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Entre a decisão e o conselho: como a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal dificulta a instalação de uma etapa intermediária no processo penal brasileiro.

Between deciding and advising: how the Brazilian Supreme Court case law deter an intermediate stage in the criminal procedure.

Resumo

Por meio de revisão bibliográfica e do exame de acórdãos a respeito da fundamentação no recebimento da denúncia, procurei compreender como o Supremo Tribunal Federal adaptou seus discursos para dar uma resposta homogênea a diferentes formas de regular o juízo de admissibilidade da ação penal. Foi possível constatar que os diferentes esforços regulatórios para impor ônus argumentativos ao controle da viabilidade do processo são, na prática brasileira, ignorados. Quando o Supremo Tribunal Federal é provocado sobre a falta de motivação em um caso concreto, as decisões ora afirmam ser ela recomendável, mas, de acordo com seus precedentes, desnecessária; ora afirmam que um mínimo de fundamentação é necessário, e que expressões vagas e lacônicas cumprem com tal necessidade. O artigo dialoga com pesquisas empíricas recentes a respeito do recebimento da denúncia nos Tribunais Superiores e, especialmente, joga luz a algo que não pode ser naturalizado: as pessoas têm o direito de saber os motivos pelos quais o Poder Judiciário entendeu ser juridicamente válido submetê-las a um processo criminal.

Palavras-chave
Pesquisa empírica; Processo Penal; recebimento da denúncia; fundamentação; jurisprudência

Abstract

In this article, I review the literature and examine Brazilian Supreme Court rulings on the grounds for the admission of indictments. I investigate how the Court adapted its discourses on the topic to give a homogeneous response to different ways of regulating the appraisal of the viability of criminal charges. The research shows that different regulatory efforts to impose argumentative burdens on the control of the viability of criminal proceedings are, in practice, ignored. When the Brazilian Supreme Court is asked about the lack of motivation in a concrete case, the decisions sometimes state that it is advisable, but, according to its precedents, unnecessary; sometimes they state that a minimum of motivation is necessary, and that vague and laconic expressions fulfill this need. The findings dialogues with recent empirical research on the subject and, especially, sheds light on something that cannot be naturalized: people have the right to know the reasons why the Judiciary considered it valid to subject them to criminal proceedings.

Keywords
qualitative research; judicial opinion; indictment appraisal; justification; case law

1. Introdução

As próximas linhas são dedicadas à compreensão de como o Supremo Tribunal Federal julga casos em que é instado a manifestar-se sobre a necessidade de fundamentação no recebimento da denúncia. Com isso, procurei entender de que modo as normas processuais penais asseguram às pessoas processadas o direito de saber em que termos o Poder Judiciário considera a acusação contra elas como viável.

Diversas autoras e diversos autores vêm reportando que o STF “entende tratar-se de mero despacho de expediente, sem conteúdo decisório e, portanto, fora do âmbito de aplicação do art. 93, IX, da Constituição da República” (Silveira, 2010SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. Notas sobre o juízo de admissibilidade da acusação no anteprojeto de Reforma do Código de Processo Penal. In: O novo processo penal à luz da constituição: análise crítica do projeto de Lei nº 156/2009, do Senado Federal. Organização de COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda; CARVALHO, Luis Gustavo Grandinetti Castanho de. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2010.)2 2 Entre muitos outros no mesmo sentido Fernandes (2002, p. 131), Gomes Filho, (2001, p. 209) e mais recentemente, Dezem e Souza (2019, p. 144). Nota-se que mesmo entre essas descrições, os autores não são unânimes ao afirmar se o STF entende que o ato tem conteúdo decisório ou não. . Porém, do ponto de vista dogmático, os trabalhos sobre o tema publicados após a promulgação da Constituição de 1988 se manifestam amplamente em sentido contrário3 3 Para trabalhos monográficos ver Costa (2006), Pilati (2015), Peixoto Junior (2019). Marco Aurélio Nunes da Silveira já abordou o assunto em vários aspectos, inclusive quanto ao mais novo esforço de reforma processual. Por meio de estudos dogmáticos, o autor já discorreu sobre a especificidade das condições da ação penal (2016), sobre os fundamentos filosóficos-políticos para a motivação no recebimento da denúncia (2016) e, recentemente, apresentou sua proposta sobre a etapa intermediária do processo (2021). O tema já foi objeto de comentários de autores vinculados a diferentes universidades brasileiras. Cito, entre outros Coutinho (2012), Badaró (2019, p. 617), Costa e Malan (2000), Tourinho Filho (2010, p. 324), Barros (2008), Lopes Junior e Morais da Rosa (2014) e Vasconcellos (2018). . Não foi possível encontrar arrazoados sobre a tese de que um juiz não precisa motivar o recebimento da denúncia, embora tenha localizado autores contemporâneos mencionando tal entendimento4 4 É possível encontrar defesas dessa tese por meio de opiniões. Chamo de opinião um argumento cuja validade é medida a partir da credibilidade do autor e não do raciocínio por ele expresso. Nesse sentido, são afirmações como a de que “como regra, o juiz não precisa fundamentar a decisão de recebimento da denúncia ou queixa, pois se trata de mera decisão interlocutória simples. O juiz pode se limitar a receber a denúncia ou queixa” (Feitoza, 2009, p. 300). Também foi possível localizar autores afirmando “desnecessária uma maior fundamentação” na fase do art. 395 do CPP, visto não caber recurso contra tal decisão”, e que esse baixo grau de motivação seria suprido por uma fundamentação na fase do art. 399 do mesmo diploma (Lima, 2014). .

Diante desse quadro de divergência, a pergunta que o artigo procura responder é: como essa tensão entre doutrina e jurisprudência se perpetua? Essa dúvida teórica também procura contribuir com ideias sobre um problema concreto e rotineiro no Brasil de como implementar uma etapa intermediária (Silveira, 2021SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A imprescindibilidade da implementação da etapa intermediária no Processo Penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 180/2021, p. 137-162, jun. 2021.)5 5 Como aponta Silveira (2021), o conceito de etapa intermediária tem como objetivo associar algumas funções atribuídas ao juiz quando do exame de admissibilidade dos processos. Ela serve como um “diafragma” (p. 4), tanto para que seja feita uma triagem de acusações infundadas, como para impedir que o julgamento de mérito seja contaminado por elementos cognitivos obtidos sem o contraditório. Ela também serve como uma maneira de preparar o processo para um juízo de mérito, delimitando o objeto do processo, a admissibilidade de provas e a presença de outros aspectos formais da acusação (Silveira, 2021, p. 4). Ainda que se possa debater se as regras atuais do CPP já permitem essa prática institucional, ou se ela depende das alterações previstas na Lei nº 13.846/19, importa destacar que é por meio da fundamentação das decisões proferidas que se poderá avaliar a racionalidade com que as referidas tarefas foram executadas. , algo que “contribuiria para impedir a formulação de imputações precipitadas e temerárias e diminuiria, via de consequência, a impetração de habeas corpus, visando ao trancamento da ação penal por falta de justa causa” (Moura, 2001MOURA, Maria Thereza Rocha de Assis Moura. Justa causa para ação penal de natureza condenatória. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001., p. 225).

No esforço de diagnosticar o nosso problema conjuntural e de contribuir para os prognósticos sobre a implementação das reformas processuais, a ideia do artigo é elaborar hipóteses sobre fatores associados com a manutenção de um descompasso entre teoria jurídica e prática forense. Por meio de exame bibliográfico e de acórdãos do Supremo Tribunal Federal, investigo de que forma variações nos procedimentos para o juízo de viabilidade da ação penal, aparentemente, não geraram mudanças significativas no resultado de julgamentos questionando a necessidade de fundamentação.

Antes de expor, no próximo tópico, as estratégias metodológicas e o percurso dessa pesquisa primordialmente indutiva, é preciso situá-la no campo teórico. Por isso, dedico as linhas seguintes a descrever a minha leitura sobre pesquisas empíricas recentes a respeito do tema e a explicar de que forma pretendo contribuir para o diálogo acadêmico com essas autoras e autores.

2. As pesquisas empíricas sobre o recebimento da denúncia nos tribunais superiores

Inobstante existam numerosas obras descrevendo que o recebimento da denúncia não precisa ser motivado por força da jurisprudência, são escassos os trabalhos que se dedicaram a observar em detalhes os acórdãos em que esse tema foi veiculado. Para os fins deste artigo, importa destacar três pesquisas recentes tratando especificamente da questão, e de que forma elas influenciaram a análise dos dados.

Por meio de revisão bibliográfica e pesquisa jurisprudencial, e no âmbito de uma dissertação de mestrado, Aline Gidalli Pilati (2015) procurou compreender e se posicionar sobre quando deve ser considerado o recebimento da denúncia e sobre a necessidade de motivação nessa etapa.

A forma com que Pilati construiu seus argumentos, inicialmente invocando as teorias sobre a ação penal, ilustra como, subjacente ao tema da motivação no recebimento da denúncia, existe uma tomada de posição a respeito dos fins do processo penal. Construindo o seu quadro teórico a partir de uma “sucessão de teorias sobre o processo” (2015, p. 81), a autora inicia em Bülow, perpassa Goldshmidt e desembarca em Fazzalari, na ideia de um procedimento em contraditório. A partir dessas bases, a autora apresenta a sua leitura sobre o juízo de admissibilidade.

A pesquisadora recorre a esse nível de abstração para demonstrar a importância do contraditório como forma de, digo eu, co-construção da decisão judicial. A pesquisa ressalta que “de nada adiantaria conceber” esse postulado “da forma aqui defendida se não tiver o juiz o dever de fundamentar o recebimento ou a rejeição da inicial acusatória” (Pilati, 2015PILATI, Aline Guidalli. Juízo de admissibilidade da ação penal à luz da democracia processual penal: exercício do contraditório prévio e dever de motivação. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/37956?show=full, acesso em 1.ago.2021.
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, p. 79).

Ao tratar especificamente do dever de motivação, o trabalho aponta como os autores divergem quanto ao que, juridicamente, deve ser avaliado no recebimento da inicial. Ao posicionar-se sobre a interpretação dos artigos 43, 395 e 399 do CPP, o trabalho indica como a dogmática se divide quanto à existência de condições exclusivas da ação penal, ou se as condições da ação devem ser classificadas de forma semelhante às tradicionais categorias do processo civil, com adaptações (Pilati, p. 2015, p. 106-126).

Portanto, nota-se a existência de diversas soluções dogmáticas - esse é o aspecto que precisa ser destacado - para auxiliar os magistrados a participar ativamente do controle de viabilidade do processo e a justificá-lo por meio dos requisitos de aptidão da inicial e das condições da ação. Nesse ponto, importa perceber que, muito embora exista convergência sobre o dever de motivação, há divergências sobre como fazê-lo, situadas em embates sobre o que se considera como controle do exercício do poder de punir, o que se considera como mérito e as possibilidades de pré-julgamento do mérito (Pilati, 2015, p. 127-142).

Se os teóricos avançam em complexidade, a jurisprudência do STF indica que a prática jurídica não caminhou no mesmo ritmo. A autora localizou um conjunto de decisões “responsáveis por consolidar o entendimento da Corte e influenciar os demais tribunais” (p. 16), indicando como a formação da jurisprudência não foi unânime. Pelo contrário, as posições dos ministros se deram de forma dividida sem que tenha havido um pronunciamento definitivo sobre a natureza jurídica do recebimento da inicial. A autora sintetizou em cinco os argumentos utilizados nos acórdãos para justificar o entendimento da desnecessidade de motivação6 6 São eles: (i) a irrecorribilidade do ato; (ii) a sua equiparação com o despacho que ordena a citação do réu no processo civil; (iii) poder ser implícita a admissão da ação e não estar o ato alcançado pelo disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição; (iv) ser o ato mero despacho de admissão da ação penal em juízo; e (v) evitar o pré-julgamento do mérito da causa na fase do recebimento da peça acusatória. , enfrentou e rechaçou cada um deles, concluindo pela necessidade de mudança de entendimento. Defende exigir “que o magistrado reflita e decline por que concluiu pela procedência da ação penal” para, com isso, permitir “ao acusado que conheça quais elementos foram considerados pelo juiz como razão de decidir” (2015, p. 151).

Como não era escopo da sua pesquisa, a autora não tentou indicar os motivos pelos quais os acórdãos antigos continuavam sendo considerados pelos ministros como os precedentes da Corte. Se Pilati descreveu o que o STF decide e se posicionou quanto esses argumentos, meu enfoque foi em saber como o STF decide, para compreender se a corte enfrenta ou deixa de enfrentar as críticas doutrinárias atuais, bem como investigar como ela se mantém julgando com base nos precedentes antigos7 7 Não foi possível atualizar o percurso metodológico do referido trabalho porque o texto não indica como a base foi criada e como a amostra de sete acórdãos, observados em profundidade, permitiu a generalização sobre a população de “mais de mil” decisões (Pilati, 2015, p.16). Também não foi possível, em 2021, localizar um desses sete acórdãos (HC 31.078) na base de jurisprudência e de processos do site do Tribunal. .

Essa estratégia de pesquisa também pretende dialogar com os achados de Santoro, Borges Neto e Pompílio da Hora (2019)SANTORO, Antônio Eduardo Ramires; BORGES NETO, Mauro Leibir Machado; DA HORA, Nilo César Martins Pompílio. A (in)exigibilidade de fundamentação da decisão que ratifica o recebimento da denúncia: uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 13, n. 40, p. 85-113, jan./jun. 2019. https://doi.org/10.30899/dfj.v13i40.647
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. Examinando acórdãos proferidos pelo Superior Tribunal de Justiça a respeito da exigência constitucional de fundamentação das decisões que ratificam o recebimento da denúncia, os autores buscaram decisões colegiadas no banco de dados eletrônico do Tribunal, a partir de um conjunto de palavras-chave no espaço temporal entre junho de 2008 e julho de 2016. Após desprezar um grupo de decisões que entenderam irrelevantes, os autores procederam a um exame qualitativo de 54 acórdãos, dividindo os resultados em categorias.

A partir de uma exposição quanto aos pressupostos normativos adotados, no sentido da demanda constitucional (art. 93, IX, da CR) pela motivação das decisões judiciais, da natureza de decisão ao ato que ratifica o recebimento da denúncia autores e do dever de motivação explícita, os autores classificaram os resultados quanto ao que a corte disse a respeito da fundamentação.

Santoro e outros apontam como há nesse debate acórdãos que se referem ao caso concreto ou aos standards de prova para o prosseguimento da ação penal. Os autores notaram que o STJ só impõe um ônus argumentativo nas decisões que consideram os casos inviáveis e que “há uma ineficácia do instituto decorrente justamente do fato de os Tribunais, sobretudo o Superior Tribunal de Justiça, reconhecerem como satisfatórias diversas decisões cuja fundamentação é claramente questionável do ponto de vista constitucional” (p. 88). A pesquisa indicou que:

(i) o STJ atribui maior ônus argumentativo às decisões que promovem a absolvição sumária, em detrimento das que ratificam o recebimento da denúncia; (ii) por vezes, o Tribunal afirma que o ato decisório que ratifica o recebimento da denúncia possui natureza de despacho meramente ordinatório, afastando, por conseguinte, a incidência do imperativo contido no art. 93, IX, da Constituição da República; (iii) o STJ presume que o Juízo singular apreciou todas as teses defensivas, mesmo que tenha afirmado tão somente que inexistem fundamentos para a absolvição sumária; (iv) dentro do universo da pesquisa, em todas as decisões em que o STJ fez referência, ainda que indiretamente, ao material fático probatório foi para desconstituir decisão de primeira instância cuja fundamentação era completa e promovia a absolvição sumária do acusado; (v) há decisões da Corte que demonstram, ainda que implicitamente, que é inexigível a fundamentação da decisão que nega o pedido de absolvição sumária; (vi) em alguns casos a Corte decide mediante decisões dotadas apenas de justificação interna; (vii) entende o STJ que da inexistência de justificação externa da decisão que ratifica o recebimento da denúncia não se presume o exame precário das teses defensivas, mas o legítimo convencimento do magistrado; (viii) verifica-se aparente falta de coerência entre as decisões da Corte, pois ao apreciar decisões monocráticas iguais, no que se refere à motivação, obteve conclusões opostas para cada uma delas (2019, p. 110/111)8 8 Por justificativas “interna” e “externa”, os autores invocam o magistério de Gomes Filho para explicar que, nas minhas palavras, a primeira envolve um juízo de coerência e a segunda, de consistência. Quanto à primeira, “constata-se a justificação em seu primeiro nível (interno), quando não há, entre os diversos enunciados de uma decisão, qualquer incompatibilidade. Neste nível de justificação, basta que não exista uma contradição dentro do contexto da própria decisão”. Já a segunda, “é construída com base nas premissas evidenciadas pela justificação interna. Trata-se de atividade de maior complexidade, consistente em aduzir razões válidas, persuasivas, convincentes, em favor da escolha das premissas utilizadas para desenvolvimento do raciocínio decisório, tendo em vista que a natureza dessas razões variará de acordo com o tipo de premissas necessária à decisão” (2019, p. 102). .

A questão central do texto parece ser se a fundamentação que o STJ considera válida é a fundamentação a que aludem a Constituição e a dogmática processual. Mas, o grande aporte do artigo é a forma como ele captou nuances. Saindo de uma dicotomia entre decisões afirmando a insubmissão do ato ao art. 93, IX, da CR, e acórdãos que reconhecem a insuficiência de fundamentação com base nesse mandamento constitucional, os autores observaram discursos sobre decisões que atenderiam minimamente a exigência, ou que enxergaram gradações na fundamentação, afirmando a validade daquela considerada como concisa/sucinta.

Como será objeto de tópico próprio, foi por meio dessa lente de análise que procura gradientes, dessas possibilidades de construções argumentativas mais conceituais ou mais casuístas, que procurei examinar os acórdãos do STF de uma forma abrangente. Em vez de concentrar a análise nas decisões que ratificam o recebimento da inicial, procurei compreender se a mudança no texto do CPP, que criou essa etapa de contraditório, está associada com alguma mudança na forma de o STF interpretar o juízo de viabilidade da ação penal.

Mais recentemente, Uinie Caminha e outros (2021)CAMINHA, Uinie; ANDRADE, João Henrique de; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna; Decisão de admissibilidade da denúncia no Superior Tribunal de Justiça: uma pesquisa quali-quantitativa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 511 - 534, 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389
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também examinaram decisões do Superior Tribunal de Justiça a respeito da admissibilidade da denúncia. Partindo de premissas dogmáticas quanto à necessidade de fundamentação no juízo de viabilidade da ação penal e expondo a sua dinâmica, a autora e os autores se propuseram a responder “de que forma” o STJ “está se posicionando sobre o assunto”. A pesquisa então selecionou argumentos utilizados com frequência pela Corte para denegar pedidos defensivos e apresentou críticas.

No capítulo metodológico do que chamaram ser uma “pesquisa quali-quantitativa”, é possível notar que a procura de acórdãos se deu no período entre 2008 e 2019, e foram selecionados 204 acórdãos de habeas corpus e recurso em habeas corpus a partir da expressão “juízo de admissibilidade da acusação”. Extraindo as decisões que versavam sobre o rito do júri, a amostra analisada totalizou 107 acórdãos. A parte quantitativa foi uma contagem das variáveis binárias espécie processual (RHC ou HC), referência ao art. 93, IX, da CR (sim ou não) e turma responsável (5ª ou 6ª), além da variável resultado do julgamento (provido, improvido ou parcialmente provido). Além disso, a autora e os autores construíram quatro categorias a partir de expressões utilizadas nos julgados com maior frequência9 9 Foram elas: “i) in dubio pro societate; ii) a decisão de recebimento possui natureza interlocutória cautelar; iii) o juízo deve ater-se à admissibilidade da imputação; e, por último, iv) o argumento da exigência da fundamentação em concreto” (2021, p. 525). .

Inobstante a pergunta de pesquisa tenha sido descritiva (“de que forma” o STJ julga), a autora e os autores parecem ter concentrado seus esforços no plano normativo, tratando da validade jurídica dos argumentos mais frequentemente usados pelo STJ nos acórdãos que contiveram a expressão “juízo de admissibilidade”. Talvez seja por esse motivo que o artigo se limitou a afirmar uma confirmação dos achados de Santoro e outros, “no tocante à insubmissão destas decisões à necessidade de fundamentação, em descompasso com o texto constitucional” (2021, p. 522, nota de rodapé 41).

Entretanto, o confronto entre os resultados dessas duas pesquisas revela que a Corte, quando provocada a decidir sobre a validade do ato praticado pela autoridade coatora em habeas corpus, acaba com frequência fazendo o próprio juízo de admissibilidade. Nessa tarefa, o STJ tende a considerar viáveis as acusações.

Como se observa, as pesquisas conduzidas até o momento a respeito da jurisprudência quanto à necessidade de fundamentação do juízo de admissibilidade da acusação não divergem do ponto de vista dogmático. Elas apresentam um tom crítico.

Com diferenças nas estratégias metodológicas, os estudos sobre os acórdãos dos Tribunais Superiores indicam que o artigo 93, IX, da Constituição da República não é considerado como caracterizador de ônus argumentativo para os juízes de primeiro grau afirmarem a validade das acusações. Somente para rejeitar um processo é que seria necessária maior fundamentação.

As pesquisas sugerem que, para o STJ, a possibilidade de se estabelecer um contraditório prévio na resposta à acusação não alterou esse tipo de resposta institucional. Daí a necessidade de compreender se, e de que forma, a texto legal e a dogmática construída em torno dele podem induzir uma mudança no comportamento dos magistrados.

3. A construção da amostra e o percurso metodológico

Após um exame exploratório da jurisprudência e da doutrina a respeito do juízo de admissibilidade da ação penal, notei diferenças regulatórias quanto ao que deve ser feito pelo juiz quando se trata de casos envolvendo a antiga lei de falências10 10 Decreto-Lei nº 7661, de 21 de junho de 1945. No artigo 109, § 1°, constava que o juiz, se recebesse a denúncia, enviaria o caso ao juízo criminal em despacho fundamentado. Do pondo de vista de divisão de tarefas nessa etapa, é o procedimento mais semelhante possível ao que se prevê acontecer com o juiz de garantias. , o rito dos crimes praticados por funcionários públicos11 11 Arts. 513 a 518 do CPP. Nesses casos, há previsão de resposta do acusado antes do recebimento da denúncia (art. 514). , a lei de tóxicos12 12 A Lei nº 11.343/2006 também prevê uma manifestação defensiva prévia ao recebimento da denúncia (art. 55). , foro prerrogativa de função13 13 O artigo 4º da Lei nº 8.038/90 também prevê um contraditório prévio, além de estabelecer que o recebimento se dá por órgão colegiado. , e as decisões dos arts. 395 e 399 do CP14 14 Há uma intensa discussão a respeito da dinâmica do recebimento da denúncia. O importante a destacar é a previsão de um exame sobre a viabilidade do processo após a resposta à acusação. Especificamente sobre isso, ver Peixoto Júnior, (2019). . Por isso, entendi importante compreender se algum desses fatores induziu uma resposta diferente do Supremo Tribunal Federal. Nesse sentido, procurei checar se a previsão de contraditório prévio, ou do texto expresso de que a decisão deve ser fundamentada, produzem alguma diferença no resultado dos julgamentos15 15 Diante do caráter aberto das perguntas, resolvi dividir o trabalho em duas etapas: uma predominantemente qualitativa, em que o exame dos acórdãos buscou elaborar hipóteses e compreender com maiores detalhes a composição da minha amostra; e uma etapa de predomínio quantitativo, em que procurei testar estatisticamente como essas diferentes variáveis estão associadas com o universo de decisões do Tribunal. Este artigo apresenta os resultados da primeira etapa. .

O banco de dados16 16 . O banco de dados criado para essa pesquisa, contendo todas as decisões colhidas, está disponível em <https://www.openicpsr.org/openicpsr/project/166701/version/V1/view>. Ele não necessariamente reflete todos os casos em que o STF já discutiu a necessidade de fundamentação no juízo de viabilidade da denúncia. Notei em outra pesquisa a referência a “mais de mil julgados” (Pilati, 2015, p. 16). Tentando compreender como a autora chegou a esse resultado, e lendo as decisões do meu banco de dados, imaginei que ela também se refira a decisões monocráticas, ou a precedentes antigos não constantes no site do STF nem para consulta por processo, e precedentes que, embora contenham as palavras-chave, não foram selecionados na ferramenta de busca do tribunal. Embora acredite ter pesquisado com termos amplos e lido uma quantidade substancial de decisões, não chequei se as palavras-chave escolhidas contemplam o universo de vezes em que a corte se pronunciou sobre o tema. reflete uma consulta à base de jurisprudência do Supremo Tribunal Federal com os termos “recebimento E denuncia E fundamentacao”, feita no dia 10 de maio de 2021. Trata-se de 378 acórdãos: o mais antigo é o RHC 47.578, Rel. Min. Thompson Flores, publicado em 28.8.1970 e o mais recente é o RHC 114.971, Rel. Min. Marco Aurélio, publicado em 5.5.202117 17 O banco de dados não contemplou as decisões monocráticas porque o pressuposto normativo dessas decisões é a existência de jurisprudência da Corte em determinado sentido, ou seja, os dados seriam necessariamente uma saturação de um tipo de entendimento. Ainda que do ponto de vista empírico os Ministros possam decidir de forma monocrática situações não pacificadas, essa escolha permitiu que os dados, em menor número, fossem observados com maior proximidade. .

Depois de baixar os acórdãos, a primeira classificação extraiu da base 108 acórdãos que não tratavam do juízo de admissibilidade da ação penal. São temas como prisão preventiva, ilicitude de provas, vícios na sentença e excesso de prazo na tramitação de inquérito policial. Também foram retirados 51 acórdãos em que o tema era apenas tangenciado, como a competência para o recebimento em situações de crime por prerrogativa de função, nulidade do processo se o recebimento for anterior à resposta do acusado, participação de desembargador suspeito no juízo de recebimento feito pelo Tribunal etc.

Examinando as decisões mais antigas, foi possível notar que o Supremo Tribunal Federal diferenciava os crimes comuns dos crimes falimentares e havia uma Súmula18 18 Enunciado nº564 da Súmula do STF: A ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória. no sentido de que a decisão de recebimento devia ser fundamentada. São 44 acórdãos em que a Corte se debruçou sobre o recebimento da denúncia nos crimes falimentares, o mais antigo é o RHC 47.578, Min. Thompson Flores, DJ 28.8.1970 e mais o recente deles é o RHC 90.632, Rel. Min. Sepúlveda Pertence, DJ 22.6.2007. Como será mais bem desenvolvido em tópico próprio, resolvi examinar esses casos em separado porque imaginei que haveria neles um fator regulatório que impactou o entendimento da Corte.

Além disso, boa parte dos resultados (86 acórdãos) se referia a processos originários em que as palavras-chave apareceram quando a Corte estava procedendo ao juízo de viabilidade do processo criminal e não julgando como outros magistrados o fizeram. Também durante a análise, como será esclarecido em tópico próprio, resolvi não desprezar esses resultados e tentar entender se existia uma diferença entre o que os Ministros fazem nos processos originários e o que reputam ser pronunciamentos válidos de outros magistrados. Isso porque nesse tipo de caso é feito um juízo de viabilidade em colegiado, para casos específicos envolvendo autoridades de alto nível.

Restaram 89 acórdãos, que foram classificados quanto ao resultado do julgamento e categorizados quanto ao argumento de que o recebimento da denúncia precisa ou não ser fundamentado. Examinei, também, como se davam as referências à doutrina e à jurisprudência. Nas decisões que considerei típicas, procurei examinar uma a uma as referências para checar, como se verá a seguir, qual é a base argumentativa utilizada pelos Ministros.

Tabela 1
Composição do banco de dados

Como mencionei acima, a estratégia de pesquisa foi elaborada para conhecer a dinâmica de reprodução de um entendimento. Ela não trata, dogmaticamente, da validade jurídica das teses dos Ministros, e sim, quer compreender como os acórdãos mobilizam seus argumentos ao longo do tempo e quais fatores estão associados com determinadas formas de interpretar o direito19 19 Por conta disso, e para deixar a apresentação dos resultados mais limpa, as menções aos acórdãos serão feitas apenas pela classe e número do processo, sem conter a identificação do relator ou data de publicação. .

Feitas essas ressalvas, a leitora e o leitor ficam convidados a examinar um esforço de generalização desse corpus, e a consequente descrição de como o Supremo Tribunal Federal continua validando decisões vagas, adaptáveis a todo e qualquer processo. Além disso, serão apresentadas algumas condições em que, agindo assim, a corte substitui o juiz de primeiro grau no juízo sobre a viabilidade da acusação.

Passo, portanto, aos resultados do exame dos acórdãos, que se inicia por uma descrição geral da amostra e depois narra as especificidades dos acórdãos proferidos em casos falimentares e em casos de foro por prerrogativa de função. Apresento os julgados que entendi serem exceções, e, ao final, trato do corpo de acórdãos que entendi exibir determinadas características.

4. Resultados da pesquisa

A amostra efetivamente tradada e analisada contém 219 decisões, divididas entre 44 casos de crimes falimentares, 86 casos de exame de admissibilidade feitos pelo STF em ações penais originárias e 89 decisões restantes, em que o STF foi provocado a discutir algum aspecto do juízo de viabilidade da ação penal. Em apenas 3 casos desse último grupo houve a anulação do processo com base na carência de motivação20 20 Em dois outros casos tratando de ações penais originárias cujo recebimento aconteceu previamente à remessa ao STF (questões de ordem na AP 945 e na AP 933), o Tribunal apontou a necessidade de fundamentação, mas a solução jurídica não foi a anulação, e sim uma nova análise. .

Conquanto o corpus contenha uma variedade de atos relacionados ao controle de viabilidade da ação penal, os dados indicam que em todos esses tipos de casos há tolerância com decisões vagas, que se limitam a afirmar presentes os requisitos legais ou ausentes impeditivos21 21 Os acórdãos trataram tanto das decisões referentes ao artigo 395 do CPP, quanto das proferidas na fase dos arts. 397 e 399 do mesmo dispositivo, e ainda, dos recebimentos feitos em ações penais originárias por outros tribunais, aqueles feitos nos casos envolvendo tóxicos e funcionários públicos. .

A resposta institucional não foi sensível às diferenças regulatórias nos procedimentos nem à previsão na lei de que o ato deve ser feito em decisão fundamentada. Além disso, a oportunidade de a Defesa se manifestar antes do recebimento da inicial não é associada a um ônus argumentativo para que o juiz aprecie as teses defensivas ou explique os motivos ensejadores do recebimento.

4.1. Os casos excepcionais

Ao observar em decisões mais antigas a ressalva de que “os precedentes do Supremo Tribunal Federal” só “exigem” a fundamentação nos casos de crimes falimentares (HC 68.302, AG no AI no RE 158.880)22 22 Os 45 acórdãos que tratam de crimes falimentares correspondem a decisões publicadas entre 26.8.1970 (HC 47.578) e 22.6.2007 (RHC 90.632). , imaginei ser possível localizar algum indutor de uma resposta institucional diferente quanto ao recebimento da denúncia.

Nesse tipo de caso, a lei de regência (DL 7.661/45) era expressa no sentido de que o ato seria fundamentado e, especialmente, havia uma diferenciação entre o juiz que avaliava a admissibilidade do processo e aquele que conduzia a instrução, tal qual ocorrerá caso o STF não considere inconstitucional a figura do juiz de garantias.

Além disso, no rito próprio, havia uma manifestação defensiva prévia (art. 109), tal como dispõe o artigo 516 do CPP para o procedimento que envolve funcionários públicos. Mas, especificamente nesse tipo de casos, havia um outro fator: em março de 1977 foi publicado o Enunciado nº 564 da Súmula do STF no sentido de que “a ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória23 23 Na época, o Plenário havia se manifestado sobre a invalidade de “despacho não fundamentado” (HC 54.216). .

Por conta desses achados, decidi examinar em separado os acórdãos envolvendo crimes falimentares e procurar na amostra como os diferentes inputs regulatórios poderiam estar associados com os outputs decisórios. Afinal, como disse acima, dada a pluralidade de procedimentos, as diferenças no plano normativo poderiam acarretar diferentes respostas do Tribunal. A princípio, algo na antiga Lei de Falências teria induzido a Corte a fazer uma diferenciação e a exigir decisões motivadas no recebimento da denúncia.

No entanto, mesmo sob vigência de uma Súmula, os acórdãos continuaram reputando como válidas decisões vagas24 24 Por decisões vagas, refiro-me àquelas lacônicas, que por exemplo, afirmam constituírem, em tese, crimes, os fatos descritos na denúncia, ou que estão presentes os requisitos do art. 41 do CPP. Minha referência sobre o que é uma decisão vaga, neste artigo, é o art. 315, § 2º do CPP: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”. 25 25 É importante situar o leitor para os limites das inferências possíveis a partir dos dados. Não é possível, a partir deles, descrever como juízes em primeiro grau decidem, apenas afirmar que determinados tipos de decisão submetidos ao Supremo Tribunal Federal foram reputados como válidos. O exame se deu a partir dos acórdãos, e não do inteiro teor de processos, então só é possível compreender o que fora decidido pelo juízo em primeiro grau a partir da transcrição ou menção a dessas decisões nos acórdãos. É possível ver passagens com a reprodução da decisão, em aspas, tal como ocorreu no RHC 67.033: “verifico, pelo exame destes autos de inquérito judicial, que a narrativa constante da denúncia ofertada pelo Dr. Curador Fiscal de Massas Falidas, ajusta-se ao conteúdo dos autos, e que os fatos nela descritos amoldam-se ao tipo de conduta previsto no art. 188, III, da Lei de Falências. Diante disso, recebo a denúncia (...)”. Também é possível encontrar menções como a feita no HC 64.499 “vê-se às fls. 14 que ao receber a denúncia o Magistrado se reportou o inquérito judicial consignando que os crimes imputados restaram plenamente evidenciados no procedimento investigatório. Trata-se de despacho sucinto (...)”. Há ainda situações em que o contexto indica como fora procedido o exame da denúncia, como no HC 65.368, em que o acórdão cita decisão do Tribunal de Justiça que, por sua vez, relata que a impetração afirmava que o recebimento era infundado porque não apreciou um pedido defensivo requerido pela defesa, e afirma que “o juiz de direito não estava obrigado a apreciar o pedido de realização de perícia, podendo indeferi-lo implicitamente, com a determinação de abertura de vista dos autos ao Ministério Público, que deliberou ofertar denúncia desde logo, em demonstração inequívoca que um e outro estavam satisfeitos com os dados existentes nos autos”. Para que a leitora e o leitor possam se aprofundar na descrição dos possíveis matizes do juízo de admissibilidade feito em primeiro grau, o banco de dados com as decisões está disponível em <https://www.openicpsr.org/openicpsr/project/166701/version/V1/view>. . A hipótese inicial de que algum fator no procedimento Lei de Falências estaria associado com um maior rigor na apreciação da validade dos atos judiciais foi descartada.

Interpretando a norma, as decisões afirmam ser “desnecessário repetir o que já se encontra declarado na denúncia” (HC 63.528). Os pronunciamentos vagos foram considerados como fundamentação “sintética”. Quanto ao sentido da Súmula, a “ausência” de fundamentação foi interpretada como a “total falta”, e “não é o mesmo que fraca, deficiente, muito pouca, quase nenhuma fundamentação. Ausência de fundamentação é igual a fundamentação nenhuma. Nada de fundamentação” (RHC 59.641, grifos do original).

Contrariando parecer da Procuradoria-Geral da República, o Supremo entendeu fundamentado, embora mediante “despacho muito resumido”, um ato que referiu ter sido atribuída a “prática dos fatos delituosos apontados na denúncia de fls” aos acusados, e complementa: “Recebo a denúncia” (RHC 60.058)26 26 No mesmo sentido, entre outros HC 79.106, RHC 60.030. Em sentido contrário RE115.000 (interposto pelo Ministério Público contra decisão que invalidou recebimento da inicial). .

Não foi possível, no escopo desse trabalho, compreender se o fato de não haver acórdãos recentes na base de dados se deve a mudanças no regime de recuperações judiciais, a mudanças na redação do artigo procedimental que não mais continha a expressão “fundamentada” (art. 185), a mudanças quanto à autoridade responsável por esse ato ou, mesmo, a limitações das palavras-chave.

Porém, esses achados indicam como a divisão de tarefas entre juízes, a menção expressa quanto à necessidade de fundamentação, a previsão de oferecimento de uma resposta defensiva prévia e a edição de uma Súmula não estão associadas com a invalidade de decisões vagas no rito da lei de falências. Esses fatores apenas serviram como argumento para que a Corte justificasse a validade de decisões infundadas em casos que tramitaram no rito ordinário.

4.1.1. O Supremo Tribunal Federal sabe identificar o que não é fundamentado e os problemas da vagueza.

Foi possível localizar, entre todas as decisões analisadas, três que anulam processos afirmando a necessidade de fundamentação no recebimento da inicial (HC 75.846, HC 76.256 e RE 456.673). Em comum, as três decisões se referem a juízos de admissibilidade feitos por Tribunais em situações envolvendo autoridades com foro por prerrogativa de função, e não pelo juízo de primeiro grau.

Os acórdãos proferidos nos HCs 75.846 e 76.256 não são exceções só pelo resultado do julgamento, embora os argumentos dos votos condutores continuem sendo reproduzidos atualmente. Eles mencionam como é possível distinguir uma decisão válida e localizam quais as consequências de manter um processo iniciado por um recebimento vago.

Diz o primeiro que isso deve ocorrer mesmo nos casos em que o recebimento da denúncia se dá pelo juízo singular. Examinando uma decisão que mencionava apenas a presença de “todos os requisitos formais mencionados no art. 41 do CPP”, o acórdão afirma ser “tão elevados os níveis de abstração e generalidade desta decisão, que ela pode ser utilizada, por cópia impressa ou xerográfica, para o recebimento de toda e qualquer denúncia apresentada ao Poder Judiciário, em qualquer nível de jurisdição, sem a mínima restrição”.

No HC 76.256, que ressalva ser específico quanto às ações penais originárias, pois nos casos comuns “não há contraditório”, o voto condutor menciona jurisprudência no sentido de dispensar fundamentação, ressaltando a necessidade de indagar tal entendimento a partir do art. 93, IX, da CR. O voto ressalva que “a melhor prova da ausência de motivação de um julgado é que a frase enunciada, a pretexto de fundamentá-lo, sirva, por sua vaguidão, para a decisão de qualquer outro caso”. Por fim, menciona como consequências da ausência de motivação que o Tribunal passa a atuar mediante supressão de instância e com uma cognição diminuída sobre as teses defensivas, eis que se trata de habeas corpus27 27 Esses dois aspectos serão desenvolvidos adiante. .

O terceiro caso se refere a um recurso extraordinário interposto contra decisão que, de forma lacônica, deu provimento a um recurso em sentido estrito que, por sua vez, anulara a rejeição de uma denúncia. O recurso não foi conhecido, mas fora concedido habeas corpus de ofício para que a Corte a quo avaliasse todos os requisitos de viabilidade da ação, e não apenas afirmasse um ponto no qual entendeu que a rejeição não se sustentava.

Essa particularidade de os resultados outliers terem em comum o fato de serem proferidos contra decisões de Tribunais me fez voltar a dados que haviam sido desprezados em um primeiro momento. São 86 acórdãos em que os Ministros discutem a viabilidade dos processos no âmbito de recebimento da denúncia em casos de ação penal originária. Esses acórdãos foram selecionados para a base de dados por conterem as palavras-chave “recebimento E denúncia E fundamentação”, mas não abordam especificamente a necessidade ou não de fundamentação.

Não se trata, portanto, nem do universo de decisões em que o Supremo Tribunal Federal avaliou a viabilidade de ações penais originárias, e nem de uma amostra completamente aleatória extraída desse universo. Entretanto, não reputei ter havido um viés de seleção na circunstância de os acórdãos conterem essas três palavras. Por isso, resolvi checar o resultado desses julgamentos.

A amostra apresentou 37 recebimentos da denúncia (43,02%), 38 rejeições (44,18%) e 11 rejeições parciais (12,78%). Por falta de dados, não foi possível comparar se existe uma diferença significativa entre a média de rejeição nos casos originários e a média quando o exame de viabilidade é feito por juízes de primeiro grau. Além disso, do ponto de vista normativo, essa diferença não é necessariamente boa ou ruim, ela dependeria de exames adicionais para se compreender se o exame de viabilidade dos casos é mais ou menos condizente com o modelo processual.

Tabela 2
Resultado do julgamento de ações penais originárias

Entretanto, comparando o tamanho dos acórdãos, a complexidade das discussões e os recebimentos vagos, certamente é possível afirmar a partir desses dados que, em casos de ações penais originárias, as decisões fornecem muito mais informações sobre como os juízes exerceram a tarefa de controle de admissibilidade. Esses dados sugerem que, quando o juízo de viabilidade é feito diretamente no caso, e não por meio de habeas corpus, há uma triagem de processos inviáveis, um filtro de acusações excessivas e, mais importante, há publicidade sobre os motivos dos recebimentos e das rejeições.

Mas, não foi possível compreender os motivos desse tratamento diferenciados aos “acusados VIPs” (Lopes Jr. e Rosa, 2014LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima; ROSA, Alexandre Morais da. Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-viprecebimento-denuncia-motivado. Acesso em: 31.ago.2021.
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), ou seja, se essa exigência decorre do rito previsto pela da Lei nº 8.038/90, do fato de os Ministros considerarem mais importantes os casos envolvendo prerrogativa de função, da circunstância de essa discussão não estar sendo feita no âmbito de habeas corpus, ou ainda, da noção de haver menos possibilidade de controle recursal no âmbito originário.

Além disso, é preciso ressaltar que a variável “foro por prerrogativa de função” não necessariamente induz a uma exigência de motivação tal qual a feita diretamente pela Corte. Não é possível notar o teor de todos os recebimentos, mas, lendo o relatório do RHC 122.806, é possível extrair que o STF considerou válida situação em que o Tribunal a quo ressalva a possibilidade de “críticas” ao ato realizado, pois teriam restado “implicitamente rejeitadas as teses defensivas preliminarmente levantadas”.

Será que o Supremo Tribunal Federal esqueceu dos argumentos suscitados nos casos outliers, ou ele simplesmente os ignora? Os dados sugerem a segunda hipótese.

Foi possível constatar pronunciamentos do Ministro Marco Aurélio, como único voto vencido, no sentido de que “a não exposição de fundamentação em juízo positivo de denúncia implica afronta ao artigo 93, inciso IX, da Constituição Federal28 28 No mesmo sentido (HC 101.971). . Pondera o Ministro que se no âmbito civil é considerado vício de motivação a “sentença na qual são evocados motivos que se prestariam a justificar qualquer decisão ou se deixa de enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador, o que dizer na seara processual penal, a revelar direitos indisponíveis?” (AG no ARE 749.864). No entanto, não se vê decisões em que ele anula algum recebimento da inicial29 29 Em uma decisão (AgRg no RE 1.194.050) o Ministro vota vencido para dar provimento a um recurso extraordinário dada a ausência de motivação do recebimento da inicial. .

Nos votos recentes que relatou sobre essa tese, Marco Aurélio considerou que “a referência, no ato de recebimento da denúncia, ao atendimento ao figurino instrumental, implica fundamentação razoável” para afirmar a correção de ato em que o juiz “firmou preenchidos os requisitos do artigo 41 do Código de Processo Penal, bem assim afastou a incidência do artigo 395 do diploma legal”, e fez “constar não haverem sido articulados, na defesa prévia, argumentos a inviabilizarem o recebimento da denúncia” (HC 144.268 e, em sentido semelhante HC 11.971, HC 159.510, HC 187.980).

Essas diferenças entre o controle de viabilidade dos processos feito em debate colegiado, a partir da denúncia, e a validade do controle feito pelo juízo em primeiro grau, sugerem que a corte tem ciência do que significa o início de uma ação penal contra alguém e tem conhecimento de que uma decisão replicável a qualquer caso não se considera fundamentada. Mas, parece haver subjacente a esse debate uma regra de que o juiz não deva se pronunciar nessa fase quando julga sozinho.

4.2. Hipóteses sobre a dinâmica da jurisprudência do STF.

A principal indagação dessa pesquisa era compreender como um entendimento anterior à Constituição de 1988 a respeito da natureza jurídica do recebimento da denúncia se tornou hegemônico (não seria fruto de novos debates entre os Ministros). Ele não só se manteve a despeito das críticas doutrinárias, como foi alargado para situações não discutidas na época, como os controles de viabilidade realizados no rito da lei de tóxicos e na apreciação da resposta à acusação.

Havia uma ideia inicial de classificar os acórdãos de acordo com a natureza jurídica que mencionavam ter o controle de viabilidade naqueles atos diferentes. Afinal, nos votos é possível notar menções a despacho, decisão, decisão interlocutória simples, bom como a ato desprovido de caráter decisório. A hipótese era entender se o argumento do caráter decisório era mobilizado com frequência.

Além disso, também se fez necessária uma prévia classificação dos acórdãos quanto ao pronunciamento a respeito da necessidade de fundamentar. Ela se deu inicialmente a partir das categorias formuladas por Santoro e outros (2019)SANTORO, Antônio Eduardo Ramires; BORGES NETO, Mauro Leibir Machado; DA HORA, Nilo César Martins Pompílio. A (in)exigibilidade de fundamentação da decisão que ratifica o recebimento da denúncia: uma análise da jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça. Direitos Fundamentais & Justiça, Belo Horizonte, ano 13, n. 40, p. 85-113, jan./jun. 2019. https://doi.org/10.30899/dfj.v13i40.647
https://doi.org/10.30899/dfj.v13i40.647...
. Os acórdãos atuais refletem o predomínio da categoria da fundamentação sucinta ou concisa, para qualificar tanto decisões que apreciam as teses defensivas de forma abreviada, como decisões vagas que afirmam a viabilidade do processo.

Tabela 3
Tipo de resposta sobre a necessidade de fundamentação

No entanto, notei que em algumas situações foi difícil enquadrar o caso em uma categoria ou outra, tal como fizeram os autores, pois os acórdãos somavam ressalvas, tanto sobre a necessidade de motivação, quanto sobre o cumprimento ou não daquele dever no caso concreto. Foi frequente notar decisões apontando não ser necessário fundamentar a decisão, embora conveniente e oportuno. Mesmo assim, considerou-se que aquela estava fundamentada, de forma sucinta (HC 70.763).

Além disso, não foi possível encontrar um critério objetivo quanto ao que consiste em uma fundamentação válida. As hipóteses de fundamentação qualificada (isto é, seguida de algum adjetivo como sucinta, concisa etc.) variavam entre decisões. Essas expressões se referem tanto a uma decisão em que o juiz simplesmente afirmou que “não está presente nenhuma hipótese de absolvição sumária” (HC 111.127) quanto em um caso que a juíza explicou o que entende serem os requisitos do art. 41 do CPP, porque eles estavam presentes no caso, o que considera justa causa e porque ela estaria presente no caso. Além disso, se pronunciou sobre o tamanho da denúncia, sobre as diligências feitas e as requeridas pela defesa (Ag no HC 190.673).

Por tais motivos, um novo esforço de generalização se deu no sentido de compreender como a Corte estava se relacionando com os juízes de primeiro grau quando decidiam, porque não consegui localizar na amostra: i) no que consistem as barreiras entre o fundamentado, o não fundamentado e o fundamentado de forma concisa, sucinta ou suficiente e nem ii) um pronunciamento harmônico sobre a natureza jurídica do ato.

Daí foi possível voltar a atenção para o argumento reproduzido nos acórdãos no sentido de não anular decisões vagas, mas afirmar que a fundamentação é “conveniente”, é “desejável” (HC 93.056). Como se vê, o Supremo Tribunal Federal parece não estar julgando a validade ou invalidade dos atos praticados por juízes de primeiro grau, mas os aconselhando sobre como agir. A tolerância dos acórdãos quanto à vagueza dos pronunciamentos judiciais, junto com a observação sobre o que seriam boas práticas, se dá por meio de categorias intermediárias em que não se faz necessário decidir de forma dicotômica nem o que é, nem o que deve ser fundamentado.

4.2.1. A cada citação, uma interpretação

Após classificar os acórdãos de acordo com a doutrina e os precedentes citados, foi possível notar que os acórdãos fazem referências à jurisprudência do STF sem se atentar para a especificidade dos julgados quanto às diferenças regulatórias do juízo de admissibilidade.

Com base em um exame retrospectivo das referências feitas a partir do AgRg no HC 138.413, é possível notar essa dinâmica. Observando as referências a julgados, localiza-se o nexo entre uma não debatida jurisprudência sobre a ratificação do recebimento da denúncia (art. 399 do CPP) e a citação de antigos acórdãos do TACRIM-SP sobre a aplicação do art. 93, IX, da CR no recebimento da inicial (art. 395 do CPP).

No caso, os impetrantes questionavam a validade de uma decisão vaga, proferida no exame da resposta à acusação. Na ementa, consta que “a decisão judicial que rejeita a absolvição sumária, com fundamento na regularidade da denúncia e na falta de comprovação das hipóteses do art. 397 do CPP, não viola o art. 93, IX, da CF/88”. No entanto, no voto condutor, não há uma discussão dos ministros sobre a natureza jurídica dessa decisão que ratifica o recebimento e a aplicação a ela do dispositivo constitucional.

Para sustentar essa tese, o acórdão se vale da menção a decisões proferidas no caso pelo Tribunal de Justiça e pelo Superior Tribunal de Justiça no sentido da desnecessidade de motivação do ato e afirma que essa posição “está em conformidade com a jurisprudência do STF”, referindo-se “por amostragem, ao HC 101.971 (...)”. Além disso, o voto cita um trecho de acórdão que, por sua vez, se referia ao decidido na questão de ordem no AI 791.292, no sentido de que “a decisão judicial tem de ser fundamentada (art. 93, IX), ainda que sucintamente, sendo prescindível que a mesma se funde na tese suscitada pela parte”.

Todavia, lendo a questão de ordem referida, nota-se que ela não tratava da rejeição da resposta à acusação ou do recebimento da denúncia, e sim de uma discussão sobre o alcance do artigo 93, IX, da Constituição, nas decisões proferidas pelo TST. Mais que isso. Nela, o STF não decidiu ser “prescindível” que a decisão se funde “na tese suscitada pela parte”. A corte afirmou que “o art. 93, IX, da Constituição Federal exige que o acórdão ou decisão sejam fundamentados, ainda que sucintamente, sem determinar, contudo, o exame pormenorizado de cada uma das alegações ou provas, nem que sejam corretos os fundamentos da decisão” (destaquei).

Lendo, dessa vez, o HC 101.971, referido “por amostragem”, nota-se que ele também não tratou da resposta à acusação, e sim da necessidade de recebimento fundamentado da denúncia em um caso da lei de tóxicos. Nele, a ementa e o voto condutor limitaram-se a reproduzir o teor do HC 93.056, considerado como “precedente específico (...) em caso análogo30 30 Nesse caso, houve um voto divergente do Min. Marco Aurélio afirmando necessária a fundamentação, dado o contraditório prévio, mas, ante a constatação de que o juízo afirmou presentes os requisitos legais, considerou a decisão fundamentada. .

Caminhando agora para o teor do HC 93.056, nota-se que os Ministros não discutiram em nenhum momento se o recebimento da denúncia na lei de tóxicos demanda uma resposta diferente do juiz do que o recebimento nos demais casos.

Esse acórdão, muito referido por outras decisões (e mencionado no trabalho de Pilati como um dos precedentes que resume a discussão na corte), reproduz uma outra decisão, proferida no HC 70.763. Nela, o STF afirma que o recebimento seria um ato sem poder decisório, e por isso, não aplicável a ela o mandamento constitucional.31 31 A tese da necessidade de fundamentação acabou sendo lateral para o acórdão, publicado em 23.9.1994. Ressalvando a excepcionalidade para a concessão do writ, o acórdão enfrenta a viabilidade da ação e, ao longo de 23 páginas, examina a falta de justa causa e concedeu o habeas corpus por reconhecer a inépcia da denúncia. .

Como disse, não é objeto desse artigo avaliar a validade jurídica dos argumentos. No entanto, importa destacar que a tese do ato que não é decisão para fins constitucionais aparenta ter sido fixada neste precedente. A decisão é longa e cita diversas referências. Especificamente quanto à constitucionalidade, no entanto, o argumento do acórdão está embasado na reprodução de dois trechos de acórdãos do TACRIM/SP no sentido de que o recebimento da denúncia “não é ato judicial que pode ser equiparado a sentença, não se constituindo em ‘decisão’ ou julgamento’, e “não é ato decisório a que alude o art. 93, IX, da CF”. Desde então, essas considerações vêm sendo reproduzidas como a inteligência do Supremo Tribunal Federal. O mais importante debate da aplicação do mandamento constitucional aparenta se resumir a essas citações.

A dinâmica é essa: por meio de analogias ao teor tácito de julgados, o Tribunal foi estendendo até os dias de hoje o que se considera a jurisprudência predominante da Corte. Considerações feitas pelo Tribunal nos anos 1940-1960 e autores daquela época ainda ecoam mediante uma atualização de seus argumentos. Sutilmente, algo que se disse logo após o Decreto-Lei nº 3.689, de 1941 ser promulgado vale como demonstração da tese de que a decisão dos art. 397 e 399 do CPP (criada em 2008) não precisa ser fundamentada.

Importa destacar que, no âmbito do HC 95.354, o Tribunal se pronunciou em caso que unicamente discutia a necessidade de fundamentação do recebimento da inicial no rito da lei de tóxicos (11.343/06). Nessa oportunidade, o voto condutor expõe os motivos pelos quais “os acusados aos quais se imputem delitos” previstos nessa lei “não possuem o direito subjetivo a verem a denúncia que lhes atribui tais práticas recebida mediante decisão que obedeça maior rigor de fundamentação que as demais decisões que instaurem ações penais”. A lógica seria de que

“a compreensão que possui esta Corte acerca da desnecessidade de fundamentação da decisão de instauração de feito criminal verbera em todo o sistema processual penal, não se admitindo diferenciações oriundas dessa lei específica. Nem poderia ser diferente, pois, ao fazê-lo, a lei infraconstitucional criaria uma condição de processamento diferenciada, que acarretaria redução ou ampliação dos requisitos mínimos para instauração de um feito criminal, modificando, nesse particular, o perfil constitucional dos direitos fundamentais de natureza processual”

(HC 95.354).

Como se vê, o Tribunal não entende que a lei possa modificar a interpretação do STF. Ao conceder a acusados o direito de terem decisões mais bem fundamentadas, haveria uma violação dos “direitos fundamentais de natureza processual” de alguém. A interpretação, portanto, não é no sentido de reconhecer a necessidade de motivação a partir da nova lei, e estender essa garantia a todas as pessoas. Ela recusa a alteração legislativa, dizendo haver violação do direito fundamental das pessoas que tem decisões mal fundamentadas se outras pessoas puderem saber por qual motivo são acusadas.

4.2.2. A forma de reprodução dos textos doutrinários

A manutenção do entendimento vigente também se dá pela reprodução de citações doutrinárias que não sustentam o argumento do acórdão, incluindo aí autores que lhe são expressamente contrários.

O acórdão com mais referências doutrinárias é o AgRg no HC 170.463 em que os impetrantes, entre outros pedidos, requereram anulação do recebimento da denúncia por ausência de apreciação da tese de falta de justa causa. São citados 11 trabalhos dogmáticos que dariam apoio aos argumentos sobre a não exigência de fundamentação.

Dois deles (Feitoza, 2009FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal - Teoria, Crítica e Práxis. 6. ed. Impetus, 2009. p. 300. e Demercian, 2009DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 4. ed. Gen/Forense, 2009.) representariam o magistério da doutrina no sentido de afastar a exigência “de que seja fundamentado o ato de recebimento da denúncia”. Lendo as passagens, todavia, nota-se que o “magistério” aparentemente se refere a opiniões ou descrições dos autores, pois não se consegue distinguir ao certo se referem-se ao entendimento atual ou à dogmática jurídica32 32 Em um livro intitulado “Direito Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis”, Feitoza se resume à afirmação de que “como regra, o juiz não precisa fundamentar a decisão de recebimento da denúncia ou queixa, pois se trata de mera decisão interlocutória simples”, de modo que não é possível afirmar se essa é a teoria, a práxis ou a crítica do autor. Demercian (2014) também afirma algo semelhante a uma opinião no sentido de que “o despacho de recebimento da denúncia, em regra, não é fundamentado. A sua motivação é implícita, ou seja, pressupõe-se que estão atendidos os requisitos formais estabelecidos no art. 41 do CPP, além de estarem presentes as condições da ação” e cita a posição do STF nesse sentido. Todavia, no que tange à decisão que ratifica a denúncia, objeto do HC, o autor ressalva que “não teria sentido permitir ao acusado expor as suas razões para o não recebimento da denúncia e o magistrado simplesmente decidir de forma sucinta, sem qualquer justificação, pelo seu recebimento.” (p. 134-135). .

Três dos textos são citados como “o magistério doutrinário” de que “o ato de recebimento da denúncia não veicula manifestação decisória” e seria “simples despacho de caráter ordinatório ou de natureza simplesmente interlocutória”, “de tal modo que sobre ele não incide a prescrição constante do art. 93, IX, da Carta Política”.

Porém, esses três livros (Espínola Filho, 1965ESPÍNOLA FILHO. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. 6. ed. Borsoi, 1965., Câmara Leal, 1942LEAL, Câmara. Código de Processo Penal Brasileiro. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1942., e Florêncio de Abreu, 1945ABREU, Florêncio de. Comentários ao Código de Processo Penal Brasileiro. São Paulo: Forense, 1945. v. 5.) foram editados antes da Constituição de 1988, e o acórdão não explicita como é possível chegar a essa inferência. Esses autores, inclusive, divergem sobre o que caracteriza uma decisão interlocutória simples, e o primeiro afirma que as decisões sobre a decretação de prisão e aplicação de medida de segurança possuem essa mesma natureza jurídica33 33 A citação de Florêncio de Abreu se refere a uma passagem em que o autor cita Câmara Leal (1942, p. 19). Nela, não se é referido expressamente quanto ao recebimento da denúncia, e sim que “as decisões interlocutórias simples (...) são meramente ordinatórias do processo, não se anularão por incompetência do juiz que as proferiu” e que “no processo penal devem ser tidas como decisões, sujeitas à anulação por incompetência do juiz, a de pronúncia ou impronúncia, nos processos da competência do júri, e a sentença absolutória ou condenatória, bem como as decisões que impõem a prisão preventiva e as medidas de segurança”. Espínola Filho por sua vez, afirma que “o juiz, examinando se estão satisfeitos os requisitos legais, determina a movimentação inicial do processo, sem qualquer deliberação sobre o mérito” e que o recebimento da denúncia é uma decisão interlocutória simples, assim como “as decisões sobre a prisão preventiva, a concessão de fiança, a busca, o sequestro (...) a aplicação provisória de interdições de direitos ou de medidas de segurança” (1945, p. 144). .

O voto também cita “afirmação de Frederico Marques (...)FREDERICO MARQUES, José. Elementos de Direito Processual Penal. 2. ed. Forense, 1965. v. 2. no sentido de que o despacho que recebe a denúncia assume ‘conteúdo precipuamente ordinatório’”, embora a própria citação localize essa frase em uma ressalva. Nela, o autor afirma que “apesar” desse conteúdo, haveria implícito um juízo de admissibilidade. O acórdão silencia quanto ao argumento do autor sobre esse aspecto.

Há ainda a citação de quatro obras (Gomes Filho, Badaró e Toron, 2018GOMES FILHO, Antônio Magalhães; TORON, Alberto Zacharias; BADARÓ, Gustavo Henrique. Código de Processo Penal Comentado. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2018.; Pacelli, 2017PACELLI, Eugenio. Curso de processo penal. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2014.; Lima, 2017LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: JusPODIVM, 2017. p. 1322.; Lima, 2014LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 8. ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.) que representariam o “beneplácito de expressivo magistério doutrinário” à tese de que, na linha da jurisprudência do STF, “tem reputado plenamente motivado o ato decisório que examina, ainda que de forma sucinta, as teses defensivas arguidas na resposta à acusação”. Ocorre que essas passagens são, todas, contrárias ao entendimento atual do Supremo Tribunal Federal34 34 Pacelli (2014) sustenta que “sempre houve e sempre haverá discussões acerca da natureza do ato de recebimento da denúncia: cuida-se, ou não, de ato decisório? Basta ver a jurisprudência da Suprema Corte nas ações penais originárias, isto é, aquelas promovidas diretamente naquele Tribunal, por força de prerrogativa de função do acusado, para se concluir que o recebimento da peça acusatória tem conteúdo decisório”. Lima (2017) afirma que o juiz “deve ao menos aludir às teses eventualmente apresentadas na resposta à acusação, notadamente para fins de enfrentar questões processuais relevantes e urgentes. Por isso, na hipótese de o magistrado se limitar a afirmar que as teses apresentadas na resposta à acusação são ‘defesa de mérito’, designando, na sequência, audiência de instrução e julgamento, admite-se o reconhecimento de eventual nulidade relativa” (2017, p.1.322). Lima (2014) afirma que com a reforma de 2008 a previsão de resposta à denúncia, talvez “acabe a prática maléfica do juiz ‘delegar a um funcionário do cartório ou a um secretário, o recebimento ‘genérico’ de iniciais penais. O autor ainda afirma que “o juiz deverá, nem que seja de uma forma não exauriente (evitando, assim, adentrar demasiadamente no mérito) exarar uma fundamentação, enfrentando os argumentos expostos pela defesa, pois, nesta hipótese, já temos um contraditório prévio estabelecido, merecendo um pronunciamento judicial acerca da manutenção do recebimento” (2014, p. 853-855). Gomes Filho, Badaró e Toron (2018), por sua vez, afirmam que “também no caso de rejeição da absolvição sumária será necessário fundamentar a decisão, expondo as respectivas razões de fato e de direito pelas quais a tese defensiva não deve ser acolhida. No entanto, nesse caso, a fundamentação pode e deve ser mais sucinta, até mesmo para evitar prejulgamento, limitando-se a afastar os argumentos levantados pela defesa, em cognição superficial” (p.744) . Não é possível compreender o que o acórdão considera ser um “beneplácito”. Todos os autores afirmam que nesse momento o juiz não deve realizar uma cognição definitiva ou pronunciar-se longamente. Mas, nenhum deles se pronuncia afirmando a validade de decisões que não apreciam as teses defensivas, nem as que se limitam a afirmar presentes os requisitos legais. Trocando em miúdos, todos entendem que o juiz deve ser sucinto, mas todos discordam da validade da fundamentação sucinta, tal como definida pelo STF.

Da mesma maneira, no Ag no RE 929.795, o Tribunal manteve decisão vaga, sustentando que, no caso de recebimento da denúncia, “o juízo é de mera delibação e tem por finalidade evitar uma ação penal descabida”. Para defender esse ponto de vista, o acórdão cita trecho de um artigo em que o autor (Cruz, 2008CRUZ, Rogerio Schietti Machado. O juízo de admissibilidade após a reforma processual de 2008. In: CALABRICH, Bruno; FISCHER, Douglas; PELELLA, Eduardo (Orgs.). Garantismo Penal Integral, 2. ed. Salvador: Juspodium, 2013.) sustenta ter havido uma mudança radical a partir da Lei 11.373/2008: “o que era, portanto, carestia, agora é abundância” (p. 204). O mesmo trecho, citado na decisão, aponta como o intuito de aumentar a proteção a acusações infundadas e “até temerárias, que, se não constituírem a regra, podem ocorrer como fruto do açodamento, errônea interpretação dos fatos apurados na investigação preliminar, ou quiçá, de distorcida concepção dos fins do processo penal” (idem).

Como se nota, o Supremo Tribunal Federal ressignifica a aparente divergência entre doutrina e seus julgados se valendo de críticas, mais ou menos diretas, à sua forma de julgar, como apoio para suas teses. Os acórdãos não estabelecem um diálogo nem com seus predecessores, nem com os autores dogmáticos. A notoriedade dos juristas funciona como uma espécie de alegoria, sugerindo apoio a argumentos não enfrentados nem criticados nas citações.

4.2.3. As consequências desse entendimento

Retomando os achados de Uinie Caminha e outros (2021)CAMINHA, Uinie; ANDRADE, João Henrique de; SANTIAGO, Nestor Eduardo Araruna; Decisão de admissibilidade da denúncia no Superior Tribunal de Justiça: uma pesquisa quali-quantitativa. Revista Brasileira de Direito Processual Penal, v. 7, n. 1, p. 511 - 534, 2021. https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389
https://doi.org/10.22197/rbdpp.v7i1.389...
, a amostra indica como o exame sobre a viabilidade da denúncia é feito diversas vezes. Os juízes de primeiro grau são, nessa dinâmica, os magistrados que menos falam a respeito de como chegaram às suas conclusões, muito embora sejam os que tenham mais condições de analisar os autos. As decisões indicam que Tribunais são tolerantes com a ausência de motivação do juiz, mas não deixam de analisar a viabilidade da acusação.

A estrutura dos votos consiste em uma transcrição do que fora decidido pelo STJ, pelos tribunais de origem e pelo juiz, e, dessa forma, o acórdão acaba agregando afirmações que já se situam, no mínimo, no plano dos três outros recebimentos.

Isso significa que, em circunstâncias ordinárias, é possível observar um mesmo caso com 4 ou mais juízos autônomos sobre a denúncia. São situações em que o magistrado decide mediante uma expressão lacônica e a defesa impetra habeas corpus aos Tribunais de segundo grau, discutindo a necessidade de fundamentação e a falta de viabilidade da inicial. Daí sucede outro habeas corpus, ou recurso em habeas corpus, no qual o STJ atua da mesma forma: não exige do Tribunal que aprecie o caso a partir da validade da decisão, nem que examine todos os argumentos defensivos, mas os Ministros também se pronunciam sobre a denúncia. Daí segue uma nova impetração ao STF, em que a prática se reproduz.

Como resultado, em um mesmo acórdão é possível observar diferentes juízos sobre a viabilidade, mas essa pluralidade não significa que a Defesa tenha muitas oportunidades de discutir e rediscutir o tema. Isso porque as teses são restringidas quanto ao âmbito de cognição e quanto à demonstração de que uma omissão gera algo (no caso, um prejuízo concreto). Além disso, se um Tribunal não se pronunciar sobre uma tese, isso não é normalmente reconhecido como um problema.

Não foi possível checar as premissas factuais das impetrações. No entanto, comparando o relatório e o voto do RHC 138.752, nota-se situação em que o ato de ratificação do recebimento da denúncia afirma que “não foram arguidas preliminares” e que não estavam presentes os requisitos autorizadores da absolvição sumária. No entanto, a defesa afirma que a decisão não só omite as teses de atipicidade e falta de justa causa, como afirma que elas sequer foram abordadas pelo Judiciário. Essa circunstância de a Defesa ter chegado ao STF pedindo que suas teses fossem apreciadas foi ignorada. O STF não acolhe ou rejeita esse argumento, afirma a validade da decisão e a impossibilidade de examinar o pleito, ante a superveniência de sentença condenatória.

Na prática, os Tribunais avaliam e reavaliam a viabilidade do processo entendendo que a procedência das teses defensivas é muito excepcional: as decisões mencionam a excepcionalidade do conhecimento e da concessão de habeas corpus, a excepcionalidade do reconhecimento da inépcia da denúncia e da falta de justa causa, a limitação cognitiva feita no âmbito de habeas corpus ou de recurso extraordinário, a necessidade de provar a existência de prejuízo e a convalidação dos vícios se houver sentença35 35 O fato de a Corte funcionar em colegiado, que poderia assegurar mais homogeneidade e coerência nas decisões, é mitigado no julgamento dos habeas corpus, ao notar-se que os acórdãos mais recentes foram proferidos em agravos internos. Como os Ministros têm decidido mais por meio de decisões monocráticas, não é sequer possível à defesa sustentar as razões oralmente na sessão de julgamento, e, assim chamar a atenção para os argumentos que ficaram de fora de mais um dos exames quanto à viabilidade da denúncia. .

O julgamento do Ag no HC 162.295 é um ilustrativo dessa forma de julgar. Nele, o voto condutor ressalta que a “primeira circunstância trazida pela defesa” era “a ausência da fundamentação na decisão que recebeu a denúncia”. O relator salienta “Eu a tenho, inclusive, aqui, à minha frente, é uma decisão manuscrita, e não há dúvida de que ela é monossilábica”. No entanto, rejeita a tese, por conta da “orientação pacífica” do STF.

O que poderia ser uma divergência, vira uma recomendação. Dizendo que “é preciso evoluir daquele recebimento da denúncia de forma extremamente parcimoniosa36 36 O voto menciona precedentes em que o Min. Ricardo Lewandowski teria suscitado essa mudança de orientação qualificando os votos como carimbos. Eles não estão contidos na amostra, e buscas pelos termos “carimb$ [operador lógico de pesquisa] E denúncia” não retornam resultados. e, que os Ministros precisam “realmente exigir uma fundamentação maior nesse ato importante, que é o do recebimento da denúncia, tal como nós fazemos aqui nesta Suprema Corte e nas Cortes Superiores” e de dizer que “é preciso uma análise para o recebimento da denúncia”, o voto convergente desconsidera a tese por conta do caso.

O fato de o réu ter ficado foragido e ter trocado de advogados para dilatar algum prazo processual foram os motivos pelos quais se relevou o debate a respeito da tese.

Esse conjunto de circunstâncias (o fator contextual decorrente da apreciação direta da denúncia pelos desembargadores e ministros, somado ao fator excepcional decorrente de juízos sobre o que caracteriza a situação de flagrante ilegalidade e a possibilidade de as cortes escolherem os argumentos que querem rebater) potencialmente transforma o exame sobre a viabilidade de um processo em uma situação casuísta. Os dados sugerem que os juízes podem escolher quais casos e quais teses querem apreciar no âmbito de habeas corpus.

5. Conclusões

Este artigo investiga como o Supremo Tribunal Federal reproduz seu entendimento sobre o alcance do art. 93, IX, da Constituição da República, quando examina a validade de decisões proferidas no controle de admissibilidade da ação penal. A partir do exame bibliográfico e de uma análise qualitativa de decisões em que a Corte se pronunciou sobre os termos fundamentação e recebimento da denúncia, observo como diferentes soluções regulatórias nos procedimentos para o juízo de viabilidade da ação penal, aparentemente, não afetaram mudanças significativas no resultado de julgamentos questionando a necessidade de fundamentação. Com esse diagnóstico, indico hipóteses sobre quais fatores estão associados à reprodução de um entendimento que sustenta a validade de decisões lacônicas, proferidas no limiar da ação penal.

Apresentei a minha leitura sobre recentes pesquisas a respeito da temática do recebimento da denúncia nos Tribunais Superiores e, a partir dessas considerações, apontei os motivos que justificaram a escolha de um plano de observação de segunda ordem, cujo foco não é a norma, e sim a maneira com a qual o Poder Judiciário interpreta o comando normativo.

A pesquisa indica como a prática processual está longe de um modelo que considera o conhecimento do acusado ou os argumentos da defesa no controle de viabilidade dos processos criminais. A prática judicial criou um modelo de extrema deferência às seleções feitas pelo Ministério Público. Se um juiz quiser rejeitar a denúncia, tem grande ônus argumentativo. Para recebê-la, basta repetir um texto-padrão.

Essa parece ser a forma com que desembargadores e ministros encontraram para decidir os determinados casos e não necessariamente as teses.

É evidente que não se pode olhar para os julgados do STF, no exercício do julgamento de habeas corpus, com a mesma lente em que se examina decisões da Suprema Corte norte-americana ou do Tribunal Constitucional alemão. O nosso Tribunal de cúpula precisa decidir milhares de casos, enquanto as demais cortes selecionam alguns. É natural, portanto, que as decisões não sejam proferidas com a mesma profundidade e que sejam mais padronizadas.

Mas, essa padronização chega aos limites de considerar de forma homogênea situações reguladas pela lei de forma distinta. Na relação entre juízes e ministros, teses e casos, a pesquisa revela que o exame jurídico feito sobre a viabilidade da denúncia se dá em uma dinâmica do conselho. O Tribunal parece funcionar não como instância de controle jurídico, mas de uma instância que aconselha como se deve aplicar a lei, ou a aplica diretamente. Não se trata propriamente das consequências da incorreção de uma tese, mas de considerações aos juízes sobre o que o Tribunal entende serem boas práticas. A atividade jurídica aparece não como uma discussão entre o lícito e o ilícito, mas do que é mais ou menos recomendável.

O objetivo deste artigo foi jogar luz a algo que não pode ser naturalizado. Uma pessoa tem o direito de saber os motivos pelos quais o Poder Judiciário entendeu ser viável começar um processo criminal contra ela. É preciso compreender a participação de juízes para dotar de racionalidade essa tarefa de criminalização secundária, isto é, de seleção sobre quais casos devem seguir como processos criminais e quais pessoas devem se tornar réus37 37 Para uma discussão sobre a criminalização secundária e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ver Grosner (2008). .

Daí o convite à leitora e ao leitor para aprofundar o exame sobre as decisões do Supremo Tribunal Federal e para criar, junto com os magistrados, uma dogmática a partir do que for, na percepção dessas pessoas, o meio de tornar realidade a etapa intermediária no Brasil.

Acknowledgement

Agradeço à Manuela Briso Gatto pela inestimável ajuda na coleta e catalogação dos acórdãos, bem como às Professoras Maíra Rocha Machado e Raquel Lima Scalcon, ao Professor Marco Aurélio Nunes da Silveira e à Luísa de Abreu Ferreira, minha colega no doutorado, pela leitura atenta e pelos generosos comentários. Os erros e imprecisões são de minha inteira responsabilidade. O artigo é fruto parcial de pesquisa financiada pela Bolsa Mário Henrique Simonsen, da FGV-SP.

  • 1
    Mestre e doutorando em direito e desenvolvimento pela Escola de Direito de São Paulo da Fundação Getúlio Vargas. Especialista em Direito Penal Econômico pela mesma instituição. Especialista em Direito Penal Econômico e Europeu pelo convênio entre o IBCCRIM e a Faculdade de Direito de Coimbra.
  • 2
    Entre muitos outros no mesmo sentido Fernandes (2002, p. 131)FERNANDES, Antônio Scarance. Processo penal constitucional. 3. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2002., Gomes Filho, (2001, p. 209)GOMES FILHO, Antônio Magalhães. A motivação das decisões penais. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2001. e mais recentemente, Dezem e Souza (2019, p. 144)SOUZA, Marcelo Serrano; JACINTHO, Jussara Maria Moreno. O recebimento implícito ou tácito da denúncia no processo penal como hipótese de violação aos princípios do devido processo legal e da motivação das decisões. Revista Direito Penal, Processo Penal e Constituição, Brasília, v. 2, n. 1, p. 556-571, jan./jun. 2016. https://doi.org/10.26668/indexlawjournals/2526-0200/2016.v2i1.847
    https://doi.org/10.26668/indexlawjournal...
    . Nota-se que mesmo entre essas descrições, os autores não são unânimes ao afirmar se o STF entende que o ato tem conteúdo decisório ou não.
  • 3
    Para trabalhos monográficos ver Costa (2006)COSTA, Cláudio; MALAN, Diogo. A inconstitucionalidade da ausência de fundamentação na decisão de recebimento da denúncia. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000., Pilati (2015)PILATI, Aline Guidalli. Juízo de admissibilidade da ação penal à luz da democracia processual penal: exercício do contraditório prévio e dever de motivação. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/37956?show=full, acesso em 1.ago.2021.
    https://www.acervodigital.ufpr.br/handle...
    , Peixoto Junior (2019)PEIXOTO JUNIOR, Helio. Fase de admissibilidade da acusação à luz do contraditório e da ampla defesa. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) - Faculdade de Direito, São Paulo, 2019. https://doi.org/10.11606/D.2.2019.tde-30072020-150541
    https://doi.org/10.11606/D.2.2019.tde-30...
    . Marco Aurélio Nunes da Silveira já abordou o assunto em vários aspectos, inclusive quanto ao mais novo esforço de reforma processual. Por meio de estudos dogmáticos, o autor já discorreu sobre a especificidade das condições da ação penal (2016), sobre os fundamentos filosóficos-políticos para a motivação no recebimento da denúncia (2016) e, recentemente, apresentou sua proposta sobre a etapa intermediária do processo (2021). O tema já foi objeto de comentários de autores vinculados a diferentes universidades brasileiras. Cito, entre outros Coutinho (2012)COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. Solução para o absurdo legal e técnico do novo art. 396 do CPP. Disponível em: http://www.parana-online.com.br/canal/direito-ejustica/news/323593/?noticia=SOLUCAO+PARA+O+ABSURDO+LEGAL+E+TECNI CO+DO+NOVO+ART+396+DO+CPP. Acesso em 1.set.2021.
    http://www.parana-online.com.br/canal/di...
    , Badaró (2019, p. 617)BADARÓ, G. H. Processo Penal. 7ª ed. São Paulo: Thomson Reuters Revista dos Tribunais, 2019., Costa e Malan (2000)COSTA, Cláudio; MALAN, Diogo. A inconstitucionalidade da ausência de fundamentação na decisão de recebimento da denúncia. Discursos sediciosos: crime, direito e sociedade. Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 2000., Tourinho Filho (2010, p. 324)TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Processo Penal. v. IV. 32ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010., Barros (2008)BARROS, Flaviane de Magalhães. A fundamentação das decisões judiciais a partir do modelo constitucional de processo. Revista do instituto de hermenêutica jurídica, Porto Alegre, v. I, n. 6, 2008., Lopes Junior e Morais da Rosa (2014)LOPES JÚNIOR, Aury Celso Lima; ROSA, Alexandre Morais da. Quando o acusado é VIP, o recebimento da denúncia é motivado. Disponível em http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/limite-penal-quando-acusado-viprecebimento-denuncia-motivado. Acesso em: 31.ago.2021.
    http://www.conjur.com.br/2014-nov-14/lim...
    e Vasconcellos (2018)VASCONCELLOS, Vinícius Gomes de. Fundamento e função do processo penal: a centralidade do juízo oral e sua relação com as demais fases da persecução penal para a limitação do poder punitivo. Revista Eletrônica de Direito Processual – REDP. Rio de Janeiro, v. 19, n.2. mai/ago. 2018 https://doi.org/10.12957/redp.2018.31959
    https://doi.org/10.12957/redp.2018.31959...
    .
  • 4
    É possível encontrar defesas dessa tese por meio de opiniões. Chamo de opinião um argumento cuja validade é medida a partir da credibilidade do autor e não do raciocínio por ele expresso. Nesse sentido, são afirmações como a de que “como regra, o juiz não precisa fundamentar a decisão de recebimento da denúncia ou queixa, pois se trata de mera decisão interlocutória simples. O juiz pode se limitar a receber a denúncia ou queixa” (Feitoza, 2009FEITOZA, Denílson. Direito Processual Penal - Teoria, Crítica e Práxis. 6. ed. Impetus, 2009. p. 300., p. 300). Também foi possível localizar autores afirmando “desnecessária uma maior fundamentação” na fase do art. 395 do CPP, visto não caber recurso contra tal decisão”, e que esse baixo grau de motivação seria suprido por uma fundamentação na fase do art. 399 do mesmo diploma (Lima, 2014LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 8. ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014.).
  • 5
    Como aponta Silveira (2021)SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A imprescindibilidade da implementação da etapa intermediária no Processo Penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 180/2021, p. 137-162, jun. 2021., o conceito de etapa intermediária tem como objetivo associar algumas funções atribuídas ao juiz quando do exame de admissibilidade dos processos. Ela serve como um “diafragma” (p. 4), tanto para que seja feita uma triagem de acusações infundadas, como para impedir que o julgamento de mérito seja contaminado por elementos cognitivos obtidos sem o contraditório. Ela também serve como uma maneira de preparar o processo para um juízo de mérito, delimitando o objeto do processo, a admissibilidade de provas e a presença de outros aspectos formais da acusação (Silveira, 2021SILVEIRA, Marco Aurélio Nunes da. A imprescindibilidade da implementação da etapa intermediária no Processo Penal Brasileiro. Revista Brasileira de Ciências Criminais, vol. 180/2021, p. 137-162, jun. 2021., p. 4). Ainda que se possa debater se as regras atuais do CPP já permitem essa prática institucional, ou se ela depende das alterações previstas na Lei nº 13.846/19, importa destacar que é por meio da fundamentação das decisões proferidas que se poderá avaliar a racionalidade com que as referidas tarefas foram executadas.
  • 6
    São eles: (i) a irrecorribilidade do ato; (ii) a sua equiparação com o despacho que ordena a citação do réu no processo civil; (iii) poder ser implícita a admissão da ação e não estar o ato alcançado pelo disposto no artigo 93, inciso IX, da Constituição; (iv) ser o ato mero despacho de admissão da ação penal em juízo; e (v) evitar o pré-julgamento do mérito da causa na fase do recebimento da peça acusatória.
  • 7
    Não foi possível atualizar o percurso metodológico do referido trabalho porque o texto não indica como a base foi criada e como a amostra de sete acórdãos, observados em profundidade, permitiu a generalização sobre a população de “mais de mil” decisões (Pilati, 2015, p.16). Também não foi possível, em 2021, localizar um desses sete acórdãos (HC 31.078) na base de jurisprudência e de processos do site do Tribunal.
  • 8
    Por justificativas “interna” e “externa”, os autores invocam o magistério de Gomes Filho para explicar que, nas minhas palavras, a primeira envolve um juízo de coerência e a segunda, de consistência. Quanto à primeira, “constata-se a justificação em seu primeiro nível (interno), quando não há, entre os diversos enunciados de uma decisão, qualquer incompatibilidade. Neste nível de justificação, basta que não exista uma contradição dentro do contexto da própria decisão”. Já a segunda, “é construída com base nas premissas evidenciadas pela justificação interna. Trata-se de atividade de maior complexidade, consistente em aduzir razões válidas, persuasivas, convincentes, em favor da escolha das premissas utilizadas para desenvolvimento do raciocínio decisório, tendo em vista que a natureza dessas razões variará de acordo com o tipo de premissas necessária à decisão” (2019, p. 102).
  • 9
    Foram elas: “i) in dubio pro societate; ii) a decisão de recebimento possui natureza interlocutória cautelar; iii) o juízo deve ater-se à admissibilidade da imputação; e, por último, iv) o argumento da exigência da fundamentação em concreto” (2021, p. 525).
  • 10
    Decreto-Lei nº 7661, de 21 de junho de 1945. No artigo 109, § 1°, constava que o juiz, se recebesse a denúncia, enviaria o caso ao juízo criminal em despacho fundamentado. Do pondo de vista de divisão de tarefas nessa etapa, é o procedimento mais semelhante possível ao que se prevê acontecer com o juiz de garantias.
  • 11
    Arts. 513 a 518 do CPP. Nesses casos, há previsão de resposta do acusado antes do recebimento da denúncia (art. 514).
  • 12
    A Lei nº 11.343/2006 também prevê uma manifestação defensiva prévia ao recebimento da denúncia (art. 55).
  • 13
    O artigo 4º da Lei nº 8.038/90 também prevê um contraditório prévio, além de estabelecer que o recebimento se dá por órgão colegiado.
  • 14
    Há uma intensa discussão a respeito da dinâmica do recebimento da denúncia. O importante a destacar é a previsão de um exame sobre a viabilidade do processo após a resposta à acusação. Especificamente sobre isso, ver Peixoto Júnior, (2019)PEIXOTO JUNIOR, Helio. Fase de admissibilidade da acusação à luz do contraditório e da ampla defesa. 2019. Dissertação (Mestrado em Direito Processual) - Faculdade de Direito, São Paulo, 2019. https://doi.org/10.11606/D.2.2019.tde-30072020-150541
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    .
  • 15
    Diante do caráter aberto das perguntas, resolvi dividir o trabalho em duas etapas: uma predominantemente qualitativa, em que o exame dos acórdãos buscou elaborar hipóteses e compreender com maiores detalhes a composição da minha amostra; e uma etapa de predomínio quantitativo, em que procurei testar estatisticamente como essas diferentes variáveis estão associadas com o universo de decisões do Tribunal. Este artigo apresenta os resultados da primeira etapa.
  • 16
    . O banco de dados criado para essa pesquisa, contendo todas as decisões colhidas, está disponível em <https://www.openicpsr.org/openicpsr/project/166701/version/V1/view>. Ele não necessariamente reflete todos os casos em que o STF já discutiu a necessidade de fundamentação no juízo de viabilidade da denúncia. Notei em outra pesquisa a referência a “mais de mil julgados” (Pilati, 2015PILATI, Aline Guidalli. Juízo de admissibilidade da ação penal à luz da democracia processual penal: exercício do contraditório prévio e dever de motivação. Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Paraná, Setor de Ciências Jurídicas, Programa de Pós-Graduação em Direito. Disponível em https://www.acervodigital.ufpr.br/handle/1884/37956?show=full, acesso em 1.ago.2021.
    https://www.acervodigital.ufpr.br/handle...
    , p. 16). Tentando compreender como a autora chegou a esse resultado, e lendo as decisões do meu banco de dados, imaginei que ela também se refira a decisões monocráticas, ou a precedentes antigos não constantes no site do STF nem para consulta por processo, e precedentes que, embora contenham as palavras-chave, não foram selecionados na ferramenta de busca do tribunal. Embora acredite ter pesquisado com termos amplos e lido uma quantidade substancial de decisões, não chequei se as palavras-chave escolhidas contemplam o universo de vezes em que a corte se pronunciou sobre o tema.
  • 17
    O banco de dados não contemplou as decisões monocráticas porque o pressuposto normativo dessas decisões é a existência de jurisprudência da Corte em determinado sentido, ou seja, os dados seriam necessariamente uma saturação de um tipo de entendimento. Ainda que do ponto de vista empírico os Ministros possam decidir de forma monocrática situações não pacificadas, essa escolha permitiu que os dados, em menor número, fossem observados com maior proximidade.
  • 18
    Enunciado nº564 da Súmula do STF: A ausência de fundamentação do despacho de recebimento de denúncia por crime falimentar enseja nulidade processual, salvo se já houver sentença condenatória.
  • 19
    Por conta disso, e para deixar a apresentação dos resultados mais limpa, as menções aos acórdãos serão feitas apenas pela classe e número do processo, sem conter a identificação do relator ou data de publicação.
  • 20
    Em dois outros casos tratando de ações penais originárias cujo recebimento aconteceu previamente à remessa ao STF (questões de ordem na AP 945 e na AP 933), o Tribunal apontou a necessidade de fundamentação, mas a solução jurídica não foi a anulação, e sim uma nova análise.
  • 21
    Os acórdãos trataram tanto das decisões referentes ao artigo 395 do CPP, quanto das proferidas na fase dos arts. 397 e 399 do mesmo dispositivo, e ainda, dos recebimentos feitos em ações penais originárias por outros tribunais, aqueles feitos nos casos envolvendo tóxicos e funcionários públicos.
  • 22
    Os 45 acórdãos que tratam de crimes falimentares correspondem a decisões publicadas entre 26.8.1970 (HC 47.578) e 22.6.2007 (RHC 90.632).
  • 23
    Na época, o Plenário havia se manifestado sobre a invalidade de “despacho não fundamentado” (HC 54.216).
  • 24
    Por decisões vagas, refiro-me àquelas lacônicas, que por exemplo, afirmam constituírem, em tese, crimes, os fatos descritos na denúncia, ou que estão presentes os requisitos do art. 41 do CPP. Minha referência sobre o que é uma decisão vaga, neste artigo, é o art. 315, § 2º do CPP: “Não se considera fundamentada qualquer decisão judicial, seja ela interlocutória, sentença ou acórdão, que: I - limitar-se à indicação, à reprodução ou à paráfrase de ato normativo, sem explicar sua relação com a causa ou a questão decidida; II - empregar conceitos jurídicos indeterminados, sem explicar o motivo concreto de sua incidência no caso; III - invocar motivos que se prestariam a justificar qualquer outra decisão; IV - não enfrentar todos os argumentos deduzidos no processo capazes de, em tese, infirmar a conclusão adotada pelo julgador; V - limitar-se a invocar precedente ou enunciado de súmula, sem identificar seus fundamentos determinantes nem demonstrar que o caso sob julgamento se ajusta àqueles fundamentos; VI - deixar de seguir enunciado de súmula, jurisprudência ou precedente invocado pela parte, sem demonstrar a existência de distinção no caso em julgamento ou a superação do entendimento”.
  • 25
    É importante situar o leitor para os limites das inferências possíveis a partir dos dados. Não é possível, a partir deles, descrever como juízes em primeiro grau decidem, apenas afirmar que determinados tipos de decisão submetidos ao Supremo Tribunal Federal foram reputados como válidos. O exame se deu a partir dos acórdãos, e não do inteiro teor de processos, então só é possível compreender o que fora decidido pelo juízo em primeiro grau a partir da transcrição ou menção a dessas decisões nos acórdãos. É possível ver passagens com a reprodução da decisão, em aspas, tal como ocorreu no RHC 67.033: “verifico, pelo exame destes autos de inquérito judicial, que a narrativa constante da denúncia ofertada pelo Dr. Curador Fiscal de Massas Falidas, ajusta-se ao conteúdo dos autos, e que os fatos nela descritos amoldam-se ao tipo de conduta previsto no art. 188, III, da Lei de Falências. Diante disso, recebo a denúncia (...)”. Também é possível encontrar menções como a feita no HC 64.499 “vê-se às fls. 14 que ao receber a denúncia o Magistrado se reportou o inquérito judicial consignando que os crimes imputados restaram plenamente evidenciados no procedimento investigatório. Trata-se de despacho sucinto (...)”. Há ainda situações em que o contexto indica como fora procedido o exame da denúncia, como no HC 65.368, em que o acórdão cita decisão do Tribunal de Justiça que, por sua vez, relata que a impetração afirmava que o recebimento era infundado porque não apreciou um pedido defensivo requerido pela defesa, e afirma que “o juiz de direito não estava obrigado a apreciar o pedido de realização de perícia, podendo indeferi-lo implicitamente, com a determinação de abertura de vista dos autos ao Ministério Público, que deliberou ofertar denúncia desde logo, em demonstração inequívoca que um e outro estavam satisfeitos com os dados existentes nos autos”. Para que a leitora e o leitor possam se aprofundar na descrição dos possíveis matizes do juízo de admissibilidade feito em primeiro grau, o banco de dados com as decisões está disponível em <https://www.openicpsr.org/openicpsr/project/166701/version/V1/view>.
  • 26
    No mesmo sentido, entre outros HC 79.106, RHC 60.030. Em sentido contrário RE115.000 (interposto pelo Ministério Público contra decisão que invalidou recebimento da inicial).
  • 27
    Esses dois aspectos serão desenvolvidos adiante.
  • 28
    No mesmo sentido (HC 101.971).
  • 29
    Em uma decisão (AgRg no RE 1.194.050) o Ministro vota vencido para dar provimento a um recurso extraordinário dada a ausência de motivação do recebimento da inicial.
  • 30
    Nesse caso, houve um voto divergente do Min. Marco Aurélio afirmando necessária a fundamentação, dado o contraditório prévio, mas, ante a constatação de que o juízo afirmou presentes os requisitos legais, considerou a decisão fundamentada.
  • 31
    A tese da necessidade de fundamentação acabou sendo lateral para o acórdão, publicado em 23.9.1994. Ressalvando a excepcionalidade para a concessão do writ, o acórdão enfrenta a viabilidade da ação e, ao longo de 23 páginas, examina a falta de justa causa e concedeu o habeas corpus por reconhecer a inépcia da denúncia.
  • 32
    Em um livro intitulado “Direito Processual Penal, Teoria, Crítica e Práxis”, Feitoza se resume à afirmação de que “como regra, o juiz não precisa fundamentar a decisão de recebimento da denúncia ou queixa, pois se trata de mera decisão interlocutória simples”, de modo que não é possível afirmar se essa é a teoria, a práxis ou a crítica do autor. Demercian (2014)DEMERCIAN, Pedro Henrique; MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 4. ed. Gen/Forense, 2009. também afirma algo semelhante a uma opinião no sentido de que “o despacho de recebimento da denúncia, em regra, não é fundamentado. A sua motivação é implícita, ou seja, pressupõe-se que estão atendidos os requisitos formais estabelecidos no art. 41 do CPP, além de estarem presentes as condições da ação” e cita a posição do STF nesse sentido. Todavia, no que tange à decisão que ratifica a denúncia, objeto do HC, o autor ressalva que “não teria sentido permitir ao acusado expor as suas razões para o não recebimento da denúncia e o magistrado simplesmente decidir de forma sucinta, sem qualquer justificação, pelo seu recebimento.” (p. 134-135).
  • 33
    A citação de Florêncio de Abreu se refere a uma passagem em que o autor cita Câmara Leal (1942, p. 19). Nela, não se é referido expressamente quanto ao recebimento da denúncia, e sim que “as decisões interlocutórias simples (...) são meramente ordinatórias do processo, não se anularão por incompetência do juiz que as proferiu” e que “no processo penal devem ser tidas como decisões, sujeitas à anulação por incompetência do juiz, a de pronúncia ou impronúncia, nos processos da competência do júri, e a sentença absolutória ou condenatória, bem como as decisões que impõem a prisão preventiva e as medidas de segurança”. Espínola Filho por sua vez, afirma que “o juiz, examinando se estão satisfeitos os requisitos legais, determina a movimentação inicial do processo, sem qualquer deliberação sobre o mérito” e que o recebimento da denúncia é uma decisão interlocutória simples, assim como “as decisões sobre a prisão preventiva, a concessão de fiança, a busca, o sequestro (...) a aplicação provisória de interdições de direitos ou de medidas de segurança” (1945, p. 144).
  • 34
    Pacelli (2014)PACELLI, Eugenio. Curso de processo penal. 18 ed. São Paulo: Atlas, 2014. sustenta que “sempre houve e sempre haverá discussões acerca da natureza do ato de recebimento da denúncia: cuida-se, ou não, de ato decisório? Basta ver a jurisprudência da Suprema Corte nas ações penais originárias, isto é, aquelas promovidas diretamente naquele Tribunal, por força de prerrogativa de função do acusado, para se concluir que o recebimento da peça acusatória tem conteúdo decisório”. Lima (2017)LIMA, Renato Brasileiro de. Manual de Processo Penal. Salvador: JusPODIVM, 2017. p. 1322. afirma que o juiz “deve ao menos aludir às teses eventualmente apresentadas na resposta à acusação, notadamente para fins de enfrentar questões processuais relevantes e urgentes. Por isso, na hipótese de o magistrado se limitar a afirmar que as teses apresentadas na resposta à acusação são ‘defesa de mérito’, designando, na sequência, audiência de instrução e julgamento, admite-se o reconhecimento de eventual nulidade relativa” (2017, p.1.322). Lima (2014)LIMA, Marcellus Polastri. Curso de Processo Penal. 8. ed. Brasília: Gazeta Jurídica, 2014. afirma que com a reforma de 2008 a previsão de resposta à denúncia, talvez “acabe a prática maléfica do juiz ‘delegar a um funcionário do cartório ou a um secretário, o recebimento ‘genérico’ de iniciais penais. O autor ainda afirma que “o juiz deverá, nem que seja de uma forma não exauriente (evitando, assim, adentrar demasiadamente no mérito) exarar uma fundamentação, enfrentando os argumentos expostos pela defesa, pois, nesta hipótese, já temos um contraditório prévio estabelecido, merecendo um pronunciamento judicial acerca da manutenção do recebimento” (2014, p. 853-855). Gomes Filho, Badaró e Toron (2018), por sua vez, afirmam que “também no caso de rejeição da absolvição sumária será necessário fundamentar a decisão, expondo as respectivas razões de fato e de direito pelas quais a tese defensiva não deve ser acolhida. No entanto, nesse caso, a fundamentação pode e deve ser mais sucinta, até mesmo para evitar prejulgamento, limitando-se a afastar os argumentos levantados pela defesa, em cognição superficial” (p.744)
  • 35
    O fato de a Corte funcionar em colegiado, que poderia assegurar mais homogeneidade e coerência nas decisões, é mitigado no julgamento dos habeas corpus, ao notar-se que os acórdãos mais recentes foram proferidos em agravos internos. Como os Ministros têm decidido mais por meio de decisões monocráticas, não é sequer possível à defesa sustentar as razões oralmente na sessão de julgamento, e, assim chamar a atenção para os argumentos que ficaram de fora de mais um dos exames quanto à viabilidade da denúncia.
  • 36
    O voto menciona precedentes em que o Min. Ricardo Lewandowski teria suscitado essa mudança de orientação qualificando os votos como carimbos. Eles não estão contidos na amostra, e buscas pelos termos “carimb$ [operador lógico de pesquisa] E denúncia” não retornam resultados.
  • 37
    Para uma discussão sobre a criminalização secundária e a jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, ver Grosner (2008)GROSNER, Marina Quezado. A seletividade do sistema penal na jurisprudência no Superior Tribunal de Justiça: o trancamento da criminalização secundária por decisões em habeas corpus. São Paulo: IBCCRIM - Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, 2008..
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Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    29 Jul 2022
  • Data do Fascículo
    Jan-Apr 2022

Histórico

  • Recebido
    27 Dez 2021
  • Revisado
    15 Jan 2022
  • Revisado
    05 Fev 2022
  • Revisado
    10 Fev 2022
  • Revisado
    16 Fev 2022
  • Revisado
    06 Mar 2022
  • Revisado
    15 Mar 2022
  • Revisado
    02 Abr 2022
  • Revisado
    03 Abr 2022
  • Aceito
    06 Abr 2022
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