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SENTIDOS EM MOVIMENTO E TRABALHO DO EQUÍVOCO: UMA LEITURA DISCURSIVA DA PROPOSTA CURRICULAR NACIONAL PARA A OFERTA DE EDUCAÇÃO PLURILÍNGUE

MEANINGS IN MOTION AND THE PRODUCTION OF EQUIVOCITY: READING THE NATIONAL POLICY GUIDELINES FOR PLURILINGUAL EDUCATION FROM A DISCURSIVE PERSPECTIVE

RESUMO

Historicamente, as diversas modalidades de ensino bilíngue no Brasil não têm figurado em documentações político-educacionais regulamentadoras. Entretanto, em 2020, a proposição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, no âmbito do Conselho Nacional de Educação, pode ser compreendida como um instrumento de política linguística que visa suprir essa falta. Realizamos, neste artigo, uma análise discursiva desse documento, a partir de duas categorias: a produção de um equívoco e o efeito de (in)determinação em processos de designação. Faz parte do processo discursivo que subjaz à textualidade do documento a mobilização da memória do silenciamento de outras línguas presentes no território brasileiro, no processo de institucionalização do português como língua nacional, e o confronto com essa memória e imagem de país monolíngue. Levando em conta esse imaginário e o gesto político do documento na tentativa de abarcar situações muito distintas de ensino bilíngue (português + outra língua), postulamos que um equívoco atravessa a textualidade do documento, no tocante ao significante “educação bilíngue” ou “educação plurilíngue”, produzindo um efeito de (in)determinação na materialidade linguística. Concluímos que o equívoco indicia a contradição ao propor a homogeneização de situações distintas de ensino bilíngue e sustenta o efeito de confronto entre a indeterminação linguística (a legislação proposta pretende abarcar a educação em toda e qualquer língua falada no território nacional, além das línguas estrangeiras de prestígio) e a determinação discursiva, que faz incidir o foco da educação bilíngue sobre as línguas estrangeiras de prestígio.

Palavras-chave:
educação plurilíngue; discurso; política linguística; equívoco; designação

ABSTRACT

Historically, bilingual programs in Brazil have not figured in national educational policies. However, in 2020, the Brazilian National Council of Education issued the first draft of the National Curriculum Guidelines for Plurilingual Education, which may be interpreted as a gesture of language policy that aims to fill this gap. In this article, we read the Guidelines from a discursive perspective, based on two analytical categories: the production of equivocity and the effect of (in)determination in processes of designation. Part of the discursive process underlying the textuality of the Guidelines is to evoke a memory of silenced languages in the Brazilian territory, in the process of institutionalization of Portuguese as the national language, as well as the confrontation with this memory and image of a monolingual country. Taking into account this imaginary and the political gesture of the document in an attempt to cover very different situations of bilingual education (Portuguese + another language), we postulate that equivocity runs through the textuality of the document, regarding the signifier “bilingual education” or “plurilingual education”, thus producing an effect of (in)determination in the linguistic materiality. We conclude that the equivocity indicates the contradiction in proposing the homogenisation of distinct situations of bilingual education and sustains the effect of confrontation between linguistic indeterminacy (the proposed Guidelines are intended to encompass education in any and all languages spoken in the national territory, besides the prestigious foreign languages) and discursive determination, which sets the focus of bilingual education on prestigious foreign languages.

Keywords:
plurilingual education; discourse; language policy; equivocity; designation

INTRODUÇÃO

A ausência de uma documentação político-educacional regulamentadora das modalidades de ensino bilíngue no Brasil foi, por muito tempo, apontada por pesquisadores(as) como uma lacuna que produz efeitos nas práticas pedagógicas, nos currículos e nos processos de formação profissional docente. Trazendo contribuições pertinentes para essa discussão, Gimenez (2010GIMENEZ, T. (2010). Apresentação. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 13-25.; 2013)GIMENEZ, T. (2013). A ausência de políticas para o ensino da língua inglesa nos anos iniciais de escolarização no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A. da; TÍLIO, R.; ROCHA, C. H. (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes Editores, p. 199-218., Moura (2010)MOURA, S. de A. (2010). Educação bilíngue e currículo: de uma coleção de conteúdos a uma integração de conhecimentos. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 269-295. e Megale (2018)MEGALE, A. H. (2018). Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, v. 39, n. 2, p. 1-17. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/esp/article/view/38653. Acesso em: 3 abr. 2021.
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ressaltam o que denominamos uma “falta de espaços de regulação específica” (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.) para dois contextos de ensino da língua estrangeira no Brasil: o ensino de línguas nos anos iniciais de escolarização e o ensino de línguas no contexto de educação bilíngue de prestígio, respectivamente.

Gimenez (2010)GIMENEZ, T. (2010). Apresentação. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 13-25. menciona a contradição materializada na presença da língua inglesa no currículo dos anos iniciais de escolarização no setor privado, indicando “que as decisões curriculares podem ser afetadas não apenas pelas recomendações de câmaras técnicas de órgãos educacionais, mas também pelos ditames do mercado” (GIMENEZ, 2010GIMENEZ, T. (2010). Apresentação. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 13-25., p. 15). Além da questão curricular, tal ausência de políticas também produz efeitos no âmbito do mercado editorial de livros didáticos (GIMENEZ, 2013GIMENEZ, T. (2013). A ausência de políticas para o ensino da língua inglesa nos anos iniciais de escolarização no Brasil. In: NICOLAIDES, C.; SILVA, K. A. da; TÍLIO, R.; ROCHA, C. H. (Orgs.). Política e políticas linguísticas. Campinas: Pontes Editores, p. 199-218.), bem como na elaboração fragmentada de documentos reguladores (geralmente apenas em nível municipal), como consequência da ausência de legislação produzida pelo Estado em nível nacional.

Pensando em contextos de educação bilíngue de línguas de prestígio, Moura (2010)MOURA, S. de A. (2010). Educação bilíngue e currículo: de uma coleção de conteúdos a uma integração de conhecimentos. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 269-295. segue argumentação similar, definindo essa modalidade de ensino como “um contexto de educação bilíngue ainda não contemplado pela legislação oficial ou por políticas públicas” (MOURA, 2010MOURA, S. de A. (2010). Educação bilíngue e currículo: de uma coleção de conteúdos a uma integração de conhecimentos. In: ROCHA, C. H.; TONELLI, J. R. A.; SILVA, K. A. da (Orgs). Língua estrangeira para crianças: ensino-aprendizagem e formação docente. Campinas: Pontes Editores, p. 269-295., p. 271). Nesse sentido, a autora chama a atenção para a lacuna vinculada à formação profissional específica para atuação nesse contexto educacional, considerando a ausência de uma legislação própria para a estruturação de um currículo bilíngue.

A partir de uma perspectiva crítica, Megale (2018)MEGALE, A. H. (2018). Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, v. 39, n. 2, p. 1-17. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/esp/article/view/38653. Acesso em: 3 abr. 2021.
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apresenta um panorama de contextos de educação bilíngue no Brasil e ressalta a ausência de documentação específica que regulamente, em âmbito nacional, o ensino bilíngue em “escolas bilíngues de prestígio ou de elite”1 1 Megale (2018, p. 6) define tal contexto de ensino como uma “educação quase sempre de caráter elitista visando ao aprendizado de um novo idioma, ao conhecimento de outras culturas e à habilitação para completar os estudos no exterior.” . O recorte da análise volta-se, assim, às políticas linguísticas locais oficializadas por meio de resoluções publicadas pelos estados de Santa Catarina e do Rio de Janeiro, concluindo que ambos os documentos apresentam uma “visão monoglóssica” de língua e de educação bilíngue.

Mesmo partindo de diferentes pontos para a análise (da falta) de documentos voltados a contextos educacionais bilíngues de elite, as três autoras se aproximam ao argumentar que tal ausência produz impactos no trabalho docente, nas práticas pedagógicas e, de modo mais ampliado, também tem seus efeitos na intensificação das desigualdades no acesso à educação, uma vez que a iniciativa privada tem aumentado suas possibilidades de oferta de tal modalidade de ensino em seus currículos, justamente por conta da ausência de regulamentação. Numa perspectiva discursiva, em pesquisa anterior, analisamos tal variedade de modalidades curriculares como parte do funcionamento de instabilidades no processo de designação da “escola [realmente] bilíngue”, que identificamos como um pré-construído2 2 “O pré-construído é o traço, no nível sintático, [de] construções exteriores e pré-existentes ao enunciado, daí o efeito de evidência que ele causa (como já estando lá), em oposição ao que é construído no enunciado” (GRIGOLETTO, 2002, p. 34). que poderia ser formulado como “há ensinos mais bilíngues do que outros” (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Assim, analisamos como o efeito de legitimação da escola bilíngue opera discursivamente pela comparação com outras escolas bilíngues, a partir do funcionamento de um “modo comparativo de dizer” (GRIGOLETTO, 2011GRIGOLETTO, M. (2011). Língua inglesa na mídia brasileira: efeitos da construção de uma memória. In: CORACINI, M. J.; GHIRALDELO, C. M. (Orgs.). Nas malhas do discurso: memória, imaginário e subjetividade. Campinas: Pontes Editores, p. 297-315., p. 309), por meio do qual os sentidos de legitimação se constituem a partir de um imaginário de diferenciação, hierarquizando as escolas de acordo com o que podem oferecer como “exclusivo”, como “diferencial” no mercado.

Por outro lado, analisamos a ausência/falta como parte do funcionamento de discursividades produzindo (e produzidas por) uma falta de espaços de regulação específica para tais contextos educacionais, o que delineamos discursivamente como “espaços do silêncio do discurso político-educacional” (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Como foi possível demonstrar então, esse funcionamento discursivo era marcado predominantemente pelo jogo entre o silêncio – invisibilidade do discurso político-educacional, silenciando sentidos de oficialidade sobre o ensino bilíngue portuguêsinglês – e o dizível – visibilidade dos discursos do mercado sobre o ensino bilíngue português-inglês.

Entretanto, a recente proposição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, no âmbito do Conselho Nacional de Educação (MEC/CNE/Câmara de Educação Básica)3 3 A primeira versão do documento era intitulada Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Bilíngue. O documento ficou disponível para consulta pública entre 02 e 09 de junho de 2020. Em 18 de setembro de 2020, foi disponibilizada no Portal do MEC a versão final do Parecer e da minuta de Resolução, sob o novo título, Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, já com as alterações incorporadas após a consulta pública: http://portal.mec.gov.br/politica-de-educacao-inclusiva/apresentacao/30000-uncategorised/90801-educacao-plurilingue (Acesso em 30 de setembro de 2020). O documento, embora aprovado pelo CNE/CEB, encontra-se ainda pendente de homologação pelo MEC. , pode ser compreendida como um gesto de política linguística que produz sentidos que entram em relação com a falta de espaços de regulação específica analisada anteriormente, afetando os sentidos do discurso político-educacional, especialmente em torno das “políticas de gestão do multilinguismo” (BERGER; REDEL, 2020BERGER, I. R.; REDEL, E. (Orgs.) (2020). Políticas de gestão do multilinguismo: práticas e debates. Campinas: Pontes Editores.).

Realizamos, neste artigo, um gesto de leitura discursiva desse documento, a partir de duas categorias de análise: a produção de um equívoco e o efeito de (in)determinação em processos de designação, ambos identificados na textualidade da proposta do documento das Diretrizes.

1. CONSTITUIÇÃO HISTÓRICA DO PORTUGUÊS COMO LÍNGUA NACIONAL

Antes de passar à análise, porém, consideramos pertinente apresentar um breve resumo de algumas reflexões sobre as especificidades da constituição histórica do português como língua oficial e língua nacional no Brasil, como ponto de apoio para a compreensão do deslocamento instaurado pelo acontecimento da proposta de diretrizes para a educação plurilíngue no tocante à questão da ou das línguas que podem ou devem estar na base de todo o ensino. Como procuraremos argumentar, faz parte do processo discursivo que subjaz à textualidade do documento a mobilização da memória do silenciamento de outras línguas presentes no território brasileiro, no processo de institucionalização do português como língua nacional, e o confronto com essa memória e imagem de país monolíngue.

A institucionalização do português como língua do Brasil teve início com o processo de colonização linguística que ocorreu desde o século XVI no Brasil colônia. É Mariani (2004)MARIANI, B. (2004). Colonização linguística. Campinas: Pontes Editores. que introduz esse conceito4 4 O conceito é assim definido pela autora (MARIANI, 2004, p. 19): “A colonização linguística resulta de um acontecimento na trajetória de nações com línguas e memórias diferenciadas e sem contato. Trata-se de um processo histórico de confronto entre línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos dessemelhantes, em condições assimétricas de poder tais que a língua colonizadora tem condições políticas e jurídicas para se impor e se legitimar relativamente à(s) outra(s), colonizada(s).” e, por meio dele, analisa o processo de construção da noção historicizada “língua portuguesa” no Brasil e, de modo mais amplo, a relação da língua entre Brasil e Portugal. Embora tenha havido resistências locais, já desde a época da colônia e com a independência, o imaginário linguístico que “toma a língua portuguesa como evidência por si” (MARIANI, 2004MARIANI, B. (2004). Colonização linguística. Campinas: Pontes Editores., p. 19) como língua do Brasil ainda reverbera e produz efeitos de sentidos já dados, nas discussões sobre a língua falada no Brasil e, acrescentamos, sobre o idioma no qual o ensino deve ser conduzido na educação básica. Conforme Mariani, pelo processo de colonização linguística, impôs-se, igualmente, um silêncio sobre a diversidade e heterogeneidade de línguas existentes no território brasileiro, o que contribuiu para “a construção de um efeito homogeneizador que repercute ainda hoje no modo como se concebe a língua nacional no Brasil” (MARIANI, 2004MARIANI, B. (2004). Colonização linguística. Campinas: Pontes Editores., p. 96). Acrescentaríamos que esse efeito homogeneizador produziu duas consequências para as políticas de ensino: a ideologia do monolinguismo (fala-se uma só língua no Brasil) e da homogeneização linguística (a língua nacional é una e homogênea).

Segundo Zoppi Fontana (2013)ZOPPI FONTANA, M. G. (2013). Equívocos da/na língua oficial. In: PETRI, V.; DIAS, C. (Orgs). Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da UFSM, p. 275-295., o português, imposto como língua oficial no Brasil, sofreu um processo intenso de gramatização, que afetou a forma particular de institucionalização da língua no território brasileiro, pelo contato/confronto com as línguas indígenas e africanas e pelos movimentos literários e políticos de construção de uma identidade nacional brasileira. Aliada a esse processo, a escolarização também exerceu seu papel na

consolidação de uma unidade imaginária para essa língua, significada como língua nacional, isto é, não só como língua do Estado brasileiro, mas também da nação e povo brasileiros, representados imaginariamente na unidade e homogeneidade cultural e linguística historicamente construída para compor a evidência de uma identidade nacional. (ZOPPI FONTANA, 2013ZOPPI FONTANA, M. G. (2013). Equívocos da/na língua oficial. In: PETRI, V.; DIAS, C. (Orgs). Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da UFSM, p. 275-295., p. 279)

A escola exerce um papel importante na implementação de práticas linguísticas que contribuem para a construção do imaginário de língua nacional, una e homogênea, partilhada por todos os cidadãos. Afirma Vieira da Silva (2013, p. 301)VIEIRA DA SILVA, M. (2013). Língua nacional – escola nacional. In: PETRI, V.; DIAS, C. (Orgs). Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da UFSM, p. 297-310., “A escola é o lugar e o instrumento de regulação das práticas linguísticas e da aprendizagem generalizada, imaginariamente unificada, da língua nacional.”

Payer (2007)PAYER, M. O. (2007). Processos de identificação sujeito/língua. Ensino, língua nacional e língua materna. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes Editores, p. 113-123. reflete sobre processos de identificação entre sujeito e língua, com foco na análise de práticas de linguagem de sujeitos provenientes da imigração no Brasil. Interessa-nos destacar suas considerações sobre as formas de silêncio das línguas de imigrantes em determinadas condições históricas no país. Segundo a autora (PAYER, 2007PAYER, M. O. (2007). Processos de identificação sujeito/língua. Ensino, língua nacional e língua materna. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes Editores, p. 113-123., p. 114), houve, nos anos 1930-40, em decorrência da Segunda Grande Guerra e do Estado Novo,

a injunção a um silêncio local (censura) dos imigrantes em relação à língua e [...], tendo-se dissipado o contexto específico desse silêncio local, [...] continuou em vigor um outro processo de silenciamento, sob o modo do silêncio constitutivo, do apagamento, em relação às línguas estrangeiras, a favor do Português como língua nacional do Estado brasileiro.

O silenciamento imposto como política de línguas, em prol do português como língua nacional, que vigorou em determinadas conjunturas históricas em território nacional constitui a memória discursiva do significante silenciamento [da nossa realidade plurilinguística] na textualidade do documento sob análise, de modo que atentar para esse silenciamento histórico auxiliará na compreensão da trama de sentidos em torno desse significante.

Também Sturza (2005)STURZA, E. R. (2005). Línguas de fronteira: o desconhecido território das práticas linguísticas nas fronteiras brasileiras. Cienc. Cult. v. 57, n. 2, p. 47-50. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252005000200021&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 abr. 2021.
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toca em um processo de silenciamento, de certa forma, ao ressaltar a história de desconhecimento e escassez de pesquisas no Brasil sobre a “situação de contato das línguas portuguesa e espanhola nas zonas fronteiriças do Brasil com os demais países hispano-americanos” (STURZA, 2005STURZA, E. R. (2005). Línguas de fronteira: o desconhecido território das práticas linguísticas nas fronteiras brasileiras. Cienc. Cult. v. 57, n. 2, p. 47-50. Disponível em: http://cienciaecultura.bvs.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S000967252005000200021&lng=en&nrm=iso. Acesso em: 22 abr. 2021.
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, p. 47). Há, por exemplo, dialetos resultantes dos contatos linguísticos entre o português e o espanhol em zonas fronteiriças, ou situações de efetivo plurilinguismo pela coexistência de línguas indígenas com o português e o espanhol, tanto na região norte, em algumas localidades da bacia amazônica, quanto na região oeste, na fronteira com Bolívia e Paraguai. A pouca atenção às situações de contato linguístico em regiões de fronteira ofusca a percepção de um panorama linguístico heterogêneo, em favor de um imaginário de homogeneidade linguística resultante do estatuto do português como língua majoritária.

Sentidos da constituição do português como língua nacional e oficial no Brasil em detrimento de outras línguas presentes em território nacional exercem ainda hoje seus efeitos como memória discursiva no âmbito de políticas de ensino. Constituem, igualmente, uma memória discursiva para o funcionamento do equívoco operante na discursividade da proposta do documento, seja num movimento de confronto com essa memória, pelo resgate da diversidade linguística, seja num movimento contrário, de escamoteação dessa memória, pelo apagamento do imaginário de um país plurilíngue. Esse é o objeto da análise na seção a seguir.

2. O EQUÍVOCO DO ACONTECIMENTO DE INSTITUIÇÃO DE DIRETRIZES CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO PLURILÍNGUE

Postulamos que um equívoco atravessa a textualidade do documento, no tocante ao significante “educação bilíngue” ou “educação plurilíngue”. Postulamos também que há dois movimentos discursivos nessa textualidade no que se refere ao equívoco: ora parece ficar exposto o equívoco das diferenças de situações não passíveis de homogeneização pelo suposto termo guarda-chuva “educação bilíngue na educação básica”; ora o movimento discursivo do texto é de negação do equívoco do acontecimento.

Para Orlandi, o equívoco é um fato de discurso, é “o efeito da falha da língua inscrevendo-se na história” (ORLANDI, 2005ORLANDI, E. P. (2005). A análise de discurso em suas diferentes tradições: o Brasil. In: INDURSKY, F.; LEANDRO FERREIRA, M. C. (Orgs.). Michel Pêcheux e a análise do discurso: uma relação de nunca acabar. São Carlos: Claraluz, p. 75-88., p. 77). Explica a autora: “na língua temos a falha (sistema sujeito a falhas) e no discurso, com a produção de sentidos, temos o equívoco, ou seja, a inscrição da língua, sujeita a falhas, na história, é que produz o equívoco. O equívoco é, pois, de natureza linguístico-histórica” (ORLANDI, 2012ORLANDI, E. P. (2012). Uma tautologia ou um embuste semântico-discursivo: país rico é país sem pobreza? In: ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes Editores, p. 129-142., p. 136, nota 5).

No equívoco do significante “educação bilíngue” ou “educação plurilíngue”5 5 A oscilação entre essas duas denominações no documento será objeto de análise na próxima seção, em seus efeitos ora de determinação, ora de indeterminação. ficam mescladas situações muito distintas, cada uma com suas condições de produção específicas, sobre o ensino em duas línguas na educação básica no Brasil. Produz-se, assim, um efeito de coincidência entre as várias composições abarcadas pelo termo guardachuva “educação bilíngue” no Brasil contemporâneo, como se essas diferentes composições pudessem se suceder numa lista de substituições do par “língua portuguesa + [outra língua]”, com igual valor, semelhantes condições de funcionamento na esfera educacional e nos planos social e político e iguais necessidades e possibilidades. Um equívoco que faz parecer que as línguas à direita do sinal de + na lista a seguir possam ocupar indistintamente essa posição; e que o par “língua portuguesa + [outra língua]” possa ser regulamentado pelas mesmas disposições legais independentemente de qual seja essa outra língua.

Assim, o documento proposto dispõe sobre educação bilíngue nas seguintes composições possíveis:

EDUCAÇÃO BILÍNGUE
Língua portuguesa + Língua estrangeira (de prestígio)
Língua indígena
Língua africana
LIBRAS
Língua de imigrante ou refugiado(a)
Língua de imigração (histórica)
Língua estrangeira de país com o qual o Brasil faz fronteira

Já na seção introdutória do documento, que traz um histórico dos acontecimentos que levaram à proposta de “diretrizes curriculares nacionais para a educação plurilíngue”, menciona-se, como uma das justificativas, o “crescimento exponencial de instituições de ensino bilíngue”, situação que resultou em solicitações, ao Conselho Nacional de Educação, “sobre a necessidade de normatização” (CNE/CEB, 2020, p. 1).

Após o breve histórico, o texto segue, abordando, primeiramente, a situação da Educação Indígena e, na sequência, da Educação para Surdos. O fato de a educação indígena e a educação de surdos já contarem com legislação específica, indicada no Parecer, evidencia a singularidade de cada uma dessas modalidades. No entanto, incluídas na formulação “diretrizes para a educação bilíngue/plurilíngue”, instauram o equívoco de igualar situações distintas, embora as diferenças entre elas sejam assinaladas de várias formas na textualidade do documento.6 6 Como, por exemplo, a menção às “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, [estabelecidas] conforme Resolução CNE/CEB nº 5, de 22 de junho de 2012”, bem como às “normas específicas para a formação de professores indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio, conforme Resolução CNE/CP nº 1, de 7 de janeiro de 2015” (CNE/CEB, 2020, p. 3).

Na sequência do texto, após as seções Educação Indígena e Educação para Surdos, o documento aborda a Educação em regiões de fronteiras, em uma seção assim nomeada. Nessa parte do texto misturam-se, entretanto, situações que demandam ações educacionais bastante distintas: referências ao “programa de cooperação de escolas de fronteira” (CNE/CEB, 2020, p. 7), por meio do qual escolas situadas em uma região de fronteira oferecem ensino bilíngue composto pelas duas línguas nacionais, em cooperação entre o sistema educacional brasileiro e o do país vizinho, seguidas de referências à questão recente (sobretudo a partir de 2018) de migrantes, refugiados e solicitantes de refúgio que têm aportado no Brasil e para os quais a legislação brasileira tem concedido o direito à matrícula em escolas. Frente a essas novas demandas decorrentes da acolhida a migrantes e refugiados, observa-se, no texto, “a emergência de territórios em que o plurilinguismo trará desafios sobretudo às escolas públicas” (CNE/CEB, 2020, p. 8).

O texto prossegue com a seção Análise, em que se discorre acerca dos fundamentos legais que traçam as diretrizes e bases da educação nacional no Brasil, dentre as quais, a obrigatoriedade do “ensino fundamental regular [...] em língua portuguesa” (CNE/CEB, 2020, p. 10), conforme determinação da Constituição Federal de 1988. Argumenta-se, porém, pela necessidade de se tratar da questão da educação bilíngue pois

[...] Demandas sobre educação bilíngue/multilíngue dialogam com diversos fatores sociais, seja de ordem internacional, nacional ou regional, frequentemente em razão de peculiaridades históricas das quais a interculturalidade demanda ações do aparato legal constituído. (CNE/CEB, 2020, p. 11)

Essa justificativa é seguida de razões que parecem sustentar a proposta de regulamentação da oferta de educação plurilíngue: o “aumento da percepção [da] importância [de línguas adicionais] e [o] vislumbre de determinadas famílias de que seus herdeiros e herdeiras possam completar os estudos da educação básica ou mesmo o ensino superior fora do Brasil” (CNE/CEB, 2020, p. 11), o tipo de demandas que chegam ao CNE, “essencialmente [para as] chamadas línguas de prestígio, com destaque para o inglês” (CNE/CEB, 2020, p. 14), e a sugestão de que “o interesse [pela] educação [bilíngue] perpassa diferentes classes sociais e faixas etárias” (CNE/CEB, 2020, p. 14).

Evidenciam-se, assim, dois movimentos discursivos que compõem o processo de produção de sentidos no que se refere ao equívoco: um, o de explicitar as diferenças e particularidades das composições “língua portuguesa + [outra língua]”, fazendo com que o equívoco da denominação “educação bilíngue” venha à tona, pode-se dizer. O outro movimento é o seu oposto: não se distinguem as determinações específicas de cada projeto educacional, conforme o par de línguas que compõe uma situação de educação bilíngue na educação básica no Brasil, como se, por exemplo, as condições de exercício da educação bilíngue “português + inglês” pudessem ser semelhantes à educação bilíngue “português + língua indígena”. Essa indistinção é uma maneira de negar o equívoco.

No entanto, o equívoco trabalha o acontecimento e, queremos argumentar, instaura a contradição: educação bilíngue com qual composição de línguas? Educação bilíngue para quem? Com que objetivos? Quais são as determinações históricas e políticas de cada situação de ensino bilíngue de “língua portuguesa + [outra língua]”? Quais as necessidades e possibilidades em cada contexto específico?

Compreendendo que equívoco e contradição estão ligados, Lagazzi (2014, p. 157)LAGAZZI, S. (2014). Quando os espaços se fecham para o equívoco. Revista RUA. v. 20, Edição Especial 20 anos, p. 155-166. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/rua/article/view/8638264. Acesso em: 27 mai. 2021.
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afirma que “a contradição nos demanda nos equívocos que produz ao confrontar significante e história”. O equívoco como a falha da língua na história pode também ser observado, segundo Lagazzi, como “a contradição da história na língua”. Argumenta a autora (LAGAZZI, 2008LAGAZZI, S. (2008). A equivocidade na imbricação de diferentes materialidades significantes [Resumo]. In: XXIII Encontro Nacional da ANPOLL, Universidade Federal de Goiás (GO). Disponível em: https://dlm.fflch.usp.br/anpoll-grupo-de-trabalho-em-analise-de-discurso-0. Acesso em: 13 jun. 2021.
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):

Tomar a contradição discursivamente é se dispor ao equívoco do acontecimento do significante na história, na análise dessa materialização. O equívoco é um fato de discurso, é a falha da língua na história, afirma Orlandi. Interessante também formular o equívoco como a contradição da história na língua. O real da língua e o real da história num trabalho de entremeio. Trabalhar a contradição é levar às consequências o fato de o social não ser um objeto sujeito a soluções, mas um espaço político tenso, de constante movimento de sentidos.

Seguindo o argumento de Lagazzi, podemos afirmar que o significante “educação bilíngue” está atrelado a diferentes histórias na história da educação brasileira: da implantação da educação indígena e educação de surdos, da inauguração do projeto de educação em escolas de fronteira, nos primeiros anos deste século, da oferta de educação bilíngue de línguas de prestígio e outras. Contudo, a textualidade do documento deixa indícios de um funcionamento discursivo que opera pela busca de unidade, como se todos os projetos educacionais para educação bilíngue no Brasil contemporâneo partissem de condições estruturais semelhantes e tivessem objetivos iguais, como se houvesse simetrias entre os diferentes projetos. Obliterar as diferenças é escamotear o equívoco, não deixá-lo visível, na contradição que ele impõe, “da história na língua” (LAGAZZI, 2008LAGAZZI, S. (2008). A equivocidade na imbricação de diferentes materialidades significantes [Resumo]. In: XXIII Encontro Nacional da ANPOLL, Universidade Federal de Goiás (GO). Disponível em: https://dlm.fflch.usp.br/anpoll-grupo-de-trabalho-em-analise-de-discurso-0. Acesso em: 13 jun. 2021.
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): as diferentes histórias, com suas determinações, que irrompem no real da língua, materializando-se no equívoco do acontecimento do significante “educação bilíngue”. É um trabalho de negação do equívoco, porque apaga as determinações históricas e políticas de projetos de educação bilíngue neste país e seus consequentes desdobramentos.

Cabe também lembrar que a divisão do significante “educação bilíngue” é indício da heterogeneidade e desestabilização no interior mesmo da língua, segundo Hernández e Terriles (2014)HERNÁNDEZ, S.; TERRILES, R. (2014). Algunas reflexiones sobre la concepción del sujeto y la epistemología en el Análisis del Discurso de Michel Pêcheux. Décalages. Vol. 1, Iss. 4. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/316094659. Acesso em: 23 out. 2020.
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, condição essa que permite a produção do equívoco, da “falha da língua na história”. Hernández e Terriles (2014)HERNÁNDEZ, S.; TERRILES, R. (2014). Algunas reflexiones sobre la concepción del sujeto y la epistemología en el Análisis del Discurso de Michel Pêcheux. Décalages. Vol. 1, Iss. 4. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/316094659. Acesso em: 23 out. 2020.
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citam Pêcheux para observar “o recobrimento lógico-sistemático de regiões heterogêneas do real”. No caso do equívoco que percorre o documento, as regiões heterogêneas do real – compreendidas como situações diversas de contato entre línguas e histórias diversas de educação bilíngue no Brasil – são recobertas, com efeito de homogeneidade e unidade, pelo significante “educação bilíngue”. Podemos dizer, portanto, que o gesto político do documento, de homogeneização e unificação, se contrapõe às contingências do real, com sua heterogeneidade e dispersão.7 7 Analisando o funcionamento do discurso político-educacional e didático-pedagógico da formação de professores de inglês, Costa (2008) também observou um embate entre homogeneização e contingências, por meio de um movimento de incentivo a práticas homogeneizadoras em detrimento das contingentes. Tentativas de controle pela homogeneização visam dar menos espaço para as contingências das práticas particulares, locais e emergentes.

Dessa forma, o que se produz, discursivamente, é uma “tentativa de negar o equívoco do acontecimento” (PÊCHEUX, [1983]1990PÊCHEUX, M. (1983). Discurso: estrutura ou acontecimento. Trad. E. P. Orlandi. Campinas: Pontes Editores, 1990., p. 27), no discurso que se materializa textualmente no Parecer e no Projeto de Resolução; mais precisamente, a tentativa de negar o equívoco da formulação “Diretrizes curriculares nacionais para a educação plurilíngue”. Como consequência do processo de negação do equívoco, surgem, na textualidade do documento, (in) determinações que esfumaçam ainda mais as distinções entre projetos educacionais, entre objetivos e necessidades dos diferentes projetos, entre condições históricas e políticas distintas. A análise das (in)determinações é o foco da próxima seção deste artigo.

Materializa-se também, na textualidade do documento, o discurso da diversidade plurilinguística no Brasil e da riqueza dessa condição. Argumentamos que o sentido de valorização dessa diversidade ancora-se tanto no discurso do multilinguismo, com seu “‘reconhecimento’ imaginário” das línguas e culturas das populações minoritárias de um dado Estado nacional (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. (2007). Teorias da linguagem e discurso do multilinguismo na contemporaneidade. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes Editores, p. 53-62., p. 60), quanto nas “percepções acríticas de multiculturalismo”, que fetichizam as culturas minoritárias ou as idealizam, conforme Maher (2007, p. 261)MAHER, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, A. B.; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Linguística aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, p. 255-270.. Analisamos duas sequências discursivas para tentarmos compreender como o discurso da diversidade linguística opera pela lógica da inclusão que, assim como a lógica da indistinção e da homogeneização analisadas anteriormente, configuram um modo de funcionamento discursivo de negação do equívoco do acontecimento de instituição de diretrizes curriculares para a educação plurilíngue.

Vejamos esta sequência:

O objetivo é a superação do paradigma de silenciamento e de negação da nossa realidade plurilinguística – línguas de populações indígenas, crioula e afro-brasileiras, surdas, imigrantes. (CNE/CEB, 2020, p. 8)

Trata-se de “o objetivo” de quê? O complemento não é facilmente recuperável nos parágrafos anteriores. Certamente, não é o objetivo da educação bilíngue de línguas estrangeiras de prestígio; talvez seja o objetivo da regulamentação, operada conjuntamente pela CEB/CNE, a Defensoria Pública da União e o Instituto Articule para “a matrícula de crianças e adolescentes migrantes, refugiados, apátridas e solicitante de refúgio no sistema público de ensino brasileiro” (CNE/CEB, 2020, p. 7, itálicos no original). Conforme já observado anteriormente, a situação recente do Brasil como país acolhedor de migrantes, refugiados, apátridas e solicitantes de refúgio é descrita no item “Educação em regiões de fronteiras”, descrição essa que contribui para a indistinção, no documento, entre a implantação de projetos governamentais de escolas interculturais bilíngues em regiões de fronteira e as medidas, de certa forma emergenciais, para o acolhimento desses grupos. Ao ser trazida como argumento, a menção a migrantes etc. coloca em cena a “nossa realidade plurilinguística” e os seus “benefícios” (CNE/CEB, 2020, p. 8), o que justificaria a implementação de diretrizes para a educação bilíngue ou plurilíngue em escolas brasileiras. Na lógica discursiva da inclusão de toda e qualquer situação de plurilinguismo em território brasileiro, o sintagma “nossa realidade plurilinguística” funciona como substrato imaginário para a proposta de diretrizes que visam atender às demandas por normatização de educação bilíngue/multilíngue das chamadas línguas de prestígio. Ora, línguas estrangeiras de prestígio no Brasil contemporâneo não são parte da realidade histórica da nossa formação linguística, de modo que a exortação da “nossa realidade plurilinguística – línguas de populações indígenas, crioula e afro-brasileiras, surdas, imigrantes” não se sustenta como argumento para a instituição de escolas de educação bilíngue português + língua estrangeira de prestígio. Colocam-se em relação realidades muito distintas, determinadas histórica e politicamente por fatores muito diversos, não relacionados e, até mesmo, conflitantes, produzindo-se, assim, um movimento de obliteração das diferenças. Em mais esta ocorrência, instaura-se a contradição no equívoco do acontecimento.

Nesta outra sequência, argumenta-se igualmente contra o histórico “silenciamento de línguas e culturas” e em favor da atenção à “diversidade cultural e linguística do Brasil”.

Se no passado trilhamos percursos sombreados pelo silenciamento de línguas e culturas, buscando a exclusividade da língua portuguesa, já é tempo de rumarmos na direção de políticas educacionais de valorização, respeito e congraçamento da diversidade cultural e linguística do Brasil – que contempla centenas de línguas indígenas, pelo menos 30 de comunidades descendentes de imigrantes e as práticas linguísticas tradicionais das comunidades afro-brasileiras, em especial as quilombolas. (CNE/CEB, 2020, p. 4)

O movimento discursivo é de distanciamento tanto do passado colonial de imposição de uma língua e silenciamento de línguas autóctones quanto de outros gestos políticos, em nossa história, de desvalorização e/ou proibição de línguas africanas e línguas de imigrantes, conforme expusemos na seção precedente, sobre a constituição histórica do português como língua nacional. Contudo, o “silenciamento de línguas e culturas” que habitaram e habitam o território nacional tem reflexos possíveis em dispositivos legais de implantação de políticas de ensino e preservação dessas línguas e culturas, mas não guarda relação com a instauração de diretrizes visando à regulamentação das escolas bilíngues de línguas estrangeiras de prestígio. Mais uma vez, argumenta-se por ancoragem em um substrato imaginário ‒ a “diversidade cultural e linguística do Brasil” ‒ para justificar diretrizes que visam um contexto mais restrito de educação bilíngue.

O equívoco produzido pelo funcionamento discursivo do sintagma “educação bilíngue” ou “educação plurilíngue” é negado de forma preponderante na textualidade do documento, pelo recobrimento ou indistinção de regiões heterogêneas do real, como analisado anteriormente. Ainda assim, irrompem indícios de reconhecimento do equívoco, ou seja, de reconhecimento da contradição presente na história desse sintagma, conforme sua inscrição na discursivização sobre línguas, políticas linguísticas e ensino de línguas no Brasil.

3. “BILÍNGUE/PLURILÍNGUE”: EFEITO DE (IN)DETERMINAÇÃO EM PROCESSOS DE DESIGNAÇÃO

Como procuramos demonstrar na seção anterior, o equívoco que atravessa a textualidade do documento pode ser delineado a partir da análise de sentidos mobilizados pelos sintagmas “educação bilíngue”/“educação plurilíngue” ‒ equívoco produzido pelo processo de “inscrição da língua, sujeita a falhas, na história” (ORLANDI, 2012ORLANDI, E. P. (2012). Uma tautologia ou um embuste semântico-discursivo: país rico é país sem pobreza? In: ORLANDI, E. P. Discurso em análise: sujeito, sentido, ideologia. Campinas: Pontes Editores, p. 129-142., p. 136, nota 5). Nesta seção, compreendemos o funcionamento desse processo discursivo em seu efeito de (in)determinação da materialidade linguística oscilante da designação “bilíngue/plurilíngue”, que ora determina, ora indetermina os sentidos de ensino de línguas na educação básica no Brasil.

Ao analisar o “trabalho discursivo de construção da determinação”, Indursky ([1997] 2013)INDURSKY, F. (1997). A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013. retoma a compreensão de “processos de enunciação” proposta por Pêcheux e Fuchs ([1975] 1997)PÊCHEUX, M.; FUCHS, C. (1975). A propósito da análise automática do discurso: atualização e perspectivas (1975). Trad. Péricles Cunha. In: GADET, F.; HAK, T. (Orgs.). Por uma análise automática do discurso: uma introdução à obra de Michel Pêcheux. (1990). Trad. Bethania S. Mariani [et al.]. 3. ed. Campinas: Editora da Unicamp, p. 163-252, 1997. como “uma série de determinações sucessivas, realizadas por mecanismos sintáticos, por meio das quais o enunciado se constitui, colocando o que foi efetivamente dito, e rejeitando o que poderia ter sido dito, mas não o foi, isto é, o não dito.” (INDURSKY, [1997] 2013INDURSKY, F. (1997). A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013., p. 190). Nesse sentido, conclui Indursky ([1997] 2013, p. 189)INDURSKY, F. (1997). A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013., “o trabalho discursivo aí instaura a determinação sobre a qual é construído o processo de indeterminação”. A determinação discursiva é produto da relação da língua com a história: há o efeito de determinação de alguns sentidos (“dito”), enquanto outros sofrem o efeito de apagamento/indeterminação (“não-dito”).

A partir dessa compreensão, postulamos que o jogo determinação/indeterminação, por estar afetado pelo equívoco, constitui efeitos de sentido filiados ao discurso político-educacional sobre ensino de línguas, cujo processo histórico de nomeação foi analisado por Grigoletto (2013, p. 51 e 54)GRIGOLETTO, M. (2013). A língua inglesa em representações: imagens da língua nos discursos político-educacional e midiático e reflexos em modos de subjetivação. 185 f. Tese (Livre Docência). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo. nos seguintes termos:

[...] o gesto de indeterminação contido na denominação “Língua Estrangeira Moderna” produz um apagamento, no discurso, de denominações específicas, e “coincide” com o momento em que o inglês passou a ser quase exclusivamente a única língua estrangeira moderna ensinada nos níveis de ensino fundamental e médio no Brasil, como reflexo do domínio hegemônico dessa língua em diferentes discursividades circulantes em nossa sociedade. Assim, a “coincidência” é apenas aparente: o gesto de indeterminação que encobre deixa rastros no discurso, rastros esses que se fazem ver nas referências (ainda que pontuais, circunstanciais, ou mesmo alusivas) ao inglês no discurso político-educacional. [...] De forma mais ou menos explícita o inglês permanece, pois, significando no lugar de “Língua Estrangeira Moderna” nesse discurso, ainda que em disputa, ora com outras denominações específicas, ora com o modo indeterminado de nomeação. Assim, o sintagma “Língua Estrangeira Moderna” funciona discursivamente como um lugar de embate de sentidos nunca totalmente estabilizados, uma vez que a denominação “língua estrangeira” ou “língua estrangeira moderna” sempre pode deslizar para “inglês”.

Desse modo, a designação “língua estrangeira moderna” evoca uma memória de sentidos filiada à designação “língua inglesa”/“inglês”, tendendo a esse deslizamento. Em uma análise da textualidade da BNCC, Pfeiffer e Grigoletto (2018)PFEIFFER, C.; GRIGOLETTO, M. (2018). Reforma do Ensino Médio e BNCC : divisões, disputas e interdições de sentidos. Revista Investigações, v. 31, n. 2, dezembro. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/237561>. Acesso em: 2 fev. 2021.
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identificaram o seguinte movimento de sentidos no discurso político-educacional: da pluralidade de línguas (tendência produzida, inclusive, pelo modo indeterminado de nomeação) à determinação do inglês como única língua estrangeira a ser ofertada obrigatoriamente do 6º ano do ensino fundamental ao 3º ano do ensino médio, ou seja, “o que anteriormente figurava como possibilidade de pluralidade de línguas estrangeiras na textualidade dos documentos legais, reduziu-se à oferta de uma só língua e uma língua determinada, o inglês” (PFEIFFER; GRIGOLETTO, 2018PFEIFFER, C.; GRIGOLETTO, M. (2018). Reforma do Ensino Médio e BNCC : divisões, disputas e interdições de sentidos. Revista Investigações, v. 31, n. 2, dezembro. Disponível em: <https://periodicos.ufpe.br/revistas/INV/article/view/237561>. Acesso em: 2 fev. 2021.
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, p. 17). Similarmente, em nossa análise do documento das diretrizes em questão, o modo indeterminado da nomeação “bilíngue/plurilíngue” delimita os sentidos da designação “bilíngue/plurilíngue” ao par “português-inglês”, num processo de determinação discursiva e, ao mesmo tempo, indeterminação linguística (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Vejamos como o modo indeterminado dessas nomeações aparece na textualidade do documento das Diretrizes:

[...] é preciso estabelecer em nível nacional: princípios, conceitos, valores e orientação pedagógica para uma educação plurilíngue, seja em “escolas bilíngues/plurilíngues” ou em “programas bilíngues/plurilíngues”. (CNE/CEB, 2020, p. 8)

O crescimento de escolas que se dizem bilíngues ocorre sobretudo na rede privada [...] Essas Diretrizes objetivam orientar para a redução das desigualdades educacionais no aprendizado de línguas e culturas. (CNE/CEB, 2020, p. 14)

Contemporaneamente, operou-se a preferência pela perspectiva do bilinguismo para o plurilinguismo (CAVALLI, 20058 8 A referência, segundo consta do documento original analisado, é a seguinte: CAVALLI, M. Éducation bilingue et plurilinguisme - Le cas du Val d’Aoste, Paris: Éditions Didier, 2005. ). Ainda que haja uma plêiade de entendimento sobre o que seja um bom ensino de línguas adicionais, alguns componentes se repetem. [...] Nesse sentido, educação plurilíngue ou bilíngue implica menos o ensino de língua e mais o aprendizado da língua adicional pelo uso estruturado em conteúdos e contextos culturais relevantes. (CNE/CEB, 2020, p. 16)

Em função do objeto do documento em questão, que busca regulamentar a oferta de uma “educação plurilíngue”, predominam designações genéricas, tais como “educação plurilíngue”, “educação bilíngue/multilíngue” e “educação plurilíngue ou bilíngue”, que funcionam pelo equívoco, conforme delineamos na seção anterior. Entretanto, em diversos momentos, essas designações evocam outros sentidos, mobilizando processos de nomeação das modalidades de instituições escolares que adotam um currículo bilíngue, deslizando para “escolas bilíngues/plurilíngues” e “escolas que se dizem bilíngues”, denominações filiadas a uma memória de reconhecimento institucional, como demonstramos em pesquisa anterior (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.), e conforme veremos mais adiante nesta análise. Adicionalmente, a partir da sequência de excertos selecionados, a designação “educação plurilíngue” também mobiliza designações de currículo ou de processos de aprendizagem em si, deslizando para “programas bilíngues/plurilíngues”, “aprendizado de línguas e culturas”, “ensino de línguas adicionais” e “uso estruturado [da língua adicional] em conteúdos e contextos culturais relevantes”. Finalmente, o modo indeterminado da nomeação “educação plurilíngue” joga com sentidos que evocam processos não necessariamente vinculados a contextos educacionais, mas, sim, relacionados ao desenvolvimento linguístico envolvendo mais de uma língua: “bilinguismo” e “plurilinguismo”, por exemplo, cujas designações estão filiadas ao discurso acadêmico-científico da área da linguística.

Além dos trechos selecionados, notamos um funcionamento similar no item 3 do documento (“Recomendações ao Ministério da Educação”), no qual o deslizamento “plurilíngue-bilíngue” pode ser observado na textualidade, oscilando entre os significantes/sintagmas: “bilinguismo”, “educação plurilíngue”, “proficiência linguística”.

Analisamos, na textualidade do documento, o enunciado “escola bilíngue” como parte desse trabalho discursivo de determinação (INDURSKY, [1997] 2013INDURSKY, F. (1997). A fala dos quartéis e as outras vozes. 2. ed. Campinas: Editora da Unicamp, 2013.), que especifica/determina “bilíngue” como “duas línguas”, mas, ao mesmo tempo, rejeita o não dito “de prestígio” ou “português-inglês”, produzindo, assim o efeito de (in) determinação:

escola bilíngue

escola bilíngue [de prestígio]

escola bilíngue [português-inglês]

Interpretamos esse movimento de sentidos por meio de um exercício de leitura discursiva, que permite “considerar o que é dito em um discurso e o que é dito em outro, o que é dito de um modo, e o que é dito de outro, procurando escutar o não-dito naquilo que é dito, como uma presença de uma ausência necessária” (ORLANDI, 2002, p. 34). Ora, na textualidade do documento, o deslizamento de sentido instaurado pela coordenação aditiva “Escolas bilíngues e as Escolas internacionais” traz à tona justamente esse lugar do não dito, que funciona a partir da determinação discursiva “escola bilíngue de prestígio”, “escola bilíngue português-inglês”:

Com o crescimento exponencial de instituições de ensino bilíngues [...] (CNE/CEB, 2020, p. 1)

[...] foi constituída Comissão com o objetivo de analisar, propor e normatizar as Escolas bilíngues e as Escolas internacionais no Brasil. (CNE/CEB, 2020, p.1)

Também serão estabelecidas diferenças entre “escolas bilíngues” e “escolas internacionais”. (CNE/CEB, 2020, p. 9)

Outro momento de irrupção da determinação discursiva na textualidade do documento pode ser delineado, a partir do funcionamento da materialidade linguística, pela restritiva “que chegam ao CNE”, encadeando “educação bilíngue/multilíngue” a “línguas de prestígio” e, na mesma sequência, “inglês” e “língua franca”, produzindo efeitos de sentido de especificidade e de definição:

As demandas por normatização de educação bilíngue/multilíngue que chegam ao CNE se reportam essencialmente às chamadas línguas de prestígio, com destaque para o inglês, haja vista o seu caráter de língua franca na contemporaneidade. (CNE/CEB, 2020, p. 14)

Esse processo de designação é atravessado pelo jogo determinação/indeterminação no deslizamento de sentido instaurado pelos significantes “bilíngue/multilíngue”, de modo similar ao deslizamento produzido pelos significantes “bilíngue/plurilíngue” e “plurilíngue”, como procuramos demonstrar na análise das formulações anteriores.

O deslizamento de sentido materializado pelo/no efeito de (in)determinação plurilíngue/bilíngue aparece também na textualidade da minuta de Resolução, que compõe a segunda parte do documento.

Art. 1º A presente Resolução institui Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Plurilíngue.

Art. 2º As Escolas Bilíngues se caracterizam por promover currículo único, integrado e ministrado em duas línguas de instrução, visando ao desenvolvimento de competências e habilidades linguísticas e acadêmicas dos estudantes nessas línguas.

§ 1º Somente podem utilizar a denominação de escola bilíngue aquelas que se enquadrarem nos termos deste artigo. (CNE/CEB, 2020, p. 24, grifos nossos)

Diferentemente do Parecer, a textualidade da Resolução apresenta marcas de um “funcionamento de imposição normativa que caracteriza a lei” (ZOPPI FONTANA, 2013ZOPPI FONTANA, M. G. (2013). Equívocos da/na língua oficial. In: PETRI, V.; DIAS, C. (Orgs). Análise de discurso em perspectiva: teoria, método e análise. Santa Maria: Editora da UFSM, p. 275-295., p. 284). Assim, produz-se um efeito de disjunção de sentidos do Parecer e da Resolução, passando da predominância de definições de processos (“ensino”, “educação”) para a predominância de definições de instituições (“escolas”, “instituições”). No nível do intradiscurso, isto é, do que é enunciado, tais marcas de imposição normativa parecem funcionar a partir de movimentos retóricos filiados a um imaginário de controle dos sentidos de definição:

As Escolas Bilíngues se caracterizam por [...]

Somente podem utilizar a denominação de escola bilíngue aquelas que [...]

As Instituições educacionais [...] devem [...] para que possam ser denominadas como escolas bilíngues [...]

As Escolas que [...] não podem utilizar a denominação de escola bilíngue [...]

As Escolas [...] não se enquadram na denominação de escola bilíngue [...]

As Escolas [...], para que sejam denominadas escolas bilíngues, necessitam [...]

As Escolas Bilíngues [...] devem cumprir [...]

Quando o currículo bilíngue for oferecido de modo optativo [...] a instituição não se enquadra como escola bilíngue [...] (CNE/CEB, 2020, p. 24-25)

Tais movimentos de delimitação de sentidos parecem ancorados ao interdiscurso9 9 “O interdiscurso é o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido. Pelo conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador” (ORLANDI, 1992, p. 89-90). pela imposição de uma questão que poderia ser formulada como “o que é realmente uma escola bilíngue?”, sustentada pelo pré-construído “há ensinos mais bilíngues do que outros” (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Donde a predominância, na materialidade linguística, de termos que produzem um efeito de determinação de sentidos de diferenciação: “o que é ou o que não é bilíngue”, “o que pode ser ou o que não pode ser bilíngue”, “se não é x, então não é bilíngue”, “se é x, então é bilíngue”. O sentido de condição, inserido nas formulações, também predomina na textualidade, que poderíamos, em um exercício de paráfrase10 10 “O processo parafrástico é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz da linguagem).” (ORLANDI, [1988] 2008, p. 20, destaques da autora). Assim, enquanto procedimento analítico, o exercício de paráfrase constitui um processo por meio do qual a “superfície linguística” se transforma em um “objeto discursivo” (ORLANDI, [1999] 2002, p. 66), o que permite a interpretação/ compreensão do funcionamento de determinado processo discursivo na produção de sentidos. , formular como:

“Somente podem utilizar a denominação de escola bilíngue aquelas que y”

“As Instituições x devem y para que possam ser denominadas como escolas bilíngues”

“As Escolas que x não podem utilizar a denominação de escola bilíngue”

“As Escolas x não se enquadram na denominação de escola bilíngue”

“As Escolas x, para que sejam denominadas escolas bilíngues, necessitam y”

“As Escolas Bilíngues x devem cumprir y”

“Quando x, a instituição não se enquadra como escola bilíngue”

A partir desse exercício analítico de paráfrase, é notável que a predominância de modos de dizer de condições determinantes para a designação “escola bilíngue” instaura o apagamento de sentidos de heterogeneidade vislumbrados pela denominação “educação plurilíngue” (efeito do equívoco analisado anteriormente), e, ao mesmo tempo, por meio do não dito, coloca em funcionamento sentidos filiados ao processo de determinação discursiva que tornaria possível a nomeação “escola bilíngue português-inglês”. Entretanto, uma vez que tal nomeação não se materializa no intradiscurso, a designação mais indeterminada (“escola bilíngue”) vai se construindo pela relação com sentidos evocados por outras categorias de instituições, mencionadas na textualidade do documento como “Escolas Internacionais”, “Escolas Brasileiras com Currículo Internacional”, “Escolas com Carga Horária Estendida em Língua Adicional”:

Art. 3º As Escolas com Carga Horária Estendida em Língua Adicional não se enquadram na denominação de escola bilíngue [...] (CNE/ CEB, 2020, p. 24)

Art. 4º As Escolas Brasileiras com Currículo Internacional se caracterizam [...] (CNE/CEB, 2020, p. 24)

As Escolas Internacionais estão vinculadas a outros países [...] (CNE/CEB, 2020, p. 25)

A análise da materialidade linguística permite compreender que tal processo de nomeação é marcado por um “modo comparativo de dizer” (GRIGOLETTO, 2011GRIGOLETTO, M. (2011). Língua inglesa na mídia brasileira: efeitos da construção de uma memória. In: CORACINI, M. J.; GHIRALDELO, C. M. (Orgs.). Nas malhas do discurso: memória, imaginário e subjetividade. Campinas: Pontes Editores, p. 297-315.), que produz um efeito de legitimação institucional por meio da diferenciação, reiterando o pré-construído “há ensinos mais bilíngues do que outros” (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 262). Ao evocar essas modalidades institucionais pela comparação e pela denegação, esse processo de designação exclui da disposição legal outras modalidades arroladas na primeira parte do documento (Parecer), num jogo entre a indeterminação – a contingência histórica das diversidades linguísticas e educacionais do plurilinguismo – e a determinação – a imposição histórica e política do monolinguismo via língua nacional e/ou língua inglesa. Como postulamos, trata-se de um processo discursivo ausência-presença, funcionando a partir do efeito do equívoco histórico abordado na seção anterior.

Seguindo na análise desse processo, no item 2.3 do Parecer (“Educação bilíngue na América Latina”), o sintagma “proficiência em língua inglesa” aparece pela primeira vez, num processo de nomeação marcado mais fortemente pelo efeito de determinação: “O continente latino-americano vem se esforçando para atingir níveis de proficiência em língua inglesa mais adequados às exigências em curso.” (CNE/CEB, 2020, p. 17). De modo similar, mais adiante, no item 2.4 (Educação Plurilíngue no Brasil), a descrição do programa experimental bilíngue “Programa Rio Criança Global” apresenta as línguas nomeadas (“inglês como segunda língua”, “espanhol”, “alemão”, “francês”), suprimindo o efeito de indeterminação até então predominante no documento: “Estendendo-se da Educação Infantil ao 6º do Ensino Fundamental, eram 14 escolas com língua portuguesa e inglês como segunda língua; 11 com espanhol; 3 com alemão; e 1 com francês.” (CNE/CEB, 2020, p. 19). Em um movimento de sentidos similar, no primeiro parágrafo do item 2.5 (“BNCC e Educação plurilíngue”), a nomeação “língua inglesa” aparece vinculada à determinação normativa da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), designada especialmente como “única língua adicional obrigatória”:

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) estipulou a língua inglesa como a única língua adicional obrigatória a partir do 6º ano do Ensino Fundamental. [...] Entretanto, cumprido esse requisito, outras línguas adicionais podem ser oferecidas, [...]. A expectativa é que não somente as chamadas línguas de prestígio social estejam presentes, mas que também se faculte o aprendizado de línguas indígenas, africanas e outras. De qualquer modo, as competências e habilidades dispostas na BNCC devem constituir o arcabouço para a elaboração das diversas possibilidades de programas de educação plurilíngue do país. (CNE/CEB, 2020, p. 19)

No encadeamento textual sequenciado pela oração coordenada sindética adversativa (“entretanto…”), o efeito de determinação aparece diluído na materialidade do intradiscurso, nas designações que tendem à indeterminação: “outras línguas adicionais” e “línguas de prestígio social”. Ainda no encadeamento do mesmo parágrafo, mantém-se o efeito de indeterminação por meio da oração coordenada sindética aditiva “mas que também se faculte o aprendizado de línguas indígenas, africanas e outras”, no processo de designação em funcionamento. A parte final da concatenação do parágrafo inicia-se com o conector contrastivo “de qualquer modo”, direcionando a argumentação à ampliação de sentidos tendendo novamente à indeterminação no intradiscurso materializada no/pelo sintagma “diversas possibilidades de programas de educação plurilíngue”.

No parágrafo subsequente, iniciado novamente com uma conjunção adversativa (“entretanto”), volta a aparecer a designação “língua inglesa”, novamente ancorada na intertextualidade da BNCC, mas pela denegação11 11 Ao teorizar sobre o processo que denominou “denegação discursiva”, Indursky (1990) enfatiza as diferenças entre a denegação via psicanálise e a denegação via Análise de Discurso, definindo esta última como “aquela negação que incide sobre um elemento do saber próprio à FD que afeta o sujeito do discurso” (INDURSKY, 1990, p. 120). A partir das possibilidades oferecidas pelo espaço do dizível da formação discursiva, o sujeito nega determinado saber, que “permanece recalcado na FD, manifestando-se em seu discurso apenas através da modalidade negativa” (INDURSKY, 1990, p. 120). , manifestando o que parece “faltar” no documento normativo e, ao mesmo tempo, o que a textualidade jurídica parece querer preencher, a partir do lugar de enunciação do órgão público em questão (Conselho Nacional de Educação): a proficiência em língua inglesa.

Entretanto, a BNCC não estipulou objetivos de aprendizagem para a língua inglesa em termos de proficiência a ser atingida na educação básica. E ainda não temos referências específicas sobre a proficiência dos professores. (CNE/CEB, 2020, p. 20, grifos nossos)

Por meio da denegação (“não estipulou…”; “não temos referências…”), esses movimentos de sentidos sustentam-se no interdiscurso filiados ao “discurso da falta” (BAGHIN-SPINELLI, 2002BAGHIN-SPINELLI, D. C. M. (2002). Ser professor (brasileiro) de língua inglesa: um estudo dos processos identitários nas práticas de ensino. 210 f. Tese (Doutorado). Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas.) e ao “discurso do fracasso” (GRIGOLETTO, 2013GRIGOLETTO, M. (2013). A língua inglesa em representações: imagens da língua nos discursos político-educacional e midiático e reflexos em modos de subjetivação. 185 f. Tese (Livre Docência). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas. Universidade de São Paulo, São Paulo., p. 64). Tais discursos têm operado um processo de deslegitimação histórica das práticas de ensino e aprendizagem de língua inglesa na escola pública, reforçando a noção de que as escolas do setor privado são as únicas instituições onde o ensino da língua inglesa é “realmente” eficaz. Podemos dizer que é aí que vêm se inserir, além das escolas de idiomas, as escolas bilíngues português-inglês, conforme analisamos em pesquisa anterior (FORTES, 2016FORTES, L. (2016). Entre o silêncio e o dizível: um estudo discursivo de sentidos de bilinguismo, educação bilíngue e currículo em escolas bilíngues português-inglês. 444 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo.). Assim, dando continuidade à análise da textualidade do parecer, o discurso da falta sustenta sentidos da proficiência em língua inglesa que deve ser “alcançada”, conforme identificamos nas formulações a seguir:

O continente latino-americano vem se esforçando para atingir níveis de proficiência em língua inglesa mais adequados às exigências em curso. (CNE/CEB, 2020, p. 17)

Brasil e Argentina eram apontados como os únicos a não terem definido padrões de aprendizagem específicos para a língua inglesa – isso foi antes da BNCC. (CNE/CEB, 2020, p. 17)

Decorrentes das limitações dos modelos tradicionais de ensino, o ponto de partida que fomentou essas opções de enfrentamento ao baixo nível de proficiência em língua inglesa se assemelha [...] (CNE/CEB, 2020, p. 18)

Note-se que, no jogo determinação/indeterminação imbricado na textualidade do documento, a designação “língua inglesa” mobiliza sentidos mais determinados, filiados a uma memória (interdiscurso) constituída historicamente por gestos de políticas de línguas fortemente marcados por discursos conceitualizadores de processos de ensino e aprendizagem de “línguas estrangeiras” ou “línguas adicionais” pautados na lógica da linearidade, cuja finalidade, ou ponto de chegada, seria a “proficiência”. A noção de proficiência que emerge no documento remete a um sentido que Scaramucci (2000, p. 13)SCARAMUCCI, M. V. R. (2000). Proficiência em LE: considerações terminológicas e conceituais. Trabalhos em Linguística Aplicada. v. 36. Disponível em: https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/index.php/tla/article/view/8639310. Acesso em: 18 mai. 2021.
https://periodicos.sbu.unicamp.br/ojs/in...
analisou como “não-técnico”, ou seja, baseado “em julgamentos impressionistas”, cuja conceituação primordial “parece ter como referência o controle ou comando operacional do falante nativo ideal; portanto, uma proficiência monolítica, estável e única”.

No processo de designação em análise, pelo qual sentidos de “língua inglesa” se articulam a “padrões de aprendizagem” e “proficiência”, as representações de “educação/ensino plurilíngue” e “educação/ensino bilíngue” ficam subsumidas a representações hegemônicas que reduzem o sentido (de ensino e aprendizagem) das línguas a uma função pragmática de comunicação, filiada ao imaginário do “falante nativo ideal”. Embora predominante no processo discursivo em análise, tal categoria tem sido questionada há décadas por pesquisas no campo da Linguística Aplicada, trazendo à tona as implicações ideológicas e políticas do que se passou a designar “falácia do falante nativo” (PHILLIPSON, 1993PHILLIPSON, R. (1983). Linguistic imperialism. Oxford; New York: Oxford University Press., p. 195) ou “mito da natividade” (RAJAGOPALAN, 1997RAJAGOPALAN, K. (1997). Linguistics and the myth of nativity: comments on the controversy over ‘new/non-native’ Englishes. Journal of Pragmatics. v. 27, p. 225-231.), uma vez que tal imaginário trabalha na produção de um apagamento das especificidades das condições sócio-históricas e culturais próprias aos processos de ensino e aprendizagem.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Neste artigo, analisamos efeitos de sentido produzidos pela proposição das Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue (CNE/CEB, 2020), considerando, especialmente, o funcionamento de dois processos discursivos que permitem a compreensão das relações entre a ordem da história e a ordem da língua: por um lado, a irrupção do equívoco, da ordem do histórico, e, por outro lado, o efeito de (in)determinação em processos de designação, da ordem da materialidade linguística. O dispositivo analítico permitiu um gesto de leitura sobre tais ordens de modo imbricado, ao abordar o equívoco enquanto parte do processo de produção de sentidos no qual a língua não cessa de se inscrever na história, deixando marcas em sua materialidade, como procuramos demonstrar nos interstícios dos ditos e não ditos evocados pela opacidade de sentidos engendrados pelas designações “educação bilíngue” e “educação plurilíngue” em funcionamento na textualidade da proposta do documento em questão.

A análise discursiva corroborou a compreensão desse equívoco como processo sustentado na/pela instituição histórica do português como única língua oficial do Brasil, cujo papel na construção do imaginário do monolinguismo tem produzido efeitos nas discursividades em torno das políticas linguísticas e educacionais. Desse modo, no equívoco, dá-se a ver o embate entre a construção imaginária de um país monolíngue e a heterogeneidade linguística que existe no território nacional; e, ao mesmo tempo, o embate entre a heterogeneidade linguística historicamente constituída (línguas indígenas, africanas, de imigração etc.) e o efeito de heterogeneidade produzido por uma “retórica do multiculturalismo”, conforme Maher (2007)MAHER, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, A. B.; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Linguística aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, p. 255-270., fundada em uma perspectiva liberal e acrítica por meio da qual as relações de poder são desconsideradas, as culturas minoritárias são essencializadas, fetichizadas ou idealizadas e “as diferenças culturais são sempre trivializadas: celebra-se apenas aquilo que está na superfície das culturas (comidas, danças, música), sem conectá-las com a vida real das pessoas e de suas lutas políticas” (MAHER, 2007MAHER, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, A. B.; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Linguística aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, p. 255-270., p. 260). O equívoco, como vimos, trabalha no apagamento da disjunção entre essas duas heterogeneidades distintas, sustentando o efeito de (in)determinação nas designações analisadas.

Assim, o funcionamento do equívoco constitui o movimento do impossível da língua, no seu encontro com a história: a impossível tentativa de abarcar o “pluri”, de trazer à tona todas as possibilidades de dizer sobre as línguas e culturas que habitam o território nacional – este também efeito de um imaginário de unidade construído histórica e politicamente. Na textualidade do documento e sob a ideologia do discurso do multiculturalismo/multilinguismo (ORLANDI, 2007ORLANDI, E. P. (2007). Teorias da linguagem e discurso do multilinguismo na contemporaneidade. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes Editores, p. 53-62.), sustenta-se uma direção argumentativa de finalidade: para contemplar a multiplicidade de línguas faladas no Brasil, propõem-se diretrizes curriculares para a educação plurilíngue. Contudo, o sentido que fica subsumido a essa direção argumentativa é o do objetivo, de fato, de regulamentação da educação bilíngue de línguas estrangeiras de prestígio, com ênfase no inglês. A esse respeito, vale lembrar a observação de Orlandi (2007, p. 60)ORLANDI, E. P. (2007). Teorias da linguagem e discurso do multilinguismo na contemporaneidade. In: ORLANDI, E. P. (Org.). Política linguística no Brasil. Campinas: Pontes Editores, p. 53-62.:

[...] nas relações internacionais, pratica-se o “relativismo” cultural e linguístico, aceitando-se, como é próprio à ideologia do humanismo idealista, todas as culturas e línguas, enquanto, em outro lugar, aquele que se sustenta na estrutura de poder que realmente decide, somos dominados pelo monolinguismo da língua do poder, o inglês. Porque este tem as reais condições de se impor, de se instrumentar, de circular, de concretizar relações entre os “falantes” de diferentes lugares do mundo.

Por um lado, a expressiva instrumentalização da língua inglesa tem se imposto como um “monolinguismo do inglês”, adotado predominantemente nas políticas linguísticas e educacionais brasileiras (como na legislação curricular nacional vigente); por outro lado, tem se ampliado a circulação do discurso do multiculturalismo/multilinguismo, na perspectiva acrítica discutida por Maher (2007)MAHER, T. M. (2007). A educação do entorno para a interculturalidade e o plurilinguismo. In: KLEIMAN, A. B.; CAVALCANTI, M. C. (Orgs.). Linguística aplicada: suas faces e interfaces. Campinas: Mercado de Letras, p. 255-270., que invisibiliza algumas línguas em relação a outras, uma vez que não considera as contingências das lutas políticas para a preservação dessas línguas e culturas. Como buscamos demonstrar nesta análise, tais condições político-históricas parecem sustentar o equívoco que irrompe, incessantemente, nos deslizamentos de sentidos de “educação bilíngue” e “educação plurilíngue”; ao mesmo tempo, deixam entrever contradições que atravessam a textualidade de um documento que se propõe inaugurar diretrizes curriculares para uma educação plurilíngue.

  • 1
    Megale (2018, p. 6)MEGALE, A. H. (2018). Educação bilíngue de línguas de prestígio no Brasil: uma análise dos documentos oficiais. The Especialist, v. 39, n. 2, p. 1-17. Disponível em: https://revistas.pucsp.br/esp/article/view/38653. Acesso em: 3 abr. 2021.
    https://revistas.pucsp.br/esp/article/vi...
    define tal contexto de ensino como uma “educação quase sempre de caráter elitista visando ao aprendizado de um novo idioma, ao conhecimento de outras culturas e à habilitação para completar os estudos no exterior.”
  • 2
    “O pré-construído é o traço, no nível sintático, [de] construções exteriores e pré-existentes ao enunciado, daí o efeito de evidência que ele causa (como já estando lá), em oposição ao que é construído no enunciado” (GRIGOLETTO, 2002GRIGOLETTO, M. (2002). A resistência das palavras: discurso e colonização britânica na Índia. Campinas: Editora da Unicamp., p. 34).
  • 3
    A primeira versão do documento era intitulada Proposta de Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Bilíngue. O documento ficou disponível para consulta pública entre 02 e 09 de junho de 2020. Em 18 de setembro de 2020, foi disponibilizada no Portal do MEC a versão final do Parecer e da minuta de Resolução, sob o novo título, Diretrizes Curriculares Nacionais para a oferta de Educação Plurilíngue, já com as alterações incorporadas após a consulta pública: http://portal.mec.gov.br/politica-de-educacao-inclusiva/apresentacao/30000-uncategorised/90801-educacao-plurilingue (Acesso em 30 de setembro de 2020). O documento, embora aprovado pelo CNE/CEB, encontra-se ainda pendente de homologação pelo MEC.
  • 4
    O conceito é assim definido pela autora (MARIANI, 2004MARIANI, B. (2004). Colonização linguística. Campinas: Pontes Editores., p. 19): “A colonização linguística resulta de um acontecimento na trajetória de nações com línguas e memórias diferenciadas e sem contato. Trata-se de um processo histórico de confronto entre línguas com memórias, histórias e políticas de sentidos dessemelhantes, em condições assimétricas de poder tais que a língua colonizadora tem condições políticas e jurídicas para se impor e se legitimar relativamente à(s) outra(s), colonizada(s).”
  • 5
    A oscilação entre essas duas denominações no documento será objeto de análise na próxima seção, em seus efeitos ora de determinação, ora de indeterminação.
  • 6
    Como, por exemplo, a menção às “Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Indígena na Educação Básica, [estabelecidas] conforme Resolução CNE/CEB nº 5, de 22 de junho de 2012”, bem como às “normas específicas para a formação de professores indígenas em cursos de Educação Superior e de Ensino Médio, conforme Resolução CNE/CP nº 1, de 7 de janeiro de 2015” (CNE/CEB, 2020, p. 3).
  • 7
    Analisando o funcionamento do discurso político-educacional e didático-pedagógico da formação de professores de inglês, Costa (2008)COSTA, M. A. M. (2008). Do sentido da contingência à contingência da formação: um estudo discursivo sobre a formação de professores de inglês. 272 f. Tese (Doutorado). Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São Paulo. também observou um embate entre homogeneização e contingências, por meio de um movimento de incentivo a práticas homogeneizadoras em detrimento das contingentes. Tentativas de controle pela homogeneização visam dar menos espaço para as contingências das práticas particulares, locais e emergentes.
  • 8
    A referência, segundo consta do documento original analisado, é a seguinte: CAVALLI, M. Éducation bilingue et plurilinguisme - Le cas du Val d’Aoste, Paris: Éditions Didier, 2005.
  • 9
    “O interdiscurso é o conjunto do dizível, histórica e linguisticamente definido. Pelo conceito de interdiscurso, Pêcheux nos indica que sempre já há discurso, ou seja, que o enunciável (o dizível) já está aí e é exterior ao sujeito enunciador” (ORLANDI, 1992ORLANDI, E. P. (1992). As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. Campinas: Editora da Unicamp., p. 89-90).
  • 10
    “O processo parafrástico é o que permite a produção do mesmo sentido sob várias de suas formas (matriz da linguagem).” (ORLANDI, [1988] 2008ORLANDI, E. P. (1988). Linguagem e método: uma questão da análise de discurso. In: ORLANDI, E. P. Discurso e leitura. 8. ed. São Paulo: Cortez, p. 15-28, 2008., p. 20, destaques da autora). Assim, enquanto procedimento analítico, o exercício de paráfrase constitui um processo por meio do qual a “superfície linguística” se transforma em um “objeto discursivo” (ORLANDI, [1999] 2002ORLANDI, E. P. (1999). Análise de discurso: princípios e procedimentos. 4. ed. Campinas: Pontes Editores, 2002., p. 66), o que permite a interpretação/ compreensão do funcionamento de determinado processo discursivo na produção de sentidos.
  • 11
    Ao teorizar sobre o processo que denominou “denegação discursiva”, Indursky (1990)INDURSKY, F. (1990). Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. Cadernos de Estudos Linguísticos. v. 2, n. 19, p.117-122. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/cel/article/view/3017/4100. Acesso em: 18 out. 2015.
    http://revistas.iel.unicamp.br/index.php...
    enfatiza as diferenças entre a denegação via psicanálise e a denegação via Análise de Discurso, definindo esta última como “aquela negação que incide sobre um elemento do saber próprio à FD que afeta o sujeito do discurso” (INDURSKY, 1990INDURSKY, F. (1990). Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. Cadernos de Estudos Linguísticos. v. 2, n. 19, p.117-122. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/cel/article/view/3017/4100. Acesso em: 18 out. 2015.
    http://revistas.iel.unicamp.br/index.php...
    , p. 120). A partir das possibilidades oferecidas pelo espaço do dizível da formação discursiva, o sujeito nega determinado saber, que “permanece recalcado na FD, manifestando-se em seu discurso apenas através da modalidade negativa” (INDURSKY, 1990INDURSKY, F. (1990). Polêmica e denegação: dois funcionamentos discursivos da negação. Cadernos de Estudos Linguísticos. v. 2, n. 19, p.117-122. Disponível em: http://revistas.iel.unicamp.br/index.php/cel/article/view/3017/4100. Acesso em: 18 out. 2015.
    http://revistas.iel.unicamp.br/index.php...
    , p. 120).

REFERÊNCIAS

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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    19 Ago 2022
  • Data do Fascículo
    May-Aug 2022

Histórico

  • Recebido
    23 Jul 2021
  • Aceito
    13 Jul 2022
  • Publicado
    15 Jul 2022
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