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As particularidades fundantes do punitivismo à brasileira

The founding particularities of the Brazilian punitivism

Resumo

O objetivo deste artigo é contribuir para a produção e promoção de propostas abolicionistas que se dediquem às especificidades das lutas no Brasil contemporâneo. Para tanto será discutida a formação socioespacial brasileira em sua relação com a democracia e os argumentos legitimadores da expansão punitiva. Por fim, serão trazidos exemplos de lutas empreendidas por mulheres negras que podem colaborar com objetivo inicial.

Palavras-Chave:
Formação socioespacial; Racismo; Resistência

Abstract

The aim of the present article is to contribute to the production and promotion of abolitionist proposals that consider the specificities of the struggles in contemporary Brazil. For this purpose, the Brazilian socio-spatial formation will be discussed in its relationship to democracy and to the legitimizing arguments of punitive expansion. Finally, examples of struggles undertaken by black women who can collaborate with this purpose will be pointed out.

Keywords:
Socio-spatial formation; Racism; Resistance

Introdução

Há cerca de 10 anos, quando iniciei o estágio curricular obrigatório em Serviço Social na Secretaria Estadual de Administração Penitenciária do Rio de Janeiro (SEAP-RJ) em um presídio masculino de regime fechado no Complexo Prisional de Gericinó, no bairro de Bangu, me deparei com uma realidade a qual ouvia falar apenas de fora. As ausências de longo prazo de pessoas queridas nem sempre são explicáveis pela morte, pelo menos física, e podem ser explicadas por frases como “fulana está presa ou fulano passou a vida toda preso”.

A partir da experiência de dois anos realizando atendimentos aos homens privados de liberdade, às suas mães, companheiras, irmãs, amigas e, em alguns casos, pais, assim como das participações em seminários, simpósios e debates sobre o campo sociojurídico de atuação de assistentes sociais, fui apresentada às pautas abolicionistas como parte das lutas anticapitalistas (Davis, 2018aDAVIS, A. Estarão das prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018.; 2018b). Reconhecer a estrutura racial e patriarcal do encarceramento seletivo em massa (e da sociedade brasileira), estudar e atuar politicamente no movimento de favelas também colaboraram para a elaboração das reflexões e propostas que trago neste artigo.

O objetivo principal deste artigo é colaborar para a produção e promoção de propostas abolicionistas que se dediquem às especificidades das lutas no Brasil contemporâneo, como forma de produzir diálogos mais profícuos com os movimentos sociais em geral. Ainda que reconheçamos a importância do pensamento e experiências estrangeiras, estou convencida de que não há possibilidade de transformação de nossa realidade sem o necessário conhecimento sobre ela. Para tanto, busquei traçar um caminho talvez pretencioso para um artigo, mas que reconhecendo seus limites pretende “colocar ideias no mundo” como forma de cooperar com pensadoras/es que vêm se dedicando a este tema.

Analisar possibilidades de questionamento radical da realidade em que vivemos, na qual o punitivismo é um elemento constituinte das práticas institucionais, interpessoais e, portanto, estruturais requer um retorno ainda que breve à nossa formação socioespacial (Santos, 1982SANTOS, M. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1982.). Infelizmente existe uma tendência geral a buscar soluções para as nossas questões em outras realidades sob a ideia de que nos olhamos dentro de uma totalidade quando na verdade apenas colaborando para o obscurecimento das relações sociais no Brasil, promovendo por outro lado análises de país distorcido1 1 Para Ribeiro (apud Santos, 2002, p.8): [...] O país distorcido resultado de um olhar distorcido, fruto da assimilação acrítica de temas de pesquisa impostos de fora. [...]. Um olhar distorcido, então, porque se recusa a adentrar o território para conhecer a gente que nele vive, bem como suas condições de vida e necessidades. Um olhar distorcido que enlaça o país e seus recursos naturais em uma teia de relações sociais complexas - ditas “globais” - e que afirma um único padrão de inserção internacional para o Brasil sem levar em conta a nossa formação socioespacial, categoria que o próprio Milton criou. Um olhar de quem tem “preguiça intelectual”, como dizia à boca pequena o geógrafo baiano, e não quer ousar buscar o novo para si e para o Brasil. (Santos, 2002).

Esse texto pretende ser um chamado à reflexão crítica com vistas a elaboração de propostas abolicionistas, entendendo-as como antirracistas e feministas em contraponto às práticas racistas, militarizadas, masculinistas e heterossexistas apresentadas pela sociedade burguesa como a solução para os conflitos sociais. Nesse contexto, a militarização também nos interessa; podemos conceituá-la como algo mais amplo que a ideologia militarizada do funcionamento das forças policiais e militares como conhecemos e que está marcada pelo espraiamento das práticas, símbolos, narrativas e tecnologias, que tem na força bélica seu aspecto principal (Barros, 2018BARROS, R. Rio de Janeiro: o caleidoscópio da militarização urbanan. In: FARIAS, J., et al. Militarização no Rio de Janeiro: da pacificação à intervenção. Rio de Janeiro : Mórula , 2018. p. 283-296.), justificando o exercício do poder de matar, não somente a tiro, mas de maneira lenta e gradual com o encarceramento e o adoecimento (das pessoas presas e suas familiares), que são processos genocidas que atravessam nossa história desde antes da existência do Estado brasileiro.

Ainda segundo Milton Santos (1982SANTOS, M. Espaço e Sociedade. Petrópolis: Vozes, 1982., p.88): [...] os modos de produção escrevem a História no tempo, as formas sociais escrevem-na no espaço. [...], por isso reconhecer nossas particularidades parece ser um caminho necessário à produção de qualquer proposta que vise transformar a realidade. Em um primeiro momento, busco discutir as bases raciais, heterossexistas, militarizadas e cristãs da sociedade brasileira que promovem a existência do que venho chamando de Estado-Colonial-Penal (Cruz, 2021CRUZ, M. D. C. A atuação do Estado-Colonial-Penal nas favelas e as demandas para o Serviço Social. In: ELPIDIO, M. H.; ROCHA, R.; VALDO, J. P. Questão racial e Serviço Social: Contribuições à luta antirracista. Vitória : [s.n.], 2021. No prelo.a, no prelo).

Em seguida, tenho por objetivo relacionar essas bases de nossa sociabilidade a alguns elementos que considero relevantes da história do Brasil e que se relacionam com a forma como a expansão punitiva ganha corpo na contemporaneidade, especialmente na relação “crime vs segurança” que atravessou os processos de reabertura democrática e transformaram o período pós-1988 no que o movimento de Mães e Familiares contra o Terrorismo de Estado chama de Era das Chacinas (Mães de Maio, 2012).

Por fim, abordo brevemente o que parece ser um caminho interessante trilhado por movimentos sociais com os quais tenho interagido nos últimos 10 anos de ativismo antiprisional e de alguns paradoxos que precisarão ser aprofundados em oportunidades futuras, para que pensemos como o questionamento radical que é realizado por esses movimentos podem ser colocados a favor de um maior compartilhamento de propostas abolicionistas, que como sabemos ainda estão restritas a pequenos grupos que buscam difundir propostas eurocentradas de transformação da realidade.

2. Colonização, raça e a formação socioespacial do Estado-Colonial-Penal brasileiro

O Estado brasileiro se constituiu como tal a partir da exploração do trabalho de pessoas escravizadas, ao passo que formou uma elite proprietária de terras, egocêntrica, racista e conservadora que usufrui(u) dos produtos e recursos da exploração direta dos corpos e do conhecimento das pessoas indígenas e negras. As instituições do Estado brasileiro, como demonstram Dias e Prudente (2016DIAS, M.; PRUDENTE, W. Relatório parcial da comissão estadual da verdade da escravidão negra no Brasil OAB/RJ. OAB/RJ. Rio de Janeiro. 2016.), foram mantidas e financiadas com comércio escravagista que também ajudou a enriquecer a Igreja Católica. Esses autores, assim como Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo : Cia. das Letras, 1993.), Shwarcz e Starling (2018), Chalhoub (2017CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) demonstram que o “medo branco da onda negra” (Azevedo, 1987AZEVEDO, M. C. D. Onda negra, medo branco: o negro no imagionario das elites - Século XIX. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.) forjou as racionalidades que criaram e mantém no tempo instituições jurídicas, leis e o próprio sistema de justiça (outras instituições) e moralidades como instrumentos de defesa dos interesses das elites formadas por famílias brancas escravagistas que além de tirar todo proveito possível das estruturas estatais, encontraram maneiras de garantir lugares sociais de poder para seus descendentes.

Os efeitos desse modelo de produção atravessaram os séculos constituindo racionalidades e as sociabilidades que forjam as subjetividades até os nossos dias. Como afirma Santos (1997SANTOS, M. As cidadanias mutiladas. In: PIÑON, N., et al. O preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997. p. 133-144., p.135): O modelo cívico brasileiro é herdado da escravidão, tanto o modelo cívico cultural como o modelo cívico político. A escravidão marcou o território, marcou os espíritos e marca ainda hoje as relações sociais deste país [...]. Ou, como diriam Schwarcz e Starling (2018SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. M. Brasil: uma biografia. São Paulo : Cia. das Letras, 2018., p.500): Essa marca que continua presente ainda nos dias de hoje, na nossa arquitetura (nos minúsculos “quartos de empregada” ou nos elevadores de serviço - na verdade, para serviçais), no nosso vocabulário, nas práticas cotidianas de discriminação social e racial [...].

O racismo e o heterossexismo cristão que pautaram o empreendimento militar e financeiro da colonização são bases fortes e bem estruturadas das nossas relações sociais e a despeito de alguns avanços importantes no tocante ao acesso a alguns direitos e à promulgação da Constituição Federal “Cidadã” em 1988, seguimos em uma sociedade racial e socialmente desigual que está marcada por processos que se baseiam em uma igualdade formal que não se concretiza na prática.

Como se sabe a chamada reabertura democrática foi fruto de lutas populares, mas também de acordos entre as elites que mantém em grande medida as estruturas ético-políticas que atravessam nossa história desde a colonização. Este marco temporal - reabertura democrática -, no qual serão baseados os apontamentos deste texto, visa trazer ao debate o fato de que a Democracia Brasileira está baseada, como afirmou Milton Santos (1997SANTOS, M. As cidadanias mutiladas. In: PIÑON, N., et al. O preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997. p. 133-144.) não na ideia de direitos e deveres, mas na manutenção dos privilégios das classes médias, onde o sistema de justiça criminal e a violência de Estado são importantes instrumentos que mantém o racismo, o heterossexismo e a militarização como determinantes das relações sociais.

Em um artigo recente, destaquei a ideia de Estado-Colonial-Penal como a conjugação do poder em um país agro-minero-exportador que possui uma elite branca, masculinista e violenta, que ao longo dos séculos se manteve pela detenção de terras e por se apossar do Estado para garantir seus interesses privados que se baseiam especialmente na superexploração do trabalho (mal remunerado e doméstico) e na eliminação das pessoas indígenas e negras. Elites essas que não abrem mão de negociar com as vidas não-brancas, como afirma Flauzina (apud Alexander, 2018).

De acordo com autores como Schwartz (2011SCHWARTZ, S. B. Burocracia e Sociedade no Brasil: O tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo : Cia. das Letras, 2011.) e Comparato (2015), a colonização foi um empreendimento comercial e militar europeu que envolveu ocupação territorial, violências (inclusive sexual), e brutalidade contra povos originários além da implementação de instrumentos administrativos que desde as primeiras décadas dos anos 1500 já marcavam a intrínseca relação entre poder administrativo, militar e jurisdicional dos arrendatários das terras. De acordo com Schwartz (op. cit, p.43): A carta de doação [das sesmarias] dava ao proprietário ampla jurisdição civil e criminal, a ser exercida por pessoas que ele nomeasse: um magistrado superior (ouvidor) e outros funcionários da justiça: escrivães, tabeliães e meirinhos.

Ainda que existam muitas relações complexas quando tratamos do punitivismo à brasileira em seu desenvolvimento histórico, é fato que o sistema de justiça constitui seu maior expoente. Nele podemos articular tanto as instituições que o compõe como as legislações criminais, o exercício do poder de polícia, os instrumentos, narrativas e moralidades que o alimentam como principal forma de solução dos conflitos na contemporaneidade.

Esse sistema iniciado nos primeiros anos da colonização ficou marcado no tempo como um espaço ocupado majoritariamente por homens brancos e proprietários de terras e seus filhos. Ao longo dos primeiros cem anos do empreendimento colonial foram instituídas práticas que atravessam os séculos e que mantém a estrutura de poder econômico e social no país. Schwartz (2011SCHWARTZ, S. B. Burocracia e Sociedade no Brasil: O tribunal Superior da Bahia e seus desembargadores, 1609-1751. São Paulo : Cia. das Letras, 2011.) nos apresenta um amplíssimo panorama que demonstra como o sistema de justiça no Brasil se constituiu e se mantém e como práticas de amizade, compadrio e nepotismo garantiram (e garantem) privilégios que se naturalizaram como mérito, talento, distinção (Santos apudMunhoz, 2020MUNHOZ, M. L. P. Racismo na interpretação das leis: uma análise sobre a influência da branquitude na aplicação da legislação relativa á discriminação racial. Rio de Janeiro: Lúmen Juris, 2020., p.1)

Esse poder não se constituiu e se manteve sem que uma maquinaria estatal fosse mobilizada inicialmente com a necessidade de manter as terras “descobertas” ocupadas e a partir do uso da ciência e instituições diversas que promoveram conhecimentos e narrativas raciais que instituíram sobre o corpo das pessoas indígenas e negras estereótipos utilizados até os nossos dias2 2 Em agosto de 2020 em uma sentença condenatória a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba (PR) escreveu que o réu, o homem negro, era “Seguramente integrante do grupo criminoso, em função de sua raça, agia de forma extremamente discreta...”. Para mais ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/12/sentenca-de-cunho-racista.htm. Acesso em: 04 Jan. 2021. . Estereótipos citados em reuniões ministeriais e palestras recentes de importantes nomes do atual governo brasileiro3 3 Em palestra proferida em 2018 o atual vice-presidente Hamilton Mourão expôs todo seu racismo - que se ressalte não diz respeito apenas ao vice do governo de Jair Messias Bolsonaro - ao dizer que ainda existe o complexo de vira-lata aqui dentro do nosso país e nós temos que superar isso, e isso, está aí essa crise, política, econômica e psicossocial. Nós temos uma herança cultural; uma herança que tem muita gente que gosta do privilégio, não é [...] mas existe uma tendencia do camarada querer aquele privilégio pra ele. E não pode ser assim. Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência que vem da cultura indígena, e eu sou indígena, presidente, meu pai era amazonense, e a malandragem, Edson Rosa, nada contra, mas a malandragem que é oriunda do africano. Então essa (sic) é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, de líderes populistas, e dos macunaímas [...]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uPqNLiFHxXo. Acesso em: 30 Dez.2020. e do próprio presidente que se referiu ao “peso” de quilombolas em “arrobas”4 4 A declaração foi feita durante uma palestra no Clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, na mesma Jair Messias Bolsonaro expôs além de seu racismo e a misoginia característica de suas falas quando afirmou que a viagem que fez a Israel com quatro filhos dos cinco filhos. Ele disse que tem um quinto [filho], e no quinto eu dei uma fraquejada né, foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada foi uma mulher [...]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fpmq8wRyyXg. Acesso em 30 Dez.2020. .

Esses estereótipos que se mantém no tempo são fruto das teorias raciais europeias incorporadas ao longo dos séculos, a partir do final do século XVIII, e instituídas como políticas de Estado. Como demonstrou Schwarcz (1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo : Cia. das Letras, 1993.), o espetáculo das raças que se concretizou na democracia racial que obscureceu as relações raciais. Para Nascimento (2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo : Perspectivas, 2016.) esses processos criaram mitos, como por exemplo, o que tornou a brutalidade escravista em algo brando, a violência sexual contra mulheres indígenas e negras em amor, e outros que visaram apagar ou abrandar a história de violência da escravização de pessoas indígenas e negras e que vale ressaltar serem frutos de articulações diversas, especialmente do uso de instituições científicas e da importação das teorias raciais europeias.

Por esses e outros importantes elementos de nossa história, quando analisamos o punitivismo à brasileira, não podemos esquecer dos 400 anos de escravização e do poder das elites proprietárias de terra nas principais instituições da justiça; dos ideários eugênicos que em inícios do século XX promoveram políticas públicas em diversos campos da administração estatal, incluindo práticas jurídicas e médicas que impactaram muito na organização espacial das cidades (Schwarcz, 1993SCHWARCZ, L. M. O espetáculo das raças: cientistas instituições e questão racial no Brasil - 1870-1930. São Paulo : Cia. das Letras, 1993.; Chalhoub, 2017CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.; Góes, 2018GÓES, W. L. Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. São Paulo: Liber Ars, 2018.), além da promoção de transformações fundamentais no espaço urbano brasileiro que determinaram importantes estruturas socioespaciais (Santos, 1985SANTOS, M. Espaço e método. São Paulo: Nobel , 1985., 2006; Santos et. al. 1998; Santos, et. al. 2007;) que hoje são fundantes nos discursos “contra o crime e a favor da segurança”. A diferenciação territorial dos lugares da cidade racialmente organizada remonta deste período e como demonstrei em trabalho anterior são fundamentais em relação ao terrorismo de Estado que se implementa em determinados locais das cidades contra determinadas populações (Cruz, 2020CRUZ, M. D. C. Aqui a bala come, não tem aviso prévio: favela, necropolítica e a resistência das mulheres-mães guardiãs da memória. Dissertação (Mestrado). UFRJ/PPGSS. Rio de Janeiro. 2020.).

As dicotomias criadas pela racionalidade colonial que marcam a formação dos Estados modernos, assim como os ideários de “desenvolvimento”, determinam no Brasil importantes questões que implicam na atuação do sistema de justiça criminal desde a atuação violenta e letal das polícias - repressiva e não preventiva (Kant de Lima, 2004) -, até o encarceramento em massa de pessoas negras (Borges, 2018BORGES, J. O que é encarceramento em massa? Belo Horizonte : Letramento: Justificando, 2018.). Essas dualidades que marcam práticas e ideários maniqueístas são frutos de práticas coloniais de cisão e separação do que é bom e mau, do que é moderno e atrasado, características que dizem respeito também às formas de vida de quem são os “colonos” e os “colonizados”, de quem é o ser universal, humano e de quem está na zona do não ser, como demonstrou Fanon (1968FANON, F. Os condenados da terra. Rio de Janeiro : Civilização Brasileira , 1968.) (Idem 2008), que, portanto, pode ser morto, eliminado, seja da vista em relação a sua territorialidade, seja da vida a partir de práticas e narrativas necropolíticas (Mbembe, 2017MBEMBE, A. Necropolítica. São Paulo: n-1 edições, 2017.).

Nesse sentido, no pensamento de Milton Santos há algo a mais que nos interessa: a democracia no Brasil não pode ser pensada a partir de uma ideia “genuína de democracia” na qual encontraríamos, segundo o autor, um regime político onde o centro é o gênero humano em sua plenitude, garantindo-se “liberdade da igualdade e da igualdade à liberdade”, mas uma democracia de mercado onde as relações “econômicas” são priorizadas e as pessoas deixadas em segundo plano, produzindo cidadanias mutiladas.

Essas populações que durante o processo de colonização foram relegadas ao trabalho escravo, classificadas como “sem alma” ou “inumanas”, foram classificadas em relação ao mercado do trabalho livre como “inaptas”, sendo deixadas de fora da possibilidade de acesso a serviços básicos como educação, saúde e de moradias adequadas. Não esqueçamos a produção de uma série de leis e códigos que criaram estratégias bastante eficazes de criminalização das pessoas negras desde o Império, especialmente na República, até que chegamos à contemporaneidade sem que a determinação racial “dos criminosos” esteja explicitada na letra da lei.

Como vemos, são essas pessoas que vivem sob a égide dessas cidadanias mutiladas a quem se destina a penalidade neoliberal (Wacquant, 2001WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.), que determina a atuação do Estado Penal-Colonial que encarcera seletiva e massivamente pessoas negras. Em uma sociedade como a nossa, onde as classes médias se organizam e atuam politicamente por vias democráticas para manter seus privilégios e naturalizar desigualdades (Biroli et. al., 2020BIROLI, F.; MACHADO, M.D.C.; VAGGIONE, J.M. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.), os obstáculos aos exercícios da cidadania é a regra, assim como seu sistema de controle social repressivo (Kant de Lima, 2004).

2. Falsas dicotomias legitimadoras da violência de Estado e o punitivismo à brasileira

Como se buscou demonstrar, as determinações históricas fundadas na racionalidade colonial determinam em grande medida o que é o crime, a pessoa criminosa e quais práticas devem ser punidas jurídica ou moralmente. Quando analisamos os dados que nos dizem quem são as pessoas colocadas nas malhas do Estado colonial-penal como aquelas que devem ser punidas, identificamos os perfis nos quais estão colocados “os outros”: pessoas negras, mulheres, pessoas LGBTQI+ e assim por diante. Identificamos ainda que as relações de opressão na qual se retroalimentam as narrativas punitivistas são as mesmas que socialmente mantém o poder indistintamente nas mesmas mãos.

Ainda que o poder punitivo no mundo encontre muitas expressões como as que se viu nos Estados Unidos recentemente com o encarceramento de imigrantes5 5 Immigration detention in United States. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Immigration_detention_in_the_United_States. Acesso em: 09 Jan. 2021. , a separação de famílias, encarceramento de crianças6 6 ‘Baby Jails’ chronicles America’s ‘shameful’ treatment of migrant kids. Disponível em: https://www.texasobserver.org/philip-schrag-baby-jails-trump/. Acesso em: 09 Jan. 2021. e esterilização forçada7 7 Immigration detention and coerced sterilization: history tragically repeats itself. Disponível em: https://www.aclu.org/news/immigrants-rights/immigration-detention-and-coerced-sterilization-history-tragically-repeats-itself/. Acesso em: 09 Jan. 2021. de mulheres não-brancas, nos interessa, como já dito, as particularidades dessas formas punitivas no Brasil.

Essas particularidades não podem ser analisadas à revelia do espaço (Santos, 2006SANTOS, M.; SILVEIRA, M. L. O Brasil: território e sociedade no início do século XXI. 9ª. ed. Rio de Janeiro: São Paulo: Record, 2006.) onde elas se concretizam nas relações sociais, para nós importa pensar o punitivismo à brasileira, que possui sua principal expressão nos discursos, práticas e moralidades que envolvem a oposição direta entre crime e segurança articulada com questões raciais, morais e de gênero, sobretudo relacionada aos lugares onde as pessoas vivem.

Já dissemos que as pessoas negras após a famigerada abolição deixam de ocupar um lugar (social e moral) de “inumanas” para ocupar o lugar de pessoas não-aptas ao trabalho livre. O trabalho é o que permite que as pessoas acessem minimamente algum direito. Educação, saúde e trabalho, segundo Gomes (2002GOMES, A. D. C. Cidadania e direitos do trabalho. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2002.), formam uma espécie de tríade dos direitos sociais, tríade a qual foi impedido o acesso (formal) das pessoas não-brancas por muito tempo.

A autora nos lembra ainda que a cultura política do Estado Novo apresentou um vínculo entre a ideia de cidadania e a existência de direitos sociais, como direitos do trabalho. Lembremos que durante este período só se acessava a saúde pública a partir da “carteira assinada”. Por outro lado, é importante ainda ressaltar que em nossa breve história os direitos sociais são garantidos a todas as pessoas (uma garantia apenas formal e não de fato) somente a partir da Constituição de 1988.

Essas questões nos interessam a partir do momento em que o trabalho - historicamente negado à população negra - é uma categoria acionada moralmente para determinar quem deve ter direitos. A categoria “trabalhador” é utilizada para legitimar, por exemplo, o direito de não ser morto pela polícia. Não são raros em programas sensacionalistas de rádio e TV que o uso dessa categoria apareça para amenizar a ação violenta do Estado quando os ‘jornalistas’ afirmam conhecer a realidade de que nas favelas os trabalhadores são a maioria em relação aos bandidos.

Essas narrativas morais foram fundadas na negativa de acesso ao trabalho, que depois passaram a determinar a punição moral e penal por vadiagem8 8 Para mais sobre o “crime de vadiagem”. Cf.:Camila Cardoso de Mello Prando. A contravenção penal de vadiagem no Rio de Janeiro (1900-1940): legalismo e prevencionismo nas decisões penais. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=df05dec7f743ab80. Acesso em: 09 Jan. 2021. . São também parte importante das estratégias de diferenciação atuais entre o “bandido” e o “trabalhador”. Esta falsa dicotomia “trabalho vs crime” promove um complexo de ideias, práticas e discursos criminalizantes e criminalizados relacionada as formas de vida subalternizadas, promovendo ao mesmo tempo territórios que serão também parte desse ‘sistema’, como elemento legitimador do discurso punitivista e da violência do Estado.

Chalhoub (2017CHALHOUB, S. Cidade febril: cortiços e epidemias na Corte Imperial. 2ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.) demonstrou como os espaços de moradia (e, portanto, de vida) das pessoas, outrora escravizadas, se formaram na cidade do Rio de Janeiro entre o final do Século XIX e início do Século XX e o trato dado pelo Estado, muito baseado na atuação dos poderes policiais, assim como Mattos (2007; 2012) nos apresenta a articulada relação entre Estado, meios de comunicação, instituições cientificas etc. para a criminalização daqueles territórios negros formados com a auto-organização das pessoas expropriadas até da possibilidade de fazer parte do “mercado de trabalho livre” que havia se instituído.

A produção e a retroalimentação sistêmica do medo branco da onda negra reiterada ao longo dos séculos, são fundantes da militarização como racionalidade que se espraia da atuação do Estado ao identificar e atuar para neutralização ou eliminação de um inimigo, para a apropriação, ainda que não voluntária, pela sociedade em geral que acreditando na violência e força de um “inimigo” que ameaça sua segurança, exige que o Estado “responda à altura” legitimando práticas violadoras.

Na contemporaneidade existem alguns “fortes inimigos a serem enfrentados” como por exemplo os movimentos de trabalhadoras e trabalhadores rurais que lutam pelo direito à terra no campo e o “tráfico de drogas” no meio urbano. Percebe-se que em ambos os casos os meios de comunicação de massa e os políticos de direita acabam por colocá-los na mesma categorização, quando são completamente diferentes. O primeiro se configura como movimento legítimo e democrático de exigibilidade de direitos, o segundo, como um complexo moral relacionado a práticas ilegais instituídas pela Lei n. 11.343/06 (lei de drogas), mas que no senso comum (promovido pelos atores já citados) englobaria não só a venda e o consumo de substâncias tornadas ilícitas, mas também crimes de porte de armas de uso exclusivo, controle territorial, homicídios, roubos e outros crimes, todos tratados como “tráfico de drogas”.

Esse ideário militarizado que a população em geral assume para si, legitima a ação letal do Estado e promove o que Agamben (2004AGAMBEN, G. Estado de exceção. 2ª. ed. São Paulo : Boitempo, 2004.) chamou de estado de necessidade que faz com que se aceite a violação permanente dos direitos de milhares de pessoas e os homicídios de pessoas negras (inclusive de crianças9 9 Entre os anos de 2017 e 2019 as polícias brasileiras assassinaram mais de 2.215 crianças e adolescentes de acordo com o levantamento encomendado pela Folha de S. Paulo ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ressalte-se que nem todas as unidades federativas possuíam a idade das vítimas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml. Acesso em: 09 Jan. 2020. Por outro lado é importante ainda chamar atenção para os casos em que as testemunhas acusam policiais de terem assassinado crianças, mas que houve a impossibilidade por ação ou omissão na investigação e que levaram os casos a serem arquivados sem solução como o caso do menino Maicon de Souza, morto aos dois anos de idade na favela de Acari em 1996, e do menino Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos de idade na porta de casa na localidade Areal no Complexo do Alemão em 2015, ambas favelas no Rio de Janeiro. Os casos foram citados por mim na dissertação de mestrado já referenciada (Cruz, 2020). ) cometidos por agentes de Estado como efeito colateral da “necessária violência para combater o crime”.

Jorge da Silva (1996) ao falar sobre a militarização da segurança chama atenção para o seu caráter ideológico. Ele destaca que a formação de gerações de policiais militares constitui determinada forma de olhar o mundo e exercer suas atividades. Nesse sentido, o período da Ditadura empresarial-civil-militar no Brasil (1964-1985) foi importante dado o grau da institucionalização (e “reprodução ideológica”) de determinadas práticas como a tortura e ação letal legitimada contra determinadas pessoas (aquelas que compõem o mesmo perfil socioeconômico de quem está privado de liberdade).

A morte pela polícia como punição por ser “bandido”, o encarceramento seletivo como membro de facção do tráfico de drogas porque “a área onde foi presa é notoriamente controlada por facção x ou y” são argumentos que relacionam pessoas negras, territórios negros e formas negras de sociabilidade que carregam no tempo os estereótipos que permitem a violação de direitos como punição. Pires (2018) nos ajuda a compreender isto ao demonstrar como a democracia racial foi um dos mecanismos ideológicos do regime que mobilizou práticas seculares de desumanização e inscreveu a partir delas uma forma de atuação racista que não aparece como tal.

O período ditatorial foi marcado pela barbárie produzida contra os opositores políticos do regime: assassinatos, desaparecimentos forçados, instituição de estado de exceção com fechamento do Congresso, suspensão dos remédios constitucionais entre outros elementos importantes marcaram com sangue (também da branquitude) a nossa história. Os filhos da classe média, universitários de esquerda, passaram a ser também torturados, encarcerados, desaparecidos como as populações negras foram (e ainda são)10 10 Os desaparecimentos forçados de pessoas moradoras da Baixada Fluminense (RJ) é um assunto conhecido das pessoas que vivem naqueles municípios há décadas. Alvo de estudos pontuais, mas muito consistentes, passaram mais recentemente a ser assunto nas redes sociais a partir da atuação dos movimentos de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado e de organizações que vem documentando e denunciando os casos. Para mais ver Iniciativa Negra Direito à Memória e Justiça Racial. Disponível em: https://dmjracial.com/2020/09/01/desaparecimentos-forcados-na-baixada-fluminense/. Acesso em: 09 Jan. 2021. . Ou seja, práticas seculares foram reatualizadas para promover e manter o poder na mão dos militares levados ao poder por complexas redes políticas e passaram a ser usadas também contra as classes médias11 11 Um importante exemplo das relações entre militares e empresários pode ser encontrado no documentário Cidadão Boilesen, do diretor Chaim Litewski .

Desde a promulgação da Constituição de 1988 temos experimentado o aprofundamento e a sofisticação das formas punitivas de solução dos conflitos sociais e o uso prático e discursivo do Estado Policial-Penal (Wacquant, 2001WACQUANT, L. As prisões da miséria. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001.; 2007), que reverberam na segunda década do século XXI, em uma população carcerária de 759 mil pessoas e outras tantas envolvidas nas malhas do sistema. São trabalhadores e trabalhadoras, visitantes de pessoas privadas de liberdade, profissionais que atuam nas ruas, juízes, defensoras e defensores públicos, promotores e promotoras que, reproduzindo determinadas ideologias, mantém vivos estereótipos racistas e heterossexistas que retroalimentam o punitivismo em nossa sociedade contra as mesmas pessoas “de sempre”. Por isso não parece possível esquecer o caráter colonial dessas punições.

O discurso que coloca o “crime” em oposição direta à “segurança” está marcado na contemporaneidade, especialmente, nas narrativas sobre o “tráfico de drogas” e as atividades relacionadas pelo senso comum (assaltos, tortura, homicídios, que são outros tipos penais). Além disso, há ainda a hediondez do tráfico como um fator que colabora para que varejistas sejam punidos duramente tanto em relação à pena propriamente dita, como em relação às violências exercidas nos territórios negros, ao contrário do que acontece nos bairros brancos e/ou ricos, onde os varejistas são “estudantes / jovens que vendem drogas”, ou dos “empresários” encontrados com drogas.

A capilarizada narrativa das violências urbanas promovidas por criminosos tem sido a pedra de toque das campanhas político-eleitorais desde pelo menos o final dos anos 1980, e incluem a atuação de grupos de extermínio e “justiceiros”. Já na década de 1990, a narrativa era a ocupação territorial das favelas por “criminosos” e a transformação da “venda de tóxico” em “tráfico de drogas”12 12 Não é possível discutir ou documentar aqui os detalhes dessa “evolução”, mas é importante destacar que naquele momento a “questão do tráfico de drogas” avançava na América Latina e não só no Brasil. Cf.: Castro, L. A. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC,2005. .

As eleições de 2018 são um bom exemplo da capilaridade dessa falsa dicotomia (crime vs Segurança) e de seu uso eleitoral. Aquele pleito foi marcado pela eleição para a Presidência da República de um sujeito com discurso militar (capitão do Exército), assim como foram eleitos nas unidades federativas policiais civis, militares e civis com discursos militarizados.

O pleito foi marcado pelo reavivamento (em grande escala) de ideias que nunca morreram como “minha cor é o Brasil”, “bandido bom é bandido morto”. Os discursos marcadamente racistas, heterossexistas e cristãos foram amplamente mobilizados pela onda neoconservadora imediatamente articulados ao discurso da garantia da segurança que paradoxalmente se descola da ideia de que o Estado deve prover segurança para “Todos”, para promover ideários neoliberais individualistas de que cada um deve prover sua própria segurança, seja física, econômica ou moral.

Essas ideias que não estavam mortas, mas soterradas pelos que as personagens citadas chamam de “politicamente correto”, vem sendo construídas há décadas com discursos “insubordináveis” que se apresentam como algo novo ao passo que articulam ideias como “manutenção da moral e dos bons costumes cristãos”. Biroli, Machado e Vaggione (2020BIROLI, F.; MACHADO, M.D.C.; VAGGIONE, J.M. Gênero, neoconservadorismo e democracia: disputas e retrocessos na América Latina. São Paulo: Boitempo, 2020.) demonstram como essa onda neoconservadora, que se expande na América Latina, é parte de processos bem construídos ao longo dos últimos anos.

Os discursos que dominaram os reclames dos votos pelo impeachment da presidenta Dilma Roussef em 2016 nos falam sobre isso quando colocam como argumentos para a motivação de seus votos, os “riscos oferecidos pela esquerda aos seus filhos, a deus e à família”. Além disso, discursos como o do Presidente Jair Messias Bolsonaro, à época deputado federal, saudavam torturadores e a violência explícita dos períodos ditatoriais brasileiros13 13 Estadão: Bolsonaro exalta Ustra na votação do impeachment de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xiAZn7bUC8A. Acesso em: 09 Jan.2021. .

O apoio do eleitorado foi esmagador e se articulou também a essa onda neoconservadora, que se opõe aos avanços alcançados nas décadas anteriores. A exemplo, relembre-se o caso do deputado mais votado no Rio de Janeiro no citado pleito, que foi protagonista de um ato público de vilipêndio à memória da vereadora Marielle Franco14 14 Marielle Franco foi vereadora no Rio de Janeiro. Eleita no pleito de 2016, assumiu o cargo em 2017 e foi brutalmente assassinada em 14 de março de 2018. Nascida e criada em uma das favelas do Conjunto de Favelas da Maré, socióloga, mestre em Administração Pública, defensora de direitos humanos, negra, mãe e lésbica. A vida, o corpo e a memória de Marielle são a representação viva do que aqueles políticos homens brancos heterossexistas cristãos - que implementaram o golpe contra a única presidenta de nossa história - apresentavam como “risco”, ou seja, o avanço no tocante à garantia de direitos das pessoas consideradas por eles, como “os outros”. ao quebrar uma placa com seu nome ao lado de outros como o governador eleito que afirmava que a polícia “tem que atirar na cabecinha”, que também fora eleito com votação massiva.

Esses elementos são importantes ao passo que explicitam as determinações raciais e de gênero no que diz respeito a quem são as pessoas usuárias de drogas e quem são as traficantes, fator diretamente relacionado aos seus locais de moradia. Uns majoritariamente brancos, os outros majoritariamente negros15 15 O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou em 2019 uma publicação ressaltando as principais desigualdades raciais no Brasil que determinam as condições de moradia, acesso a emprego, renda, saneamento básico, água potável entre outras informações que colaboram para demonstrar como o racismo se estrutura e se mantém a partir da vulnerabilização sistemática das pessoas negras e seus descendentes. Cf.: Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil. Disponível em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681. Acesso em: 22 Dez.2020. , os primeiros a serem protegidos e os segundos a serem controlados.

Nessa dicotomia principal localizamos o elemento essencial que nos interessa como proposta: aquelas mulheres que se organizam para atuar contra o genocídio (Nascimento, 2016NASCIMENTO, A. O genocídio do negro brasileiro. São Paulo : Perspectivas, 2016.; Flauzina, 2008FLAUZINA, A. L. Corpo negro caído no chão: o sistema penal e o projeto genocida do Estado brasileiro. Rio de Janeiro : Contraponto, 2008.; 2014) tornando-se sujeitas e promovendo questionamentos à ordem imposta que encarcera, adoece e mata através do terrorismo promovido pelo Estado (Cruz, 2020CRUZ, M. D. C. Aqui a bala come, não tem aviso prévio: favela, necropolítica e a resistência das mulheres-mães guardiãs da memória. Dissertação (Mestrado). UFRJ/PPGSS. Rio de Janeiro. 2020.) sob a face da chamada guerra às drogas.

3. Mulheres negras, movimentos de resistência e algumas e reflexões sobre um paradoxo útil

A guerra às drogas, que se configura como uma guerra contra pessoas negras, é responsável pelo encarceramento seletivo em massa, especialmente de mulheres. Nas últimas décadas a taxa de encarceramento feminino cresceu vertiginosamente, fundamentalmente por crimes relacionados à lei de drogas. Além disso, a atuação de forças militarizadas (públicas e privadas) em regiões empobrecidas das cidades é o que gera milhares de mortes violentas todos os anos entre massacres, chacinas e homicídios cerca de 60 mil pessoas são assassinadas anualmente no país16 16 Essa é uma informação de conhecimento público e notório, contudo, sugere-se, para informações estatísticas os Atlas da violência, produzidos anualmente pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), e as pesquisas produzidas por organizações da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e os núcleos especializados das universidades públicas. Há ainda importantes pesquisas realizadas pelas Defensorias Públicas Estaduais e Ministérios Públicos Estaduais. .

Desde o início dos anos 1990 o encarceramento seletivo em massa avançou, assim como processos que envolveram chacinas e massacres, o que promoveu a articulação de pessoas vitimadas direta e indiretamente nesses e outros casos. Os movimentos de Mães e Familiares (Freitas, 2000FREITAS, R. D. C. D. S. Mães de Acari: preparando a tinta e revirando a praça. Um estudo sobre mães que lutam. Riio de Janeiro: Tese (doutorado) PPGSS/UFRJ, 2000.; Araújo, 2007ARAÚJO, F. Do Luto à Luta: A experiência das Mães de Acari. (Dissertação) Rio de Janeiro: IFCS , 2007.; Farias, 2007; Farias e Vianna, 2011; entre outros) tem construído reflexões críticas e atuações organizadas contra os processos que constituíram (e constituem) o que elas chamam de Era das Chacinas (Mães de Maio, 2012)17 17 Tristemente ocorreram tantas chacinas que não caberiam todas neste artigo, mas destaco algumas: Chacina de Acari-RJ (26/07/1990), Massacre do Carandiru-SP (02/10/1992), Chacina da Candelária-RJ (23/07/1993), Chacina de Vigário Geral-RJ (29/08/1993), Massacre de Eldorado dos Carajás-PA (17/04/1996), Massacre do Presídio Urso Branco -RO (02/01/2002), Chacina do Borel-RJ (02/04/2003), Chacina do Amarelinho-RJ (28/06/2003), Chacina do Caju-RJ (06/01/2004), Chacina da Baixada-RJ (31/03/2005), Crimes de Maio-SP (12/05/2006), Chacina do Pan-RJ (27/06/2007), Massacre de Pedrinhas-MA (01/11/2010), Chacina de Costa Barros-RJ (28/11/2015), Massacre do Compaj-AM (01/01/2017), Chacina do Fallet-RJ (06/02/2019), Chacina de Manaus-AM (30/10/2019), Chacina do Alemão-RJ (15/05/2020). .

Esses movimentos formados majoritariamente por mulheres negras vêm se articulando e construindo redes em todos os estados do país ao longo das últimas décadas. Através de incidências em espaços públicos (na rua e nas instituições estatais e privadas) elas têm apresentado suas demandas por memória, verdade, justiça e liberdade exigindo a responsabilização pelas mortes e encarceramentos de seus filhos e filhas. Incidindo no legislativo e no judiciário participam de audiências públicas, reuniões fechadas com autoridades, assim como produzem textos que viram leis e atuando como assistentes de acusação em casos de homicídios.

Essas mulheres que compõem o quadro dos sujeitos em suas cidadanias mutiladas, tem se tornado sujeitas - para usar os termos de bell hooks18 18 O nome é escrito em letras minúsculas de acordo com o desejo da própria autora. Para mais informações ver: Mar de Histórias. bell hooks: uma grande mulher em letras minúsculas. Disponível em: https://mardehistorias.wordpress.com/2009/03/07/bell-hooks-uma-grande-mulher-em-letras-minusculas/. Acesso em: 09 Dez.2019. - no processo de luta que vêm travando por vias democráticas no tocante à exigibilidade de direitos, muitos dos quais violados sistematicamente. As exigências se baseiam no “direito à vida”, não no sentido neoconservador cristão, mas no sentido mais amplo de ter direitos no plural. Elas têm enfrentado os processos genocidas que encarceram e matam seus filhos, que as adoece, que implementa ambientes de terror em seus locais de moradia e que impede o desenvolvimento pleno das vidas negras, faveladas e periféricas, ao mesmo tempo em que se reconhecem em suas dores e potencialidades, reconhecendo ainda sua capacidade de transformar a realidade (Cruz, 2020CRUZ, M. D. C. Aqui a bala come, não tem aviso prévio: favela, necropolítica e a resistência das mulheres-mães guardiãs da memória. Dissertação (Mestrado). UFRJ/PPGSS. Rio de Janeiro. 2020.).

Nessa atuação coletiva capilarizada nacionalmente e que as mobiliza, começa na dor vivida a partir das violências executadas direta ou indiretamente “pelo Estado” e se desdobra em processos que já duram décadas, especialmente na espera da tão demandada justiça. Exigibilidade de direitos, muitas vezes entendida como o direito a ver punidos penalmente os responsáveis por suas perdas, marca o que chamei inicialmente de paradoxo: enquanto lutam contra uma estrutura punitiva que encarcera e mata as pessoas que amam, as Mulheres-Mães19 19 Trabalha-se a categoria como uma categoria complexa que identifica as mulheres articuladas nos movimentos, não somente as mães, mas outras mulheres que ali se junta à luta, tias, irmãs, amigas, companheiras e às vezes, os pais. (Idem) vêm na responsabilização por meio do sistema penal o objetivo de suas lutas.

Esse paradoxo que identifico a partir de minha atuação militante abolicionista e apoiadora desses movimentos, somente se torna compreensível a partir da análise que identifica as racionalidades que fundam nossa sociabilidade (no Brasil) e que coloca as mulheres negras como sujeitas em uma sociedade punitivista, racista, heterossexista, cristã e militarizada, compreendendo-as (a elas e a mim), portanto, como passíveis de reproduzir determinados valores que nos atacam.

Por outro lado, em nossa constituição como sujeitas, promovemos reflexões críticas sobre o sistema penal e as violências que vivemos, sobre o Estado em suas características coloniais, que o forjaram criando assim outras possibilidades de questionamento desses sistemas complexos que estão entranhados em nossa sociabilidade e que moldam nossos locais e modos de vida. O reconhecimento do caráter racial e de gênero dessas violências tem proporcionado ainda importantes reflexões coletivas que reverberam para dentro das famílias e comunidades onde estas Mulheres-Mães atuam.

A relação intrínseca entre a violência letal da polícia e as violências promovidas pelo cárcere como a fome, o adoecimento e a tortura são reconhecidos pelas Mulheres-Mães nas práticas, nos discursos e moralidades que as atingem durante o percurso da luta por memória, verdade, justiça e liberdade e desde 2016 elas protagonizam a articulação nacional da Agenda Pelo Desencarceramento, que já fundou Frentes Estaduais em 18 unidades federativas e que vem promovendo a luta anti-cárcere com um grande potencial abolicionista.

Esta discussão é feita a título de exemplo (sem grandes aprofundamentos), e visa chamar atenção das pessoas abolicionistas penais para algumas das possibilidades com as quais nos deparamos. Fatalmente o debate abolicionista contemporâneo, assim como outros que balizam a atuação militante/ativista contra o capitalismo e seus males são baseados em propostas e reflexões, que tem por sua vez bases em sociedades que nada se assemelham a nossa. Ainda que façam parte de realidades produzidas a partir da exploração de países como o Brasil, necessitam de conhecimento próprio, das nossas particularidades e partindo do reconhecimento de que aquelas pessoas que são alvo do sistema punitivo e suas artimanhas que estão se colocando contrárias a ele, mesmo quando o acionam, e que podem construir possibilidades eficazes de promoção de ideias abolicionistas e anticapitalistas.

4. Considerações finais

A proposta deste artigo, mais do que apresentar saídas para a expansão punitiva, é colaborar para uma reflexão que nos leve a produzir e promover coletivamente propostas de transformação radical da sociedade. A punição penal, as violências, a militarização estão na base da nossa sociabilidade, fundaram o Estado brasileiro promovem muito mais problemas que soluções para as questões propagadas como seu alvo.

As violências produzidas, promovidas ou exercidas pelo Estado brasileiro se sofisticaram ao longo dos séculos como se buscou demonstrar. Contudo, aqui interessa o que passa a haver na sociedade brasileira entre o final dos anos 1980 e início dos anos 1990. Fatalmente, nestas análises, se notará um hiato entre as políticas higienistas dos anos 192020 20 Para análises sobre esse período, especialmente em relação ao Rio de Janeiro Cf.: Chalhoub (2016; 2017); Mattos (2011; 2012). , as políticas eugenistas implementadas a partir dos anos 193021 21 Cf.: GÓES, W. L. Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. São Paulo: Liber Ars, 2018. , brevemente citadas anteriormente, assim como as ditaduras pelas quais passamos22 22 Cf.: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. M. Brasil: uma biografia. São Paulo : Cia. das Letras, 2018. .

Analisar um país distorcido nos impede de reconhecer as cidadanias mutiladas que deixam vulnerável a maior parte da população brasileira, que é alvo de um sistema punitivo complexo desde que se repartiram as terras durante a invasão colonial. Ou seja, análises que tem por base apenas teorias eurocêntricas que não dialogam com a nossa realidade nos levam a erros que nos impedem de avançar rumo a uma sociedade sem prisões e sem polícias que promova práticas e valores anticapitalistas.

A racionalidade colonial e moderna que se utiliza de maniqueísmos de base cristã para determinar falsas dicotomias como o bem e o mal, novo e o velho, que promovem como afirma Bispo (2019BISPO, A. Colonização, quilombos: modos e significação. Brasília: Associação de Ciências e Saberes para o Etnodesenvolvimento AYÓ, 2019.) formas de organização baseadas no monoteísmo, desterritorializado, exclusivista, vertical e/ou linear são a base das sociabilidades que somente enxerga “isso ou aquilo” como solução para os conflitos sociais. Em nossos termos, poderíamos chamar atenção para outro bordão racista e conservador: cadeia ou caixão como únicas saídas para as pessoas que não se adequem ao contrato social.

Por outro lado, não esqueçamos: este mesmo contrato social que fundou o Estado brasileiro excluiu da humanidade pessoas não-brancas, que de uma maneira ou outra serão consideradas “desviantes” do caminho linear de desenvolvimento e que na lógica moderna deve ser traçado por aqueles ou aquelas que querem sobreviver.

Processos de contra-colonização (Bispo, 2019BISPO, A. Colonização, quilombos: modos e significação. Brasília: Associação de Ciências e Saberes para o Etnodesenvolvimento AYÓ, 2019.) devem ser iniciados, continuados e mantidos em todas as propostas que tenham por ambição transformar a sociedade. Essa cosmovisão que tende a ser hierarquizada e que coloca o gênero masculino e branco como universal deve ser questionada e nossas propostas devem buscar formas de organização que foram apagadas dos nossos espaços de letramento. Há um longo caminho ainda a ser traçado para enfrentar o genocídio antinegro e indígena que se mantém no tempo. Como nos ensina Angela Davis (2018aDAVIS, A. Estarão das prisões obsoletas? Rio de Janeiro: Difel, 2018.): a liberdade é uma luta constante e as mulheres negras são aquelas que, segundo Lélia Gonzalez (2018GONZALEZ, L. Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzales em primeira pessoa. Diáspora Africana: Filhos da África, 2018.), carregam a sua chama.

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  • WERNEK, J. Quem vai dizer o nome dela? Sobre violência, aniquilamento e mulheres negras. In: FLAUZINA, A. L.; VARGAS, J. H. C. Motim: horizontes do genocídio antinegro na Diáspora. Brasília: Brado Negro, 2017. p. 107-124.
  • 1
    Para Ribeiro (apud Santos, 2002, p.8): [...] O país distorcido resultado de um olhar distorcido, fruto da assimilação acrítica de temas de pesquisa impostos de fora. [...]. Um olhar distorcido, então, porque se recusa a adentrar o território para conhecer a gente que nele vive, bem como suas condições de vida e necessidades. Um olhar distorcido que enlaça o país e seus recursos naturais em uma teia de relações sociais complexas - ditas “globais” - e que afirma um único padrão de inserção internacional para o Brasil sem levar em conta a nossa formação socioespacial, categoria que o próprio Milton criou. Um olhar de quem tem “preguiça intelectual”, como dizia à boca pequena o geógrafo baiano, e não quer ousar buscar o novo para si e para o Brasil.
  • 2
    Em agosto de 2020 em uma sentença condenatória a juíza Inês Marchalek Zarpelon, da 1ª Vara Criminal de Curitiba (PR) escreveu que o réu, o homem negro, era “Seguramente integrante do grupo criminoso, em função de sua raça, agia de forma extremamente discreta...”. Para mais ver: https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2020/08/12/sentenca-de-cunho-racista.htm. Acesso em: 04 Jan. 2021.
  • 3
    Em palestra proferida em 2018 o atual vice-presidente Hamilton Mourão expôs todo seu racismo - que se ressalte não diz respeito apenas ao vice do governo de Jair Messias Bolsonaro - ao dizer que ainda existe o complexo de vira-lata aqui dentro do nosso país e nós temos que superar isso, e isso, está aí essa crise, política, econômica e psicossocial. Nós temos uma herança cultural; uma herança que tem muita gente que gosta do privilégio, não é [...] mas existe uma tendencia do camarada querer aquele privilégio pra ele. E não pode ser assim. Essa herança do privilégio é uma herança ibérica. Temos uma certa herança da indolência que vem da cultura indígena, e eu sou indígena, presidente, meu pai era amazonense, e a malandragem, Edson Rosa, nada contra, mas a malandragem que é oriunda do africano. Então essa (sic) é o nosso cadinho cultural. Infelizmente gostamos de mártires, de líderes populistas, e dos macunaímas [...]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=uPqNLiFHxXo. Acesso em: 30 Dez.2020.
  • 4
    A declaração foi feita durante uma palestra no Clube Hebraica no Rio de Janeiro em 2017, na mesma Jair Messias Bolsonaro expôs além de seu racismo e a misoginia característica de suas falas quando afirmou que a viagem que fez a Israel com quatro filhos dos cinco filhos. Ele disse que tem um quinto [filho], e no quinto eu dei uma fraquejada né, foram quatro homens, a quinta eu dei uma fraquejada foi uma mulher [...]. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=fpmq8wRyyXg. Acesso em 30 Dez.2020.
  • 5
    Immigration detention in United States. Disponível em: https://en.wikipedia.org/wiki/Immigration_detention_in_the_United_States. Acesso em: 09 Jan. 2021.
  • 6
    ‘Baby Jails’ chronicles America’s ‘shameful’ treatment of migrant kids. Disponível em: https://www.texasobserver.org/philip-schrag-baby-jails-trump/. Acesso em: 09 Jan. 2021.
  • 7
    Immigration detention and coerced sterilization: history tragically repeats itself. Disponível em: https://www.aclu.org/news/immigrants-rights/immigration-detention-and-coerced-sterilization-history-tragically-repeats-itself/. Acesso em: 09 Jan. 2021.
  • 8
    Para mais sobre o “crime de vadiagem”. Cf.:Camila Cardoso de Mello Prando. A contravenção penal de vadiagem no Rio de Janeiro (1900-1940): legalismo e prevencionismo nas decisões penais. Disponível em: http://publicadireito.com.br/artigos/?cod=df05dec7f743ab80. Acesso em: 09 Jan. 2021.
  • 9
    Entre os anos de 2017 e 2019 as polícias brasileiras assassinaram mais de 2.215 crianças e adolescentes de acordo com o levantamento encomendado pela Folha de S. Paulo ao Fórum Brasileiro de Segurança Pública. Ressalte-se que nem todas as unidades federativas possuíam a idade das vítimas. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2020/12/em-tres-anos-policiais-mataram-ao-menos-2215-criancas-e-adolescentes-no-pais.shtml. Acesso em: 09 Jan. 2020. Por outro lado é importante ainda chamar atenção para os casos em que as testemunhas acusam policiais de terem assassinado crianças, mas que houve a impossibilidade por ação ou omissão na investigação e que levaram os casos a serem arquivados sem solução como o caso do menino Maicon de Souza, morto aos dois anos de idade na favela de Acari em 1996, e do menino Eduardo de Jesus, morto aos 10 anos de idade na porta de casa na localidade Areal no Complexo do Alemão em 2015, ambas favelas no Rio de Janeiro. Os casos foram citados por mim na dissertação de mestrado já referenciada (Cruz, 2020).
  • 10
    Os desaparecimentos forçados de pessoas moradoras da Baixada Fluminense (RJ) é um assunto conhecido das pessoas que vivem naqueles municípios há décadas. Alvo de estudos pontuais, mas muito consistentes, passaram mais recentemente a ser assunto nas redes sociais a partir da atuação dos movimentos de Mães e Familiares de Vítimas do Terrorismo de Estado e de organizações que vem documentando e denunciando os casos. Para mais ver Iniciativa Negra Direito à Memória e Justiça Racial. Disponível em: https://dmjracial.com/2020/09/01/desaparecimentos-forcados-na-baixada-fluminense/. Acesso em: 09 Jan. 2021.
  • 11
    Um importante exemplo das relações entre militares e empresários pode ser encontrado no documentário Cidadão Boilesen, do diretor Chaim Litewski
  • 12
    Não é possível discutir ou documentar aqui os detalhes dessa “evolução”, mas é importante destacar que naquele momento a “questão do tráfico de drogas” avançava na América Latina e não só no Brasil. Cf.: Castro, L. A. Criminologia da libertação. Rio de Janeiro: Revan: ICC,2005.
  • 13
    Estadão: Bolsonaro exalta Ustra na votação do impeachment de 2016. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=xiAZn7bUC8A. Acesso em: 09 Jan.2021.
  • 14
    Marielle Franco foi vereadora no Rio de Janeiro. Eleita no pleito de 2016, assumiu o cargo em 2017 e foi brutalmente assassinada em 14 de março de 2018. Nascida e criada em uma das favelas do Conjunto de Favelas da Maré, socióloga, mestre em Administração Pública, defensora de direitos humanos, negra, mãe e lésbica. A vida, o corpo e a memória de Marielle são a representação viva do que aqueles políticos homens brancos heterossexistas cristãos - que implementaram o golpe contra a única presidenta de nossa história - apresentavam como “risco”, ou seja, o avanço no tocante à garantia de direitos das pessoas consideradas por eles, como “os outros”.
  • 15
    O Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) apresentou em 2019 uma publicação ressaltando as principais desigualdades raciais no Brasil que determinam as condições de moradia, acesso a emprego, renda, saneamento básico, água potável entre outras informações que colaboram para demonstrar como o racismo se estrutura e se mantém a partir da vulnerabilização sistemática das pessoas negras e seus descendentes. Cf.: Desigualdades sociais por raça ou cor no Brasil. Disponível em:https://biblioteca.ibge.gov.br/index.php/biblioteca-catalogo?view=detalhes&id=2101681. Acesso em: 22 Dez.2020.
  • 16
    Essa é uma informação de conhecimento público e notório, contudo, sugere-se, para informações estatísticas os Atlas da violência, produzidos anualmente pelo Instituto de Pesquisas Econômicas Aplicadas (IPEA), e as pesquisas produzidas por organizações da sociedade civil como o Fórum Brasileiro de Segurança Pública e os núcleos especializados das universidades públicas. Há ainda importantes pesquisas realizadas pelas Defensorias Públicas Estaduais e Ministérios Públicos Estaduais.
  • 17
    Tristemente ocorreram tantas chacinas que não caberiam todas neste artigo, mas destaco algumas: Chacina de Acari-RJ (26/07/1990), Massacre do Carandiru-SP (02/10/1992), Chacina da Candelária-RJ (23/07/1993), Chacina de Vigário Geral-RJ (29/08/1993), Massacre de Eldorado dos Carajás-PA (17/04/1996), Massacre do Presídio Urso Branco -RO (02/01/2002), Chacina do Borel-RJ (02/04/2003), Chacina do Amarelinho-RJ (28/06/2003), Chacina do Caju-RJ (06/01/2004), Chacina da Baixada-RJ (31/03/2005), Crimes de Maio-SP (12/05/2006), Chacina do Pan-RJ (27/06/2007), Massacre de Pedrinhas-MA (01/11/2010), Chacina de Costa Barros-RJ (28/11/2015), Massacre do Compaj-AM (01/01/2017), Chacina do Fallet-RJ (06/02/2019), Chacina de Manaus-AM (30/10/2019), Chacina do Alemão-RJ (15/05/2020).
  • 18
    O nome é escrito em letras minúsculas de acordo com o desejo da própria autora. Para mais informações ver: Mar de Histórias. bell hooks: uma grande mulher em letras minúsculas. Disponível em: https://mardehistorias.wordpress.com/2009/03/07/bell-hooks-uma-grande-mulher-em-letras-minusculas/. Acesso em: 09 Dez.2019.
  • 19
    Trabalha-se a categoria como uma categoria complexa que identifica as mulheres articuladas nos movimentos, não somente as mães, mas outras mulheres que ali se junta à luta, tias, irmãs, amigas, companheiras e às vezes, os pais.
  • 20
    Para análises sobre esse período, especialmente em relação ao Rio de Janeiro Cf.: Chalhoub (2016; 2017); Mattos (2011; 2012).
  • 21
    Cf.: GÓES, W. L. Racismo e eugenia no pensamento conservador brasileiro: a proposta de povo em Renato Kehl. São Paulo: Liber Ars, 2018.
  • 22
    Cf.: SCHWARCZ, L. M.; STARLING, H. M. M. Brasil: uma biografia. São Paulo : Cia. das Letras, 2018.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    03 Mar 2021
  • Data do Fascículo
    Jan-Mar 2021

Histórico

  • Recebido
    15 Jan 2021
  • Aceito
    21 Jan 2021
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