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A investigação da natureza no Brasil Colônia

RESENHAS

PRESTES, Maria Elice Brzezinski. A investigação da natureza no Brasil Colônia. São Paulo: Annablume e Fapesp, 2000, 154p.

A leitura do livro de Maria Elice Brzezinski Prestes desperta a curiosidade e o interesse naqueles que desejam conhecer o alvorecer de nossa história científica. Com estilo suave e ao mesmo tempo profundo, convida-nos a agradável exercício de reflexão sobre o cenário intelectual ao tempo do Brasil Colônia e sobre as injunções políticas e econômicas da Coroa Portuguesa que influenciaram o trabalho dos primeiros naturalistas luso-brasileiros.1 1 Uso a expressão "luso-brasileiros" por entender que a "invenção Brasil" ainda não tinha se dado. Ao mesmo tempo, nos leva a pensar sobre outro cenário – o ambiente natural – que se colocava na frente destes primeiros naturalistas, contraste vivo com o quadro de devastação que restou das nossas florestas.2 2 A este respeito, o livro de Warren Dean – A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira (São Paulo: Cia. das Letras, 1996) – é citado como emblemático.

A proposta central do livro é analisar os caminhos percorridos pelo conhecimento científico ocidental, particularmente pela história natural, no deslocamento do seu berço europeu, e discutir o impacto causado pela diversidade dos nossos ambientes naturais sobre o desenvolvimento deste conhecimento. O leitor encontra nos dois primeiros capítulos farto material reflexivo que apresenta o desenvolvimento histórico do conhecimento biológico compondo o contexto de referência focalizado pela autora e que é fundamental para o entendimento do trabalho de dois naturalistas luso-brasileiros: Alexandre Rodrigues Ferreira e Manuel Arruda da Câmara.3 3 Alexandre Rodrigues Ferreira é apontado como o primeiro zoólogo nascido no Brasil (27.04.1756). Manuel Arruda da Câmara (1776-1811) é um exemplo de muitos luso-brasileiros do final do século XVIII que buscaram as universidades européias para sua formação acadêmica. Segundo a autora, temos uma dívida para com nossos primeiros naturalistas, cujo trabalho é escassamente conhecido. O terceiro capítulo trata da introdução da história natural em Portugal e destaca o trabalho de Domingos Vandelli, cuja importância para a formação de uma geração de naturalistas é amplamente referida no texto. A segunda parte deste capítulo é dedicada a Alexandre Ferreira, enquanto o penúltimo se ocupa em apresentar aspectos biográficos e discutir a importância do trabalho de Manuel Arruda da Câmara. Em suas conclusões, a autora destaca que o resgate do trabalho desses dois naturalistas não é apenas marcante por revelar seu pioneirismo, mas sobretudo porque reflete um caminho percorrido pela história natural em seu processo de se tornar autônoma. É uma pena que as ilustrações do livro sejam de qualidade inferior e não tragam nenhuma referência quanto à sua origem.

Nesta resenha evitarei fazer uma descrição detalhada do conteúdo desse livro; registrarei apenas algumas reflexões a respeito do seu valor cultural para o entendimento de diversas questões presentes no ensino de ciências da atualidade. Temas como ambiente, antropocentrismo e utilitarismo do mundo vivo surgem recortados nos livros didáticos e pareceu-me fascinante estabelecer relações históricas que auxiliem a compreender a recorrência desses temas no contexto escolar. Portanto, é desse lugar que pretendo redigir estes apontamentos. Embora tenha consciência de que corro o risco de oferecer uma visão simplificada de um livro muito rico e amplo, nutro esperanças de que estas reflexões tragam alguma contribuição para os estudiosos dessas temáticas.

Questão importante que o livro nos traz diz respeito aos modelos de ciência que, primariamente, influenciaram as pesquisas sobre nosso ambiente natural. Permite-nos ainda identificar numerosas fontes socioistóricas que nortearam esses estudos iniciais. Neste sentido, o livro opta por um recorte metodológico – traçando uma "relação íntima entre os relatos sobre a investigação da natureza no Brasil Colônia e a produção de história natural que se praticava no Ocidente Europeu" (p. 22) – e se propõe a investigar a influência reformista pombalina no trabalho dos dois naturalistas luso-brasileiros, nesse período histórico. Estabelece, assim, interessantes conexões que ajudam a entender a iniciativa portuguesa de incluir-se na produção científica européia, como, por exemplo a nomeação, pelo Marquês de Pombal, do naturalista Domingos Vandelli para a Universidade de Coimbra. Como Vandelli mantinha correspondência estreita com Lineu, faz-se a ponte com o pensamento científico hegemônico dessa época.

A visão dos naturalistas do século XVIII sobre o meio ambiente é marcada por um profundo espírito utilitarista, e nesse sentido a Botânica é notadamente a ciência que melhor servia a esse interesse, ao focalizar, por exemplo, a importância da utilidade médica e agrícola das espécies vegetais. Embora existissem nesse período alguns esforços em deslocar o caráter utilitarista para o conhecimento do conjunto da natureza,4 4 Um desses exemplos é John Ray, na Inglaterra. a Coroa Portuguesa dirigiu o trabalho dos naturalistas para seus interesses mercantilistas, alavancados pela influência reformista de Pombal. É importante registrar que isso não passava desapercebido aos naturalistas focalizados pela obra de Maria Elice. Para uma ciência em constituição, os interesses destas diversas ordens mesclavam-se ao seu trabalho acadêmico. Se, por um lado, o fascínio por um mundo desconhecido e as possibilidades de desenvolver o conhecimento científico eram propulsores, ao mesmo tempo esses naturalistas deixavam-se levar por objetivos econômicos dos financiadores das excursões ao ambiente brasileiro.5 5 Alexandre Rodrigues Ferreira, aluno de Domingos Vandelli, foi indicado para "chefiar uma expedição filosófica que deveria inventariar os recursos naturais que pudessem servir aos interesses da Coroa Portuguesa em seus domínios americanos". Essa foi considerada a maior expedição de cunho científico financiada pela Coroa, abrangendo o Pará, Amazonas e Cuiabá, e tendo percorrido um total de 39.000km. (p.81) Cabe lembrar que existe um risco em estabelecer as fronteiras demarcatórias destes interesses na produção científica dos séculos XVII e XVIII, e o trabalho de Maria Elice faz questão de deixar isto bem claro.

É compreensível que a produção científica decorrente desse empreendimento, ainda que notável pela identificação de inúmeras espécies novas, subordine-se ao caráter utilitarista: espécies de animais e vegetais recebem descrições que priorizam seu valor medicinal e alimentício (e portanto de interesse econômico), bem como são marcados por caracterização essencialmente antropocêntrica. Notável é a apresentação do macaco prego (Cebus apella): "meigos e dóceis, se bem que com alguma extravagância no seu afeto, pois a algumas pessoas, sem motivo real e manifesto, mostram extremada inclinação, e a outras, um implacável rancor" (p. 88). Assim, a influência do traço utilitarista domina a produção científica, tanto de Alexandre Ferreira quanto de Manuel Arruda da Câmara.6 6 No livro, a contribuição científica (e, conseqüentemente, sua influência em trabalhos de História Natural futuros) do trabalho de Manuel Arruda da Câmara é reconhecida como mais ampla, particularmente no que diz respeito às relações entre seres vivos e ambiente, o que é um deslocamento do caráter essencialmente descritivo de Alexandre Rodrigues Ferreira para princípios conservacionistas, ainda que incipientes. O destino dessa produção, entretanto, é, talvez, o desfecho mais doloroso do seu empreendimento: todo o material coletado por Ferreira se perdeu, representando o desperdício das inúmeras espécies animais e vegetais e, pior ainda, sem merecer nenhum trabalho de catalogação. Fichas e anotações misturadas com outros documentos também foram perdidas. No dizer de Maria Elice "não se formou uma coleção organizada e disponível para estudos posteriores" e "o projeto de formação do acervo de espécies da flora e fauna brasileiras para estudos naturalistas em Portugal simplesmente desvanecera" (p. 90). A autora também aponta a "política do sigilo", efetuada pelos portugueses, como razão desse insucesso acadêmico. O efeito desse desperdício também terminou por retardar o projeto de institucionalização das ciências em Portugal.

Encontramos fartos exemplos de descrições semelhantes às de Alexandre Rodrigues Ferreira em livros de ciências contemporâneos, mormente os das séries iniciais do esino fundamental. Existem numerosos registros na literatura de pesquisa sobre o ensino de ciências trazendo muitos destes exemplos: "leão como o rei na natureza", "flores para embelezar os nossos jardins", "animais úteis e nocivos", entre tantos. A questão tomou tais proporções que Carlos Drummond de Andrade, brilhantemente, focalizou-a na sua crônica "Utilidade dos animais".7 7 Carlos Drummond de Andrade. De notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 113-115. Considerado um obstáculo epistemológico para uma visão mais organicista e sistêmica de meio ambiente, as perspectivas utilitarista e antropocêntrica têm ocupado a atenção dos ambientalistas.8 8 Aqui entendido em seu sentido amplo, que inclui tanto os acadêmicos como os não-acadêmicos. Entretanto, olhar estes exemplos a partir da leitura da obra de Maria Elice é significativo para reconhecer porque os livros didáticos ainda apresentam este recorte e, quiçá, reconhecer as referências socioculturais utilizadas para a seleção desses conteúdos escolares. Considero que uma leitura atenta dessas influências deve subsidiar a análise dos conteúdos dos livros didáticos.

Outro aspecto muito bem focalizado pelo livro foi a fundação das sociedades científicas e o surgimento dos jardins botânicos e hortos no Brasil Colônia. O movimento de fundação dessas sociedades nos países que lideravam os estudos naturalistas – Inglaterra, Alemanha, França – trazem em seu bojo o incentivo às excursões científicas e a transformação dos jardins botânicos em centros de produção do conhecimento botânico. Portugal, acompanhando este movimento, tardiamente (p. 95) traz para o Brasil a fundação das sociedades científicas brasileiras. Estas percorrem caminhos entrecortados por dissoluções (sob o pretexto de conspirarem contra a Coroa Portuguesa) e, posteriormente, florescem ao tempo da transferência da Família Real, no início do século XIX. É preciso destacar que o caráter utilitarista está fortemente presente na instituição dos jardins e hortos botânicos no país: eles permitiam o cultivo de diversos tipos de "plantas úteis" e visavam garantir uma independência da compra de plantas estrangeiras a preços altos (p. 109). A finalidade de produção de conhecimento botânico e sua publicação, estimuladas por Portugal a partir da institucionalização destes espaços, servem assim mais ao "comércio de plantas". O destino de algumas das publicações desse período é desastroso: muitas delas acabaram por serem devoradas pelas traças ou vendidas como papel velho para fogueteiros (p. 98).9 9 O destino das pranchas da Flora Fluminensis, encomendadas por Pedro I e não pagas por Pedro II, tiveram destino semelhante: 3.000 exemplares de 1.640 estampas que deveriam compor as pranchas foram vendidos como papel velho pelo editor parisiense, lesado pelo descompasso entre os imperadores (p.96).

Esses exemplos apenas pretendem servir para analisar alguns dos descaminhos da produção científica no Brasil, subordinada às injunções político-econômicas que abafaram e retardaram seu lugar no cenário científico mundial. É interessante lembrar que, menos de um século à frente, Alfred Russel Walace também esteve por muitos anos na região amazônica, coletando e classificando espécies, e o estudo da diversidade do ambiente tropical serviu-lhe para a formulação da teoria da evolução (compartilhada com Charles Darwin).10 10 Uma publicação brasileira que apresenta o trabalho de Wallace no Brasil é a de autoria de Ricardo Ferreira: Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução (Brasília: Ed. UnB, São Paulo: EDUSP, 1990). Contrariamente, o caminhar científico, particularmente em relação às ciências ambientais,11 11 Opto por uma terminologia anacrônica em relação ao período estudado pela autora para expressar o esforço de entender problemas científicos atuais. sob o domínio português foi frustrante. Entender esse caminhar pressupõe a explicitação de fatores socioculturais de diversas ordens e a obra de Maria Elice serve para isto. Ao buscar esse exemplo, pretendo ilustrar a submissão das finalidades científicas às contingências sociopolíticas de sua época. Com isso visualizamos o distanciamento do caráter neutro pretendido e ilustrado pelos livros didáticos de ciências e constatamos que a visão internalista e asséptica da produção científica é uma fantasia ainda imposta aos nossos alunos.

Por último, vale comentar as influências dos trabalhos dos naturalistas portugueses para o futuro desenvolvimento da ciência ecologia. Para isso, a autora leva-nos a analisar, extensivamente, como Manuel Arruda da Câmara entendia conceitos focalizados por essa ciência e em que medida seu trabalho anteciparia os estudos posteriores. A Arruda da Câmara é atribuído o papel de "pioneiro" nas denúncias sobre a ação humana destruidora do ambiente. Entretanto, sua forma de reconhecer os prejuízos dessa ação situa-se ainda no domínio de princípios utilitaristas: o desaparecimento desta ou daquela espécie, a redução do espelho d'água de um rio etc. preocupam-lhe pelo prejuízo que causariam, a curto e a longo prazo, na capacidade produtiva desse ambiente. Em resumo, embora Manuel Arruda da Câmara tenha estabelecido algumas conexões entre animais, plantas e ambiente e tenha feito estudos de interesse biogeográficos, fortaleceu a dimensão utilitária ao compreender o ambiente como um "recurso natural". O esvaziamento do potencial heurístico de seu trabalho pode ser resumido nas anotações da autora: Manuel Arruda da Câmara "não gerou escola" (p. 140).

A investigação da natureza no Brasil Colônia pode ser tomada como um estudo histórico que nos remete a muitos dos problemas perpetualizados no cenário intelectual brasileiro, bem como aos descaminhos das nossas políticas científicas. É importante contribuição para entender o estágio em que se encontrava a história natural na Europa e, conseqüentemente, os reflexos do trabalho dos naturalistas na produção científica brasileira. Permite-nos também entender alguns dos caminhos trilhados pelo conhecimento científico até sua tradução didática e reconhecer sua complexidade.

Sandra Escovedo Selles

Faculdade de Educação da

Universidade Federal Fluminense

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    Uso a expressão "luso-brasileiros" por entender que a "invenção Brasil" ainda não tinha se dado.
  • 2
    A este respeito, o livro de Warren Dean –
    A ferro e fogo: a história e a devastação da Mata Atlântica Brasileira (São Paulo: Cia. das Letras, 1996) – é citado como emblemático.
  • 3
    Alexandre Rodrigues Ferreira é apontado como o primeiro zoólogo nascido no Brasil (27.04.1756). Manuel Arruda da Câmara (1776-1811) é um exemplo de muitos luso-brasileiros do final do século XVIII que buscaram as universidades européias para sua formação acadêmica.
  • 4
    Um desses exemplos é John Ray, na Inglaterra.
  • 5
    Alexandre Rodrigues Ferreira, aluno de Domingos Vandelli, foi indicado para "chefiar uma expedição filosófica que deveria inventariar os recursos naturais que pudessem servir aos interesses da Coroa Portuguesa em seus domínios americanos". Essa foi considerada a maior expedição de cunho científico financiada pela Coroa, abrangendo o Pará, Amazonas e Cuiabá, e tendo percorrido um total de 39.000km. (p.81)
  • 6
    No livro, a contribuição científica (e, conseqüentemente, sua influência em trabalhos de História Natural futuros) do trabalho de Manuel Arruda da Câmara é reconhecida como mais ampla, particularmente no que diz respeito às relações entre seres vivos e ambiente, o que é um deslocamento do caráter essencialmente descritivo de Alexandre Rodrigues Ferreira para princípios conservacionistas, ainda que incipientes.
  • 7
    Carlos Drummond de Andrade.
    De notícias & não notícias faz-se a crônica. Rio de Janeiro: Record, 1987, p. 113-115.
  • 8
    Aqui entendido em seu sentido amplo, que inclui tanto os acadêmicos como os não-acadêmicos.
  • 9
    O destino das pranchas da
    Flora Fluminensis, encomendadas por Pedro I e não pagas por Pedro II, tiveram destino semelhante: 3.000 exemplares de 1.640 estampas que deveriam compor as pranchas foram vendidos como papel velho pelo editor parisiense, lesado pelo descompasso entre os imperadores (p.96).
  • 10
    Uma publicação brasileira que apresenta o trabalho de Wallace no Brasil é a de autoria de Ricardo Ferreira:
    Bates, Darwin, Wallace e a teoria da evolução (Brasília: Ed. UnB, São Paulo: EDUSP, 1990).
  • 11
    Opto por uma terminologia anacrônica em relação ao período estudado pela autora para expressar o esforço de entender problemas científicos atuais.
  • Datas de Publicação

    • Publicação nesta coleção
      19 Abr 2011
    • Data do Fascículo
      Abr 2002
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