Palavras-chave:
Regimes de historicidade; Relações Brasil-França; Presentismo; Historiografia

Résumé:

Entretien pour Tempo avec le Professeur François Hartog fait à Paris, le 11 novembre 2019, autour des recherches en historiographie et de son dernier livre, Chronos. L’Occident aux prises avec le temps (sous presse).

Mots-clés :
Régime d’historicité; Coopérations entre le Brésil et la France; Présentisme; Historiographie

Esta entrevista concedida pelo professor François Hartog à revista Tempo foi realizada em 11 de novembro de 2019, em Paris.1 1 A presente entrevista foi realizada durante a missão de pesquisa da historiadora Francine Iegelski no quadro do acordo Capes/Cofecub (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil), pelo projeto “Ideias em tempo de Guerra Fria: circulações intelectuais, encontros e desencontros”, coordenado pelos professores Denise Rollemberg e Olivier Compagnon. Ao longo da entrevista, o prof. Hartog falou sobre sua nova obra, Chronos. L’Occident aux prises avec le temps, que será publicada em abril deste ano. Ele lembrou suas relações com o Brasil e retornou, à luz do contexto atual, a alguns dos pontos principais de sua tese, elaborada no começo dos anos 2000, sobre o regime de historicidade contemporâneo, ao qual deu o nome de presentismo. Ao final dessa conversa, o prof. Hartog também nos falou sobre a situação atual da historiografia na França.

Francine Iegelski: François Hartog, você é historiador, diretor de estudos na École des Hautes Études em Sciences Sociales (Ehess), em Paris, onde conduziu, por mais de trinta anos, suas pesquisas sobre a historiografia antiga e moderna. Poderia começar nos falando sobre essa escolha pela história? Primeiro, sobre o que a motivou e, em seguida, como você vê, hoje, seus anos de formação e sua relação com historiadores como Pierre Vidal-Naquet, sobre quem você escreveu um livro, Vidal-Naquet, historien en personne (2007), Jean-Pierre Vernant, a quem você dedicou seu livro Régimes d’historicité (2003), ou ainda, Michel de CerteauCERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. (Bibliothèque des Histoires), que, segundo você, foi aquele que claramente o colocou no caminho da história intelectual.

François Hartog: A escolha pela história não foi minha primeira escolha. Quando estava na École Normale, eu hesitei entre filosofia, letras e história, e finalmente escolhi a história antiga. Isso está notadamente ligado à leitura, feita naqueles anos, de alguns livros de Georges Dumézil. Ele tinha trabalhado sobre Roma e eu pensava, ingenuamente, que poderia fazer a mesma coisa a propósito da Grécia, ainda que ele dissesse que, com a Grécia, a trifuncionalidade não era operatória. Então era ainda mais estimulante tentar compreender por que a ideologia das três funções não funcionava ali. No começo havia essa motivação, esse interesse intelectual. A história contemporânea não me atraía, e a decepção de 1968 ainda estava muito próxima. Foi então que eu encontrei Pierre Vidal-Naquet, Jean-Pierre Vernant e Marcel Detienne, e suas formas de questionar a Grécia Antiga me pareciam novas e convincentes. Sua abordagem, a antropologia histórica, era crítica em relação àquilo que se fazia na Sorbonne, e estava em sintonia com o movimento das ciências humanas, particularmente com a antropologia estrutural de Lévi-Strauss. A escolha pelo mundo grego também foi uma forma de engajamento nos debates intelectuais do momento. Eles receberam os primeiros sinais de reconhecimento, ao mesmo tempo que a Ehess se afirmava e ganhava visibilidade.

FI: O livro Régimes d’historicité, publicado há 17 anos, teve grande impacto sobre a historiografia na França e no exterior, notadamente no Brasil. Nele, você levanta uma interrogação de historiador sobre o tempo. Uma investigação deslanchada a partir de seu diagnóstico de uma crise do tempo ao longo do último terço do século XX. Você considera, hoje, que seu diagnóstico, tal como apresentado e articulado no livro de 2003, a propósito das relações das sociedades contemporâneas com o tempo e a ascensão do presentismo, ainda é operatório? A noção de presentismo ainda é um guia para compreender as modalidades das relações com o tempo de nossa época atual?

FH: O diagnóstico, tal como foi formulado em 2003, já era a conclusão de muitos anos de interrogações que foram marcadas, para mim e para outros, pela crise do futuro que se manifestou na Europa desde o fim dos anos 1970 e começo dos anos 1980. Essa crise do futuro se traduziu, em história e mais amplamente no espaço público, pela ascensão da memória. Começamos, então, a falar de memória, de direito à memória e, logo em seguida, de dever de memória. Todos esses fenômenos que atravessaram nossas sociedades me pareciam não se explicar através, mas se inscrever nesse questionamento daquilo que tinha sido o grande motor da história e das sociedades ocidentais: o tempo moderno, o progresso e a marcha rumo ao progresso. Os fatores que permitiram esse questionamento do futuro são múltiplos, mas um dos elementos importantes dessa crise foi a ascensão e o poder da memória daquilo que havia se passado durante a Segunda Guerra Mundial, o extermínio dos judeus. Sem dúvida ela não foi ignorada nos anos do pós-guerra, mas se tornou um tema muito importante com a mudança de gerações. A geração daqueles que haviam diretamente vivido a guerra começava a desaparecer e as gerações seguintes se interrogavam, se colocavam questões, queriam saber. É nesse contexto que a temática da memória pouco a pouco se impôs. Muitos outros elementos entraram em cena, particularmente a crise de 1973, a primeira grande crise do petróleo que atingiu as sociedades ocidentais, que subitamente se deram conta de que uma decisão que afetava o mundo inteiro - o aumento do preço do petróleo pelos países produtores - lhes escapava.

Outro fator evidentemente decisivo para explicar essa crise é a erosão da ideia de Revolução que, até 1968, permanecia forte. Ainda que, do lado dos países do Leste, não se acreditasse mais no “futuro radiante” do comunismo, o ideal revolucionário permanecia ativo no Oeste. Sentimos que por volta de 1968, pelo menos na Europa, a ideia perde sua força: perde sua evidência. Todos esses elementos, que fazem parte de uma conjuntura geral, têm por resultado o questionamento do futuro e do tempo moderno. Aquilo que substitui o futuro é o presente, que, claro, sempre existiu, mas que tende a aparecer a partir de então como um único horizonte. Foi por isso que propus nomear esse fenômeno de presentismo, do mesmo modo que há um futurismo. O presentismo é um regime de historicidade no qual o presente absorve o futuro. Creio que esse diagnóstico ainda é válido.

A memória e o presentismo não se opõem. No caso da América do Sul, a questão da memória veio à tona depois do fim das ditaduras, com as exigências de memória, a construção de memoriais, a justiça de transição e as comissões da verdade. O presentismo se reforçou ao longo dos últimos anos por meio das transformações tecnológicas: o mundo digital é um mundo presentista. Os celulares, os computadores, a economia e as finanças têm por horizonte o presente imediato. O capitalismo, hoje, é presentista. Mais do que era no capitalismo industrial. O capitalismo financeiro reforça ainda mais o presentismo. Aquilo que chamamos de globalização está amplamente fundamentado nisso: ele é essencialmente presentista.

A novidade hoje, em relação ao começo dos anos 2000, é o questionamento do presentismo, na esteira das insatisfações que ele gerou e das injustiças das quais é o portador. Daí as tentativas e o desejo de sair dele. Existem todos os tipos de manifestações nesse sentido. Além disso, sabemos, existem presentismos, e não um presentismo único: ele não é o mesmo para todos. Existem os vencedores da globalização, os indivíduos mais flexíveis, conectados, móveis, todos esses termos valorativos, que também se apresentam como imperativos: é preciso ser rápido, ágil etc. Mas isso vale apenas para uma pequena parcela da população. Na outra ponta, estão os muitos perdedores do presentismo, os excluídos desse mundo por conta do seu lugar de residência, do seu nível de estudos, da sua posição social e que se veem, pelo contrário, reduzidos a um presentismo de sobrevivência: um dia após o outro. Existem milhões de pessoas nessa situação, jovens em situação precária que não podem fazer projetos para o futuro e que vivem em um presente sofrido, aqueles que agora chamamos de imigrantes, as pessoas que vivem muito longe dos centros urbanos. Nesse caso, a distância espacial engendra uma distância temporal, e essa distância temporal também engendra uma fratura nos vínculos sociais que esses movimentos populistas ou claramente de extrema direita, vistos um pouco por toda a parte, transformam em fundo de comércio. Daí essas visões tão difundidas de sociedades que seriam divididas entre “a elite”, de um lado, se aproveitando do “sistema”, e o povo, o verdadeiro, do outro lado.

FI: Muitos de seus livros foram publicados, lidos e se tornaram o assunto de importantes debates no Brasil. Você já foi ao Brasil várias vezes e conhece de perto as pesquisas históricas realizadas no país. Como se deu esse encontro com o Brasil e como se estabeleceram as relações com os historiadores brasileiros?

FH: Para mim, o Brasil começou muito cedo, bem antes de minha primeira viagem! Começou com a leitura do texto de Michel de Certeau sobre Jean de Léry; esse foi um primeiro encontro, totalmente livresco. Mas eu sou um homem dos livros. Alguns anos mais tarde, ocorreu meu encontro com Carlos Alberto de Moura Zeron, que veio fazer seu DEA2 2 [N. do T.] Sigla em francês para Diploma de Estudos Avançados, equivalente ao nosso mestrado. e depois seu doutorado na Ehess, sob minha orientação. Uma tese sobre os jesuítas no Brasil. Certeau servia, mais uma vez, de intermediário. Sua orientadora brasileira, Janice Theodoro Silva, professora na USP, entrou em contato comigo e me convidou para ministrar alguns seminários em São Paulo. Essa foi a primeira passagem, durou algumas semanas. Em seguida, diversos doutorandos brasileiros vieram fazer suas teses com bolsa - à época, as bolsas eram generosas, duravam quatro anos, e ainda eram relativamente fáceis de conseguir, sobretudo quando se tratava de um tema de pesquisa que exigia o acesso a arquivos e bibliotecas na França ou na Europa. Esses estudantes, que hoje são professores, Zeron, Marcos Veneu, Temístocles Américo Corrêa Cezar, José Otávio Nogueira Guimarães, estavam na Ehess, que era um grande centro de acolhimento da colônia estudantil brasileira em meados dos anos 1980. De fato, havia muitos brasileiros lá e aqueles que eu conheci foram parte importante dessa forte relação com o Brasil. Também havia na Ehess os sociólogos, como Alain Touraine e Fernando Henrique Cardoso, que estava exilado aqui. Esse tipo de laço, portanto, começou durante a ditadura e continuou depois. Ainda antes, houve Fernand Braudel e, evidentemente, Claude Lévi-Strauss em São Paulo. Existe, portanto, uma coorte de pessoas que mantiveram fortes relações com o Brasil.

A situação mudou bastante nos anos 1990, quando as bolsas de doutorado ficaram mais rarefeitas, especialmente depois que os programas de doutorado foram criados nas universidades brasileiras. A maioria dos professores que lá ensinavam tinha sido formada na Europa, na França e na Alemanha (falo dos historiadores), e eram perfeitamente capazes de supervisionar pesquisas de doutorado. A redução do número de bolsas era, portanto, legítima e lógica. Mas, em termos intelectuais, as “bolsas sanduíche” que apareceram, sobretudo, nos anos 2000 não podiam cumprir a mesma função. Alguns meses não é tempo suficiente para estabelecer laços intelectuais duradouros. Isso também vale para os pós-doutorados: o tempo é limitado a um ano ou mais, e o colega, que vem com um projeto preciso, está menos disponível intelectualmente que um doutorando em plena formação. Essas transformações tiveram efeito sobre a intensidade dos laços intelectuais da pesquisa em ciências humanas e sociais entre a França e o Brasil. Além do interesse pela Europa, havia também, do lado das instituições brasileiras das décadas de 1980 e 1990, o desejo de não cair na dependência dos Estados Unidos. O poder das universidades estadunidenses não era, naquele momento, o que mais interessava aos estudantes brasileiros.

FI: Você dirigiu uma obra importante com Jacques Revel, Les usages politiques du passé (2001), na qual vocês abordam, de diferentes maneiras, a instrumentalização da história por diferentes regimes políticos que desejavam elaborar um relato do passado capaz de servir a seus interesses políticos. No Brasil, assistimos hoje a um confronto entre certos representantes da classe política e os historiadores a propósito da memória do passado autoritário do país, a ditadura militar (1964-1985). Os homens políticos do atual governo colocam em questão a historiografia que trata desse período e negam tanto esse passado autoritário quanto as violências e assassinatos cometidos pelo Estado brasileiro da época. O que pode a história, o que podem os historiadores de ofício diante dessas disputas e desses usos, cada vez mais frequentes, do passado para fins de propaganda?

FH: Em primeiro lugar, não se pode alegar surpresa, pois esse não é um procedimento inédito, muito pelo contrário. No que diz respeito ao Brasil, talvez haja um elemento diferente: na saída da ditadura, as ações do regime ditatorial não foram apuradas e o Brasil viveu nesse não assumido. Além disso, o sistema político brasileiro, com sua Câmara (bastante conservadora) e os múltiplos partidos com os quais é preciso incessantemente fazer alianças, provavelmente não estava em condições de enfrentar esse passado recente. Já era bem tarde quando a Comissão da Verdade foi criada por Dilma Rousseff. O momento em que essa comissão poderia ter desempenhado o papel de uma justiça de transição provavelmente já havia passado. Essa iniciativa provavelmente despertou a oposição de certos militares e, talvez - quero enfatizar esse talvez -, tenha ajudado a reforçar a hostilidade contra Dilma e favoreceu sua brutal expulsão.

Nessa conjuntura, o que pode o historiador profissional? Fazer seu trabalho rigorosamente e tanto quanto for possível, mas quanto a influenciar ou contribuir para a abertura de uma reflexão sobre o passado, aí já não sou muito otimista. Vemos isso na Europa. Na França, por exemplo, existem alguns personagens, como Éric Zemmour, que querem reescrever o passado da França e defendem uma narrativa nacional dita atacada ou esquecida. Ele é bem sucedido, inegavelmente. Os conhecimentos históricos que acreditamos adquiridos em definitivo de fato não o são. O passado sempre é suscetível de ser mobilizado, reativado, instrumentalizado. Tomemos outro exemplo, o da Itália: o modo como Matteo Salvini, o líder populista da Liga do Norte, pretende dizer qual é a “verdadeira” história da Itália mostra que o período do fascismo mussolineano não está protegido de revisões. Esses políticos estão sempre dispostos a revisar a história. E, o fator mais recente, que ninguém controla, é o aumento de poder das mídias sociais, com todos os efeitos deletérios que nós vemos dia após dia praticamente em todos os lugares.

FI: O diálogo que você mantém com a antropologia desempenha um papel importante em sua pesquisa de historiador sobre o tempo. Nesse domínio, o nome de Claude Lévi-Strauss, que também traçou um caminho intelectual tendo laços com o Brasil, tem um peso importante. Seu artigo “Le regard éloigné: Lévi-Strauss et l’histoire”, publicado em 2004 na coleção L’Herne em homenagem a Lévi-Strauss, dirigida por Michel Izard, e que foi em seguida retomado como um capítulo do livro Évidence de l’histoire (2005), traz elementos para compreender sua relação com a antropologia estrutural.

Creio que seu trabalho nessas últimas décadas desempenhou um papel fundamental para que os historiadores viessem a reler de outra maneira os escritos de Lévi-Strauss sobre a história, longe dos mal-entendidos e das querelas dos anos 1960. Você poderia nos falar sobre sua experiência enquanto leitor de Lévi-Strauss e da importância desse autor no desenvolvimento de sua própria reflexão sobre as “experiências do tempo”?

FH : Isso que você diz me agrada, mas não estou muito certo disso… A reflexão que fiz ao menos lhe ajudou a formular as suas próprias questões. Eu fico contente, naturalmente, mas o que percebi, sobretudo, é a ausência de reação do lado dos antropólogos. Para eles, Lévi-Strauss acabou. Há aqueles que foram sempre contrários, os marxistas ou marxizantes, que sempre disseram que o pensamento de Lévi-Strauss significava a recusa ou a negação da história. Há aqueles que também estiveram do lado do estruturalismo puro e duro, que não tinham interesse pela história. Na França, os africanistas, que trabalharam ao lado de Georges Balandier, se interessaram pelo presente das sociedades africanas no momento da descolonização, avaliaram que essas investigações realizadas em meados dos anos 1930 em torno de todas as pequenas comunidades dos planaltos brasileiros caracterizavam uma antropologia ultrapassada: primitivista e despolitizada. Então, os antropólogos não têm interesse que voltemos a falar de Lévi-Strauss, menos ainda sob o ângulo de sua relação com a história, e os historiadores tampouco, ao menos na França. Para os historiadores também, esses debates não são mais interessantes. Entretanto, para mim, percebo que se pode localizar em Lévi-Strauss o questionamento de uma história que se considerava a História, mas que era, na verdade, uma história local, ocidental, europeia, aquela da filosofia da história de Hegel e de Marx, e ainda de Sartre. Era interessante dizer, no momento que ele disse: a cada um a sua história, enfim. Os debates sobre a ideia de um “fora” da história, de um “na” história, ou de um “não ainda” na história etc. não têm mais nenhum sentido depois dele.

Mais diretamente, por meio de sua distinção entre as sociedades quentes e as sociedades frias (essa diferença de temperatura histórica), percebi uma sugestão que traduzi pelo conceito de regime de historicidade. Sustentar que Lévi-Strauss sempre foi atento à história e às modalidades das relações com o tempo era, de fato, uma espécie de provocação. Mas eu continuo convencido de que essa atenção em relação à história existe nele. Foi, aliás, o que fez com que Lévi-Strauss tenha me acompanhado em uma grande parte da minha vida intelectual. No fim dos anos 1960, quando eu era um iniciante, ele ocupava um lugar importante: a linguística e a antropologia estrutural estavam por cima. Depois, ao longo dos anos, ele continuou presente, com alguma distância, pois não sou um antropólogo. Ele faz, de fato, parte daqueles que eu chamei de outsiders da história e que distingo dos insiders: estes últimos são os historiadores reconhecidos, profissionais, ao passo que os outsiders são os intelectuais exteriores à disciplina e que, no entanto, por suas interrogações, suas críticas, suas considerações sobre a história desempenharam um papel importante nas problemáticas da história, mesmo que nem sempre sejam reconhecidos por isso. Lévi-Strauss foi, assim, a referência, seja explícita ou implícita, da historiografia na França entre 1960 e 1980. Braudel, inclusive, escreveu um artigo para distinguir o que era uma estrutura para os historiadores e o que ela era para um antropólogo (BraudelBRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales: la longue durée. Annales. Histoire, Sciences Sociales (Paris). v. 13, n. 4, p. 725-753, 1958., 1958). Lévi-Strauss é, então, um desses outsiders que contaram: ele faz parte de uma longa linhagem que, para mim, começa com Aristóteles e sua Poética, como lembrei no prefácio de sua tese que você me pediu para escrever.

FI: Em 1993, Lévi-Strauss escreveu um pequeno texto, “Un autre regard”, no qual ele fala do “aquecimento” das sociedades frias e do “resfriamento” das sociedades quentes. Naquele prefácio, você escreveu que o presentismo seria uma espécie de hiperaquecimento das sociedades quentes. Poderia nos explicar o que quer dizer com isso?

FH: O presentismo pode ser comparado a uma onda de calor. O tempo se torna tão rápido, tão súbito, tão precipitado que entra em fusão e tende, no limite, a desaparecer. Como grandes consumidores de energia, os computadores produzem muito calor e, finalmente, entropia. Era essa entropia ou resfriamento que Lévi-Strauss via vir. Como ele escreveu já no fim de Tristes trópicos, “um dia a inércia será definitiva”. Relidas hoje, à luz do aquecimento climático, essas páginas poderiam alimentar nossa reflexão.

FI: Os trabalhos de Dipesh Chakrabarty sobre o Antropoceno embaralharam a maneira com que comumente compreendemos as relações entre natureza e cultura, pois avançaram a hipótese segundo a qual teríamos entrado em outra época, estaríamos vivendo um momento de mudança de período histórico e geológico. Em certo sentido, esse seria um tempo novo, o tempo da Terra, marcado pelas questões climáticas. Como você vê o trabalho de Chakrabarty em relação a suas próprias pesquisas sobre o presentismo?

FH: Dipesh Chakrabarty, que reencontrei e com quem pude falar longamente em um período em que passei dando aulas em Chicago, me abriu o campo, que se desenvolve com uma rapidez fantástica, dos estudos sobre o Antropoceno. Ele próprio está engajado nessa reflexão há uma dezena de anos, desde seu artigo seminal sobre “as 4 teses sobre o clima” (Chakrabarty, 2009CHAKRABARTY, Dipesh. The climate of history: four theses. Critical Inquiry (Chicago). v. 35, n. 2, p. 197-222, 2009.). Nesse livro que acabo de concluir, Chronos, o Antropoceno está presente e o surgimento recente do Antropoceno (faz uma dezena de anos que nos inquietamos com isso), significa evidentemente a introdução do longuíssimo tempo da Terra em nossa paisagem. Estamos desorientados tanto mais que estamos mais ou menos instalados, bem ou mal, no presentismo, em que o longo futuro do regime moderno de historicidade deixou de ter seu curso. O único futuro (do presentismo) era um futuro imediato. E, de repente, surge um futuro incrivelmente longo, mas sobre o qual não temos controle.

A hipótese que desenvolvo em Chronos é a de que o tempo moderno se despregou dos limites que circunscreveram o tempo cristão. O regime cristão de historicidade é, de fato, tomado entre a Encarnação e a Parúsia, entre a Encarnação e o Apocalipse. Para os cristãos, desde os primeiros tempos do cristianismo, a Encarnação abre um tempo completamente novo que é também o começo do tempo do fim. Esse será o grande tema, poderosamente orquestrado por santo Agostinho, da antiguidade do mundo. Abre-se um tempo do fim, mas que não é (ainda) o fim dos tempos. O fim não está à disposição dos homens. Somente Deus pode decidi-lo. Essa será a mensagem constantemente retomada pela Igreja católica. Sim, o tempo do fim aproxima-se, mas ninguém sabe quando o fim intervirá. Essa estrutura singular, constitutiva do tempo ocidental, com este binômio “tempo do fim/fim dos tempos” é justamente o que os modernos fizeram desaparecer, quando eles passaram a explorar a idade da Terra. Do lado da geologia e do passado, a grande referência é Buffon, já do lado da direção do futuro, abrindo a perspectiva de um futuro “indefinido”, a grande referência é Condorcet. Desde o fim do século XVIII, o mundo moderno viveu com essa visão do tempo. Nessa escala, o presentismo não é mais que uma bolha, no interior da qual o passado e o futuro não têm mais lugar.

Mas, com o Antropoceno, se encontram simultaneamente reintroduzidos um passado muito longo e um futuro mais longo ainda. Na medida em que o Antropoceno é portador de uma catástrofe possível, é reintroduzida, do mesmo modo, a ideia de um limite, de um fim: não o fim da Terra nem o do tempo da Terra, mas o do tempo dos homens, o do tempo do mundo, o do tempo histórico. E desde que se coloca o fim, um fim ao menos possível, se introduz igualmente a ideia de um tempo do fim. Se o fim se aproxima, isso quer dizer que entramos no tempo do fim. Vem daí todas essas pessoas que, a títulos diversos, acreditam na necessidade de nos comunicar urgentemente o resultado de seus cálculos da data do fim, do colapso, da catástrofe, do Apocalipse. As denominações variam. Mas, nesse contexto, se reinstala um quadro de pensamento no qual o mundo ocidental viveu durante ao menos dezoito séculos, quadro que é marcado pelo binômio fim dos tempos/tempo do fim. É isso que me esforcei para explorar em Chronos. No fundo, o que retenho dos estudos sobre o Antropoceno (não posso dizer nada sobre o Antropoceno enquanto tal, não sou nem geólogo, nem climatólogo, nem mesmo historiador das ciências), é a possibilidade de ampliar minha reflexão sobre as relações com tempo e sobre os usos do conceito de regime de historicidade.

FI: Essa questão do tempo cristão de que você trata em seu livro Chronos faz parte de suas investigações há muito tempo...

FH: Sim, há vários anos. Eu não sabia ainda de que maneira, mas, no fundo, o tempo cristão e o regime cristão de historicidade já estavam presentes no livro Régimes d’historicité, entretanto não tinham sido ainda desenvolvidos. Eu me coloquei seriamente a seguinte questão: existe um regime cristão de historicidade? No que consistiria ele? Retomei os Apocalipses judeus e os primeiros textos do cristianismo para chegar a essa definição: o regime cristão de historicidade é um presentismo apocalíptico.

FI: Seus livros estão cheios de referências à arte e, mais particularmente, à literatura. São apontamentos que lhe permitem colocar diferentemente a questão das relações que uma sociedade tem com o tempo. Lembro, por exemplo, da relação que você propôs entre uma escultura de Anselm Kiefer, O anjo da história, e o presentismo (Hartog, 2013HARTOG, François. Croire en l’histoire. Paris: Flammarion, 2013., p. 155-161). Poderia nos falar um pouco mais sobre sua visão dessa relação entre arte e história?

FH: Minhas referências são mais em relação à literatura do que à pintura, mas, sim, penso a pintura também. Sempre fui hostil à ideia de um emprego instrumental da literatura, como se a literatura devesse fornecer documentos para a história, como se estivesse pronta para o uso dos historiadores. Os debates intermináveis sobre a história e a literatura que ressurgem periodicamente (vimos um recentemente), não são muito interessantes. Há algo que a literatura faz e que o historiador, ou todo praticante das ciências sociais, não pode fazer. De fato, o sociólogo, o geógrafo, o filósofo, assim como o historiador, chegam depois da batalha. O historiador precisa de um certo recuo para dizer o que se passou. Ele tem, inevitavelmente, um procedimento reflexivo. A coruja de Minerva só levanta voo no crepúsculo, dizia Hegel. Já o escritor, não. O que faz a grandeza e a singularidade do escritor, e também a do pintor e a do músico, é que ele busca dizer o que ainda não foi dito, pintado ou composto. Dito de outra maneira, ele não precisa desse tempo (por mais breve que seja), desse recuo, desse intervalo sem o qual o praticante das ciências sociais não pode ficar. Isso permite ao escritor apreender qualquer coisa que está acontecendo e que não foi dito ainda em palavras. O fato de buscar dizer o que não foi dito lhe dá uma liberdade maior em relação a quem está submetido a regras, a quem deve apresentar provas, referências, a fim de permitir a outros refazer o mesmo caminho. O escritor não precisa preocupar-se com toda essa aparelhagem, mas, evidentemente, assume mais riscos, uma vez que pode não apreender o que quer apreender, pode se equivocar, se perder. Ou, se o escritor renuncia a tentar dizer o que não foi dito, pode se tornar aquele que diz mais uma vez o que já foi dito, e uma boa parte da literatura ou da pintura faz isso... É essa singularidade da posição do artista que eu tento captar. Ele, necessariamente, precede o investigador. Entretanto, não sugiro uma visão romântica do artista, como se fosse mago ou profeta!

FI: Seus trabalhos e as inúmeras interrogações que você provocou testemunham a importância adquirida pelos estudos de historiografia para as pesquisas históricas (Cf. Hartog, 1990-1991HARTOG, François. Historiographie, In:Annuaire de l’École des Hautes Etudes en Sciences Sociales. Comptes rendus des cours et conférences. p. 128-129, 1990-1991., p. 128-129). Você acredita que o campo da historiografia, que foi alvo, durante muito tempo, da desconfiança dos historiadores e que foi associado à filosofia da história, finalmente adquiriu direito de cidadania na história? Qual é a situação da historiografia na paisagem universitária francesa? Como estão, hoje, os trabalhos de historiografia na França e na Europa? O que podemos, enfim, esperar das pesquisas de agora?

FH: Quando eu comecei a trabalhar, estávamos em um momento historiográfico, tomo aqui a expressão em diversos sentidos. Foi justamente o momento em que, de diversas maneiras, a abordagem reflexiva era valorizada. Isso coincidia com os primeiros questionamentos em relação ao futuro. De fato, as instituições, as disciplinas, as pessoas comuns se interrogavam sobre o seu passado. Depois da aceleração do período que foi chamado de os Trinta Gloriosos (1945-1975), foi sentida a necessidade de se fazer um balanço, de fazer uma pausa, de olhar para trás. É um momento arquivístico e genealógico, em sentido próprio. Os serviços de arquivo conheceram, então, um afluxo considerável de pessoas querendo fazer genealogia. Um segundo sentido do termo historiografia é aquele, bem estabelecido, de história da história: uma história da disciplina e de seus praticantes, tal como o desejava promover Charles-Olivier Carbonnel nos anos 1980. Um terceiro sentido, enfim, é a historio-grafia, no sentido de uma atenção dada à escrita da história, à história como prática da escrita. Esse questionamento teve como referência maior, na França, o livro L’écriture de l’histoire (1975), de Michel de CerteauCERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire. Paris: Gallimard, 1975. (Bibliothèque des Histoires). Nessa acepção, a historiografia está ligada ao lugar então ocupado pela linguística e a semiologia (o relato, o discurso, a enunciação). Para mim, estava claro que eu estava então mais interessado na questão da escrita da história, e que meu livro sobre Heródoto era a tradução desse interesse. Entretanto, não quero negligenciar, muito pelo contrário, a importância da obra de Arnaldo Momigliano, para quem a erudição historiográfica (no segundo sentido do termo) era algo muito importante.

Mas a atenção dada à dimensão da escrita da história foi fortemente questionada nos anos seguintes, quando se desenvolveu, primeiro nos Estados Unidos, o que se chamou de Linguistic turn. Na história, o debate derivou rapidamente para simplificações excessivas. Se tudo é linguagem, então o real desaparece, e não há mais diferença entre história e ficção. O campeão ou o vilão do Linguistic turn foi Hayden White, contra quem Carlo Ginzburg se posicionou. Contra aqueles que ele chamou de céticos, Ginzburg defendeu o real e a verdade da história. O ponto forte da polêmica girou em torno do negacionismo. Os negacionistas, que se proclamavam revisionistas, sustentavam que as câmaras de gás não existiram, sob pretexto de que nenhuma prova de sua existência havia sido dada e que desse fato não se podia produzir nenhum testemunho. Pierre Vidal-Naquet os chamou adequadamente de “os assassinos da memória”. Ora, se a história é somente discurso, e se o “fato tem somente uma existência linguística” (Roland Barthes), então se pode discutir se as câmaras de gás existiram ou não. Não vou retomar aqui o que escrevi sobre essa polêmica em meu livro, Croire en l’histoire. O leitor interessado pode se dirigir a ele. Resumir a argumentação em algumas frases é, de fato, difícil. Vou me dedicar aqui a um único ponto: o perigo de deslizar (mesmo sem querer) das interrogações sobre a escrita da história para posições possivelmente negacionistas colocou fim ao debate entre os historiadores. Deixamos Paul Ricoeur oficiar sobre isso como juiz de paz, em Temps et récit. Ele indicou o que se podia reter de importante em Hayden White e em que momento ele foi muito longe. Bastaria, então, nos remetermos a Ricoeur (1983RICOEUR, Paul. Temps et récit. Tome 1. Paris: Seuil, 1983.).

Hoje, me parece, estamos em um momento em que a dimensão reflexiva não interessa a mais ninguém. Vemos interesse pela emoção e pelo sensível. Fala-se, sobretudo, do “campo”, de pesquisas de “campo”, de arquivos e de identidades. “Teoria” se tornou uma palavra pesada. Até onde irá essa tendência, e quanto ela durará, eu ignoro. Nessa conjuntura, é claro que a historiografia (em todos os sentidos do termo) interessa nitidamente menos: de qual questão ela poderia ainda ser a portadora? Na Ehess, desde a minha aposentadoria, não há mais cadeira de historiografia. Este é, ao menos, um sinal.

FI: O que você poderia nos dizer em favor da historiografia?

FH: Continuo a pensar que a investigação reflexiva é absolutamente indispensável. Pode-se empreendê-la de diferentes maneiras. A historiografia pode ser entendida como participante de uma história conceitual, de uma história intelectual, de uma história das disciplinas; ela também não deve temer se reivindicar como sendo uma filosofia da história. Ao longo de minha longa pesquisa sobre as formas mutáveis das relações com o tempo que as sociedades empreenderam no curso dos séculos, eu me esforcei para fazer uma historiografia da maneira mais aberta possível, atravessando os séculos, as obras, os meios e os lugares, sem jamais perder de vista o presente enigmático: indedutível, como dizia Paul Valéry.

Références

  • BRAUDEL, Fernand. Histoire et sciences sociales: la longue durée. Annales Histoire, Sciences Sociales (Paris). v. 13, n. 4, p. 725-753, 1958.
  • CERTEAU, Michel de. L’écriture de l’histoire Paris: Gallimard, 1975. (Bibliothèque des Histoires)
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  • RICOEUR, Paul. Temps et récit Tome 1. Paris: Seuil, 1983.
  • 1
    A presente entrevista foi realizada durante a missão de pesquisa da historiadora Francine Iegelski no quadro do acordo Capes/Cofecub (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior/Comitê Francês de Avaliação da Cooperação Universitária com o Brasil), pelo projeto “Ideias em tempo de Guerra Fria: circulações intelectuais, encontros e desencontros”, coordenado pelos professores Denise Rollemberg e Olivier Compagnon.
  • 2
    [N. do T.] Sigla em francês para Diploma de Estudos Avançados, equivalente ao nosso mestrado.
  • 5
    Entrevista realizada em Paris, em 11 de novembro de 2019. Aceita para publicação em 19 de fevereiro de 2020.
  • 6
    Tradução deTiago Santos Almeida

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    09 Mar 2020
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2020
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