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Mulheres vivenciando a intergeracionalidade da violência conjugal1 1 Artigo extraído da dissertação de mestrado "Violência conjugal: compreendendo o fenômeno a partir do discurso feminino", apresentada à Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.

Resumos

Objetivo:

analisar a relação familiar, na infância e adolescência, de mulheres que vivenciam violência conjugal.

Método:

estudo qualitativo. Foram entrevistadas 19 mulheres, em vivência de violência conjugal, residentes em uma comunidade de Salvador, Bahia, Brasil. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa (nº 42/2011).

Resultados:

os dados foram organizados pelo método Discurso do Sujeito Coletivo, identificando-se as ideias centrais síntese: presenciaram violência entre os pais; sofreram repercussões da violência entre os pais; indignaram-se com a submissão da mãe ao companheiro; e reproduziram a violência conjugal. O discurso mostrou que as mulheres presenciaram, na infância e adolescência, violência entre os pais, sendo agredidas fisicamente e moralmente. Diante da submissão da mãe surgiram sentimentos de indignação dos filhos. No entanto, na fase adulta, perceberam que sua vida conjugal assemelha-se a dos pais, reproduzindo a violência.

Conclusão:

é necessário o investimento em estratégias de rompimento da violência intergeracional, e os profissionais de saúde têm importância neste processo, por ser um fenômeno com repercussão na saúde. Por atuarem na Estratégia Saúde da Família, que foca na prevenção de agravos e doenças, promoção da saúde e intersetorialidade, os enfermeiros são essenciais no processo de prevenção e enfrentamento deste fenômeno.

Conflito Conjugal; Violência Doméstica; Violência contra a Mulher; Gastos em Saúde; Relação entre Gerações; Reprodução


Objective:

to analyze the family relationship, in childhood and adolescence, of women who experience conjugal violence.

Method:

qualitative study. Interviews were held with 19 women, who were experiencing conjugal violence, and who were resident in a community in Salvador, Bahia, Brazil. The project was approved by the Research Ethics Committee (N. 42/2011).

Results:

the data was organized using the Discourse of the Collective Subject, identifying the summary central ideas: they witnessed violence between their parents; they suffered repercussions from the violence between their parents: they were angry about the mother's submission to her partner; and they reproduced the conjugal violence. The discourse showed that the women witnessed, in childhood and adolescence, violence between their parents, and were injured both physically and psychologically. As a result of the mother's submission, feelings of anger arose in the children. However, in the adult phase of their own lives, they noticed that their conjugal life resembled that of their parents, reproducing the violence.

Conclusion:

investment is necessary in strategies designed to break inter-generational violence, and the health professionals are important in this process, as it is a phenomenon with repercussions in health. Because they work in the Family Health Strategy, which focuses on the prevention of harm and illness, health promotion and interdepartmentality, the nurses are essential in the process of preventing and confronting this phenomenon.

Family Conflict; Domestic Violence; Violence Against Women; Health Spenditures; Intergenerational Relations; Reproduction


Objetivo:

analizar la relación familiar, en la infancia y adolescencia, de mujeres que experimentan violencia conyugal.

Método:

estudio cualitativo. Fueron entrevistadas 19 mujeres, experimentando violencia conyugal, residentes en una comunidad de Salvador, Bahía, Brasil. El proyecto fue aprobado por el Comité de Ética en Investigación (nº 42/2011).

Resultados:

los datos fueron organizados por el método Discurso del Sujeto Colectivo, identificando las ideas centrales sintetizadas: presenciaron violencia entre los padres; sufrieron repercusiones de la violencia entre los padres; se indignaron con la sumisión de la madre al compañero; y reprodujeron la violencia conyugal. El discurso mostró que las mujeres presenciaron, en la infancia y adolescencia, violencia entre los padres, siendo agredidas físicamente y moralmente. Delante de la sumisión de la madre surgieron sentimientos de indignación de los hijos. Sin embargo, en la fase adulta, percibieron que su vida conyugal se asemeja a la de sus padres, reproduciendo la violencia.

Conclusión:

es necesario realizar inversiones en estrategias de rompimiento de la violencia intergeneracional, y los profesionales de la salud tienen importancia en este proceso, por ser un fenómeno con repercusión en la salud. Por actuar en la Estrategia Salud de la Familia, que tiene enfoque en la prevención de daños y enfermedades, promoción de la salud e intersectorialidad, los enfermeros son esenciales en el proceso de prevención y enfrentamiento de este fenómeno.

Conflicto Familiar; Violencia Domestica; Violencia contra la Mujer; Gastos en Salud; Relaciones Intergeneracionales; Reproducción


Introdução

A violência contra a mulher é um fenômeno multicausal, que possui como fator comum a naturalização das iniquidades de gênero. O Brasil registrou 16,9 mil mortes de mulheres por conflito de gênero, entre 2009 e 2011, especialmente em casos de agressão perpetrada por parceiros íntimos, tendo uma taxa de 5,8 casos em 100 mil mulheres, sendo que no Nordeste esta taxa aumenta para 6,9( 1. Minne J, Chalamet M, Gabriel MAO, Carneiro RS, Teixeira A. Uma análise socioeconômica das mulheres da Praça da Bandeira. Rev Conexões Psi. 2014;2(1):84-108. ).

Em relação aos impactos, aproximadamente 35% das queixas das mulheres nos serviços de saúde estão associadas a algum tipo de agressão( 2. Domingues B, Machado K. Às vítimas de violência sexual, atendimento humanizado. Radis Comun Saúde. 2011; (92):10-5. ). Em decorrência disso, os gastos públicos no Brasil, em 2004, revelam que o setor da saúde gastou no tratamento de pacientes portadores de Hipertensão Arterial, 804 milhões de reais, e com a violência, que inclui prevenção, tratamento e reabilitação dos vitimizados, foram gastos em torno de 90,2 bilhões de reais, equivalendo a um gasto de 5% do PIB (Produto Interno Bruto), demonstrando, desta forma, que a violência tem grandes repercussões financeiras( 3. Silva M. Conferência Nacional de Saúde Mental. Violência: um problema de saúde pública. Ministério da Saúde. Brasília; 2010. 6 p. ).

Uma pesquisa realizada aponta que o ambiente doméstico é um espaço central de maus-tratos às mulheres, sendo o companheiro o principal agressor( 4. Gomes NP, Silveira YM, Diniz NMF, Paixão GPN, Camargo CL, Gomes NR. Identificação da violência na relação conjugal a partir da estratégia saúde da família1. Texto Contexto Enferm. 2013;22(3):789-96. ), caracterizando a violência conjugal, definida como qualquer ato baseado nas diferenças de gênero, que resulte ou possa resultar em dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico, cometido por homens ou mulheres contra a pessoa com que ele(a) tem um relacionamento íntimo( 5. Miranda MPM, Paula CS, Bordin IA. Violência conjugal física contra a mulher na vida: prevalência e impacto imediato na saúde, trabalho e família. Rev Panam Salud Publica. 2010;27(40):300-8. ). Salienta-se que, tal definição não se limita a relacionamentos legalmente estabelecidos, nem ao sexo da vítima ou perpetrador, englobando as relações homoafetivas.

A violência conjugal ocorre de forma cíclica e repetitiva, sendo intensificada ao longo do tempo( 6. Paixão GPN, Gomes NP, Diniz NMF, Couto TM, Vianna LAC, Santos SMP. Situations which precipitate conflicts in the conjugal relationship: the women's discourse. Texto Contexto Enferm. 2014;23(4):1041-9. ). Um estudo realizado a partir dos atendimentos do disque denúncia revelou que em 38% dos casos a relação com o agressor tem mais de 10 anos( 7. Secretaria de Políticas Para as Mulheres (BR). Balanço central de Atendimento à Mulher. Brasília (DF): Secretaria de Políticas Para as Mulheres; 2010. ). Percebe-se, ainda, que apesar dos longos anos de vivência de violência, muitas mulheres continuam no relacionamento.

As motivações para permanência na relação conflituosa ancoram-se na ideia de que a mulher deve obediência ao homem, sobretudo ao esposo, fazendo com que muitas vivenciem violência conjugal de forma passiva durante toda a vida. A mulher age conforme os sistemas de valores construídos socialmente, que norteiam e influenciam o modo de significação e compreensão do fenômeno, de modo que não se identifica como ser oprimido, impedindo-a de se perceber em vivência de violência( 8. Passos MD, Gugelmin SÂ, Castro IR, Carvalho MC. Social representations of the body: a study of adolescents in the city of Rio de Janeiro, Brazil. Cad Saúde Pública. 2013;29(12):2383-93. ).

A naturalização das iniquidades de gênero sustenta-se na dicotomia entre feminino e masculino, historicamente baseada nas diferenças anátomo-fisiológicas, as quais expressam princípios de visão e divisão dos sujeitos: mulher/inferior, frágil e passiva e homem/superior, forte e ativo. Na relação intrafamiliar, estes padrões dicotômicos são assimilados, reproduzidos e legitimados( 9. Tondowski CS, Feijó MR, Silva EA, Gebara CF, Sanchez ZM, Noto AR. Padrões Intergeracionais de Violência Familiar Associada ao Abuso de Bebidas Alcoólicas: Um Estudo Baseado em Genogramas. Psicologia: Reflexão e Crítica. 2014;27(4):806-14. ).

Como se não bastasse a internalização da desigualdade de gênero, a violência conjugal presenciada pelas crianças tende a ser reproduzida. Isto ocorre devido ao mecanismo de internalização, que funciona como forma de identificação/semelhança com base nos comportamentos e valores aprendidos, os quais são naturalizados entre os diferentes grupos sociais( 9. Tondowski CS, Feijó MR, Silva EA, Gebara CF, Sanchez ZM, Noto AR. Padrões Intergeracionais de Violência Familiar Associada ao Abuso de Bebidas Alcoólicas: Um Estudo Baseado em Genogramas. Psicologia: Reflexão e Crítica. 2014;27(4):806-14. ). Esta realidade mostra o quanto a convivência em um ambiente violento condiciona as pessoas a repetirem as mesmas práticas. Assim, por ausência de outros modelos de relações familiares, homens e mulheres tendem a reproduzir a história de violência que vivenciaram na infância ou adolescência( 1010 . Gomes NP, Diniz NMF, Araújo AJS, Coelho TMF. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul Enferm. 2007;20(4):504-8. - 1111 . Lima GQ, Werlang BSG. Mulheres que sofrem violência doméstica: contribuições da psicanálise. Psicol Estud. 2011;16(4):511-20. ).

Partindo do pressuposto de que há associação entre vivência de violência entre entes familiares durante a infância/adolescência, principalmente quando acontece entre os pais, na relação conjugal, o estudo teve como objetivo analisar a relação familiar, na infância e adolescência, de mulheres que vivenciam violência conjugal.

Método

Estudo com abordagem qualitativa, do tipo social estratégica, visto que fundamenta-se nas teorias das ciências sociais, mas têm como principal objetivo esclarecer determinados aspectos da realidade para ação das políticas públicas( 1212 . Minayo MCS. Análise qualitativa: teoria, passos e fidedignidade. Cienc Saúde Coletiva. 2012;17(3):621-6. ). A pesquisa foi realizada na cidade de Salvador (Bahia, Brasil), em uma comunidade que caracteriza-se por baixos indicadores socioeconômicos. Nesta comunidade há uma associação que oferece apoio aos moradores, promovendo espaços de entretenimento, educação e saúde. Esta entidade foi criada em 1992, propondo um espaço onde as mulheres pudessem discutir os problemas relacionados ao seu cotidiano, principalmente sobre violência doméstica, por ser um agravo presente na vida das primeiras integrantes, levando-as a um aprofundamento na questão dos direitos das mulheres.

Colaboraram com o estudo 19 mulheres, as quais atenderam aos critérios de inclusão: ser maior de 18 anos, residir na comunidade e ter histórico de violência na relação conjugal. O contato com as colaboradoras aconteceu pelo apoio da associação referida, que possibilitou aproximação entre pesquisadora e mulheres, selecionando as possíveis colaboradoras do estudo.

Esta pesquisa seguiu o disposto na Resolução 196/96 do Conselho Nacional de Saúde, sendo o projeto certificado pelo nº 42/2011 do Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de Enfermagem da Universidade Federal da Bahia (UFBA). Neste sentido, foram assegurados os preceitos éticos na pesquisa, tal qual, a garantia do direito de decidir sobre a participação e desistência em qualquer etapa. Foram esclarecidas acerca da confidencialidade das informações e ausência de benefícios financeiros. Ao aceitarem participar do estudo, as colaboradoras assinaram o Termo de Consentimento Livre e Esclarecido.

A coleta de dados ocorreu em uma sala da associação, em horário predefinido e agendado com as colaboradoras, sendo efetuada a partir da entrevista e direcionada pela questão norteadora "Fale sobre a vivência conjugal de seus pais em sua infância". A coleta aconteceu entre março e maio de 2012 e as entrevistas duraram de 25 a 55 minutos.

As falas foram transcritas após a entrevista e organizadas de acordo com a estratégia metodológica do Discurso do Sujeito Coletivo (DSC), sendo uma técnica encontrada para resgatar o discurso coletivo nos discursos individuais. Neste método, o pensamento coletivo não está ligado ao somatório dos pensamentos individuais (representação numérica percentual), mas ao discurso da coletividade, imaginário social, representações sociais e pensamento preexistente. A proposta do DSC visa, antes de tudo, realizar as devidas correlações que a coletividade traz em seu discurso e que carregam os valores intrínsecos, próprios da cultura, presentes no cotidiano dos sujeitos sociais( 1313 . Figueredo MA, Chiari BM, Goulart BNG. Discurso do sujeito coletivo: uma breve introdução à ferramenta de pesquisa qualiquantitativa. Disturb Comum. 2013; 25(1):129-36. ).

Para seguir fielmente ao método, algumas etapas foram cumpridas, referidas a seguir: realização da transcrição das falas, resultantes da entrevista; análise do material verbal coletado, extraindo-se de cada um dos depoimentos orais as seguintes figuras metodológicas: Ideias Centrais - IC e suas respectivas Expressões Chave - ECH; a partir das IC e ECH, estruturou-se os vários discursos-síntese, denominados DSC( 1313 . Figueredo MA, Chiari BM, Goulart BNG. Discurso do sujeito coletivo: uma breve introdução à ferramenta de pesquisa qualiquantitativa. Disturb Comum. 2013; 25(1):129-36. ). A análise dos dados fundamentou-se nas temáticas de violência doméstica, relações de gênero e violência intergeracional.

Resultados

As colaboradoras caracterizam-se pela faixa etária entre 19 e 58 anos, serem negras e com baixa escolaridade.

As entrevistas individuais foram organizadas em quatro ideias centrais síntese, que possibilitou melhor compreensão sobre a infância e adolescência das mulheres em vivência de violência conjugal, a saber: presenciaram violência entre os pais; sofreram as repercussões da violência entre os pais; indignaram-se com a submissão da mãe ao companheiro; e reproduzindo a violência conjugal.

Ideia central síntese 1 - Presenciaram a violência entre os pais

Nesta ideia central, pode-se perceber que as mulheres que vivem em um relacionamento conjugal permeado pela violência, presenciaram, quando crianças, violência entre os pais, como explícito no discurso a seguir: Quando mainha morava com ele, ela sofria muito. Era um sofrimento horrível. Eles viviam violência. Ele pegava as coisas da casa, vendia, maltratava ela, não respeitava, botava as mulheres dentro de casa para usar drogas, para transar e mainha ficava calada. Queria bater, era o tempo todo gritando com ela, falava que ia bater, aquela pressão psicológica. Meu pai sempre foi autoritário, machista, preconceituoso, ciumento. Dominava minha mãe. Meu pai passava muito tempo longe de casa, porque trabalhava viajando. Minha mãe nunca trabalhou fora porque ele nunca gostou, não deixava. Eles brigavam muito por ciúmes, falta de dinheiro, uso de bebidas. Era possessivo, não deixava ela sair de casa nem para casa de minha avó. Mãe foi muito guerreira, criou os filhos, nós seis, praticamente sozinha, porque o dinheiro de meu pai era para o jogo, bebidas e mulheres na rua. Às vezes minha mãe procurava dinheiro para comprar comida e não achava, porque ele gastava tudo na rua. Quando ele não estava, ela lavava roupa para os outros, fazia faxina, sem ele saber, e com esse dinheiro a gente comia [...] e ainda chegava em casa e tomava as porradas dele. Ela adoecia [...]. Até hoje, ele carrega a culpa de ter deixado a bebida tomar conta da vida dele e destruir nossa família. (Discurso do Sujeito Coletivo 1)

Ideia central síntese 2 - Sofreram as repercussões da violência entre os pais

Neste discurso coletivo, evidencia-se que a violência conjugal traz repercussões para os filhos, revelando que a agressão não se limita apenas à companheira.[...] quando eles brigavam acabava sobrando para mim e meus irmãos. Quando fomos ficando adolescente e eles brigavam e nós tentávamos nos meter, ele [pai] começou a esculhambar a gente por nomes ofensivos, de vagabunda, ladrão, etc. Prendia a gente em casa e não deixava sair. Eu tenho até uma cicatriz, até hoje, por causa de uma briga deles, jogaram o cinzeiro e bateu aqui em mim [fronte]. Outro dia, me meti em uma briga deles e tomei um murro no rosto. (Discurso do Sujeito Coletivo 2).

Ideia central síntese 3 - Indignaram-se com a submissão da mãe ao companheiro

Nesta ideia central destaca-se que a sujeição feminina aos maus-tratos do companheiro é incompreendida pelos filhos, gerando revolta por parte destes. Ela (a mãe) sempre 'passa a mão' em tudo que ele faz. Tudo isso foi gerando uma certa revolta dentro da gente [filhos]. Ela era prisioneira dele, ela nunca teve coragem de tomar uma atitude, dar queixa. Eu fui dar queixa dele uma vez que ele agrediu a gente, e ela não foi, até me zanguei por isso. (Discurso do Sujeito Coletivo 3)

Ideia central síntese 4 - Reproduzindo a violência conjugal

Neste discurso, é possível notar que as mulheres entrevistadas compreendem que estão vivenciando relações desrespeitosas com seus companheiros, semelhante ao que presenciaram na infância e adolescência, entre seus pais. O pior é que todos dizem que eu estou seguindo o mesmo caminho de minha mãe. A minha vida está sendo igual a de minha mãe, porque está acontecendo comigo o mesmo que aconteceu com ela: relacionamento conturbado, tudo idêntico, como se eu estivesse carregando o carma dela, apanhada como a minha mãe(Discurso do Sujeito Coletivo 4).

Discussão

O discurso das mulheres em situação de violência conjugal revela que estas, na infância e adolescência, presenciaram violência entre os pais, tendo suas mães vivenciado agressões física, psicológica, moral e patrimonial.

Em uma relação permeada pela violência conjugal, há uma relação desigual de poder entre homem e mulher, que ao se sentir ameaçado e a fim de restabelecer o poder que acredita ter sobre a mulher, o homem se vale de meios desrespeitosos para controlar sua companheira, usando, inclusive, a força física( 1414 . Gomes NP, Diniz NMF. Homens desvelando as formas de violência conjugal. Acta Paul Enferm. 2008;21(2):262-7. ). A abordagem da violência contra a mulher envolve, além do aspecto legal e punitivo, a reflexão acerca dos papéis de gênero construídos e legitimados socialmente, inclusive pelas próprias mulheres. Isto favorece e reforça a ideologia sexista e visão androcêntrica do mundo( 1515 . Bourdieu P. A dominação masculina. 4ed. Rio de Janeiro: Bertrand; 2005. 160 p. ).

Tal compreensão mostra a dimensão da complexidade deste fenômeno e facilita o entendimento sobre a permanência da mulher na relação conjugal. O discurso revela que as participantes, durante a infância e adolescência, por não compreenderem a sujeição de suas mães ao companheiro, indignavam-se com elas. Esta ideia de submissão da mulher ao homem é reforçada por autores( 1616 . Santos CM, Izumino WP. Violência contra as Mulheres e Violência de Gênero: Notas sobre Estudos Feministas no Brasil. Estudios Interdisciplinarios de América Latina y el Caribe. 2014; 16(1): 151-9. ), revelando que para quase metade dos entrevistados, a violência doméstica ocorre por uma questão cultural, ancorada no machismo, justificando a crença de que o homem é dono da mulher. Este achado explicita a legitimação da supremacia masculina, expressada pela opressão do feminino pelo masculino, favorecendo a ocorrência da violência conjugal.

Ressalta-se a impossibilidade de isolamento de qualquer um dos membros da família do impacto da violência. Portanto, a convivência no âmbito familiar, permeado pela violência conjugal, traz sérios danos ao casal, sobretudo à mulher, com repercussões para os filhos( 1717 . Durand JG, Schraiber LB; França-Junior I, Barros C. Repercussão da exposição à violência por parceiro intimo no comportamento dos filhos. Rev de Saúde Pública. 2011;45(2):355-64. ). De acordo o discurso, as mulheres que, atualmente, vivenciam uma relação permeada pela violência, quando crianças presenciaram este fenômeno entre os pais.

Dentre as suas formas, crianças/adolescentes estão mais vulneráveis ao sofrimento da violência doméstica, sendo os pais, os principais autores( 1818 . Vieira LJES, Ferreira RC, Moreira GAR, Gondim APS, Araujo MAL, Silva RM. Factors associated to the imposition of types of violence against women informed in sentry services. Rev. Latino-Am. Enfermagem. 2013;21(4):920-7. ). A violência doméstica contra criança/adolescente traz sérios danos físicos e psicológicos, muitas vezes irreversíveis, ou morte. Neste contexto, para alguns autores, a morte de muitas crianças resulta da violência no "lar"( 1919 . Bannwart TH, Brino RF. Dificuldades enfrentadas para identificar e notificar casos de maus-tratos contra criança e/ou adolescente sob a óptica de médicos pediatras. Rev Paul Pedriatr. 2011;29(2):138-45. ).

Dados sobre a violência contra a mulher mostram que em mais de 65% dos casos os filhos presenciam as agressões cometidas contra suas mães e em cerca de 20% também são violentados( 2020 . Secretaria de Políticas para Mulheres (BR). Balanço semestral do ligue 180 (janeiro à junho/2012). Brasília: Secretaria de Políticas para as Mulheres; 2012. 16 p. ). Quando as crianças vivenciam suas mães sendo violentadas, muitas vezes são vítimas também, tendo sua saúde física, social e psicológica comprometidas, relacionando-se a pesadelos, baixa autoestima, ansiedade, depressão, entre outros distúrbios psicológicos, que podem ser expressos através do baixo rendimento escolar, aumento da taxa de abandono da escola, repetência e má conduta( 2121 . Ludermir AB, Lewis G, Valongueiro SA, Araujo TV, Araya R. Violence against women by their intimate partner during pregnancy and postnatal depression: a prospective cohort study. Lancet. 2010;376:903-10. ).

Percebe-se, portanto, que presenciar a mãe sofrendo qualquer tipo de violência é fator de vulnerabilidade para os filhos, de modo que estas crianças têm maiores chances de vivenciá-la quando adultas, seja na condição de vítima, no caso das mulheres, ou de agressor, no caso dos homens( 1717 . Durand JG, Schraiber LB; França-Junior I, Barros C. Repercussão da exposição à violência por parceiro intimo no comportamento dos filhos. Rev de Saúde Pública. 2011;45(2):355-64. ). Desta forma, estudiosos concordam que a vivência de violência na infância e adolescência repercute na vida adulta dos indivíduos, agindo de forma semelhante com a irmã, colegas de escola e, futuramente, com a namorada e esposa/companheira( 2222 . Labronici LM, Ferraz MIR, Trigueiro TH, Fegadoli D. Perfil da violência contra mulheres atendidas na Pousada de Maria. Rev Esc Enferm USP. 2010;44(1):126-33. ).

O discurso coletivo mostra que as mulheres percebem que estão vivenciando com seus companheiros situações que a mãe vivenciava, alertando para o caráter intergeracional da violência conjugal que, por sua vez, caracteriza-se pela reprodução histórica da violência, na infância e/ou adolescência. Esta reprodução acorre devido ao mecanismo de internalização, que funciona como forma de identificação/semelhança, com base nos comportamentos e valores aprendidos, os quais são naturalizados entre os diferentes grupos sociais, no caso a família( 9. Tondowski CS, Feijó MR, Silva EA, Gebara CF, Sanchez ZM, Noto AR. Padrões Intergeracionais de Violência Familiar Associada ao Abuso de Bebidas Alcoólicas: Um Estudo Baseado em Genogramas. Psicologia: Reflexão e Crítica. 2014;27(4):806-14. ). Esta realidade mostra o quanto a convivência em um ambiente violento condiciona as pessoas a repetirem as mesmas práticas, pois como não foram aprendidos outros modelos de relações familiares, homens e mulheres tendem a reproduzir a história de violência que vivenciaram na infância ou adolescência( 1010 . Gomes NP, Diniz NMF, Araújo AJS, Coelho TMF. Compreendendo a violência doméstica a partir das categorias gênero e geração. Acta Paul Enferm. 2007;20(4):504-8. ).

Diversos estudos demonstraram o caráter intergeracional de violência conjugal, tanto para o agressor, quanto para a vítima. A chance da prática de violência aumenta em 96%, caso a mãe do parceiro tenha sido agredida pelo companheiro (pai/padrasto) durante sua infância. A chance de sofrer violência foi maior em 92% das mulheres cujas mães também foram agredidas( 2323 . Vieira EM, Perdona GSC, Santos MA. Fatores associados a violência física por parceiro íntimo em usuárias de serviço de saúde. Rev Saúde Pública. 2011;45(4):730-7. ). Um estudo longitudinal, ao longo de três gerações, revelou que se a avó foi abusada pelo marido, a filha é mais suscetível a ser molestada sexualmente na infância. De modo semelhante, caso a mãe tenha sido abusada sexualmente quando criança, sua filha tem maior risco de abuso sexual infantil. Por sua vez, as filhas abusadas expressam mais ansiedade sobre as relações amorosas, além de conflitos de fixação precoce( 2424 . Mccloskey LA. [A transferência intergeracional de risco de mãe e filha por abuso de gênero]. Psychodyn Psychiatry. 2013;41(2):303-28. ). Portanto, pessoas com histórico de abusos na infância ou que tenham presenciado violência conjugal dos pais, têm maiores possibilidades de vivenciarem violência em suas relações conjugais( 2525 . Zaleski M, Pinsky I, Laranjeira R, Ramisetty-Mikler S, Caetano R. [Violência íntima por parceiro e a contribuição do consumo alcóolico características sociodemográficas: a Pesquisa Nacional do Álcool brasileiro]. J Interpers Violence. 2010;25(4):648-65. ).

Assim, a transmissão intergeracional da violência tem sido usada para explicar a relação entre violência presenciada na família de origem e violência praticada pelo parceiro íntimo. Diante de tal realidade, é essencial que os profissionais de educação e saúde estejam atentos para o reconhecimento de crianças e/ou adolescentes vulneráveis ou em vivência de violência doméstica, a fim de adotar estratégias de prevenção da violência intergeracional.

Conclusão

As entrevistadas que vivenciam violência na relação conjugal presenciaram, na infância e adolescência, a violência entre os pais e sofreram as repercussões desta violência, sendo agredidas fisicamente, caluniadas, difamadas, entre outras formas de violência praticada pelos pais. Perante esta vivência, as entrevistadas declararam sentimento de indignação, pelo fato da mãe ter uma postura de submissão ao companheiro. No entanto, na fase adulta, compreendem que sua vida conjugal assemelha-se à vida de seus pais: reproduziram a violência conjugal.

O estudo sinaliza a necessidade de investimento em estratégias de rompimento da violência intergeracional, reafirmando a complexidade do fenômeno e a importância de trabalhos sociais junto à comunidade, no sentido de promover a saúde das famílias. Por levar a um processo contínuo e progressivo de perda da saúde, com sérias repercussões, não apenas para a mulher, mas para a família, sobretudo aos filhos, os profissionais de saúde têm grande importância neste processo, uma vez que trata-se de um fenômeno que causa sérios danos à saúde de todos os envolvidos.

Os profissionais que atuam na Estratégia Saúde da Família encontram-se em posição de destaque, pois a atenção primária à saúde tem como eixos condutores, a prevenção de agravos e doenças, promoção da saúde e intersetorialidade. As(os) enfermeiras(os), por integrarem as equipes de referências nos municípios e, muitas vezes, assumirem cargos de gestão, tanto nas unidades, quanto nas áreas temáticas, devem estar preparadas(os) para elaboração, incitação e viabilização de ações de prevenção da violência no âmbito da comunidade, exigindo ações articuladas com outros níveis de atenção à saúde, juntamente com outras áreas (jurídico, serviço social, policial, educação etc).

É indispensável ainda a articulação entre o setor saúde com outras esferas, como a educação e o serviço social, para reflexão e elaboração de projetos e ações que favoreçam a identificação de crianças e adolescentes em vivência de violência doméstica, a fim de romper, o quanto antes, o ciclo de violência: a violência intergeracional.

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    Artigo extraído da dissertação de mestrado "Violência conjugal: compreendendo o fenômeno a partir do discurso feminino", apresentada à Escola de Enfermagem, Universidade Federal da Bahia, Salvador, BA, Brasil.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    Sep-Oct 2015

Histórico

  • Recebido
    16 Fev 2014
  • Aceito
    16 Mar 2015
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