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MEMÓRIAS PÓSTUMAS EM CINCO TRADUÇÕES PARA A LÍNGUA INGLESA AO LONGO DE 70 ANOS: BREVE COMENTÁRIO COMPARATIVO

MEMÓRIAS PÓSTUMAS IN FIVE ENGLISH TRANSLATIONS OVER 70 YEARS: A BRIEF COMPARATIVE COMMENTARY

Resumo

Este trabalho tem como principal objetivo realizar um breve comentário comparativo de cinco traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, publicadas ao longo de aproximadamente 70 anos. O enfoque principal será o tratamento dado, pelas traduções, a itens específicos da cultura e da história brasileiras. Também serão considerados alguns paratextos das traduções, uma vez que estes podem ser um recurso para lidar com elementos culturais específicos ou marcadores culturais.

Palavras-chave:
Memórias póstumas de Brás Cubas; Machado de Assis em inglês; paratextos; marcadores culturais

Abstract

The main objective of this work is to provide a brief comparative commentary on five translations of Memórias póstumas de Brás Cubas into English, published over approximately 70 years. The primary focus will be on the treatment given by the translations to specific items of Brazilian culture and history. Some paratexts of the translations will also be considered, as paratexts can be a resource for dealing with specific cultural elements, or cultural markers.

Keywords:
Memórias póstumas de Brás Cubas; Machado de Assis in English; paratexts; cultural markers

1. Introdução

Parece ser geral a indignação de estudiosos brasileiros de literatura, críticos literários e alguns leitores aficionados à obra machadiana diante da pouca circulação de sua obra em ambientes internacionais (CALDEIRA, 2020CALDEIRA, H. Quem se importa com Machado de Assis? Estado da Arte - O Estado de São Paulo, 13 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/quem-se-importa-machado-hudson-caldeira . Acesso em: 12 out. 2023.
https://estadodaarte.estadao.com.br/quem...
; MOSER, 2018MOSER, B. He's One of Brazil's Greatest Writers. Why Isn't Machado de Assis More Widely Read? The New Yorker, 2 jul. 2018. Disponível em: Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2018/07/09/hes-one-of-brazils-greatest-writers-why-isnt-machado-de-assis-more-widely-read . Acesso em: 12 out. 2023.
https://www.newyorker.com/magazine/2018/...
). Por que será que um escritor tão excepcional não "decola" no exterior? O professor Michael Wood (Princeton University) coloca em termos claros essa inquietação:

Os romances de Machado têm sido publicados em inglês e em outras línguas há uns 50 anos. Não há quem o leia sem considerá-lo um mestre ‒ mas quem o lê, quem já ouviu falar dele? Quando converso sobre Borges, tenho que pronunciar claramente o nome, mas não tenho que dizer quem ele é. Em 1990, apresentando uma nova edição das "Memórias póstumas", Susan Sontag se dizia "espantada ao ver que um escritor dessa grandeza ainda não ocupa o lugar que lhe cabe" (WOOD, 2006WOOD, M. Um mestre entre ruínas. Tradução de Samuel Titan Jr. Teresa - Revista de Literatura Brasileira, n. 6-7, p. 489-510, 2006., p. 506).

Olhando a situação mais de perto, percebemos que Machado tem um certo público leitor em outros países, embora suas obras não tenham muita circulação comercial. Poderíamos dizer que o público leitor internacional de Machado de Assis é eminentemente acadêmico, daí a circulação restrita de suas obras (HATJE-FAGGION, 2017HATJE-FAGGION, V. Tradutores de Machado de Assis: vozes na História da Tradução. Belas Infiéis, v. 6, n. 2, p. 53-70, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/11454 . Acesso em: 11 fev. 2023.
https://periodicos.unb.br/index.php/bela...
; COSTA, 2016COSTA, C. B. "Dom Casmurro" em inglês: Tradução e recepção de um clássico brasileiro. 2016. 390 f. Tese (Doutorado em Estudos da Tradução) - Universidade Federal de Santa Catarina, Centro de Comunicação e Expressão, Florianópolis, 2016.).

Não nos podemos esquecer, no entanto, da recente publicação de duas novas traduções de Memórias póstumas, e principalmente do fato que surpreendeu a muitos: a tradução de Flora Thomson-DeVeaux, lançada em 2020 pela Penguin Classics, esgotou-se em um dia (NOVA TRADUÇÃO..., 2020NOVA TRADUÇÃO de Memórias póstumas de Brás Cubas tem edição esgotada nos EUA. CNN (Informações Agência Brasil), 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/nova-traducao-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-tem-edicao-esgotada-nos-eua . Acesso em: 6 fev. 2023.
https://www.cnnbrasil.com.br/entretenime...
). O fato mostra-se ainda mais surpreendente se nos lembrarmos de que uma tradução "concorrente", a de Margaret Jull-Costa e Robin Patterson, foi publicada, no mesmo ano, pela Liveright. As duas traduções foram muito bem recebidas pela crítica nacional e internacional (CALDEIRA, 2020CALDEIRA, H. Quem se importa com Machado de Assis? Estado da Arte - O Estado de São Paulo, 13 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/quem-se-importa-machado-hudson-caldeira . Acesso em: 12 out. 2023.
https://estadodaarte.estadao.com.br/quem...
; GUIMARÃES, 2020GUIMARÃES, H. S. Duas novas vidas para Brás Cubas. Quatro Cinco Um ‒ Folha de São Paulo, 13 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.quatrocincoum.com.br/br/resenhas/l/duas-novas-vidas-para-bras-cubas . Acesso em: 12 out. 2023.
https://www.quatrocincoum.com.br/br/rese...
) e esse novo despertar do interesse por Machado pode ser explicado por diversos fatores. Várias fontes ligam o lançamento das traduções e o assassinato de George Floyd por um policial branco que o asfixiou com o joelho (NOVA TRADUÇÃO..., 2020NOVA TRADUÇÃO de Memórias póstumas de Brás Cubas tem edição esgotada nos EUA. CNN (Informações Agência Brasil), 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/nova-traducao-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-tem-edicao-esgotada-nos-eua . Acesso em: 6 fev. 2023.
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; ALTMAN, 2020ALTMAN, F. Duas traduções para o inglês de "Memórias póstumas" reavivam a obra-prima: livro de Machado de Assis é tratado como lupa de problemas atuais como o racismo. VEJA, 26 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://veja.abril.com.br/ideias/duas-traducoes-para-o-ingles-de-memorias-postumas-reavivam-a-obra-prima . Acesso em: 6 fev. 2023.
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). Tradutora da edição da Penguin Classics, Flora Thomson-DeVeaux cogita também outros motivos para o sucesso de vendas da primeira tiragem das novas Memórias: a apresentação da tradução, ou o que a tradutora chama de "embalagem", e que em breve trataremos como paratextos. Nas palavras de Thomson-DeVeaux, a sua "é a primeira tradução anotada em língua inglesa" (ALTMAN, 2020ALTMAN, F. Duas traduções para o inglês de "Memórias póstumas" reavivam a obra-prima: livro de Machado de Assis é tratado como lupa de problemas atuais como o racismo. VEJA, 26 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://veja.abril.com.br/ideias/duas-traducoes-para-o-ingles-de-memorias-postumas-reavivam-a-obra-prima . Acesso em: 6 fev. 2023.
https://veja.abril.com.br/ideias/duas-tr...
). Ela também afirma que o prefácio, assinado pelo editor e escritor David Eggers, pode ter valorizado a obra. O texto do prefácio foi anteriormente publicado em formato de resenha na prestigiada revista The New Yorker (ALTMAN, 2020ALTMAN, F. Duas traduções para o inglês de "Memórias póstumas" reavivam a obra-prima: livro de Machado de Assis é tratado como lupa de problemas atuais como o racismo. VEJA, 26 ago. 2020. Disponível em: Disponível em: https://veja.abril.com.br/ideias/duas-traducoes-para-o-ingles-de-memorias-postumas-reavivam-a-obra-prima . Acesso em: 6 fev. 2023.
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; NOVA TRADUÇÃO..., 2020NOVA TRADUÇÃO de Memórias póstumas de Brás Cubas tem edição esgotada nos EUA. CNN (Informações Agência Brasil), 2020. Disponível em: Disponível em: https://www.cnnbrasil.com.br/entretenimento/nova-traducao-de-memorias-postumas-de-bras-cubas-tem-edicao-esgotada-nos-eua . Acesso em: 6 fev. 2023.
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). Realmente, a tradução de Thomson-DeVeaux é muito rica em paratextos. Além da apresentação da tradutora, o volume conta também com notas explicativas muito esclarecedoras, até para leitores brasileiros não especializados.

Voltando às Memórias póstumas e retomando o que foi comentado sobre uma coincidência temporal entre o assassinato de George Floyd e o lançamento de novas traduções do livro: foi um verdadeiro kairós, o momento oportuno, que impulsionou as vendas da tradução de Thomson-DeVeaux. Será mesmo? Parece mais prudente supor que o sucesso se deveu a uma conjunção de fatores, que inclui o fato de a tradução ser de muito boa qualidade (CALDEIRA, 2020CALDEIRA, H. Quem se importa com Machado de Assis? Estado da Arte - O Estado de São Paulo, 13 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/quem-se-importa-machado-hudson-caldeira . Acesso em: 12 out. 2023.
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). Gideon Toury insiste na imprevisibilidade da recepção de uma tradução. Não é porque um projeto de tradução foi construído visando à aceitabilidade de uma obra traduzida que essa obra será efetivamente aceita pela cultura receptora (TOURY, 2012TOURY, G. 'Translation of literary texts' vs. 'literary translation'. In: ______. Descriptive Translation Studies ( and Beyond. Ed. rev. Amsterdam; Philadelphia: John Benjamins, 2012., p. 204).

Alinhando-se a Toury e à sua convicção de que as traduções não devem ser consideradas fora de seu contexto histórico-ideológico-cultural, este trabalho propõe-se a produzir um breve comentário comparativo entre as cinco traduções de Memórias póstumas para o inglês, cada uma localizada em sua época e contexto cultural. No caso das duas primeiras traduções (realizadas por Grossman e Ellis), informações sobre os respectivos tradutores diletantes serão fornecidas. Observa-se, na sequência das traduções, uma tendência à mudança no perfil dos tradutores, com Rabassa, Thomson-DeVeaux e Jull-Costa e Patterson atuando como tradutores profissionais, em oposição a Grossman e Ellis.

Além disso, será considerado especificamente o tratamento dado pelas traduções aos elementos culturais específicos, classificados por alguns de "marcadores culturais" (AUBERT, 2006AUBERT, Francis Henrik. Indagações acerca dos marcadores culturais na tradução. Revista de Estudos Orientais, n. 5, p. 23-36, 2006. Disponível em: Disponível em: https://repositorio.usp.br/item/001533573 . Acesso em: 10 fev. 2023.
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). Além disso, serão considerados também alguns elementos paratextuais,1 1 Gérard Genette, que cunhou o termo "paratexto", diz que um livro raramente se apresenta "em estado nu", sendo sempre acompanhado de um título, um prefácio, ilustrações, aparatos que nunca sabemos se consideramos parte constituinte do livro ou não. Esses elementos ele batiza de "peritextos", porque são apresentados juntamente com o "miolo" do livro. Além dos peritextos, temos os "epitextos", que são gerados em referência à obra em questão, mas estão mais distantes dela, e podem ser resenhas, entrevistas, colóquios, autocomentários tardios etc. (GENETTE, 2009). como o título, os textos que acompanham a tradução (notas explicativas, prefácios, posfácios), bem como (quando os houver) textos que atestem a recepção dessas traduções nos contextos de chegada.

2. William Grossman e a primeira tradução: Epitaph of a Small Winner, de 1952

A edição de 2008 conta a história da tradução de Grossman: ela foi revista pela sua mulher, Mignon Grossman, em 1980 (ASSIS, 2008______. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2008.). O volume traz também o prefácio de Susan Sontag e ilustrações de Shari Frisch. A editora é a Farrar, Straus, and Giroux, de Nova York. A primeira edição é de 1952 e foi publicada pela Noonday Press. A quarta capa da edição de 2008 traz frases elogiosas do escritor Louis de Bernières e da editora Liz Calder. A primeira capa anuncia o prefácio de Sontag e acrescenta um comentário de Salman Rushdie, dizendo que o livro é uma das obras-primas da literatura brasileira, e que traz o "tipo de humor que faz as caveiras rirem".

Circularam comentários negativos sobre o título em inglês, que se afasta muito do título original. Gregory Rabassa, por exemplo, classificou os títulos anteriores ao de sua tradução de "estúpidos". Ele só pode estar se referindo à primeira tradução publicada nos Estados Unidos, pois os títulos das outras traduções não se afastam muito do título original (HATJE-FAGGION, 2017HATJE-FAGGION, V. Tradutores de Machado de Assis: vozes na História da Tradução. Belas Infiéis, v. 6, n. 2, p. 53-70, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/11454 . Acesso em: 11 fev. 2023.
https://periodicos.unb.br/index.php/bela...
, p. 61).

É interessante notar que Grossman fez a tradução de livre e espontânea vontade, tendo-a publicado no Brasil, em 1951, às suas próprias expensas, pela São Paulo Editora. Nessa primeira tradução brasileira em inglês, o título era The Posthumous Memoirs of Braz Cubas (SCHNEIDER, 1952SCHNEIDER, O. Machado de Assis em inglês (Entrevista com William Grossman). A manhã, Suplemento Letras e Artes, p. 4, 11 maio 1952. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/114774/per114774_1952_00249.pdf . Acesso em: 11 fev. 2023.
http://memoria.bn.br/pdf/114774/per11477...
, p. 4 apudHATJE-FAGGION, 2017HATJE-FAGGION, V. Tradutores de Machado de Assis: vozes na História da Tradução. Belas Infiéis, v. 6, n. 2, p. 53-70, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/11454 . Acesso em: 11 fev. 2023.
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, p. 54). Os argumentos contra o título americano de Grossman são de que "memórias" e "epitáfio" não são a mesma coisa, já que quem escreve um epitáfio não é a pessoa que morreu. O morto pode, no máximo, encomendar um epitáfio que alguém providenciará para colocar na sua lápide. Assim, o título oculta o que é sugerido no texto em português, ou seja, que quem escreve e dialoga com o leitor é um "defunto autor".

Por outro lado, Epitaph of a Small Winner parece ser um título mais atraente, que despertaria a curiosidade de um leitor de língua inglesa que tivesse pouco ou nenhum conhecimento da obra de Machado. A introdução do tradutor apresenta o autor brasileiro a leitores anglófonos e explica o título:

Yet in the final chapter, when he comes to calculate the net profit in his life, he finds it to be zero ‒ until he remembers that, having no children, he has handed on to no one the misery of human existence. And so, he concludes, he is a little ahead of the game, a small winner (GROSSMAN, 2008GROSSMAN, W. L. Translator's Introduction. In: ASSIS, J. M. Machado de. Epitaph of a Small Winner. Tradução de William Grossman. New York: Farrar, Straus, and Giroux, 2008., p. XXI).

No final do prefácio, Grossman dá alguns esclarecimentos sobre termos que aqui estamos chamando de "marcadores culturais" ou "elementos específicos de uma cultura": quanto valeria um "conto", o "cruzado" e a "dobra". Informa que essas equivalências não são exatas, mas são adequadas ao propósito de uma obra literária; além disso, Grossman observa que, na maioria das vezes, pelo contexto da situação, é possível deduzir se o valor é alto ou baixo.

Sobre os nomes de lugares mencionados no romance, ele afirma que são nomes de bairros e subúrbios do Rio de Janeiro, a não ser quando o contexto indica o contrário. Sobre os termos "Yayá" (usado para Virgília) e "Nhonhô", empregado para o próprio Brás Cubas (principalmente quando criança) e para o filho de Virgília, ele explica que eram apelidos comuns para meninas e meninos, filhos de famílias ricas. Feita essa explicação, ele simplesmente usa os termos em português para se referir aos personagens mencionados. Grossman diz que coloca essas explicações no prefácio para evitar intrusões editoriais desnecessárias. Isso mostra a preocupação do tradutor em não interromper o fluxo da leitura. Pode-se dizer que essa tradução visa a um público anglófono geral, não sendo uma tradução comentada para um ambiente acadêmico, por exemplo.

William Grossman (1906-1980) não foi escritor nem literato, embora tenha frequentado os meios universitários. Foi professor de economia de linhas aéreas no Brasil, no Instituto Tecnológico da Aeronáutica (ITA), entre 1948 e 1952. Formou-se em Economia na Universidade de Harvard e Direito na Universidade de Nova York, onde também foi docente, tendo publicado em diversos periódicos internacionais (WILLIAM..., 2015WILLIAM Leonard Grossman. AEITA (Associação dos Engenheiros do ITA), 2015. Disponível em: Disponível em: http://www.aeitaonline.com.br/wiki/index.php?title=William_Leonard_Grossman . Acesso em: 11 fev. 2023.
http://www.aeitaonline.com.br/wiki/index...
).

Grossman mostrou-se ser um agenciador cultural meio improvável, mas eficiente. Não só ele financiou a publicação no Brasil de sua primeira tradução, com o título Posthumous Memoirs of Braz Cubas, mas também procurou editoras que se interessassem pela obra nos Estados Unidos, o que não parece ter sido um trabalho fácil. Como explica a professora Válmi Hatje-Faggion, sobre Grossman:

[...] após várias tentativas de publicar a tradução, por intermédio de um amigo poeta, Cecil Hemley, ele finalmente conseguiu publicá-la em New York pela Noonday Press, "pequena casa editora que só publica livros que fogem do padrão usual, e destinados a uma pequena elite, e em reduzidas tiragens de 3.000 exemplares" (HATJE-FAGGION, 2017HATJE-FAGGION, V. Tradutores de Machado de Assis: vozes na História da Tradução. Belas Infiéis, v. 6, n. 2, p. 53-70, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/11454 . Acesso em: 11 fev. 2023.
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, p. 64).

Grossman foi impulsionado a realizar, divulgar e publicar sua tradução por um afeto pessoal, por apreciar uma obra que, segundo consta, lia para aprender português.

O jornal carioca A manhã, além de publicar uma entrevista com Grossman feita por Otto Schneider (SCHNEIDER, 1952SCHNEIDER, O. Machado de Assis em inglês (Entrevista com William Grossman). A manhã, Suplemento Letras e Artes, p. 4, 11 maio 1952. Disponível em: Disponível em: http://memoria.bn.br/pdf/114774/per114774_1952_00249.pdf . Acesso em: 11 fev. 2023.
http://memoria.bn.br/pdf/114774/per11477...
, p. 4), também divulgou a publicação de Epitaph nos Estados Unidos e o destaque dado pelo Times Literary Supplement à obra. É interessante também observar que o lançamento das duas últimas traduções em 2020 acabou também promovendo o Epitaph de Grossman.2 2 É o que se constata em canais de resenhas de livros no YouTube, como o It's Too Late to Apologize (https://www.youtube.com/watch?v=OZRKdSvDh9A, 2021), o Tristan and the Classics (https://www.youtube.com/watch?v=4-sPXaRehiI, 2021) e o Elegant Couple's Book Review (https://www.youtube.com/watch?v=XUfT42trXVs, 2021), entre outros.

Ainda observando que William Grossman foi de fato um embaixador da nossa literatura no mundo de língua inglesa, principalmente nos Estados Unidos, mesmo que tenha avançado por vias não muito convencionais, cabe mencionar que, no final da década de 1970, Grossman doou sua coleção de edições antigas e obras da crítica machadiana para a Universidade de Brown, disponibilizando-a nos Estados Unidos para quem pudesse se interessar (MACHADO DE ASSIS - THE COLLECTIONMACHADO DE ASSIS - THE COLLECTION. Brown University. Disponível em: Disponível em: https://library.brown.edu/create/brasiliana/machado . Acesso em: 11 fev. 2023.
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).

3. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas, de E. Percy Ellis, a segunda tradução, de 1955

Embora sejam bastante próximas temporalmente, a primeira e a segunda tradução das Memórias são bastante distintas em vários aspectos. Enquanto William Grossman se voluntariou para fazer sua tradução por um gosto pessoal, tendo inclusive financiado sua publicação no Brasil, a tradução de Edward Percy Ellis (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.), embora também lançada aqui no Brasil, deve provavelmente ter sido encomendada pelo Instituto Nacional do Livro, do Ministério da Educação e Cultura.

Não é fácil encontrar informações sobre o tradutor. Na Internet, as poucas entradas relacionadas a seu nome indicam que ele nasceu em Kent, na Inglaterra, em 1879, e em 1907 veio trabalhar no Brasil numa empresa de representação farmacêutica da Bahia. Depois foi para o Rio de Janeiro. Além desse trabalho técnico na área farmacêutica, Ellis pertencia à Igreja Evangélica Fluminense, na qual era muito atuante, destacando-se como grande erudito e conhecedor das Escrituras Sagradas e da língua grega, entre outras. Também foi autor de muitos livros de cunho religioso (EDWARD...EDWARD Percy Ellis. Movimento dos Irmãos. Disponível em: Disponível em: http://movimentodosirmaos.blogspot.com/p/edward-percy-ellis.html . Acesso em: 11 fev. 2023.
http://movimentodosirmaos.blogspot.com/p...
).

Não é muito raro que agências culturais de um país promovam seus autores por meio de traduções, e é isso o que parece ter acontecido no caso de Ellis. A questão aqui é como fazer circular a obra traduzida entre seu suposto público receptor. Se essa tradução não foi comercialmente promovida, sem contar com a habilidade que as editoras profissionais têm para fazer isso, ela talvez tenha circulado por meio de embaixadas brasileiras em países anglófonos, por exemplo. Mas não é muito provável que, nesses casos, a circulação tenha sido eficiente.

À guisa de prefácio, encontramos um texto de Augusto Meyer, o diretor do Instituto Nacional do Livro, apresentando a Coleção de Traduções de Grandes Autores Brasileiros, da qual a primeira publicação parece ser justamente as Memórias, porque Meyer menciona quais serão as próximas traduções a serem lançadas (MEYER, 1955MEYER, A. Prefácio. In: ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955.).

Quanto aos marcadores culturais, o que mais chama a atenção na tradução de Ellis é que em muitos casos esses termos específicos são mantidos em português, sem nenhuma explicação. É o que acontece com "Nhonhô" e "Yayá". Por mais que o contexto acabe por si explicando em que situações essas expressões são usadas, com crianças de famílias ricas, nada se explica sobre a origem dos termos, na fala dos escravos, como corruptelas de "sinhô" e "sinhá", que por sua vez derivam de "senhor" e "senhora".

De fato, é significativa a quantidade de termos e expressões que o tradutor mantém no original em português, o que pode causar dificuldade ao leitor anglófono. Por exemplo, na tradução de Ellis, no prólogo da terceira edição (assinado por Machado), temos o seguinte trecho: "What makes my Braz Cubas a singular author is what he is pleased to call his 'rabugens de pessimismo'" (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p.6).

Termos representativos da cultura brasileira, como "Festa de São João", não são traduzidos, como em "she was less thin than when I last saw her, at a Festa de São João" (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 20). Um pouco adiante na mesma cena, por que Virgília deveria dizer "Jesús! Three o´clock. I must go"(ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 21)? De onde vem esse "Jesús", em espanhol? Será que o tradutor não percebeu a diferença entre as línguas?

No capítulo X, que relata o nascimento de Brás Cubas, a parteira recebe do pai da personagem "duas meias dobras". Comentamos que na tradução de Grossman há uma explicação não muito aprofundada sobre as equivalências monetárias. Na de Ellis, a parteira recebe "two Whole Half Doubloons" (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 34), que parece ser uma aproximação fonética ao original, mas o termo não vem acompanhado de nenhum esclarecimento. Em contrapartida, no capítulo XVII, o tradutor sente a necessidade de indicar quanto valeriam os "onze contos de réis", na célebre frase "Marcela amou-me durante quinze meses e onze contos de réis" (ASSIS, 2020______. Memórias póstumas de Brás Cubas. [recurso eletrônico] 2 ed. Jandira/SP: Princips, 2020., p. 61). O tradutor mantém a forma em português, em itálico, e tenta fazer a equivalência numa nota de rodapé: "Say, £1250" (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 60).

No capítulo XI, quando uma escrava comenta os avanços do tio de Brás Cubas com um "‒ Cruz, diabo!... Este sinhô João é o diabo!" (ASSIS, 2020______. Memórias póstumas de Brás Cubas. [recurso eletrônico] 2 ed. Jandira/SP: Princips, 2020.,p. 39), a tradução reproduz exatamente a mesma frase em português, sem explicação alguma, apenas em itálico (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 40). Faria algum sentido para um leitor anglófono? No capítulo XXXIX, Marcela está na sua loja conversando com Brás Cubas, que demorou a reconhecê-la depois de tanto tempo, quando um vizinho da loja entra com a filha pequena. Em inglês, o pai diz à menina: "Eh, Maricota? Toma a bênção... Where are your manners?". A pergunta/repreensão é perfeitamente inteligível, mostrando a reprovação do pai diante do comportamento da filha. Mas a frase imediatamente anterior é opaca. Nesse caso, o tradutor sentiu a necessidade de adicionar a seguinte nota de rodapé à frase que está em inglês: "Original: 'Olha a vara de marmelo!' Vara de marmelo is the equivalent of birch or cane in English" (ASSIS, 1955ASSIS, J. M. Machado de. Posthumous Reminiscences of Braz Cubas. Tradução de E. Percy Ellis. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1955., p. 111). O problema não é o tradutor explicar que em português foi utilizado esse termo e que ele equivale a tal outro termo em inglês (claro que ele poderia ter usado "cane" ou "birch"), mas a inconsistência de um esclarecimento tão detido e minucioso para algo que já é inteligível, ao lado de uma frase que um leitor anglófono não entenderia. E mais incoerência ainda é adicionada ao conjunto, se pensamos na fala da escrava, inteiramente em português, sem explicação alguma...

Entretanto, cabe indagar se um leitor "leigo", uma pessoa que não pesquisasse na área da tradução, iria ficar muito incomodado com essas aparentes incongruências. Apesar das diferenças, as duas traduções parecem ser destinadas a leitores "comuns", não especializados.

4. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas, de Gregory Rabassa, a terceira tradução, de 1997

O volume faz parte da coleção Library of Latin America, da Oxford University Press (ASSIS, 1997______. The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Gregory Rabassa. New York; Oxford: Oxford University Press, 1997.), conta com um prefácio bastante didático sobre o livro, escrito por Enylton de Sá Rego, professor da Universidade do Texas-Austin. Há também um posfácio, assinado pelo professor Gilberto Pinheiro Passos. O posfácio é, digamos, mais erudito, esclarecendo ao leitor as muitas alusões feitas por Machado no romance. Gregory Rabassa é um tradutor bastante conhecido, dispensando apresentações. A contracapa traz vários elogios à obra, retirados de publicações anteriores, e produzidos pela equipe editorial. Rabassa é apresentado como um tradutor, altamente aclamado, de obras latino-americanas.

Quanto aos termos culturalmente específicos, temos o seguinte: as "dobras" são também traduzidas por "doubloons", como aconteceu na tradução de Ellis. Termos como "contos" ou "mil-réis", importados do português, aparecem em itálico. Para "Nhonhô", quando utilizado para o filho de Virgília, o termo é mantido em português, mas não em itálico. Quando empregado para Brás Cubas, é variadamente traduzido por "young man" e "little master". Para "Iaiá", usado para Virgília, o termo é emprestado do português, também sem itálico.

A tradução não tem uma nota de rodapé sequer e nenhum outro tipo de manifestação do tradutor. De fato, em entrevista concedida à Profa. Válmi Hatje-Faggion, Rabassa disse que não gosta das notas de rodapé porque elas desviam a atenção do leitor. Além disso, Rabassa parece assumir uma postura meio espontânea ao traduzir, e se diz "guiado" pelo autor que está traduzindo no momento: "os mestres vão orientá-lo a traduzir a prosa deles na melhor tradução possível se você deixar se guiar pela expressão deles, seguindo o único caminho possível. Entretanto, se você parar para refletir terá perdido o rumo" (RABASSA apudHATJE-FAGGION, 2017HATJE-FAGGION, V. Tradutores de Machado de Assis: vozes na História da Tradução. Belas Infiéis, v. 6, n. 2, p. 53-70, 2017. Disponível em: Disponível em: https://periodicos.unb.br/index.php/belasinfieis/article/view/11454 . Acesso em: 11 fev. 2023.
https://periodicos.unb.br/index.php/bela...
, p. 59).

5. [The] Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Duas traduções contemporâneas, de Flora Thomson-DeVeaux e de Margaret Jull-Costa e Robin Patterson

Publicado pela editora Liveright, Posthumous Memoirs of Brás Cubas (ASSIS, 2020a______. Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de Margaret Jull-Costa e Robin Patterson. Nova York: Liveright, 2020a.), na tradução de Margaret Jull-Costa e Robin Patterson, tem uma singularidade que é bastante relevante para a comunidade dos tradutores: os nomes de Jull-Costa e Patterson aparecem na capa do livro, em fontes menores que o nome de Machado de Assis, mas estão lá, na primeira capa, dando o merecido destaque aos principais responsáveis pela publicação.

O livro tem uma introdução assinada pelos tradutores, na qual dados gerais da obra e do contexto de Machado são veiculados, mas nada é dito sobre a tradução em si. A quarta capa, como é usual, traz várias frases elogiosas de escritores e críticos literários. A tradução apresenta várias notas, que cobrem inclusive os "marcadores culturais" ou elementos específicos da cultura brasileira. Por exemplo, há uma nota logo no primeiro capítulo sobre equivalências monetárias, que afirma que os trezentos contos que Brás Cubas diz possuir quando está prestes a morrer representam uma quantia considerável, equivalente a alguns milhões de dólares americanos. Outras notas se referem a alusões feitas por Machado a obras literárias, figuras históricas, passagens bíblicas, entre outras. Para o termo "Nhonhô", no caso do filho de Virgília, os tradutores emprestam o vocábulo do português, mas também não dão nenhuma explicação sobre sua origem. Para Brás Cubas menino, eles variam entre "little master", "little man", "massa" e "master". Para o "Iaiá" de Virgília, os tradutores escolhem "my mistress" e "missy".

É interessante o recurso a dois termos que eram usados pelos escravos que tinham contato com a língua inglesa, "massa" sendo uma corruptela de "master" e "missy", uma espécie de diminutivo de "miss", senhorita. Assim, eles optaram por buscar um equivalente desses termos de tratamento em inglês, em vez de importá-los do português.

A tradução de Thomson-DeVeaux (ASSIS, 2020b______.The Posthumous Memoirs of Brás Cubas. Tradução de de Flora Thomson-Devaux. London: Penguin, 2020b.) é fruto de um trabalho de doutorado que vai além de uma tradução comercial e, portanto, é muito rica em notas e informações complementares. As notas de fim chegam a trazer informações sobre trechos que apareceram de forma diferente na Revista Brazileira, em que o romance foi publicado de forma seriada. É uma tradução mais acadêmica, de estudo, mas não é nem um pouco enfadonha, como poderia sugerir o termo "acadêmica". As notas de fim deixam o leitor que não gosta de notas mais à vontade para dispensá-las, o que é uma boa política de não impor o conhecimento de informações que são mais contextuais, não estando diretamente no romance.

No capítulo 68, quando Brás Cubas reencontra seu antigo escravo Prudêncio batendo no seu agora escravo no cais do Valongo, a tradução de Thomson-DeVeaux traz a informação de que ali era um lugar de chegada e comercialização de escravos, o que é bastante significativo na cena, já que se trata de um ex-escravo espancando um escravo. Thomson-DeVeaux, desse modo, trouxe informações que poderiam passar despercebidas, já que o Valongo foi "redescoberto" em 2011, tendo se tornado um Patrimônio Cultural da Humanidade em 2017 (CAIS...CAIS do Valongo. Wikipedia. Disponível em: Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Cais_do_Valongo . Acesso em: 19 out. 2023.
https://pt.wikipedia.org/wiki/Cais_do_Va...
). Para muitos leitores brasileiros, essa nota pode ter sido uma surpresa, como aconteceu comigo. Eu sabia o que fora o cais do Valongo, mas não quando li o livro na adolescência.

Para o marcador cultural "Nhonhô", Thomson-DeVeaux o mantém em português quando usado para o filho de Virgília e apresenta uma longa explicação nas notas de fim sobre a origem do termo, dizendo que, quando usado para Brás Cubas, o termo foi diversamente traduzido por "young master", "little master" ou simplesmente "master". Para "Iaiá", o termo escolhido foi "Missus", sem o acréscimo de notas, estratégia que se aproxima da de Jull-Costa e Patterson.

A tradução de Thomson-DeVeaux é certamente a mais aclamada. No volume, encontramos elogios para a tradutora partindo de Dave Eggers, Pedro Meira Monteiro, Paul Dixon, João Cezar de Castro Rocha; para Machado de Assis, partindo de Harold Bloom, Susan Sontag, Allen Ginsberg, Philip Roth, John Updike, Carlos Fuentes, Louis de Bernières, José Saramago, das publicações NYT Review of Books, Lingua Franca, The New Republic, The Guardian. Os elogios à obra vêm de Sontag e de publicações como o New York Times, NYT Review of Books, Wall Street Journal, The Nation.

6. A título de conclusão

O presente trabalho teve como objetivo realizar um breve comentário comparativo sobre as cinco traduções de Memórias póstumas de Brás Cubas para o inglês, produzidas ao longo de aproximadamente 70 anos. Em termos de quem são os tradutores, as publicações parecem se reunir em dois grupos distintos, as duas primeiras tendo sido feitas por tradutores amadores ou diletantes, que tinham como profissão outras atividades, e as três mais recentes tendo sido feitas por tradutores profissionais. Para os que já são admiradores de Machado, a tradução de Thomson-DeVeaux traz o grande encanto da informação extremamente detalhada, que nos deixa mais próximos do autor e nos traz dados sobre a versão anterior da obra publicada em formato seriado. No entanto, sendo essas notas apresentadas ao final do livro, esse detalhamento, que alguns leitores podem julgar demasiado, não incomoda aqueles que estão mais interessados na narrativa em si.

Comentamos no início o fato de Machado de Assis ser um autor talvez mais restrito aos meios acadêmicos. Não há evidências inegáveis de que ele tenha "rompido a bolha", passando a figurar num ambiente literário mais comercial, pelo menos de uma forma duradoura. Já em 2008, por ocasião do centenário da morte do autor, Larry Rohter escreveu sobre um "florescimento" da reputação literária de Machado, fazendo um apanhado de diversos críticos, escritores e personalidades que o consideravam excepcional e que se perguntavam por que Machado não era amplamente aclamado em âmbito mundial (ROHTER, 2008ROHTER, L. After a Century, a Literary Reputation Finally Blooms. The New York Times, 12 set. 2008. Disponível em: Disponível em: https://www.nytimes.com/2008/09/13/books/13mach.html . Acesso em: 12 out. 2023.
https://www.nytimes.com/2008/09/13/books...
). Em 2018, uma resenha crítica identificou uma "nova onda de internacionalização de Machado de Assis" (GABRIEL, 2018GABRIEL, R. S. A nova onda de internacionalização de Machado de Assis. Época ‒ O Globo, 11 set. 2018. Disponível em: Disponível em: https://oglobo.globo.com/epoca/a-nova-onda-da-internacionalizacao-de-machado-de-assis-23055651 . Acesso em: 12 out. 2023.
https://oglobo.globo.com/epoca/a-nova-on...
). Nesse texto, o autor faz uma retrospectiva de várias manifestações de júbilo, por parte de brasileiros em diferentes épocas, pelo fato de Machado estar ganhando leitores de outros países.

As duas últimas traduções simultâneas de Memórias póstumas, publicadas em 2020, e o fenômeno de vendas que foi a tradução de Thomson-DeVeaux, sugerem um novo florescimento e um crescimento no número de leitores internacionais, mas não garantem que Machado vai se transformar num autor mais reconhecido na República Mundial das Letras (CASANOVA, 2002CASANOVA, P. A república mundial das letras. Tradução de Marina Appenzeller. São Paulo: Estação Liberdade, 2002.), como Kafka, por exemplo. De qualquer forma, essa renovação do interesse em Machado, por reduzida e passageira que possa ser, alimenta nossa "autoestima coletiva", como diz Hudson Caldeira (2020CALDEIRA, H. Quem se importa com Machado de Assis? Estado da Arte - O Estado de São Paulo, 13 jul. 2020. Disponível em: Disponível em: https://estadodaarte.estadao.com.br/quem-se-importa-machado-hudson-caldeira . Acesso em: 12 out. 2023.
https://estadodaarte.estadao.com.br/quem...
). Esse autor justifica, numa análise sagaz, nossa alegria com o sucesso de Machado no campo internacional: "Uma tradução bem-sucedida de um de nossos clássicos nos importa por causa da centralidade desses autores em nossa experiência como leitores; e porque desejamos ter, inclusive fora do Brasil, a nossa existência interior reconhecida".

Num misto de vaidade patriótica, sensação de reconhecimento há muito negado e alegria porque mais pessoas poderão apreciar Machado, lavamos a alma com essa nova onda de aclamação em nível internacional de nosso grande autor, mesmo que seja apenas uma onda ‒ e, portanto, passageira. De qualquer forma, as duas traduções publicadas em 2020 estabelecem um novo marco da presença de Machado no campo internacional.

Referências

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  • 1
    Gérard Genette, que cunhou o termo "paratexto", diz que um livro raramente se apresenta "em estado nu", sendo sempre acompanhado de um título, um prefácio, ilustrações, aparatos que nunca sabemos se consideramos parte constituinte do livro ou não. Esses elementos ele batiza de "peritextos", porque são apresentados juntamente com o "miolo" do livro. Além dos peritextos, temos os "epitextos", que são gerados em referência à obra em questão, mas estão mais distantes dela, e podem ser resenhas, entrevistas, colóquios, autocomentários tardios etc. (GENETTE, 2009GENETTE, G. Paratextos editoriais. Tradução de Álvaro Faleiros. Cotia: Ateliê Editorial, 2009.).
  • 2
    É o que se constata em canais de resenhas de livros no YouTube, como o It's Too Late to Apologize (https://www.youtube.com/watch?v=OZRKdSvDh9A, 2021), o Tristan and the Classics (https://www.youtube.com/watch?v=4-sPXaRehiI, 2021) e o Elegant Couple's Book Review (https://www.youtube.com/watch?v=XUfT42trXVs, 2021), entre outros.

Datas de Publicação

  • Publicação nesta coleção
    01 Dez 2023
  • Data do Fascículo
    2023

Histórico

  • Recebido
    21 Fev 2023
  • Aceito
    30 Set 2023
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